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REVISTA MAGIS

SUBSÍDIOS

Número 06 – 1999

Espiritualidade,
Vida Leiga e
Discernimento
SUMÁRIO

Editorial

Espiritualidade Inaciana e Vida Leiga


Pe. Ulpiano Vásquez Moro S.J.

Critérios Inacianos de Discernimento a partir da América Latina


Pe. J. B. Libânio S.J.
1. Pressupostos do discernimento na perspectiva latino-americana
a. Concepção da história do mundo
b. Concepção da graça
c. Recuperação do público em confronto com o privado
2. Tirar de si todas as afeições desordenadas
3. Dialética do “magis” e da pequena mediação
4. Buscar Deus no cotidiano
5. Sentire cum Ecclesia
Conclusão

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EDITORIAL

A Revista Magis Subsídios traz nessa edição dois assuntos de especial importância para
todos aqueles que vivem a Espiritualidade Inaciana.

O primeiro texto, do Pe. Ulpiano Vásquez Moro S.J., amigo, colaborador e acompanhante
espiritual do Centro Loyola, é a transcrição de sua conferência aqui realizada em maio de 1998
sobre o tema Espiritualidade Inaciana e a Vida Leiga. O texto não apresenta, como se pode imaginar
em um primeiro momento, aspectos específicos ao laicato em um sentido eclesial, mas aprofunda os
objetivos e sentimentos de Santo Inácio quando, nos Exercícios Espirituais, propõe uma escolha ou
reforma de estado de vida. Assim, o texto conduz ao conhecimento da graça de viver continuamente
a busca da vontade de Deus que supera e suporta qualquer estado de vida escolhido.

O segundo texto, do também amigo e incansável colaborador deste Centro, Pe. João Batista
Libânio S.J., apresenta os aspectos de relevante importância para a prática do discernimento da
vontade de Deus na vida de cada um, tendo como pano de fundo as questões sócio-políticas e
culturais que desafiam a realidade da América Latina e, conseqüentemente, do cristão que nela vive
e exerce sua missão apostólica.

Boa Leitura a todos!

A EQUIPE

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ESPIRITUALIDADE INACIANA
E
VIDA LEIGA

Pe. Ulpiano Vásquez Moro S.J.

Vou tentar desenvolver o tema de uma maneira inaciana, isto é, usando uma das maneiras de
pensar que Santo Inácio coloca nos exercícios. Digo “maneira de pensar” porque como sabem os
que conhecem os Exercícios, há neles vários modos de orar: a meditação, a contemplação, o exame,
que são também modos de pensar. Um deles, Santo Inácio o denomina: “contemplar a significação
das palavras”. Eu vou tentar, nesta noite, aqui, para começar a nossa conversa sobre a
espiritualidade inaciana e a vida leiga, contemplar a significação de algumas das palavras que Santo
Inácio utiliza para tratar desse tema. Ou, como veremos, de um tema mais ou menos parecido, já
que Santo Inácio não faz essa distinção entre vida leiga e “outra” vida: clerical, ou religiosa, ou
sacerdotal.

Contemplar a significação das palavras. É uma expressão interessante. As palavras têm


uma significação que, quando nos detemos de uma maneira contemplativa para perceber o seu
sentido, começa a acontecer. Como na contemplação evangélica ou na contemplação de uma
paisagem, vem uma série de associações de sentimentos, de idéias, que nos fazem aprofundar no
sentido que essas palavras têm na nossa vida.

Guimarães Rosa definia o poeta como aquele que pede esmola às palavras para poder dizer
aquilo que ele quer transmitir aos outros. Eu acho que o cristão e o teólogo cristão, de alguma
maneira, têm que pedir esmola às palavras do Evangelho ou, no caso aqui, pedir esmola às palavras
de alguém que viveu o Evangelho de uma maneira intensa, de uma maneira autêntica, como foi
Santo Inácio.

Quais são as palavras de Santo Inácio sobre isso que nós chamamos de vida leiga? Eu
recordaria, em primeiro lugar, aquilo que Santo Inácio diz de mais geral e ao mesmo tempo de mais
concreto sobre a vida, sem fazer distinção entre vida leiga ou vida religiosa. O mais geral e ao
mesmo tempo o mais concreto que Santo Inácio diz sobre a vida é que Jesus Cristo é a vida
verdadeira. É em Jesus Cristo que a vida verdadeira se mostra ou se manifesta. Na verdade, o mais
geral e ao mesmo tempo o mais concreto, não é a idéia de vida, ou o conceito de vida. A vida
verdadeira se mostra em Jesus Cristo, na vida de Jesus Cristo. Portanto, tudo aquilo que possamos

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falar sobre a vida, aqui neste caso por causa do tema que me foi confiado sobre a vida leiga, deve se
situar nesse pano de fundo: de que a vida verdadeira se manifesta em Jesus Cristo. É isso que Santo
Inácio escreveu no número <139> dos Exercícios, na petição do exercício chamado “Das Duas
Bandeiras”. Quando ele recomenda ao exercitante: “pedir conhecimento da vida verdadeira” e
mostra o sumo e verdadeiro chefe, Jesus Cristo, para imitar.

Na verdade, Santo Inácio aí não está dizendo algo que ele mesmo não tenha ouvido, ou não
tenha lido nos Evangelhos. É o próprio Jesus, no Evangelho de João, que diz: “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida”.

Vida leiga ou religiosa só encontra a sua verdade em Jesus Cristo, que é a vida verdadeira.
Viver, escrevia Paulo, para mim é Cristo. Repito, não é uma idéia de vida, é uma pessoa. É uma
pessoa na qual se mostra, se manifesta, o que é a vida, a nossa vida. A vida de cada um de nós,
leigos, leigas, religiosos, padres, ou qualquer outra distinção que nós possamos fazer para falar dos
diferentes modos, formas ou estados de vida. Disso também Santo Inácio fala. No âmago dos
Exercícios está o que ele chama “eleição de estado de vida”. Aí ele fala – já que se trata de uma
eleição - de várias formas ou estados de vida que se pode escolher. Se só existisse um, não haveria
como fazer eleição. Já que se trata de uma escolha livre, devem existir pelo menos dois estados de
vida.

De fato, no número <135> dos Exercícios, no que ele chama “Preâmbulo para considerar os
estados de vida”, Santo Inácio faz uma distinção, ou uma diferenciação, entre dois estados de vida.
Qual é o espaço, a partir do qual ele pode fazer esse mapeamento, essa distinção entre dois estados
de vida?

Para ele, o espaço, ou o lugar, onde esses dois estados de vida se diferenciam é a Igreja. No
número <177> dos Exercícios, ele fala dos dois estados de vida que acontecem – cito literalmente –
“dentro dos limites da Igreja”. Da Igreja que, antes de mais nada, para ele é um espaço materno. A
distinção que ele venha a fazer, portanto, entre estados de vida, acontece na Igreja, que, antes de
mais nada, é mãe. Trata-se, pois de uma distinção que só tem sentido entre filhos. Ou é uma
distinção que acontecerá entre irmãos e irmãs. Sempre partindo do pressuposto inaciano que a
Igreja é mãe, mãe de todos, de todos aqueles e aquelas que a ela pertencem. A distinção, portanto,
entre esses estados, nunca será uma distinção de categoria, de classe, ou qualquer uma das
distinções que muitas vezes nós utilizamos quando falamos de nossa sociedade, ou falamos do
ponto de vista social, econômico, político e assim por diante.

