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BASES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS DO CAMPO DA SAÚDE

Sumário

GUIA DO ESTUDANTE 7

MÓDULO 1 23
As Origens Históricas e Conceituais da Medicina Moderna e das
Políticas de Saúde

MÓDULO 2 39
A Transformação do Hospital em Instituição Médica e sua
Importância no Desenvolvimento da Medicina Contemporânea

MÓDULO 3 51
A Clínica e a Anatomia Patológica como Bases da
Medicina Científica Moderna

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 5


MÓDULO 1

As Origens Históricas e Conceituais da Medicina Moderna


e das Políticas de Saúde

Apresentação
Neste módulo, estudaremos as origens da medicina dita moderna. Serão abordados os principais proces-
sos de constituição da medicina como práticas públicas, experiências pioneiras fundamentais que ocorreram
na Alemanha, na França e na Inglaterra.

Objetivos
• Conhecer e analisar as características históricas do nascimento da medicina social na Alemanha,
na França e na Inglaterra.
• Refletir sobre as relações entre o desenvolvimento da medicina e as condições históricas e sociais.
• Analisar e refletir sobre o processo de formulação de políticas públicas de saúde.
• Construir um pensamento crítico sobre as práticas de saúde e suas relações com o processo social.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 23


As primeiras políticas de saúde
A história de nosso país tem forte ligação com a da Europa ocidental. Esta
ligação é particularmente mais nítida no período que vai do descobrimento do
Brasil até a proclamação da República, no fim do século XIX.
Pode-se caracterizar a Era Moderna, na Europa ocidental, pela ocorrência de
três fenômenos. Foram eles a urbanização, a industrialização – acelerando e inten-
sificando a acumulação de riquezas – e, como decorrência dos primeiros, a estru-
turação do Estado, tal como hoje o conhecemos.

Mas, que importância teria para nós recordar esses aconteci-


mentos? O que teriam a ver fatos tão antigos com a nossa
prática atual de assistência à Saúde Mental?

Algumas profissões e instituições de saúde, tal como as conhecemos hoje em


dia, surgiram naquela época, como passaremos a ver.
Na Idade Média, os tratamentos eram exercidos ora nas ruas – em quitandas,
feiras, pelos cirurgiões barbeiros, curandeiros ou outros “médicos” populares –,
Era Moderna – A Era Moderna é
ora nas casas, por práticos que eram reconhecidos como médicos.
delimitada para fins didáticos entre
os séculos XV e XVIII. O período é Os cirurgiões barbeiros e curandeiros faziam cirurgias, indicavam remédios
de grande transformação também que eles mesmos preparavam, ou ainda aplicavam ventosas, sangrias e outras
nas idéias que a Europa passa a
produzir e valorizar. Inicia-se um formas de tratamento, assim como os médicos. O que se observava é que, entre
processo de ascensão do médicos e curandeiros, quase não havia distinção. O importante era ter o “dom”
conhecimento racional sobre o
religioso. de curar que, à época, em princípio emanava do “divino”. Os homens se viam
como criaturas de Deus e o ideal seria empregar todos os esforços para salvar o
Idade Média – Período decorrido
de 395 (época da divisão do maior número de almas possível.
Império Romano) até 1453 (fim do
Império Romano do Oriente). Neste Da Idade Média para a Era Moderna, surgiu um novo registro simbólico com o
período, a Europa encontrava-se qual as pessoas passavam a se identificar: tratava-se do registro do cidadão.
dividida em unidades mínimas de
poder local, os feudos. O poder Esse registro remetia às idéias de cidade e de Estado como espaços em que
central era representado pela passava a haver uma identidade comum. Em outras palavras, além de criaturas
Igreja Católica e o pensamento
religioso constituiu-se de forma de Deus, as pessoas pertenceriam a uma cidade, que se encontrava ainda sob o
dominante na sociedade. poder de um Estado.
Cidadão – Indivíduo no gozo dos
direitos civis e políticos de
Se, até então, o ideal maior seria o de salvar a alma, um outro ideal surgia: fazer
um Estado. tudo para fortalecer a cidade e o Estado.

