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‘Do mesmo autor: Livre-Troca (com Hans Haacke) Meditagies Paseatianas © Poder Simbético DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE ACOA » 24300133609 Pierre Bourdieu A DOMINACAO MASCULINA 2* EDICAO Traduciio Maria Helena Kahner SBO-FFLCH-USP 282273 sare Bonase Copyright © ditions du Seuil, 1998 “Titulo criginal: La domination masculme Capa: Sitnone Vitlss Boas Revisto da tradugao: Gustavo Sora Baitoragto: DEL, 2002 Inpresso no Brasit Printed in Brazil C1P-Brasi. Catalogagdo-na-fonte Sindicaio Nacional dos Fatiores de Livros, RE Bourdicu, Pere, 1934-2002 BITEd A dorninagao mascelina/Pieme Bourdieu; tradugdo Maria Helena Ped Kole ~2"ed. ~Riode Janeiro: Bernd Brasil, 2002 0p. “Tradngdo de: Ladomination masculine Inciancxo ISBN 45-286-0705-4 1. Paget sexual, 2. Domninagdo Psicologia. 3. Poder (Clémeias sociais) 4. Homem Pascologia. 1. Titulo. Dp ~3067 79-9353 . COU ~ 316.3462 ‘Todos os direitos reservatios pela: EDITORA BERTRAND BRASILLTDA. Rue Argentina, 171 ~ 1° andar— Sto Crist6vao 20921-380— Rio de Janciro~ RJ ‘Teh: (OXX21) 2585-2070 — Fax: (OXX21) 2585-2087 ‘Nao ¢ permitida a reprodugto total oa parcial deste obra, por quaisquer eis, sem a prévia autorizagio por eserito 6a Editor. Atendemos pelo Reembolso Postal AETERNIZACAO DO ARBITRARIO Eaetrosem an pute pein, fra con iss ses nein sobe 0 mse tenn apne ne pane piste de blo deeds ds are ae jn pac qucsimeaptroteaqucsao oben bata ed a eases crn prone ress onal ou ‘eee dnosfonmnd ete port ew deta terat ga eae ee naane gor vas peed con ods eras antago 43 con eas dacs smu doves toes do qa ssi rela como i a condivd © eter cosas aa e mediate ead = sen eis temo a sag dv muers), de agar «Ae connate aan ds ce. Se nee neces opr une gt, a eee team ¢ ser 6005 Seth, Sen vest pla era i ely san Ae lor er Go gnu sea peti pe fa cet em acim dese eying de aa socstne cae ulamere bes comcreads (emo 9 soi cb al como pate See kc dos ane Sosea) fret aararetcs gis pect compreender eer a anc iris Gago gu to es Fagen ts vos co deen are mantis cpmicmente reco eames egeiase qua soos ea cata pun pl deo « oa rangi is BE Beniejan ole dos nese svt evesponeres Cleat 0 problems soe ena rs pregrete mt lt eahcinento ge poe ea 0 prinlo Fee ro acsne ta tid ao Lee qe aqui a a Sue deo ere nur qe pret dam tube a eemsgn gece si servile ne cose» fn» ap, cl «tanh Ua oc eden, 9 ee fe nas ge ts wend Spends seins de sae eames, gr dv saab em et cro ate palode Meee ante hone, rare dever taco htc, tao eases sok de dtr ence de sanc (0 comme gusta Eat Se Sah rear nite opps agentes es, font tog itr ads orci da decker prince sent, ns ncn Sei ve ep cache 9 iri eurazana ne nal carn Eta mobili mandate poe, ques See ia cums a tn de evened ne sd ee Baar Pier ope anto 8 rego a gue enor as vies esenctaltt ee eta) uaa co sec to aera edu #8 Cre Sd nats hagpnrs we tempest goe pen ca indie Src etc ets rpius Rees ds tina eatin como “pend eee Ft woth De exes seaside, es param reso mo Einitoe demas ce. ar mn comprontn cama pin ec sents ov norco Se peur pop desided ie Pr er eet uns vate dois lia, 0 saa ira. D9 eS ae eee pecth sce eet coniSh st at sem ti fo € 5 Nosh mH arte cos reco dos vere abso copa et ovireiok cane ac papers vases eres eperios E dwt So is bu be ‘finsies ecm nose emo. ane ssl e apnnd sem grit ae a ractrcons edizrang nlc dae ens, jntamete Om ce Ce aude os pibeidos fora de nant cde aie cles ¢ {a nn ate sre capa ea ae, ee) Qe ‘Enver sobre PERE HOURDIEU Profclo deci ales PREAMBULO* Certamente 30 me teria confrontade com as- sunto tho dificil se nto tivesse sido levado a isso por toda a légi- ca de minha pesquisa. De fato, jamais deixei de me espantar diante do que poderiamos chamar de o paradoxo da déxa. 0 fato deque a ordem do mundo, tal como esta, com seus sentidos tini- cos ¢ seus sentidos proibidos, em sentido proprio on figurado, suas obrigagdes e suas sancies, seia grosso modo respeitada, que ‘nao haja um maior mimero de transgressdes ou subversOes, deli- tos e “loucuras” (basta pensar na extraordinaria coordenacio de mi-thares de disposigoes —- 04 de vontades — que cinco minu- tos de circulacao automobilistica na Praga da Bastilha ou da Concorde requerem); ou, 0 que é ainda mais surpreendente, que 2 ordem estabelecida, com suas relacoes de dominacao, seus di- reitos e suas imunidades, seus privitégios e suas injusticas, salvo uns poucos acidentes historicos, perpetye-se apesar de tudo tio facilmente, ¢ que condicdes de existencia das mais intoleraveis possam permanentemente ser vistas como aceitiveis ou até mes- ‘mo como naturais. Também sempre yi na dominacao mascutina, £no modo como ¢ imposta ¢ vivenciada, o exemplo por excelén- cia desta submissao paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violé” ia simbdlica, violencia suave, insensivel, invisivel @ suas pruprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas Vias pus ramente simbdlicas da comunicagao ¢ do conhecimento, ou, ~ Porn ther ramen + optecianos gonna vce banca ov nfo neo pesos © quem foster dos, contrtormnees am expe minh proied2 ‘ko a fodos onulos » scbrde @ todas amielos que me Fore fe uno documents, lets ceric, don, « minha esperonca de Gv oe ‘obetho vero a wr dgno obra em rau lator, do coniomo dak expecta os ue es ou dos nel depestron, “msi precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ‘ou, em altima instancia, do sentimento, Essa relagdo social ex- traordinariamente 6rdinavia oferece também uma ocasito th de apreender a l6gica