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Se a Igreja é mãe, se o espaço da Igreja é para os irmãos, a distinção nunca será uma
distinção de categoria, ou uma distinção de gênero, ou uma distinção que estabeleça uma diferença
que rompa a fraternidade. Se se trata de irmãos, mesmo que tenham carreiras diferentes, que uns
sejam mais condecorados do que os outros, que uns estejam vestidos de uma maneira ou de outra,
isso não deve nos impedir de perceber que se trata de irmãos, filhos da mesma mãe.

No número <135>, essas formas, ou estados de vida, aparecem em primeiro lugar como um
dom de Deus. Citando literalmente Santo Inácio quando fala da escolha de estado de vida, ele diz
que essa forma ou esse estado de vida é algo que Deus nos dá. Se, portanto, ter um estado de vida
ou outro na Igreja, antes de mais nada, é um dom de Deus. É o próprio Deus que estabelece as
diferenças. Portanto, só podem ter um sentido de enriquecimento dessa fraternidade fundamental
numa Igreja que é mãe.

Que o estado de vida que cada um de nós tem na Igreja seja dom de Deus, não supõe, para
Santo Inácio, que a liberdade de escolha desse estado de vida não exista também. Muito pelo
contrário. Ele diz uma frase que pode parecer chocante. No número <135>, declara que nós
devemos nos esforçar para chegar à perfeição em qualquer estado de vida que Deus Nosso Senhor
nos dê a escolher. O dom de Deus suscita a nossa liberdade de escolha. Não é a graça de escolher tal
estado de vida, ou tal outro estado de vida. É, ao mesmo tempo, dom de Deus, mas dom que é
oferecido à nossa liberdade. O estado de vida que tenhamos ou venhamos a ter na Igreja não pode
ser nunca uma imposição de quem quer que seja.

Creio que isso é muito profundo: considerar essa realidade do nosso estado de vida ao
mesmo tempo como um dom, uma graça que suscita a nossa liberdade. Parece que é muito
importante nas circunstâncias da vida pelas quais cada um de nós passa. Em que sentido? No
sentido de que muitas vezes nós não temos muitas condições de escolher nosso estado de vida. Ou,
no estado de vida escolhido, muitas vezes parece que a nossa liberdade não tem como se
desenvolver.

Devemos lembrar-nos dessas circunstâncias concretas da nossa vida, que às vezes nos são
impostas pelas situações pelas quais passamos. Lembrar-nos que essas circunstâncias podem ser
compreendidas como um dom, uma graça de Deus, que podemos assumir como dom e como graça.
E não simplesmente suportar. Creio que é um dos segredos dos Exercícios.

Lembrem-se de quando Santo Inácio fala da desolação, isto é, fala de uma situação em que a
pessoa se encontra - falando um tipo de linguagem mais atual - na “fossa”, ou seja, sem esperanças,

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sem sentir pelo menos o alicerce da fé e a força do amor. Ele se pergunta: “para que a desolação?”.
Pode dar muitas voltas e procurar os porquês, os para ques. Ele acaba dizendo que mesmo a
desolação tem como função “dar a verdadeira notícia e conhecimento”. Tem como função fazer
com que sintamos internamente que tudo é dom e graça. Como padre, muitas vezes eu tenho
encontrado situações assim. E não se precisa ser padre para isso. Mas, às vezes, a situação de ser
padre faz com que nós vejamos muitas situações em que aparentemente não há nenhuma saída. Ou
aparentemente não há como exercitar a liberdade. Não há escolha. Digo “aparentemente” porque
sempre é possível.

Mesmo na pior das situações, é possível encontrar um sentido, ou uma significação que não
se impõe, mas que na fé, livremente, nós podemos dar a essa situação que se impõe à nossa vida.
Encontrar uma saída pascal mesmo para a pior das situações. É quando somos capazes de
reconhecer o dom e a graça de Deus. E escolhemos o sentido, mesmo para uma situação que nos é
imposta. Em qualquer situação podemos experimentar isto: que tudo é dom e graça. Digo
experimentar porque, evidentemente, isso não se impõe pela força de uma argumentação ou de um
silogismo. É na experiência de como, na fé, na esperança e no amor nós podemos dar um sentido
positivo às situações mais negativas, que nós podemos experimentar aquilo que já dizíamos no
início: para Santo Inácio a vida é Cristo. Aprender o que é a vida verdadeira é aprender a encontrar
– mesmo para situações mais negativas – um sentido positivo. Creio que é isso que Santo Inácio – e
neste momento estou interpretando as suas palavras ou tentando contemplar o que ele diz - nos
comunica quando, falando da escolha do estado de vida, nos fala que ela é, ao mesmo tempo, dom e
liberdade. Ou seja, o estado de vida que possamos escolher, que já escolhemos, continuará sendo
sempre um dom que o Senhor oferece para a nossa escolha.

Vamos a um segundo ponto. Quais as formas, ou modos, ou os estados de vida que, para
Santo Inácio, existem dentro da Igreja? Antes de falar de Santo Inácio, vejamos como nós vemos,
como nós mapeamos a Igreja. Tenho a impressão de que, no nosso modo de ver as diferenças dentro
da Igreja, normalmente nós falamos de leigos ou leigas e religiosos ou religiosas; ou ainda, entre
leigos e padres. É quase que normal estabelecer essa diferença. Aliás, normalmente, quando se fala
da Igreja pensa-se imediatamente nos representantes da hierarquia, de padre para cima: padre,
bispo, arcebispo, cardeal e o papa. No jornal, por exemplo, quando se está falando da Igreja, fala-se
de alguém que pertence à hierarquia da Igreja. Leigo, mesmo na linguagem eclesiástica, é alguém
da base, ou, como se costuma falar, um simples leigo, ou um leigo simples. Na linguagem que o
dicionário já adotou, um leigo é alguém que não sabe do assunto; ou não pode; ou então não pode

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porque não sabe. Evidentemente essa linguagem não é usada sem motivo. Infelizmente, essa
linguagem deve ter surgido, ou surgiu, de uma visão da Igreja onde se esqueceu, na prática, que a
Igreja é mãe de filhos que como filhos, ou como irmãos da mesma mãe são iguais. Essa linguagem
em que leigo já significa alguém que está por fora do assunto é uma perversão, ou indica uma
perversão na compreensão do que a Igreja do Cristo é.

Etimologicamente, a palavra leigo simplesmente significa alguém que pertence ao povo de


Deus. Nesse sentido, como os teólogos antigos e modernos têm tentado mostrar, todos na Igreja,
etimologicamente, são leigos, porque todos na Igreja pertencem ao povo de Deus. Ninguém nasceu
bispo. A categoria de religioso, de padre, de bispo, não é uma categoria radical. O radical é ser do
povo. Ou, o radical é, na linguagem de Santo Inácio, ser filho. Pode haver filhos que colocam na
cabeça um chapéu estranho – como ele se chama? – a mitra; ou que tenham distinções, ou que
tenham funções ou ministérios diferentes. Mas isso nunca nos deveria fazer esquecer que somos
filhos e portanto irmãos. Nossa linguagem, nesse sentido, é uma linguagem que deve ser corrigida.
O significado dessa palavra “leigo”, para ser utilizado, ou para que essa palavra possa ser utilizada
no seu significado autêntico, temos que remover dela esse sentido, que eu acho que merece o nome
de perverso, onde já com a palavra vem a idéia de que quem for leigo, ou leiga, não pode ou não
sabe na Igreja.