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Neste contexto, nasceu a medicina moderna. Além do dever da salvação indi-
vidual da alma, em que a Igreja era a instituição que canalizava o poder, os
indivíduos deveriam, coletivamente, fortalecer o Estado e a cidade, colaboran-
do para a acumulação de riquezas.

Onde queremos chegar com essas reflexões?

Queremos demonstrar que até muito pouco tempo os historiadores da medici-


na consideravam que a medicina moderna era eminentemente individual. Por um
lado, porque parecia privilegiar fundamentalmente a relação médico-paciente e,
por outro, porque seu objetivo seria o de curar as doenças, ou ainda reduzir
ou suprimir o sofrimento causado por uma ou
outra doença.
O fato de que a medicina permeava as
relações de mercado, em uma economia ca-
pitalista, restrita à relação de mercado do
médico com o doente, parecia comprovar
esta hipótese.
Mas, ao contrário, de acordo com o que ve-
remos, o que denominamos medicina moder-
na é, originalmente, uma medicina social.
Enfim, falando de história, trataremos mais
especificamente da história da medicina e
conheceremos os processos que fizeram da
medicina aquilo que ela é hoje. Veremos o
nascimento da medicina moderna na Alema-
nha, na França e na Inglaterra. Procuraremos Europa no início do século XVIII
entender qual a noção de corpo humano (corpo das pessoas que, além de criaturas
de Deus, passaram a ser cidadãos do Estado e da cidade) implícita nos regula-
mentos dessa medicina que surgia.

O nascimento da medicina como práticas sociais e coletivas


A partir de meados do século XVIII, a população da Europa aumentou rapida-
mente. O crescimento do contingente urbano, isto é, da concentração de pessoas
nas cidades, excedeu em muito a disponibilidade de habitação. O meio ambiente
passou a sofrer deterioração, o que propiciou o adoecer disseminado, causado
pelas más condições de saúde.
Se o aumento populacional ocorreu em paralelo a um rápido aumento das
taxas de mortalidade geral, em extratos mais vulneráveis da população, como as
crianças e os internos em prisões, hospitais e outras instituições de asilo, o aumen-
to das taxas de mortalidade foi ainda maior. Esse período também testemunhou o
começo e o rápido crescimento dos hospitais como instituições médicas.

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A medicina e a constituição do Estado Moderno na Alemanha
Na Alemanha, no começo do século XVIII, passou-se a produzir um conheci-
mento que tinha por objeto o próprio Estado, ou todo o conjunto dos procedimen-
tos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegu-
rar seu funcionamento.
O desempenho geral do aparelho político do Estado tornava-se um objeto
fundamental, além dos recursos naturais da sociedade e do bem-estar de sua
população. Firmou-se, assim, o que passou a se chamar de ciência do Estado.
A Alemanha, até o início do século XIX, foi um Estado fraco, ou seja, constituía-
se como um conjunto de pequenas unidades, que tinham estruturas muito frágeis.
Por este motivo, a preocupação teórica e prática com a noção de Estado se fez
importante. Mais precisamente na Prússia – a mais forte das pequenas unidades
– surgiu uma ciência política do Estado.
Esta é uma das razões pelas quais, na Alemanha, se instituiu uma primeira
medicina social, denominada por Michel Foucault, em O nascimento da medicina
social (1979), de medicina de Estado.
Esta medicina de Estado era caracterizada por uma prática médica centrada
na melhoria do nível de saúde da população. Não era voltada para o tratamento
de doenças, ou para diminuir o sofrimento que causavam. O principal objetivo era
Ciência do Estado – É o conjunto qualificar os indivíduos como componentes de uma nação.
de conhecimentos especializados
como a demografia, geografia, que
segundo Michel Foucault, servem
para reestruturar normas, regras
de controle institucionais diante da Como assim? Como se poderia melhorar o nível de saúde da
nova realidade social.
população sem tratar de suas doenças?
Ciência Política – A ciência
política é a área do conhecimento
que analisa os fenômenos que
envolvem a estrutura, a manuten-
ção ou a transformação do poder
Um exemplo que nos daria uma boa resposta pode ser encontrado nos progra-
político. Envolve a compreensão mas de melhoria de saúde da população propostos por Wolfgang Thomas Rau,
dos agentes sociais e instituições
Johann Peter Frank e Franz Anton Mai, denominados originalmente política
envolvidas no processo de poder
político. médica. Daí surgiu a noção de polícia médica (Medizinichepolizei), criada em 1764
por Wolfgang Thomas Rau, e que consistia em quatro estratégias fundamentais:
Natalidade – Quantidade de
nascimentos ocorridos na
população, expressos mediante
um coeficiente de nascimentos
vivos na população (1000
1. Um sistema bastante completo de observação da morbidade populacional,
habitantes/ano). No Brasil a cifra é isto é, do conjunto de doenças que afetavam a população. Estes registros
de aproximadamente 20 (nascidos
por mil habitantes em cada ano).
eram, portanto, muito mais sofisticados do que os simples quadros de
registros de natalidade e mortalidade então realizados na França e na
Mortalidade – É a quantidade de
óbitos na população: pode ser
Inglaterra.
calculada em termos globais, por
faixa de idade, por grupo de
2. Um sistema de normalização (elaboração e adoção de normas), tanto da prática
causas, por diagnóstico, etc. A quanto do saber médico (controle da formação médica e da emissão dos
mortalidade infantil é um dos
coeficientes mais utilizados neste
diplomas). A medicina e o médico foram, então, os primeiros objetos da normaliza-
campo: aproxima-se, no Brasil, da ção na Alemanha. Ou seja: o médico foi o primeiro profissional normalizado na
cifra de 40 (óbitos antes de
completar um ano de vida, por mil
Alemanha; o primeiro profissional a ter atribuições e definições oficiais,
nascidos vivos). regulamentadas e controladas pelo Estado.