da dominacao, exercida em nome de wm prinetpio simbelico conhecido e reconhecido tanto pelo domi-_ nante quanto pelo dominzdo, de uma lingua (ou uma maneira ‘de falar), de um estilo de vida (ow uma mancira de pensar, de fa- _ lar gu de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distinti- vva, erpblema ou estigma, dos quais 0 mais eficiente simbolica~ mente é essa propriedade corporal inteiramente arbitearia e no predicativa que é a cor da pele. “Torna-se evidente que, nessas matérias, nossa questo princi- pal tem que ser a de restituir & déxa seu carter paradoxal e, a0 ‘mesmo tempo, demonstrat os processos que sho responsaveis pela transformagao da historia em natureza, do arbitrario cultural em natural. E, ao (a2é-10, nos pormos @ altura de assumir, sobre nos- 50 prOprio universo e nossa propria visto de mundo, o ponto de ‘vista do antropélogo capaz de, ao mesino tempo, devolver & dife- renga entre‘o mascuilino e feminino, tal como a (des)eonhece~ ‘mos, seu cardter arbitririo, contingente, e também, simultanea~ ‘mente, sua necessidadle sécio-légica. Nao ¢ por acaso que, quando quis por em suspenso o que ela chama, magnificamente, de “o poder hipnético da dominacao”, Virginia Woolf se armou de uma analogia etnografica, religando geneticamente a segregagao das ‘mulheres aos rituais de uma sociedade ascaica: “Inevitavelmente, nés consideramos a sociedade um lugar de conspiragio, que engole o iemao que muitas de nés temos razdes de respeitar na vida privada, e impde em sex lugar um macho monstruoso, de voz tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril, inscreve no chao signos em giz, misticas linhas de demarcagdo, entre as quais 6s seres humanos ficam fixados, rigidos, separados, artificiai Lugares em que, ornado de ouro ou de puirpura, enfeitado de pla- ‘mas como um selvagem, ele realiza seus ritos misticos. wsufial ‘dos prazeres suspeitos do poder e da dominacao, enquanto.n6s, “Suas’ mutheres, nos vernos fechadas na casa da familia, sem at ios Sja dado participar de nenhuma das numerosas sociedades ‘iedade"1 “Linhas de demarcagao misticas", sagem ~~ a da transfiguracio magica e da conversio simbélica que produz a consagragio ritual, princi- pio de um novo conhecimento — estimuia a orlentar a pesquis para um enfoque capaz de aprender a dimensio propriamente simbélica da dominagao masculina, "Bard, por tanto, necessdrio buscar em uma anilise materialista dda economia os meios de escapar da ruinosa alternativa entre 0 “material” ¢ 0 “espiritual” ou “ideal” (mantida atualmente por meio da oposigao entre os estudos ditos “materialistas’, que expli- cam a assimetria entre os sexos pelas condigies de produgao, e os estudos ditos “simbdlicos’, muitas vezes notaveis, mas parciais). Mas, primeiramente, s6 uma utilizagao muito especial da etnolo- gia pode permitir realizar o projeto, sugerido por Virginia Woolf, de objetivar cientificamente a operacao, corretamente dita misti- ca, na qual a divisio entre os sexos, tal como a conhecemos, produg; ou, em outros termos, de tratar a analise objetiva de uma sociedade organizada de cima a baixo segundo o principio andro- céntrico (a tradigio cabila), como uma arqueologia objetiva de nosso inconsciente, isto é, como instrumento de uma verdadeira socioanilise? : Esse desvio, indo a uma tradigao exsitica, €indispensavel para enganosa familiaridade que nos lig >. As aparéncias biologicas € os efeitos, bem reais, iologizasio do social produziu nos corpos nas mentes conju- se para inverter a relacdo entre ascausas ¢ os efeitos e fazer ver ma constragao social naturalizada (os “géneros” como habitus sexuuados), como o fundamento in natura da arbitraria divisao que 1 WT gs a Fr, Fa Ele dF, 197 2. Nem que jo pare canprovar que meu propisio all nde rev de ume com ‘cio acl, ral de pgoor down inr o ania #m qua arise nolo de ‘9, quando asicada @ diisieaneal do mondo, arclogis pode “lomorse vets ome portcuarniais poderso ee socoaralee” (F. Bouian, le Sens protgoo, Por, Cone de Mini, 1980, pp. 246247), esté no princtpio nao s6 da reali {agdo da realidade e que se impoe por vezes & propria pesquisa.) ‘Mas serd que esse uso quase analitico da etnografia, que des- naturaliza, historicizando, 0 que € visto como o que hé de mais natural na ordem social, a divisto entre 0s sexos, ndo se arrisea a por em destaque constantes ¢ invarisvets — que esto no princi- pio mesmo da sua eficdcia socioanalitica ~~ e, com isso, a eterni zar, ratificando-a, uma representagio conservadora da relacio entre os Sex08, ‘a mesma que se condensa no mito do “eterno emi que ii se tentou ey ext ob forma de * ‘a historia serd que as invariéveis que se mantém, acima de todas as nmudan- «a8 visiveis da condicdo feminina,e sto ainda observadas nas rela- gies de dominagao entre os sexos, ndo obrigam a tomar como objeto privilegiado os mecanismos e as instituigaes hist6ricas que, no decurso da hist6ria, ndo cessaram de arrancar dessa mesma historia taisinvariéveist Essa revolugdo no conhecimento no deixa de ter consequén- iss na pritica , particalarmieme, na coucepeao das Gtratégias destinadas a transformar 6 estado atual da relagio de forcas mat _ Hale simbdlica entre os sexos. Se 6 verdade quo principio G2} petuagio’dessa relagio de déminagio nto 3. Asim, no & ove qu os patos tetanam por cont prio Wide como dos vero, come canines dialer spciados, sm apo, einorem 0 gray de recebrimeno ante 0 dtibicdas do performances moscvinas faninina,@ oF mas também porque 0 ato sexual 86. GB. Ehonrech, The