O Concílio Vaticano II fez de tudo exatamente para corrigir essa visão deturpada que foi se
sedimentando no interior da Igreja, ao longo dos séculos. E era esse o modo de pensar de Santo
Inácio. Como fala Santo Inácio da distinção ou das diferenças dentro da Igreja? Santo Inácio fala,
nos Exercícios, de uma maneira muito curiosa. Ele quer fazer uma distinção. Mas não quer utilizar
palavras que vão como definir a situação, ou definir cada um dos lados dessa distinção. Ele fala de
estados de vida, o que é muito importante, evidentemente, porque se se trata da liberdade, então há
que haver mais de um. Fala dos estados de vida e os define como primeiro e segundo. Não diz que o
primeiro seja o leigo e o segundo o religioso. Diz simplesmente primeiro e segundo: o primeiro
estado e o segundo estado. Ambos os estados de vida, primeiro e segundo, ele diz que foram vividos
por Jesus Cristo. Qualquer distinção que venha a ser feita entre modos diferentes de viver na Igreja
tem que encontrar, sempre, em Jesus Cristo a sua raiz. Jesus Cristo viveu, ele mesmo, e
experimentou qualquer uma das formas, ou estados de vida, que existem na Igreja. Esses dois
estados de vida que ele não define - primeiro e segundo - ambos são considerados como vocação de
Deus, que nos chama a um estado de vida ou ao outro. A vocação – que também na linguagem
eclesiástica muitas vezes foi esquecida – não é um privilégio daqueles que vão ser religiosos ou

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religiosas ou padres. Às vezes se diz: essa pessoa tem vocação, vai ser jesuíta. O que significa isso?
Que os outros não têm vocação? No modo como Santo Inácio fala dos estados de vida, qualquer
estado de vida deve ser visto como uma vocação de Deus. Qualquer estado de vida, repito. Seja o
primeiro ou seja o segundo, trata-se de um chamado, uma vocação, uma graça de Deus. Escolher
qual o estado de vida que Deus quer para mim e que no seu querer Ele me dá a escolher, é
responder a um chamado de Deus. De novo, às vezes na mentalidade, mesmo no interior da Igreja,
na mentalidade comum, a palavra vocação estava como que reservada só para as pessoas que
escolhiam a vida religiosa, ou o sacerdócio. Não é essa, de forma alguma, a maneira de pensar de
Santo Inácio.

Em que consiste o primeiro estado? Em que consiste o segundo? O primeiro estado – mais
uma vez, não se está falando de vida leiga ou de vida sacerdotal – para Inácio, consiste na
observância dos mandamentos. Santo Inácio supõe que quem lê esse texto já fez as contemplações
da primeira parte da vida de Jesus Cristo. Esse estado de vida é o estado de vida em que Jesus
Cristo viveu a observância dos mandamentos. Viveu a vida de uma maneira em que os
mandamentos de Deus são obedecidos. O segundo estado de vida, que se diferencia do primeiro,
encontra a sua diferença no que Inácio chama de perfeição evangélica. A distinção entre esses dois
estados de vida não passa, portanto, pelo leigo ou religioso, leigo ou padre. Pode ser um padre que,
de alguma maneira, se contenta – tomara todos nos contentássemos – com a observância dos
mandamentos. Pode ser um leigo que procura a perfeição evangélica. Isso significa que, para Inácio,
os estados de vida não são algo já definido e definitivo. Não passa na cabeça de Inácio essa idéia
que no nosso imaginário nos representa a Igreja como já dividida entre a hierarquia eclesiástica e os
leigos.

Em que consiste a diferença? Porque existe uma diferença entre o primeiro e o segundo
estado. Como acabei de dizer, a diferença está em que no primeiro Santo Inácio diz que se trata da
observância dos mandamentos. No segundo, da perfeição evangélica. A diferença seria essa? Sim e
não. Santo Inácio é muito “mineiro”. Sim e não porque, depois de fazer essa diferença entre os
estados de vida, ele escreve: mas todos devemos nos esforçar para chegar à perfeição em qualquer
estado ou vida que Deus nos der à escolher. Portanto, não é simplesmente o que ele chama de
perfeição. Vão ver o que essa palavra significa. O que faz a diferença? Porque em qualquer estado
ou vida a pessoa deve se esforçar para chegar à perfeição. A distinção, olhando as palavras, está
nessa palavra evangélica: perfeição evangélica. A distinção está no adjetivo. Qualquer cristão, para
Santo Inácio, deve procurar, no seu estado de vida, chegar à perfeição. O que significa evangélica,

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para ele? Na tradição em que Santo Inácio bebeu, o evangélico está se referindo, em primeiro lugar,
à pobreza. Em segundo lugar, à castidade. Em terceiro lugar, à obediência. Isso na tradição da
linguagem onde foi se construindo a língua da Igreja. Mas aí Santo Inácio de novo é original.

No “Exercício das Duas Bandeiras”, ele fala de pobreza – e no lugar onde, conforme a
tradição esperaríamos que falasse de castidade – ele fala de menosprezo. No terceiro lugar, onde
esperaríamos que se falasse de obediência, ele fala de humildade. Quem fez os Exercícios está
lembrado, nem que seja pelo que penou, naquele exercício onde se tratava de ver os critérios da
nossa vontade de seguir Jesus Cristo, quando confrontados com a pobreza espiritual ou atual, como
Santo Inácio distingue, o menosprezo e a humildade.

Será que Santo Inácio pensava que não existem então, que não há diferença entre leigos,
religiosos e padres? Santo Inácio não era cego. Sabia que na Igreja existem leigos, existem
religiosos e religiosas, existem padres. Mas ele não via, nessas distinções que existem dentro da
Igreja, que a diferença estivesse constituída pelo grau. A diferença está na maneira como enquanto
leigos, no sentido que nós damos à essa palavra, religiosos ou padres, nós nos decidimos, ou nós
escolhemos a possibilidade que Deus nos dá, de vivermos como Jesus Cristo, seja casado, solteiro,
viúvo ou qualquer outra condição de estado civil. Seja qual for também a função que temos na
Igreja. A distinção, repito, passa pelo modo como nos sentimos chamados a seguir Jesus Cristo. O
mais e o menos – de novo aí não dizem respeito a uma generosidade subjetiva – mas não há
distinção, não está entre o mais ou menos. A distinção está entre aquilo que a mim, ou a você, Deus
pede. Essa distinção, às vezes, é muito sutil e difícil de manter. Quatro anos depois do texto dos
Exercícios ter sido acabado por Santo Inácio, que escreveu em espanhol, quando o texto foi
traduzido para o latim. Naquele tempo, se o texto não fosse traduzido para o latim, não merecia a
consideração de nenhuma pessoa letrada. Quando o texto foi traduzido para o latim, com a tradução
latina, o que Santo Inácio tinha escrito já foi, de alguma maneira, mudado. Ou foi adaptado à
situação “normal”. E introduziram, no texto latino, que traduz esse número <135> dos Exercícios de
Santo Inácio, a distinção entre o primeiro estado, que é a vida leiga e o segundo estado que é a vida
religiosa. Mas não era isso que Santo Inácio tinha escrito. Não é isso que Santo Inácio, no
comentário chamado Autógrafo dos Exercícios, escreve de uma maneira que ajuda a compreender
esse primeiro estado e o segundo. Ele diz ou fala da perfeição evangélica dizendo que ela pode ser
escolhida na vida religiosa ou fora da vida religiosa. Portanto, não é o fato de entrar numa ordem ou
numa congregação, ou receber uma ordenação ministerial que faz com que a pessoa, do ponto de
vista de Santo Inácio, seja mais ou menos perfeita. A perfeição e o que estabelece uma distinção na

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Igreja é sempre em função de um apelo de Deus ao qual a pessoa responde livremente. Não é,
portanto, uma questão de grau ou uma questão de mais ou menos.