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3. Um sistema centralizado para controle da atividade médica (banco de
informações sobre os médicos e sobre os tratamentos), oficializando, pela
primeira vez no Ocidente, a subordinação da prática médica a um poder
administrativo estatal.
4. A criação de um efetivo médico estatal (dos médicos de distrito aos oficiais
médicos), constituindo o médico como funcionário do Estado e como
administrador sanitário.

Enfim, analisando o exemplo do processo na Alemanha, vimos


como, de maneira aparentemente contraditória, no início da
medicina moderna, existiu uma situação de estatização levada ao
máximo. Não existia uma medicina restrita à relação de mercado
do médico com o doente. É importante observar que a cura das
doenças não era, nesta medicina de Estado, um objeto, nem
explícito nem implícito. A noção de prevenção, ou de qualificação
da força de trabalho, tampouco estava presente. A idéia central
era a da qualificação do corpo de cada indivíduo como membro
constituinte do Estado. Daí a importância em regular a formação
dos médicos. Estes teriam “um ritual de formação”: seleção, di-
plomas, controle da prática pelo Estado.
Em outras palavras, não se investia no corpo das pessoas como
corpos doentes que precisavam ser tratados. Porém, tampouco
se investia nos corpos saudáveis com o objetivo de preveni-los de
doenças. Investia-se nos corpos como corpos do Estado. Enfim, o
Estado somente poderia ser forte e poderoso se os seus indivídu-
os assim o fossem.
Johann Peter Frank

Questão para reflexão


No contexto que estudamos, a noção de corpo aparece, intrinsecamen-
te, como uma “máquina” social. A noção de “corpo da nação” se confun-
de entre a referência ao coletivo das pessoas de uma mesma nacionalida-
de e a referência ao corpo de cada um, que deveria ser devotado à cons-
trução da nação. Neste sentido, reflita sobre o modo através do qual as
profissões da saúde (o “corpo profissional”) funcionam como instrumento
para a construção do Estado.