Hears of Men, American Omens andthe Fight om Commitment, Devbiadoy Anciey, Gorden Cll, New Yor, 1983: E, Anderson, Sreowwse: Roce, Claw and Charge In on Ubon Conmariy, Chicoge, Cheaga Univer ies, 1960. ‘em sié concebide pelos homens como uma forma de dominacao, de apropriacdo, de “posse”. Daf a distancia entre as expectativas provaveis dos homens e das mulheres em matéria de sexualidade =~ € 05 mal-entendidos que deles resultam, ligados a més inter- pretagdes de “sinais’, as vezes deliberadamente ambiguos ou enganadores. A diferenga das mulheres, que estao socialmente preparadas para viver a sexualidede como uma experiéncia intima ¢ fortemente carregada de afetividade, que nao inclui necessaria~ mente a penetragio, mas que pode inchuir um amplo leque de ati- vidades (falar, tocar, acariciar, abragar etc.) os rapazes tendem a “compartimentar” a sexualidade, concebida como um ato agressi~ ‘vo, e sobretudo fisico, de conquista orientada para a penetragao ¢ © orgasmo.s? Embora neste ponto, como em todos os outros, as variagdes sejam evidentemente considesiveis, segundo a posicdo social, a idade — ¢ as experiéncias anteriores —, pode-se inferir, por uma série de entrevistas, que préticas aparentemente simétri- cas (como a felagio € o cunnilingus) tendem a revestir-se de signi ficacdes muito diversas para os homens (que tendem a ver nelas atos de dominio, pela submissao ou o gozo abtidos) e para as mulheres. O gozo masculino é, por um lado, gozo do gozo femini- no, do poder de fazer gozar: assim Catharine MacKinnon sem duvida tem razao de ver na “simulagao do orgasmo” (faking orgasm} uma comprovagao exemplar do poder masculine de fazer com que a interagao entre os sexos se dé de acordo coma visa dos homens, que esperam do orgasmo feminino uma prova de sua ‘Virllidadee do gozo garantido por essa forma suprema da submis- 820.4 Do mesmo modo, 0 assédio sexual nem sempre tem por fim BTM BocoZinn, 5 Fiver, Brersy i American Fans, Naw York Harper and Row, 1990, pp. 249254: Rabi, dinate Stongor, Now Vor, Bosc, 1988. 32 D. Resil, The Poti of Bape, New York, vin and Day. 1975, p. 272; D. Rosa, Senso Explioson, Bavely Hil, Sage, 1984, p. 162 23. Embore,poreazdee de patito, evtarhatdalvado 0 olor de mulhees ou do homens som fazer cfeténcio a ava posi soca, esho consiéncio do que saria noceeixa over em cont, em coda oto, como fo repeal na vcd des talino, oF erpaccarder que. pincipie de daranciao wail inp 00 principio a diareniogée sexl fu viceres} 3L.C. A MacXionon, Fenian Unmadifed Daur on te and law, Cambridge (Wose) Lode, Honerd Uivery row, 1987, p 58. exclusivamente a posse sexual que ele parece perseguit: 0 que acontece € que ele visa, com a posse, a nada mais que a simples afirmacio da dominacdo em estado puro.*5 Se a relagdo sexual se mostra como uma relacao social de dominacdo, é porque ela esté construfda através do principio de divisdo fundamental entre o masculino, ativo, ¢ 0 feminino, passi- vo, € porque este principio cria, organiza, expressa e dirige 0 dese- jo— 0 desejo masculino como desejo de posse, como dominagao erotizada, eo desejo feminino como desejo da dominagao mascu- lina, como subordinagio erotizada, ou mesmo, em time instan- cia, como reconhecimento erotizado da dominagao. No caso em que, como se da nas relagtes homossexuais, a reciprocidade é pos- sivel, 08 laos entre a sexualidade e 0 poder se desvelam de manei- a particularmente clara, ¢ as pasigdes e os papéis assumidos nas relagbes sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociaveis das relagdes entre as condigbes sociais que determi- ‘nam, 20 mesmo tempo, sua possibilidade e sua significagao. A penetracao, sabretudo quando se exerce sobre um homem, é uma das afirmagoes da libido dominandi, que jamais esta de todo ausente na libido masculina. Sabe-se que, em inimeras socieda- des, a posse homosexual € vista como uma manifestagdo de “poténcia’, um ato de dominacao (exercido como tal, em certos ‘casos, para afirmar a superioridade “feminizando” 0 outro) ¢ que 2 este titulo que, entre os gregos, ela Jeva aquele que a sofre & desonra ¢ a perda do estatuto de homem integro e de cidadio;36 40 passe que, para um cidadao romano, a homossexualidade “passiva” com um escravo é considerada algo “monstruoso"37 Do ‘mesmo modo, segundo John Boswell, “penetracdo e poder esta- ‘Yam entre as inimeras pretrogativas da elite dirigente masculina; ceder & penetragao era uma ab-rogagio simbolica do poder e da a 35. CL & Chin “lo possession” am P Bodin ot a, Lo Mite dv monde, Pst, Eahions do Sa, 1998, 3p. 36:01 36 Cl, por exemple, K.] Dover, Homesmhis gece, Foi, Lo Perse swage, 1982, pp 130 0106. 97. P.Yayve, “Chomororstte 6 Rome", Communications, 35, 1982, pp. 2692. autoridade”:® Compreende-se que, sob esse ponto de vista, que tiga sexualidade a poder, 2 pior humilhacdo, para um homem, consiste em ser transformado em mulher. E poderiamos lembrar aqui os testemmunhos de homens a quem torturas foram delibera- damente infringidas no sentido de feminilizd-ios, sobretudo pela humilhagao sexual, com deboches a respeito de sua virilidade, acusagées de homossexualidade ou, simplesmente, a necessidade de se conduzir com eles como se fossem mulheres, fazendo desco- Drir “o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de estar sempre exposto & humilhacio ow ao ridiculo e de ‘encontrar um reconforto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos”? A INcORPORAGAC DA DOMINAGAO Emibora a idéia de que a definicto social do corpo, ¢ especial- mente dos érgtos sexuais, é produto de um trabalho sociat de construgo se tenkra banalizado de todo por ter sido defendida por toda a tradigao antropolégica, o mecanismo de inversio da rela- a0 entre causas ¢ efeitos, que eu tento aqui demonstrar, e pelo qual se efetua a naturalizacao desta construsao social, nao foi, a meu ver, totalmente descrito, O paradoxo estd no fato de que sto as diferengas visiveis entre o corpo ferninino eo corpo mascutino que, sendo percebidas ¢ construidas segundo 0s esquemias priti- cos da visio androcéntrica, tornam-se o penhor mais perfeita- mente indiscutivel de significagdes e valores que estao de acordo com os prineipios desta visio: nao 6 falo (ou a falta de) que ¢ 0 fundamento dessa visto de mundo, e sim é essa visto de mundo gue, estando organizada segundo a divisao em géneras relacionais, 36. 1. Boswell “Sewct ond Eliot Categoria imPromedeen Eutope", am P Me Whine, $ Senders, | Renich, Plemosencalfy/Hefeosenslty: Cnceps ef Sent Onentaen, Now York, Onord Univrsiy Fre, 1990. 29.45. Fameo, "Gender, Doak and Rosstance, Fcing te Ethel Voewm’, am J E. Cortadt, P. Weiss Fagen, M.A. Goren, Fer a he Edge, tote Teror ond Resistance in Ltn Americ, Betiley, Urversty of Colon Pres, 1992. masculino e feminino, pode instituir o falo, constitaido em sim- polo da virilidade, de ponto de honra (nif) caractezisticamente masculino; e instituir a diferenga entre os corpos biolégicos em fandamentos objetivas da diferenca entre os sex0s, no sentido de gtnetos construtdos como duas esstncias sociais hierarquizadas, Longe de as nevessidades da réprodugio biol6gica determinarem ‘a organizacio simbotice da divisio social do trabalho e, progress: vvamente,de toda a ordem natural e social, é uma construgao arbi- tréria do biol6gico, e particularmente do corpo, masculino € ferninino, de seus usos ¢ de suas fuungdes, sobretudo na reprodu- ao biologica, que dé um fundamento aparentemente natural & visto androcéntrica da divisdo de trabalho sexual e da divisio sexual do trabalho e, a partir dai, de toda o cosmos. A forca parti- cular da sociodicéia masculiva Ihe vem do fato de la acumular =, condenser duas operagoes: ela legitima una relacito de dominagao- ‘HiserevEMAEA Fm uma naturcea bidligica que 6 por sua vez ela répria una construcio social noturalizada, “O trabalho de construgio simbolica nio se reduz a uma ope- ragdo estritamente performative de nominagdo que oriente ¢ estruture as representagées,a comeyar pelas representaghes do cor- po (0 que ainda nfo é nada); ele se completa e se realiza em uma transformagio profiunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto 4, em um trabalho e por um trabalho de construgio pratica, que impoe uma definigao diferencial dos usos legitimos do corpo, sobretudo os sexuais, ¢ tende a exclair do universo do pensével e do factivel tudo que caracteriza pertencer ao outro género— e-em Particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no “per- verso polimorfo" que, se dermos crédito a Freud, toda crianga & — para produzir este artefato social que € um homem viril ou Juma mulher feminina. O ndmos arbitracio que institu as duas classes na objetividade no reveste as aparéncias de uma lei da ‘atureza(fale-se comumente de sexualidade ov, hoje em dia mes- ‘mo, de casamento “contra a natureza”) sendo ao término de uma somatizagdo das relacdes sociais de dominagdo: 64 custa, ¢a0 final, de um extraordinario trabalho coletivo de socializagao difusa e continua que as identidades distintivas que a arbitrariedade cultu- ral institui se encarnam em habitus claramente diferenciados segundo 0 principio de divisio dominante ecapazes de perceber 0 mundo segundo este principio, ‘Tendo apenas uma existéncia relacional, cada um dos dois _gineros é produto do trabalho de construcio diacritica, 20 mesmo Tempo tedricae pratica, que ¢ necessdrio Asa produgdo como.car— ‘po socialnrente difercrciado do ynero oposto {sob todos os pontos de vista calfirtalinénts pertinentes), isto é como habitusviril,¢ por- tanto nao feminino, ou feminino, e portanto nao masculine. Aagao de formacio, de Bildung, no sentido amplo do termo, que opera esta constrgao social do corpo nao assume serio muito parcial- ‘mente a forma de ama agio pedagdgica explicita e expressa. Bla em sua maior parte, 0 efeito automatico, e sem agente, de uma ‘ordem fisica e social inteiramente organizada segundo o principio de divisto androcéntrico {o que explica a enorme forga de pressio aque ela exerse). Inscrta nas coisas, a order masculina se inscreve ‘também nos corpos através de injungoes técitas, implicitas nas roti- nas da divisto do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados (bas- ta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginalizagao impostas as mmudheres com sua exclusto dos lugares masculinos) AS, regulatidades da ordem fisica eda ordem social impoemeinculeam as medidas que exeluem as malheres das tarefas mais nobres (con~ ‘duzie a chaéraa, por éxemplo), assiialando-thes lugares inferiores (a parte baixa da estrada ou do talude), ensinando-Thes a postara correla do corpo (por exempio, curvadas, com os bragos fechados sobre o peito, diante de homens respeitaveis), atribuindo-Ihes tare fas penosas baixas e mesquinhas (s4o elas que carregam o estrumes ena colheita das azeitonas, sio elas que as juntam no chao, com as ccriangas, enquanto os homens manejam a vara para fazé-las cair das arvores), enfim, em geral tirando partido, no sentido dos pres supostos stais, das diferengas biolégicas que par em) ‘assim estar d base das diferencas sodais. == [Na longa seqiéncia de mudas chamadas a ordem, os ritos de instituicao ocupam tm lugar 2 parte, em virtude de sew carter solene e extra-ordinario: eles visam a instaurar, em nome e ém presenga de toda a coletividade para tal mobilizada, uma separa ao sacralizante, nao s6 como faz crer a nogdo de rito de passa- gem, entre 0s que jé receberam a marca distintiva e os que ainda Boa receberam, por serem ainda muito jovens, como também, & gobretudo, entre os que sdo socialmente dignos de recebé-ta e as aque dela esto definitivamente excTutdas, isto é,as mulheres.