Quais seriam as características inacianas da vida leiga? Insisto, da vida leiga não contraposta
à vida sacerdotal ou à vida religiosa. Para Santo Inácio, isso não teria sentido. As características da
vida leiga, para Santo Inácio, são simplesmente as características do seguimento de Jesus Cristo,
que qualquer pessoa – leigo ou religioso – deve seguir. Chamo a atenção para um ponto: eu creio
que Santo Inácio não gostaria nada que nós falássemos de características inacianas. Quando, depois
de muita deliberação, Santo Inácio e seus primeiros companheiros resolveram fundar a Companhia
de Jesus, Santo Inácio sempre lutou para que os jesuítas não fossem chamados inacianos, ou, como
alguns chamavam, porque esse era o nome primeiro de Santo Inácio, “iniguistas”. Antes de, ou no
início da sua conversão, Santo Inácio tinha uma espécie de fixação mimética, ou de imitação de São
Francisco e de São Domingos. Ele queria fazer o que eles fizeram e mais ainda. Era valente e
pensava que poderia ser como eles e mais. À medida em que a conversão foi se aprofundando, ele
se esqueceu da imitação dos santos e quis imitar e seguir Jesus Cristo. Por isso, digo que Santo
Inácio não gostaria muito que nós falássemos de características inacianas. Ele quer apenas que
sejamos cristãos.

Tomara que – mesmo aqueles que estamos pescados numa mesma rede apostólica que se
chama inaciana – não nos esqueçamos que esse adjetivo deve ser sempre discreto. E que, para ser
verdadeiramente seguidores do modo que Santo Inácio teve de viver o Evangelho, nós não
deveríamos nos preocupar demais pelo adjetivo e sim pelo substantivo. Por aquilo que é substancial,
que é o seguimento de Jesus Cristo. Por isso, as características inacianas da vida leiga não poderiam
ser outras do que as características segundo as quais Santo Inácio contempla o próprio Jesus. Imitar
e seguir a Jesus Cristo, para Santo Inácio, não é algo que só os padres ou as irmãs fazem. Imitar e
seguir Jesus Cristo é algo que todo cristão, em qualquer estado de vida, deve fazer.

Como Inácio via Jesus Cristo? Evidentemente, essa pergunta não dá para responder assim
em poucas palavras. Lembro a primeira e a última forma ou maneira como Jesus Cristo aparece nos
Exercícios. Tentem recordar. A primeira vez que Jesus Cristo aparece nos Exercícios, no colóquio
do Primeiro Exercício da Primeira Semana, é da maneira que se tornou mais comum, quase que
estereotipada. Jesus Cristo aparece pela primeira vez nos Exercícios como o Crucificado. É a
imagem mais difundida. A imagem que de alguma maneira se tornou o símbolo do cristianismo. Ou
o sinal dos cristãos que é o “sinal da cruz”. Se tornou a mais comum porque, de alguma maneira,

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representa também o mistério mais profundo de quem é Jesus Cristo para nós. Já a última maneira
pela qual Santo Inácio o apresenta, é quando nos solicita para contemplar Jesus Cristo Ressuscitado,
em que ele destaca, sobretudo, o aspecto de “Consolador”. Jesus Cristo, o Ressuscitado, que vem,
diz Inácio, com o ofício de consolar, que manifesta a sua ressurreição, justamente, pelos efeitos
dela. E os efeitos da ressurreição se concentram, se manifestam no fato da consolação. Entre a
primeira imagem do Crucificado e a última do Ressuscitado, ao longo da segunda e da terceira
semana dos Exercícios, Santo Inácio coloca cinqüenta mistérios da vida de Jesus Cristo. Cinqüenta
mistérios da vida de Jesus Cristo em que sempre o pedido de conhecê-lo internamente, para mais
amá-lo e segui-lo vai se repetindo.

Vai se repetindo nas contemplações, de tal maneira que a vida de Jesus Cristo – o que ele
chamava a vida verdadeira – não seja só mais uma idéia, e não seja só a imagem de uma pessoa,
mas seja toda a história de Jesus Cristo, que contemplamos com os nossos sentidos. Pode ser
sentida, também, em todas as suas dimensões, aproximando a nossa vida da vida dele. E
aproximando a vida dele da nossa.

Esse é o trabalho da contemplação, que tirando-nos das circunstâncias do nosso viver, vai
como que nos transportando para a vida de Jesus Cristo, vai fazendo com que a vida de Jesus Cristo
venha para a nossa vida. Esse ir e voltar ou esse sair para a vida dele, e voltar para a nossa vida
trazendo as características da vida dele é o grande trabalho dos Exercícios. É aí onde cada um de
nós, na sua situação, pode experimentar o dom da livre escolha do modo de viver cristãmente, em
qualquer estado ou vida que Deus nos dê para escolher. É assim, parece-me, que o fato de Jesus
Cristo ser o exemplo para qualquer homem ou mulher, leigo ou religioso, se torna, de verdade,
concreto. Não há uma receita inaciana para viver como leigo ou leiga, como padre ou como irmã.
Essa receita não existe. Isso só pode ser sabido por cada um, na medida em que, contemplando
Jesus Cristo, vai experimentando pela ação do seu Espírito em nós, o que é que concretamente cada
um de nós pode fazer. Ou então, como, usando as palavras de Santo Inácio, pode chegar à perfeição.

Perfeição! Não é acabamento. Perfeição não é um ideal inatingível. Perfeição, ao pé da letra,


e utilizando o texto que certamente Santo Inácio tinha na cabeça – o texto do Evangelho – quando
fala de perfeição, é a capacidade de ir até o fim. Ser perfeito não é ser acabado de acordo com um
modelo preestabelecido e que nós tentamos imitar e quebramos a cabeça porque nunca
conseguimos. A perfeição é essa capacidade de andar num caminho sem desistir. Ir até o fim. A
palavra grega é téleios, formada do substantivo “telos” que significa fim. Uma pessoa perfeita é

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uma pessoa que caminha até o fim. Como, no capítulo XIII de João, se fala de Jesus Cristo: “Tendo
amado os seus que estavam no mundo, os amou até o fim”. Ser perfeito não é algo que nós
conseguimos. Pronto. Já sou perfeito. Se alguém, algum dia, disser isso, está mostrando que é
extremamente imperfeito. A perfeição não é um estado permanente. A perfeição é esse caminhar
sem desistir. Por isso é que, de Jesus Cristo, Santo Inácio fala que é alguém que devemos conhecer
e amar para seguir. A vida cristã é esse seguimento. Segue. Segue até chegar ao fim como Ele foi
até ao fim. Santo Inácio expressa isso, de uma maneira geral, mas que, na nossa vida se torna, nas
circunstâncias da vida de cada um de nós, bem concreto quando ele fala que a perfeição na vida
espiritual consiste na capacidade de sair do próprio amor, do próprio querer e do próprio interesse.
Do próprio amor, do próprio querer e do próprio interesse, das coisas que nos interessam, das coisas
em que nós estamos também interessados. Sair do próprio contexto de si mesmo, do amor a si
mesmo, das coisas que nos são próprias.

