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No ltimo tero do sculo XIX, a Salptrire foi o que sempre tinha


sido: uma espcie de inferno feminino, uma citt dolorosa que encer-
rava 4 mil mulheres incurveis ou loucas. Um pesadelo em Paris,
bem perto da sua belle poque.
Foi precisamente l que Charcot redescobriu a histeria. Como?
Tentamos descrev-lo aqui, em meio a todos os procedimentos clni-
cos e experimentais, atravs da hipnose e das espetaculares apresenta-
es de doentes em crise no anfiteatro das clebres aulas das teras-
-feiras. Descobrimos com Charcot do que capaz um corpo histrico:
pois bem, parece um prodgio. Parece um prodgio, ultrapassa a ima-
ginao e at qualquer expectativa, como se costuma dizer.
Que imaginao, que expectativa? Tudo consiste nisso. O que as
histricas da Salptrire exibiam de seus corpos decorria de uma ex-
traordinria conivncia entre mdicos e pacientes. Uma relao de
desejos, olhares e saberes. isto que interrogamos.
Restam-nos hoje as sries de imagens da Iconografia fotogrfi-
ca da Salptrire. Est tudo ali: poses, crises, gritos, atitudes pas-
sionais, crucificaes, xtases, todas as posturas do delrio.
Tudo parece estar presente, pois a situao fotogrfica cristalizava
idealmente a ligao entre a fantasia histrica e uma fantasia do sa-
ber. Instaurou-se uma reciprocidade da seduo: mdicos com um
insacivel apetite de imagens da histeria, histricas dando pleno
consentimento, exagerando at nas teatralidades do corpo. Assim,
a clnica da histeria transformou-se em espetculo, em inveno da
histeria. Identificou-se at, sub-repticiamente, com algo como uma
arte. Muito prxima do teatro e da pintura.
Mas o movimento sempre exagerado de encantamento produziu
uma situao paradoxal: na medida em que a histrica se deixava
livremente reinventar e ser cada vez mais colocada em imagens, uma

        


dor como que se ia agravando. Num dado momento, o encanto se
rompeu e o consentimento transformou-se em dio. essa virada
que interrogamos aqui.
Freud foi uma testemunha desorientada dessa imensa discusso
da histeria a portas fechadas e dessa fabricao de imagens. Sua de-
sorientao no h de ter sido insignificante para os primrdios da
psicanlise.

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