# Ou, como no caso da circuncisto, rito por exceléncia de instituigao da masculinidade, entre agueles cuja virilidade ele consagra ao pre- pari-los simbolicamente para exerce-ta, ¢ aquelas que nao estdo em condighes de ter fal iniciagdo, e que nao podem deixar de se sentir privadas daquilo que aocasiao eo suporte do ritual de con- firmacao da virilidade representam. ‘Assim, o queo discurso mitico professa de maneira, apesar de ‘tudo, bastante ingénua, os ritos de instituigao realizam da forma ‘mais insidiosa, sem diivida, porém mais eficaz simbolicamente. les se inscrevem na série de operagdes de diferenciagao visando a destacar em cada agente, homem ou mulher, os signos exteriores ‘mais imediatamente conformes a definigdo social de sua distingao sexual, ou a estimular as préticas que convém a seu sexo, proibin- do ou desencorajando as condutas impréprias, sobretudo na rela- <0 com o outro sexo. £, por exemple, 0 caso dos ritos ditos “de separacio”, que ttm por funsao emancipar um menino com rela- goa sua mie e garantir sua progressiva masculinizagao, incitan- do-o ¢ preparando-o para enfrentar o mundo exterior. A pesqui- ss antropologica descobre, realmente, que o trabalho psicolégico que, segundo certa tradicio psicanalitica,st os meninos tém que “20. A conn boa ue ox tnd rst do & nai da viiidode ns em poe moeiney, tadanor que ecrscao adores jos Wats, sebetude aqieles 190 fn conlarde sexuck mais ov moves evdete am © que corsita am mr © Thos loge pone a 08 ogee homewowsis dos puquers padres qu, om Ho cearete Ingndedreie, Be salreconegedcs de exotorSo: ékcot. mas waxes Insedon oo Unguagem [por senso, pichepin, © que fem made aca, agin, fem heomis,avro, poueo gerwoto) Gute 4 zoahes qu me lvarom a ubsitt oro do insvieso fsprano que dave sr eompreendiéa ap mee tp 0 {edo daquio que o¥ istieschzode — 6 insagea de caramento —e do fo insti —o naiuedo dem bards)" nooo doris de postage, que vem dv: do davas somal cuois ao Fao da que wo nZo mes que me proto do senso comim converse om eenenia de feigio oncto, ver P. Bouau, “Les Hee Sirwiton® form Co gue para veut im, Pei, Fayed, 1982, pe. 121-134. 147-CkprincigloaonB) Chodorow, Th Roposcten af Materia: Poyhanclys nd he Socsagy of Gonder, Brel, Univary of Colforsic Fess, 1978. realizar para cortar a quase-simbiose original coma mae e afirmar uma identidade sexual propria ¢ expresso e explicitamente acom- panhado, ou mesmo organizado, pelo grupo que, em toda uma série de ritos de instituigao sexuais orientados no sentido da viri Bza¢do e, mais amplamente, em todas as priticas diferenciadas e diferenciadoras da existéncia didris (esportes e jogos viris, caga ete.) encorajam a ruptura com o mundo materno; ruptura da qual, as filas (bem como, para sua infelicidade, os “Athos de viva”) esto isentos — 0 que lhes permite viver em uma espécie de con- tinuidade com amie? A“intengao” objetiva de negar a parte feminina do masculino {esta mesma que Melanie Klein pedia & psicandlise para resgatar, ‘por uma operacio inversa 3 que realiza 0 ritual), de abo os Lagos € 05 vineulos com a mie, com a terra, com a umidade, com 2 noi te, coma natureza, manifesta-se, por exemplo, nos ritos que se sealizam no momento denominado “a separacao ert ennayer” (el dazla gernayer), como o primeiro corte de cabelos do menino, € ‘em todas as cerimonias que marcam a ultrapassagem do limiardo mundo masculino e que tero sen coroamento na circuncisio. Seria infindavel a enumeragao dos atos que visam a separar 0 menino de sua mae — pondo em ago objetos fabricados pelo fogo ¢ adequados a simbolizar 0 corte (e a sexualiiade viril) faca, punhal, relho etc, Assim, depois do nascimento, a crianga é colo- cada & direita (lado masculino) de sua mae, que esté por sua vez deitada do lado direito, e colocam-se entre eles objetos tipicamen- te masculinos, tais como um pente de cardar I, uma grande faca, uum relho, uma das pedras do lar, Dai a importincia do primeiro corte de cabelos, que est, jgualmente, ligado 20 fato de que a cabeleira, feminina, € um dos elos simbélicos que unem o menino 40 mundo materno, E ao pai que incumbe dar este corte inauga- “AD. Ew spose cos que wo chamsdes yor vezer na Caio de “hos dee homens, ee edicayao compete @ vaca homens, cx “Thos de wee” abo Wiles corrauspeigde de lee eseapads 00 abelhs de todos ot Intafes que nsessr2 pata evo aus 0s mextns @ ornem mules @ ce aa sido abendonados ago fenpizame do gedprio nto ral, com a navalha, instrumento masculino, no dia da “separagio “en ennayer” ¢ pouco antes da primeira entrada no mercado, isto em uma idade situada entre os seis ¢ os dez anos. E 0 trabalho de virilizagao (ou de desfeminizagao) prossegue por ocasiao desta introdugo no mundo dos homens, do ponto de honra (nif) ¢ das Jatas simbélicas, que ¢ a primeira entrada no mercado: a crianga, em trajes novos e com a cabeca enfeitada