É nesse sentido que os cinqüenta mistérios da vida de Jesus Cristo, ao longo do mês dos
Exercícios, vão ensinando as características da nossa vida em Cristo. Há duas, me parece, que para
Santo Inácio são fundamentais. São fundamentais para a vida cristã, porque são fundamentais na
vida de Jesus Cristo. O modo como Santo Inácio vê a Jesus Cristo privilegia nele, naquilo que ele é,
naquilo que ele faz, a missão. Jesus Cristo é o Enviado. O Enviado pelo Pai, naquela decisão da
Santíssima Trindade, com uma missão que Santo Inácio resume numa palavra bem simples: a
missão de “ajudar”. O modo como, nos mistérios da vida de Jesus Cristo, Ele aparece, é como
alguém que ajuda a humanidade. Que tem como missão, como sentido de sua vida, ajudar a
humanidade que Ele criou. Ajudar a humanidade a ser humana. Jesus Cristo não vem, ou não se
encarna, assume a humanidade que Ele criou, não se faz homem para renegar a humanidade. É para
ajudar a humanidade a ser humana. Porque é assim que a humanidade se reconhece como criatura.
Essa é a missão de Cristo e essa é a missão daquele que em qualquer estado de vida quer seguir
Jesus Cristo. Desde que Inácio se converteu, a sua conversão para Deus significou também uma
conversão aos outros. Ajudar, diz ele ou escreve na Autobiografia na sua linguagem, é ajudar as
almas. Não que ele pensasse que as almas – no sentido que nós damos hoje a essa palavra –
precisem de ajuda. Ajudar as almas é ajudar a vida das outras pessoas. Ajudar porque ele vê que
Jesus Cristo não vive para o Pai sem viver também para as outras pessoas.

Ver Jesus Cristo como aquele que ajuda é ver a si mesmo como aquele que tem também essa
missão de ajudar os outros, da maneira que for. Ajudar a humanidade. Amar a humanidade.

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Santo Inácio destaca nessa ajuda o que nós costumamos chamar de discernimento. A ajuda
de Jesus Cristo à humanidade consiste em abrir os nossos olhos para perceber como muitas vezes
vivemos iludidos. Essas ilusões sobre nós mesmos, sobre o mundo em que vivemos, sobre as outras
pessoas, sobre o modo de ser humano, é que nos impedem de ser a criatura que Deus ama como Pai.
São essas ilusões que nos impedem de ver que tudo no mundo – como nos lembra o “Princípio e
Fundamento” – foi criado para todos os homens e para que possamos realizar e atingir o fim para o
qual fomos criados. As grandes ilusões, os grandes enganos, ou tentações, que para Santo Inácio
Jesus Cristo vem arrancar dos nossos olhos, ou da nossa vida, são a ilusão da riqueza. É pensar que
são os bens materiais que vão realizar a nossa humanidade. Ou que vão fazer com que nós nos
realizemos como pessoas. A grande ilusão segunda que Jesus Cristo quer arrancar de nossas vidas é
a ilusão de que a honra, o que nós parecemos aos olhos dos outros, a imagem que nós tentamos dar
aos outros de nós mesmos é a nossa verdade. A última – e como sempre que Santo Inácio colocava
no último lugar o mais fundamental –, a grande ilusão é a ilusão da soberba, da auto-suficiência de
pensar que, sozinhos, sem Deus e sem os outros, nós podemos nos realizar. São essas ilusões que o
próprio Cristo venceu quando, no deserto, soube discernir nas propostas do Maligno, tentações
contra a sua missão.

Inacianamente, me parece que seria necessário dizer que a vida leiga, do ponto de vista da
espiritualidade inaciana, deveria ser uma vida onde há um espaço privilegiado para a pobreza
espiritual e, na medida do chamado de cada um, material. Com tudo o que isso significa.

A segunda característica da vida leiga na espiritualidade inaciana devia ser a capacidade de


superar situações onde nós somos menosprezados.

A terceira característica de uma vida inaciana deveria ser uma humildade verdadeira. É isso
que o grande romancista Dostoievsky dizia que os jesuítas não ensinavam. Na passagem em que um
dos personagens do romance “Os Irmãos Karamazov” conta a lenda do Grande Inquisidor, ele diz
que o papa e os jesuítas renegaram o Cristo, colocando como ensinamento três verdades que
mantêm o povo na ilusão. Essas três verdades, segundo Dostoievsky são: o milagre, o mistério e a
autoridade. Que Dostoievsky seja injusto com a Igreja Católica e concretamente, dentro da Igreja
Católica, com os jesuítas, ou, pelo menos, com Santo Inácio, é evidente. O que sustenta a religião,
tal como Inácio vê o cristianismo na vida de Jesus Cristo, não é o milagre. Mesmo que todos nós o
procuremos. O que sustenta a religião não é o milagre que vem ou viria resolver todos os nossos
problemas. Mesmo o problema, ou a questão, de ser humano. Um Deus que fosse simplesmente um

14
Deus de milagres, nunca seria um Deus que solicita o nosso amor, que solicita a nossa entrega, que
solicita a nossa ação.

A segunda grande verdade que, segundo Dostoievsky, impede que a Igreja Católica seja
Igreja de Cristo é o mistério. Manter o povo enganado dizendo que Deus é simplesmente um
mistério que ninguém pode compreender. Quando nos Exercícios pedimos conhecimento interno de
Jesus Cristo, que por nós se fez homem para mais amá-lo e segui-lo, estamos pedindo para conhecer
o mistério. Porque o mistério pode ser, sem que seja esgotado, conhecido. O mistério de Deus que
se revela na humanidade de Jesus Cristo. A autoridade, como eu tentei mostrar, não é – na Igreja
mãe que Santo Inácio crê – algo que seja ou crie dentro da comunidade eclesial uma classe especial
que diferencie, ou que rompa essa fraternidade essencial. A humildade, feito o Cristo que era manso
e humilde de coração, é ou deve ser uma característica de todo o cristão. E quanto mais autoridade
tiver, na Igreja, mais humildade deveria ter. Porque uma autoridade que se satisfaz a si mesma, uma
autoridade que se sobrepõe aos outros tem tudo para não ser autoridade cristã. Tem tudo para não
ser, como a palavra autoridade quer dizer na sua etimologia, aquilo que ajuda aos outros a crescer, a
aumentar.

Eu creio que, no mundo em que nós vivemos e na Igreja em que nós vivemos, essa
simplicidade inaciana que é feita de contemplação da verdade de Jesus Cristo, simplicidade que é
feita da contemplação de Jesus Cristo como alguém que é o nosso contemporâneo e não
simplesmente uma figura do passado. Alguém de quem nós podemos ser companheiros e
companheiras. Essa simplicidade do seguimento de Jesus Cristo como se nós fôssemos personagens
do Evangelho, é o que pode dar riqueza à graça que quem faz os Exercícios recebe. Graça para a
Igreja. Graça para uma Igreja onde existe muitas vezes tão forte a diferença que separa a
compreensão do leigo como aquele que não sabe que não pode. Eu acho que a contemplação dos
mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo como nosso contemporâneo, a contemplação do
mundo como a criação, onde, hoje, aqui e agora, é possível realizar em nossa vida a vida de Jesus
Cristo, é isso que quem fez os Exercícios de Santo Inácio de alguma maneira está devendo à Igreja
e ao mundo.

Não creio que o importante seja, como antes dizia, nos caracterizarmos, diante das outras
pessoas, por uma etiqueta ou uma “griffe” inaciana. O que importa mesmo é tentar viver hoje aquilo
que Santo Inácio nos ensinou. E o que Santo Inácio nos ensinou não é tanto a olhar para ele, que
discreto, sempre se retirava. O que Santo Inácio nos ensinou é a olhar para Jesus Cristo. A ter a

15
ousadia de experimentar o abraço de Deus Pai. Numa relação, como ele diz, imediata. A ver, em
Jesus Cristo, aquele que Deus enviou para salvar a humanidade. E a sentir, em nós mesmos, esse
chamado a seguir a Jesus Cristo, saindo do nosso próprio amor, do nosso querer, do nosso próprio
interesse.