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A medicina e a constituição da cidade moderna na França
Vimos como se estruturou a Medicina de Estado na Alemanha. Na França, foi a
urbanização que mais contribuiu para a organização das práticas médicas, como
estudaremos a seguir.
Já em fins do século XVIII, as cidades francesas eram muito desorganizadas,
submetidas a muitos poderes paralelos, simultâneos e, muitas vezes, contraditórios
e opostos. Portanto, não se configuravam como sendo o que se poderia denominar
exatamente uma unidade territorial, uma cidade, tal qual hoje a definiríamos.
Neste contexto, em um cenário de confusão urbana, tornou-se urgente a unifi-
cação do poder, determinada por razões tanto de ordem econômica (a cidade
como importante lugar de mercado e de industrialização emergente), quanto de
ordem política (crescimento da pobreza e do proletariado, conflitos de jurisdição
e de poderes, revoltas etc.), inscritas já no processo que vai desembocar na Revo-
lução Francesa.
Enfim, era preciso constituir a cidade como uma unidade política, geográfica
e social.

O que significa isso?

Era preciso organizar o corpo urbano de modo coerente e homogêneo, com um


poder único e muito bem regulamentado. A urbanização e a industrialização –
acelerando e intensificando a acumulação de riquezas –, bem como a concentra-
ção econômica faziam das grandes cidades um palco de sérios conflitos.

As cidades tornaram-se palco de grandes conflitos e questões so-


ciais e sanitárias. Nelas, desenvolveu-se a chamada medicina urbana.

Ou seja, neste investimento de ordenação do espaço urbano, a medicina mere-


ceu um papel muito importante, caracterizando-se por três grandes objetivos.

Revolução Francesa – Foi uma


transformação radical na Quais foram esses objetivos?
organização do poder político
ocorrida na França, que pôs fim ao
Absolutismo da Idade Moderna.
Historicamente assinala o início da 1. A análise de lugares onde poderiam se formar e reproduzir as doenças.
Idade Contemporânea. Represen-
tou a afirmação da ideologia da
Os cemitérios – principais alvos desta intervenção – foram regulamentados,
democracia representativa, da tendo sido definida a sua melhor localização. Foucault cita o exemplo do
cidadania (sob a bandeira
“Liberdade, Igualdade e
Cemitério dos Inocentes, bem no centro de Paris. Nele eram jogados,
Fraternidade”). amontoados uns sobre os outros, os cadáveres dos que não tinham recursos

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para manter um túmulo individual. É nesse momento
que os cemitérios começam a ser transferidos para
as periferias das cidades, ao mesmo tempo que sur-
gem o caixão individual e as sepulturas familiares;
2. O controle da circulação dos elementos, essencial-
mente a água e o ar. A medicina deveria contribuir
na tarefa de manter sadios o ar e a água, considera-
dos os principais fatores causadores de doenças.
Atribuía-se ao ar uma influência direta sobre o orga-
nismo, seja por veicular miasmas, seja por suas pró-
prias qualidades de frio, quente, úmido ou seco que
Rue Champlain, Paris,
poderiam provocar alterações nos corpos. Algumas das prescrições da
por volta de 1865
medicina urbana seriam o alargamento das avenidas, a ventilação das casas
e instituições, a circulação do ar pela cidade, a liberação dos cursos dos rios,
dentre outras.
3. Ser aplicada às fontes de água, aos esgotos, barcos-lavanderia e barcos-
bombeadores, a organização das distribuições e seqüências, ou seja, o
enquadre dos diferentes elementos necessários à vida comum da cidade.
A questão seria: como evitar que se aspirasse água de esgoto nas fontes de
águas potáveis; ou como evitar a utilização de águas contaminadas pelos
barcos que lavavam as roupas? Em outras palavras, foi instituído o
ordenamento do sistema de águas e esgotos e a “disposição correta” de
vários elementos da cidade.

Neste contexto, pela ação da medicina urbana, a prática médica começou a ter
contatos com outras áreas de conhecimento. Foi devido a este investimento de
analisar o ar, as águas, os esgotos e assim por diante, que a medicina passou a
relacionar-se regularmente com algumas ciências não médicas, principalmente a
química, mas também a física.

Quais as conseqüências práticas desses contatos da medi-


cina com outras áreas de conhecimento?

A primeira foi sua inserção no campo das ciências físico-químicas. A segunda


foi o surgimento da noção de meio ambiente, da junção desta medicina das coisas
(principalmente do ar e da água) com as ciências naturais.

Enfim, o meio ambiente, ou, em última instância, a ecologia tornou-se


também objeto da medicina urbana.

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