com um turbante de seda, recebe uma espada, um cadeado e um espelfo, enquanto sua rite depée um o¥o fresco no capuz de seu capote, Na porta do riercado, ele quebra 0 ovo e abreo cadeado, atos virs de deflora- Ho, ese otha no expelno, que, tal coma o limiar, éum operador de jinversio, Seu pai o guia no mercado, mundo exclusivamente mas- culino, apresentando-o aos outros homens. Na volta, eles com- pram uma cabega de boi, simbolo fico — por seus cornos — associado a0 nif ‘© mesmo teabalho psicossomtico que, aplicado aos meni- nos, visa a virilizé-los, despojando-os de tudo aquilo que poderia neles restar de ferinino -~ como no caso do “filho de vita" — assume, n0 caso das meninas, uma forma mais radical: 4 mulher ‘estando constitwida como uma entidade negativa, definida apenas por falta, suas virtudes mesmas s6 podem se afirmar em uma dupla negagdo, como vicio negado ou superado, ou como mal menor. Todo o trabalho de socializacao tende, por conseguinte, a impor-hhe limites, todos ees referentes a0 corpo, definido para tal como sagrado, Haran, e todos devendo ser inscritos nas disposi- g0es corporais, £ assim quea jovem cabila interiorizava os princ!- pios fundamentais da arte de viver feminina, da boa conduta, inseparavelmente corporal e moral, aprencendo a vestir e usar as Giferentes vestimentas que correspondem a seus diferentes esta- dos sucessivos, menina, virgem nubil, esposa, mae de familia, e, adquirindo insensivelmente, tanto por mimetismo inconsciente quanto por obediéncia expressa, a maneira correta de amarrar sua cintura ou seus cabelos, de mover ou manter imovel tal ou ual parte de seu corpo 2o caminhar, de mostrar o rosto e de diri- giro olhaz. Essa aprendizagem ¢ ainda mais eficaz por se mapter, no ceseencial, icita: a moral feminina se impoe, sobretwdo, através de ‘uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, € aque se faz lembrar ese exerce continuamente através da eoag20 quanto 20s trajes ou aos penteados. Os principios antagonicos da identidade masculina ¢.da iden jade feminina se inscrevern, “asim, sob forma de maneiras permanentes de se servir do corpo, ou, iey_a postu ‘como, que a realizacao, ou me- Thor, a naturalizagdo de uma ética. Assim como a moral da honra ‘mascillina pode ser resumida em uma palavra, cern vezes repetida pelos informantes, gabe, enfrentar, olhar de frente e com a postu- a ereta (que corresponde & de um militar perfilado entre nés), prova da retidao que ela faz ver do mesmo modo a submissi0 femminina parece encontrar sua tradugio natural no fato de se in- dinar, abaixar-se, curvar-se, de se submeter (0 contrério de “por- se acima de"), nas posturas curvas, Dlexivels, ¢ na docilidade cor- relativa que se jlga convir a mulher. A educagso elementar tende, a inculcar maneiras de postar todo 0 corpo, ou tal ou qual de suas “partes (a méo direita, masculina, ou a ma. esquerda, feminina), a ‘manera de andar, de erguer a cabega ou 0s othos, de olhar de frente, nos alhos, ou, pelo contrério, abaixs-los para os pés etc maneitas que esto prenhes de uma ética, de uma politica ¢.de ‘uma cosmologia (toda a nossa ética, sem falar ema nossa estética, assenta-se no sistema dos adjetivos cardeais, elevado/baixo, direi- to/torto, rigido/flexivel, abertoffechado, uma boa parte dos quais signa também posigdes ov disposigdes do corpo on de algumna de suas partes — ag. a “fronte alta” ou a “eabega baixa”). ‘A postura submissa que se impoe as mulheres cabilas repre- senta o imite méximo da que até hoje se impoe as mulheres, tan- to nos Estados Unidos quanto na Europa, e que, como intimeros observadores j& demonstraram, revela-se em alguns imperativos: Gi Sobis oo gab qm ot le prio geo &s vonage bbscen do espe- ‘ore dodo a vsbo de mundo, cP Bourdieu le Sos prague, op cite p-151 ’ sortir, baixar os olhos, aceitar as interrupgoes eté. Nancy M.- Henley mostra como se ensina as mulheres ocupar 0 espago, caminhar e adotar posigdes corporais convenientes. Frigga Haug. também tentou fazer ressurgir (com um meétodo que chamou de memory work, visando a resgatar historias de infancia, discutidas ¢¢ interpretadas coletivamente) os sentimentos relacionados com as diferentes partes do corpo, com as costas a serem mantidas retas, CoM as pernas que ndo devem set afastadas etc. e tantas ‘outras posturas que estdo carregadas de uma significagio moral (sentar de pernas abértas 6 vulgar, ter barriga é prova de falta de vontade etc.). Como s¢ a feminilidade se medisse pela arte de “se faver pequena” (0 ferminino, em berbere, vem sempre ema diminu- tivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisfvel (do qual o véu nao ¢ mais que a manifestagao visivel), limitando 0 territ6rio deixado aos movimentos e aos deslocamen- tos de seu corpo — enquanto os homens tomam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares piiblicos. Essa espécie de confina- mento simbélico é praticamente assegurado por suas roupas (0 ‘que ¢ algo mais evidente ainda em épocas mais antigas) e tem por efeito nio sé dissimular o corpo, chamé-lo continuamente & ordem (tendo a saia uma fungdo semelhante a sotaina dos padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente (‘minha mae nunca me disse para nao ficar de pernas abertas”): ‘ora. com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mios, e sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de ativi- dades (a corrida, algumas formas de se sentar etc.); ora $6 as per- Initindo a custa de precaugdes constantes, como no caso das jovens que puxam seguidamente para baixo uma saia demasiado GET tng Wo OW Botte, A Clr Wa of Hye So 109 etn cnr oc pan ane cen 2 ape eens ese cele n hors wer Bete ore ce attaataeen se cooe Sr Ticntnc moh ne meee oe re snl ee ee ae cas eee eee ee ree eS eee ccurta, ou se esforgam por cobrir com o antebrago uma blusa exces- sivamente decotada, ou t&m que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chio um objeto mantendo as peas fechadas!