Perguntava a Santo Inácio qual era o típico dos jesuítas. Ele dizia: é tudo. Não por soberba.
Não por vanglória. Mas porque só no dia-a-dia é que podemos saber qual é a melhor maneira de
seguir Jesus Cristo. Para uns poderá ser uma coisa, para outros, outra. Não é algo a priori, já
determinado. É, na medida em que formos fiéis a essa certeza de que Jesus Cristo está no meio
de nós, de que esse é o espírito que anima a nossa vida, que nós poderemos também encontrar
na pobreza, muitas vezes no desprezo, sempre na humildade, a maneira de ser fiéis Àquele que
nos ajudou e quer que nós possamos também ajudar os outros. Quer que olhemos mais, como Santo
Inácio escrevia, a necessidade dos outros do que o nosso próprio desejo. Essa vida é uma vida que
pode parecer louca, ou uma vida que pode parecer alienante mental. Essa vida, para Santo Inácio,
era a única maneira em que valia a pena viver. Sem a importância que um estado de vida
reconhecido, ou uma classe, ou um “status” poderia nos dar.

O chamado à perfeição, o chamado a caminhar até o fim, é um chamado que a todos Jesus
Cristo faz. O modo de ser cristão, para Santo Inácio, não existe sem esse mais, um passo a mais,
sempre mais. Isso é o que me ocorre ou me ocorreu para dizer a propósito do tema “Espiritualidade
Inaciana e a Vida Leiga”.

Eu disse, resumindo, que para Santo Inácio não existe distinção entre vida leiga, ou secular,
e vida religiosa. A distinção verdadeira passa, ou se faz, na igualdade, pelo modo em que cada um é
chamado por Deus a responder. As diferenças, na Igreja, são diferenças não só na unidade, mas para
a unidade. Todas elas são vocação de Deus, todas elas são dom e graça, todas elas solicitam, cada
um a cada uma em particular, cada um a seu modo, a nossa liberdade que se realiza nesse
seguimento perfeito de Jesus Cristo, isto é, num seguimento de Jesus Cristo que, como ele, quer ir
até o fim. Tomara que essas palavras possam, pelo menos, ter ajudado a dar um passo à frente.

Rodrigo:

Faço Engenharia na PUC. Também trabalho na PUC. Eu lhe pedia para que o senhor falasse
mais um pouco sobre essa contemplação da palavra, do sentido da palavra. E dessa contemplação
levando você a essa perfeição que a palavra quer dizer. Mais ou menos, o perigo que as palavras
têm de nos desviar dessa perfeição.

16
Padre Ulpiano:

Eu, no início, chamei a atenção para essa forma de orar, que é uma forma também de pensar,
que consiste em, usando a frase de Santo Inácio, “contemplar o significado das palavras”. Eu tentei,
de alguma maneira, fazer isso com uma série de palavras. Por exemplo, a palavra “leigo”. A palavra
“leigo”, quando contemplamos o significado que ela tem, de repente, significa isso: leigo num
assunto é aquele que não sabe. Aí tem um significado. Mas será que esse significado é válido para
falar das pessoas que fazem parte da Igreja? Será que a Igreja é feita dos que sabem e dos que não
sabem? Dos que têm e dos que não têm? Dos que podem e dos que não podem?

Esse primeiro significado da palavra “leigo” tem que ser como que perfurado para ver se não
tem por trás, não tem atrás desse significado um outro significado. Eu dizia, etimologicamente, essa
palavra foi inventada para dizer, ou para mostrar alguém que faz parte do povo de Deus: láos, leigo,
láicos. Por aí, nós chegamos já a um outro sentido. Na Igreja, essa palavra deveria significar o que
todos nós somos, antes de qualquer outra diferença. Nós somos membros do povo de Deus. Nossa
nacionalidade ou nossa pertença fundamental é Deus. Na Igreja, nós, nesse sentido, somos parte do
povo de Deus.

Está vendo? Então, eu tenho a palavra e vou pensando no que ela significa, para o bem ou
para o mal. Vou tentando ver o que ela pode significar na boca de Jesus Cristo. O que ela pode me
dizer sobre quem eu sou. Imagina que eu sou padre. Se eu contemplando essa palavra disser: “Olha,
eu sou mais do que os outros, porque eu não sou leigo, eu sou padre.” O significado dessa palavra
está sendo mal contemplado. Ou então se eu tentava contemplar essa palavra na boca de Jesus,
Jesus ia dizer: “Não é por aí, não!”

Citei aquela frase de Guimarães Rosa; é pedir esmolas às palavras para irmos entrando no
significado, ir entrando no sentido que elas têm, ou que elas querem nos transmitir, sobretudo se são
palavras que o próprio Jesus utilizou e utilizou com um sentido vital. A palavra de Deus é vida,
então temos que ver como estas palavras nos revigoram, nos revitalizam. É por aí. Se quiser, um dia
fazemos um exercício de contemplação de palavras.

Maristela:

Boa Noite. Sou do Centro Loyola de Juiz de Fora. Gostaria de fazer a seguinte pergunta:
como você vê o protagonismo do leigo, hoje, na Igreja, rumo ao terceiro milênio? A segunda
pergunta: a posição e o rumo das mulheres dentro da Igreja rumo ao terceiro milênio.

17
Padre Ulpiano:

Eu vejo muito bem. Essa expressão “protagonismo”, protagonismo do leigo, como sabem,
foi utilizada na Conferência dos Bispos Latino-Americanos, em São Domingos. Melhor tarde do
que nunca, houve, da parte dos bispos, a percepção de que era necessário para o bem da Igreja que
os leigos tivessem nela o que chamaram de protagonismo. Que os leigos fossem protagonistas da
sua própria história. É isso.

Eu confesso que essa expressão para mim soou um pouco demagógica. Mas, eu acho que se
explica pela situação de uma Igreja onde, como foi escrito até em documentos pontifícios, a função
e o papel do leigo era obedecer. A função da obediência é de todos, como Santo Inácio lembrava. O
primeiro estado de vida é a obediência aos mandamentos. Isso vale para o leigo e vale para o papa.
As circunstâncias da história da Igreja nos últimos séculos não facilitaram isso que os bispos de São
Domingos, certamente movidos pelo Espírito Santo, viram que era necessário. Quer dizer, que cada
um tenha na Igreja o seu papel. Que seja papel de protagonistas, repito, não é uma reação minha
como padre dizendo: “Ih, agora nós não somos mais protagonistas”. Eu acho que não tem
protagonista. Ou então o protagonista é Jesus Cristo. O resto somos todos coadjuvantes.

Isso é perigoso porque se se fala de protagonista, implicitamente, está se supondo um


antagonista. Então isso mantém, ou pode manter, uma oposição no interior da Igreja, uma oposição
que pode ser importante nas assembléias, pode ser importante para pensar. Mas que é, parece-me,
nefasta quando se trata da vida da Igreja, ou quando se trata da fraternidade que deve existir entre
todos os membros da Igreja.