® Essa8_ _maneiras de usar 0 co"po, profundamente associadas a ativude morale a contencag que convém ds mulheres, cootinuam a Ths ‘ser impostas, como que sta revelia, mesmo quando defxaram de thes ser impostas peta roupa (como 0 andar com passinhos rpi- dos de algamas jovens de calgas compridas ¢ sapatos baixos).E as poses on as posturas mais relaxadas, como 0 fato de se balangarem na cadeira, ou de porem 0s pés sobre a mesa, que sio por vezes vistas nos homens — do mais alto escalio — como forma de demonstracio de poder, ou, 0 que dé no mesmo, de afirmagzio sio, para sermos exatos, impenséveis para uma mulher ‘Aos que objetariam que intimeras mulheres romperam atual- mente com as normas formas tradicionais daquela conten¢io, apontando sua atual exibigao controlada do corpo como um sinal de “liberagao”, basta mostrar que este tiso do proprio corpo conti~ nua, de forma bastante evidente, subordinado ao ponto de vista masculino (como bem se vé no uso que a publicidade faz da mulher, ainda hoje, na Franca, apos meio século de feminismo): 0 corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido ¢ recusado, manifes- ta.a disponibilidade simblica que, como demonstraram inime- 10s trabalhos feministas, convém & mather, e que combina um poder de atracio e de sedugio conhecid ¢ reconhecido por todos, homens ou mulheres, € adequado a bonrat os homens de quem ECLNM Hesley_op oho pp. 99, 8991 a tombben pp. 421249 reproduce ‘dein toon inieda Exacion pore Homons", que ose "oeburdo des pos twas" geet wlga cori hoes. 146 Todo que ice em aiado npicto na aprorzogam do fannie levado @ ter argieade nas “eres de recepersts” «sv coos de preporeiba «de boos Tanatosconde, cura cbsevos Yasha Deliv. operdese comer. martes d6 pe leom os dos ots dos canon ops poalioth,@ vor, « wbir @ dncer oma ‘ca oe has pora cn pl a satorze drs fcacapelonito om que fozet com Ge ido tae eaato, vr em pesca. otros hispads/chaos oso se ‘Sm, “responder gonimero"), ote "eampostire.nadopl sentido, dese por tense n do meneia de e vt [er caves berones, domosiodo fates ev ogre et] ode ve meer. «ela depende ou aos quais esta ligada, com um dever de recusa sele~ tiva que acrescent, 20 efeito de “consumo ostentatdrio’ 0 prego ‘As divisoes constitutivas da osdem social e, mais precisamen- te,as relagbes sociais de dominasao.e de exploragdo que estao ins- tituidas entre os generos se inscrevem, assim, progressivamente . ‘em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexiscorpo- ais opostos e complementares ¢ de principios de visto e de di ‘s40, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as praticas segundo disting®es redutiveis a oposigao entre o masculi- 1no¢ 0 feminino. Cabe aos homens, situados do lado do exteriors, do oficial, do publico, do direito, do seco, do alto, do descontinuo, realizar todos as atos a0 mesmo tempo breves, perigosos e espeta- cular, como matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicidio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordindrio da vida. As mulheres, pelo contririo, estando situadas do tado do ‘imido, do baixo, do curvo e do continuo, veer serthes atribui dos todos os trabalhos domésticas, ou seja, privadose escondidos, ow até mesmo invisiveis € vergonhosos, como o ctidado das eriangas e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores «que lhes sao destinados pela razio mitica, isto é, os que levam a Jidar com a agua, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o leite, com a madeira e, sobretmdo, ‘0s mais sijos, 08 mais mondtonos ¢ mais humildes, Pelo fato de o snundo limitado em que elas esto confinadas,o espago do vile jo, a casa, a linguagem, os utensilios, guardarem os mesmos ape- Jos & ordem silenciosa, as mulheres nde podeme sendo tornar-se 0 {que elas sao segundo 2 razao mitica, confirmando assim, ¢ antes de ‘mais nada a seus préprios olhos, que elas estdo naturalmente des- tinadas a0 baixo, a0 torto, a0 pequeno, ao mesquinho, ao fétit etc. Hlas esto condenadas a dar, a todo instante, aparéncia de funda mento natural 3 identidade minoritéria que thes ¢ sociaimente designada: é a elas que cabe a tarefa longa, ingrata e minuciosa de catar, no chido mesmo, as azeitonas ow achas de madeira, que os homens, armados com a vara ou com 0 machado, deitaram por terra; sao elas que, encarregadas das preocupagdes vulgares da gestto quotidiana da economia doméstica, parecem comprazer-se ‘com as mesquinharias do calculo, das contas e dos ganhos que 0 homem de honra deve ignorar. (Eu me lembro, assim, que em minha infancia os homens, vizinbos ¢ amigos, que haviam mata- doo porco pela manha, em uma breve exibigdo, sempre um tanto ostentatéria, de violencia — gritos do animal fugindo, grandes facies, sangue derramado etc. — ficavam a tarde toda, ¢ &s vezes atéo dia seguinte, jogando tranquilamente baratho, interrompen- do apenas para erguer algum caldeirio mais pesado, enquanto as mulheres da casa corriam para todos os lados preparando 0s chourigos, as salsichas, os salsichdes e 0s patés.) Os homens (e as, préprias