Sobre o papel da mulher. Quem sou eu para falar isso? Eu acho que são vocês que devem
falar. Eu acho que, também, por circunstâncias históricas, culturais e assim por diante, o papel da
mulher na Igreja era um papel que eu creio fundamental. A fé foi transmitida, não só na nossa
cultura no Brasil, ou na cultura ibérica, assim por diante, e é evidente que as catequistas, as mães, as
avós, tinham um papel fundamental na transmissão do cristianismo. Não reconhecido. Não
reconhecido pela forma – não sei se dizer machista – como a Igreja está institucionalizada. Eu acho
que o papa atual tem dito coisas fundamentais sobre o papel da mulher na Igreja que, se fossem
levadas a sério, mudariam muito o rosto da Igreja tal como nós o conhecemos. Mas, sinceramente,
sobre esse tema, um homem e um padre tem mais é que escutar. Porque só faltava que ainda
fôssemos nós quem tivéssemos que falar às mulheres o que elas devem fazer. Isso seria ainda uma
tutela vergonhosa. Não é só para fugir do assunto, não. Penso assim. Se o papel da mulher na Igreja

18
deve ser maior, eu acho que cabe a vocês ver como esse papel deve acontecer. Eu, pessoalmente,
creio que há muito para ser feito. Mas não cabe a mim dizer o que. Cabe a mim ser bom
companheiro e não atrapalhar. Eu procuro.

Álvaro:

Mais do que fazer uma pergunta, porque está tudo claríssimo, parece, depois da colocação
do Ulpiano, muito bem feita, eu queria fazer uma apreciação da colocação.

Eu gostei muito porque, confesso que no primeiro momento, havia imaginado um quadro
com duas colunas. Na coluna da esquerda está a espiritualidade inaciana sendo desenvolvida. Na
coluna da direita, a vida do leigo. No final, fazemos uma aplicação da espiritualidade inaciana e da
sua fecundidade para a vida do leigo. Mas, ao invés disso, o Ulpiano fez uma coisa bastante
original, que é aplicar a própria espiritualidade inaciana, um próprio método dessa espiritualidade
ao sentido da palavra leigo. E da vida do leigo dentro da dinâmica dos Exercícios Espirituais. Então,
eu acho que nesse sentido nós podíamos nos perguntar se a colocação do Ulpiano é, na verdade,
uma afirmação a respeito da vida do leigo e da espiritualidade inaciana, ou se ela é – e me parece
que é mais isso – um convite para que todos nós retornemos sobre esse sentido, a partir da dinâmica
dos Exercícios. Parece que talvez essa tenha sido a sua idéia quando falou a partir da perfeição
como um processo que vai em continuidade, um processo que vai adiante e que não tem uma
perspectiva de terminar, de acabar.

Resumindo a colocação, poderíamos talvez dizer que estamos num caminho. Vamos
caminhar juntos e tentar descobrir o que Deus quer de nós ao longo desse caminho.

Padre Ulpiano:

Eu me sinto muito gratificado pela interpretação aqui do meu irmão. Espero que você faça
isso não simplesmente por causa da fraternidade entre jesuítas, mas acho que você interpretou muito
bem o que eu quis fazer e o disse melhor do que eu mesmo.

Eu confesso a minha surpresa. E foi isso que de alguma maneira eu quis transmitir. A minha
surpresa com Santo Inácio foi muito grande. Fui pesquisar a relação entre Santo Inácio e os leigos.
Eu fui estudar a vida de Santo Inácio e vi que essa distinção – leigos e clérigos - não aparece em
lugar nenhum. E que, portanto, essa possibilidade de colocar em duas colunas a espiritualidade
inaciana e a vida do leigo, mesmo do ponto de vista metodológico, é impossível. Tudo isso para
dizer: “olha Santo Inácio fala muito bem dos leigos. Santo Inácio era leigo. Trouxe os Exercícios

19
para os leigos”. Sim. Tudo isso é verdade, mas essa distinção que para nós hoje parece assim como
evidente e importantíssima entre leigo e secular, ou leigo, secular, religioso, sacerdotal, para Santo
Inácio não tinha importância nenhuma.

Vocês me desculpem se eu não dei conselho aos leigos. Mas eu queria falar da
espiritualidade inaciana e não poderia fazer isso. Eu dava conselhos a vocês como dava conselhos a
mim. Nesse sentido, em que ele diz, Álvaro lembrou, se trata de se chegar à perfeição em qualquer
estado ou vida. Quer dizer, perfeição nesse sentido. Se trata de procurar ir até o fim, em qualquer
estado ou vida. O que é válido desse ponto de vista para os leigos, é válido para o religioso, é válido
para os padres. Acho que isso, a mim, parece mais fecundo do que tentar procurando diferenças
inexistentes do ponto de vista de Santo Inácio e construir também discursos que podem ser floridos,
mas são ineficazes.

Padre Ulpiano Vásquez Moro S.J. é professor de Teologia no


Instituto Santo Inácio, em Belo Horizonte.

20
CRITÉRIOS INACIANOS

DE DISCERNIMENTO A PARTIR

DA AMÉRICA LATINA

Pe. J. B. Libanio S.J.

As espiritualidades nascem da confluência de dois vetores desiguais na sua qualidade e


natureza, mas que produzem uma resultante única. O Espírito de Deus, fonte primeira e
fundamental de toda a espiritualidade, age com sua livre transcendência sobre o coração humano.
Mas tal acontece no contexto concreto de determinada situação histórica. A espiritualidade veste-se,
portanto, da força do Espírito com a cor do tempo. E vai responder a outros momentos culturais à
medida que haja um parentesco espiritual e cultural. A espiritualidade inaciana do discernimento
surge em momento de profunda transformação e turbulência sociocultural. A Idade Média,
espiritual e culturalmente, entra nos estertores de sua agonia, tendo sido, já fazia tempo, minada
pelas transformações econômicas, pelo crescimento demográfico, pela urbanização, pelas grandes
viagens, pelos comércios intercontinentais. O mundo moderno irrompe com o renascimento e seus
humanismos, com a reforma protestante, com a afirmação crescente do indivíduo, com a
consciência da percepção mais aguda da eficácia organizativa, com a atenção à interioridade
introspectiva, com a descoberta da antigüidade clássica pagã e cristã no desejo de livrar-se do peso
medieval, com o surgimento do novo intelectual não-clérigo contando com o livro impresso, com o
novo instrumental de estudo.

Inácio é o homem-síntese que assume e sublima o passado medieval para dentro da


modernidade nascente(1). Nessa encruzilhada cultural e espiritual é-lhe dado por Deus viver intensa
experiência espiritual que nos lega através sobretudo do pequeno livro dos Exercícios Espirituais(2).
Inegavelmente vivemos hoje outro momento de enorme turbulência cultural e espiritual. O

Notas:
1
Antonio Marzal, Os antigos alunos dos jesuítas e a formação permanente, in: Antigos alunos e a espiritualidade
inaciana, col. Ignatiana, n. 36, São Paulo, Loyola, 1991, pp. 28s.
2
M. Cl. L. Bingemer. Em tudo amar e servir. Mística Trinitária e práxis cristã em Santo Inácio de Loyola, col. Fé e
Realidade, n. 28, São Paulo, Loyola, 1990, especialmente a II. parte onde se analisam com maestria os Exercícios
Espirituais.
continente latino-americano, mais que nenhum outro, atravessa violentas tormentas no campo
econômico, político, cultural e religioso. Ao mesmo tempo, desponta uma teologia e espiritualidade
que se autodenominou da libertação e que desde o início confessou sua afinidade com a
espiritualidade inaciana, sobretudo ao perceber que ela permitia descobrir, discernir a presença de
Deus nos acontecimentos, nas lutas, nas transformações da realidade social.(3)

1 – Pressupostos do discernimento na perspectiva latino-americana

Caracteriza toda experiência a dimensão síntese. E tanto mais viva, integrada e estimulante é
uma espiritualidade, quanto mais ela consegue apontar para a presença de Deus na realidade
humana, evitando quer uma vivência puramente secular, quer uma fuga-refúgio em zonas espirituais
alheias ao terra-a-terra humano.