mulheres) nao podem senao ignorar que € a légica da relagdo de dominagao que chega a impor e inculcar nas mulheres, ao mesmo titulo das virtudes ¢ da moral que hes impdem, todas as propriedades negativas que a visio dominante atribui a sua natureza, como a astiicia ou, para lembrar um trago mais favord~ vel, a intuigao, Forma peculiar da hucidez. especial dos dominados, 0 que cha- amos de “intuigao feminina” é, em nosso universo mesmo, inse- parivel da submissio objetivae subjetiva que estimuls, ow obriga, atengio, as atengdes, a observacdo ¢ 8 vigilancia necessarias para prever 0s desejos ou pressentir os desacordos. Muitas pesquisas puseram em evidéncia a perspicécia peculiar dos dominados, sobretudo das mulheres (e muito especialmente das mulheres ddupla ou triplicemente dominadas, como as donas de casa negras, de que fala Judith Rollins em Between Women): mais sensiveis aos sinais ndo verbais (sobretudo a inflexdo) que 0s homens, as mulhe~ res abem identiffcar methor uma emogio nao representada verbal- mente e decifrar 0 que est implicito em um didlogo:*? segundo uma pesquisa realizada por dois estudiosos holandeses, elas sio capaves de falar de seus maridos dando uma série de detalhes, a0 G7._GL WN Thompuon, Quant Ensowch & Pebile Address and Comment ‘lon, New York, Rondo Howe, 1967, pp. 478, que 0s homens ndo conseguem descrever suas mulheres Fondo com esterestipos muito vagos, vides para “as mulheres em geral’s8 OS mesmos auitores sugerem que os homossexuais, tendo ‘necessariamente sido educados como heterossexuais,interiariza~ ram o ponto de viste dominantee podem assumir este ponto de vis- taarespeito desi mesmos (o queos inclina a uma espécie de discor- dincia cognitiva e avaliativa capaz de contribuir para sua especial dlarividéncia), bem como compreender o ponto de vista dos domi- pantes melhor do que eles podem compreender 0 seu, Simbolicamente votadas & resignagao e discrigio, as mulhe- res s6 podem exercer algum poder voltando contra o forte sua propria forca, ox aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas s6 podem exercer por procuragio (como eminen- cias pardas). Mas, segendo a lei enunciada por Lucien Bianco a0 falar das resistencias camponesas na China, “as armas do fraco sio sempre armas fracas"*® As proprias estratégias simbélicas que as mulheres usam contra os homens, como as da magia, continuam dominadas, pois o conjunto de simbolos ¢ agentes miticos que elas poem em agao, ot os fins que elas buscam (como 0 amor, ou a impoténcia, do homem amado ou odiado), tém seu principio ‘em uma visio androcéntrica em nome da qual elas sto domina- das, Insuficientes para subverter realmente a relagao de domina- ‘lo, tais estratégias acabam resultando em confirmacao da repre- sentagio dominante das mulheres como seres maléficos, cuja ‘dentidade, inteiramente negativa, é constituida essencialmente de proibigdes, que acabam gerando igualmente ocasides de trans- Bressio, £ 0 caso, sobretudo, de todas as formas de violéncia nao declarada, quase invisivel por vezes, que as mulheres opdem a vio- lencia fisica ou simbslica exercida sobre elas pelos homens, e que ‘io da magia, da asticia, da mentira ou da passividade (principal- “8. CEA. Von Sto « Wades, “Power Changes ae Sliespect: Comparison of Two Cases of EstablehadOutsdor Relators, Theory, Clie and Saclay, 4 (23), 1987, pp. 477-188, 49.1 Bianco, “Risstace peysonne, Act Mak, 22, ° semadre, 1997, pp. 19 182. i mente so ato sexual) ao amor possessivo dos possessos, como 0 damae mediterranea ou da esposa maternal, que vitimizae culpa biliza, vitimizando-se e oferecendo a infinitude de sua devogao e de seu softimento mudo em doagéo sem contrapartida possivel, ‘ou tornadd divida sem resgate. As mulheres, fagam o que fizerem, est2o, assim, condenadas a dar provas de sua malignidade ea jus- tificar a volta as proibigdes ¢ ao preconeeito que thes atribui uma ‘essénncia maléfica —~ segundo a l6gica, obviamente trégica, que ‘quer que a realidade social que produz a dominagdo venha muitas ‘vezes a confirmar as representagdes que ela invoca a seu favor, para se exercer e e justficar. ‘A visto androcéntrica é assim continuamente legitimada pelas _proprias priticas que la determina: pelo fato desuas disposigoes re- ssultarem da incorporagao do preconceito desfavordvel contra o femi- nino, instituédo na order das coisas, as rmulheres nao podem senao confirmar seguidamente tal preconceito. Essa légica éa de maldigao, no sentido profundo de uma self fulfilling prophecy pessimista, que prowoca sua propria verificagdo ¢ faz acontecer o que ela prognosti- 2. Blaesta em curso, quotidianamente, em inimeras trocasentee os sexos: as mesmas disposigées que levam os homens a deixar &s mulheres as tarefas inferiores e as providéncias ingratas e mesqui- _nhes (tais como, em nosso universo, pedir press, verificarfaturas e solicitar um desconto), desembarayando-se de todas as condutas pouco compativeis com a idéia que eles tém de sua dignidade, Jevarn-nos igualmente a reprovar a “estreiteza de espirito” delas, ou sua “mesquinharia terra-a-tetra’, ouaté a culpé-las se elas fracassam ‘nos em preenclimentos que deixaram a seu cargo — sem no entanto 4 cchegar a lhes dar crédito no caso de um sucesso eventual 5° engage ests ede mpi tn ees pel arses shone on pecan rr SotiuiSgSons sens he w deo ew pac ao Ett Bon Sty Secon enews oer ce 8182 nas "Whe Sua Ente tna at omens sep ren Jeoe pes psa opera gos de eae, ng

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