Discernir é uma forma de espiritualidade, de oração, de busca da vontade de Deus, que só


aparece no final do processo, ainda que desde o início esteja presente sob forma de impulso,
provocação. Discernir é entrelaçar num ato único as três dimensões de passado, presente e futuro.
Passado ao retomar como sinais de Deus o que já aconteceu, a tradição, a codificação humana, os
dados já acumulados até o presente. Presente, por saber que o passado não esgota as possibilidades
de Deus, nem o limita e muito menos o determina, de modo que o presente pode ser a confirmação,
ruptura ou novidade sublimante. Futuro porque ele se orienta à ação a ser posta, a uma história a ser
criada.

Tal atitude implica, portanto, como pressuposto, uma concepção de mundo histórico e de sua
relação com a graça. E dentro desse horizonte se situa o discernimento e se podem elaborar os
critérios correspondentes.

a. Concepção de história e mundo

A concepção de mundo e história não tem sido constantemente a mesma, não só ao longo do
tempo, mas mesmo na atualidade reina entre cristãos diversidade. O discernimento espiritual
pressupõe o mundo e a história como palco de batalha profunda. Os nomes dos combatentes variam,
mas, no fundo, trata-se da mesma realidade. O imaginário religioso tradicional fala dos demônios e
anjos, de reino de luz e reino das trevas. Na raiz, está a dualidade do bem e do mal, da graça e do
pecado. O mundo e a história estão envolvidos por essas realidades.

3
G. Gutiérrez. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo, Petrópolis, Vozes, 1984, p. 29.

22
Contra esse fundo religioso comum, visões estritamente dualistas de cunho maniqueu e/ou
gnóstico concebem dois princípios autônomos, duas verdadeiras divindades, do bem e do mal. A
tradição bíblico-cristã travou e ainda trava batalha contra essa ancestral percepção humana. O
mumdo e a história pertencem fundamentalmente ao plano amoroso, misericordioso, bondoso de
Deus. No início e no fim, está a infinita ternura de um Deus trino. Nele não se radica o princípio do
mal. Este surge da liberdade, criada.

Nesse encontra-se da liberdade criada frente às propostas infinitas de amor e ternura de


Deus, brota a resposta negativa, a real possibilidade e factidade do mal. O discernimento consiste
em procurar discernir as tramas da liberdade pecaminosa, dos condicionamentos e contaminações
que ela criou, que terminam por adquirir certa consistência, provocando-a de novo e em outros
momentos a reafirmação de sua maldade.

Mais recentemente tem-se questionado uma visão histórico-salvífica demasiadamente


clarividente, englobante, a modo de um gigantesco caminhar da história para uma meta, já clara e
definida. A racionalidade moderna das filosofias da história criou certa teologia da história com
toques grandiosos e ingenuamente positivos.

A dolorosa experiência, sobretudo dos países do terceiro Mundo, vivida no reverso da


história(4), tem questionado essa leitura filosófica e teológica triunfalista da história, numa mistura
confusa, de kuzes e trevas, momentos de morte e de vida, de paixão e ressurreição, de absurdos
dolorosos e sentidos resgatados.

Em vez de uma estrada iluminada, caminha-se na história por veredas sombreadas,


encipoadas e brenhosas, que se vão abrindo à custa de lutas, esforços, buscas e esperanças.
Precisamente essa realidade abre espaço privilegiado para o discernimento, já que ele busca
construir através desse cipoal o caminho da libertação.

b. Concepção da graça

Do lado do Primeiro Mundo rico, parece fácil, às vezes, pensar que no início está a graça, o
bem. E rapidamente se confunde com os bens. A abundância consumista termina, em muitos lábios,

4
G. Gutiérrez, Teologia desde el reverso de la historia, Lima, CEP, 1977; G. Gutiérrez, A força histórica dos pobres,
Petrópolis, Vozes, 1981.

23
em ação de graças a Deus por ser tão generoso. O Ad amorem de Inácio pode, de certo modo, numa
interrelação superficial, confirmar com facilidade essa sensação de bem-estar e satisfação.

Verdadeiro desafio teológico é afirmar esta precedência absoluta da graça, é pensar a graça
como original e originante e não o pecado, quando se está cercado de carência, de falta de bens, de
miséria absoluta. Discernir a graça atuante nesse submundo da falta, das necessidades humanas
básicas não satisfeitas, e, pelo contrário, desconfiar, suspeitar da identificação rápida da posse dos
bens com a dádiva amorosa de Deus, constituem desafios levantados pelo Terceiro Mundo.

Permanece firme o pressuposto teológico da originalidade fontal da graça, da precedência


inquestionável da vontade libertadora e salvífica de Deus. De dentro desse pressuposto, saber
discernir, já não como sinal da condescendência de Deus, mas como usurpação fratricida a
crescente acumulação por parte de uns poucos – povos e classes – à custas e em detrimento da
miséria de continentes, só é possível em comunhão com os povos crucificados da terra. E no interior
da experiência crucificada desses povos, ir descobrindo os anúncios da ressurreição nas
solidariedades conseguidas, nas lutas travadas, nos mutirões organizados, completa o mesmo
movimento de discernimento.

c. Recuperação do público em confronto com o privado

Um terceiro pressuposto desprende-se do processo discernido em ação nas igrejas latino-


americanas. Paulo VI já tinha percebido que cada vez mais se tornava difícil uma palavra universal
que cobrisse as mais diversas regiões(5). Torna-se impossível que um discernimento se possa fazer
fora do contexto em que se vive. E pior ainda é impingir um discernimento feito alhures, sem mais,
a outros lugares.

A modernidade cultural trouxe, como um de seus deturpadores avatares para a fé cristã, o


corte entre o público e o privado, encerrando-a no mundo privado(6). Nas sociedades da antigüidade
e medieval havia uma profunda interação entre esses dois mundos. A religião ocupava lugar público
de destaque na configuração das relações humanas, da conduta, do modo de pensar e julgar
moralmente as próprias atitudes. Com a modernidade, diversas ciências foram ocupando o lugar da
“publicidade”, relegando a religião para o mundo da interioridade, da privacidade. Por mais que se
fale dela e que se dê publicidade na TV, no rádio, na imprensa, a questões religiosas, nada tira a

5
Paulo VI, Octogesima Adveniens n. 4.

24
percepção de que se trata de algo do mundo pessoal, onde, no fundo, ninguém tem nada a dizer
sobre o outro. Cada um siga sua religião. As interpretações, por mais abstrusas que se dêem de
fenômenos religiosos, são vistas como possibilidades aceitáveis por quem as quiser. Nesse universo
de pensar, o discernimento converte-se na tarefa duplamente do mundo privado. Trata-se de
questões de religião, de fé, de um lado, e, do outro, é praticada pela pessoa na sua solidão
individual. A perspectiva latino-americana tenta, por sua vez, retirá-lo da privacidade também na
sua dupla dimensão. A religião, a fé assume a prática profética que ultrapassa o mundo da
privacidade para questionar a conduta e as relações sociais, para configurar uma consciência
coerente com valores fundamentais da pessoa humana, visto desde o horizonte da revelação. Além
disso, o próprio discernimento não pode prescindir da repercussão social da decisão, do lugar social,
alcance político das decisões, “sinais dos tempos” são categorias que entram na dinâmica do
discernimento espiritual na perspectiva latino-americana(7).

E quando se trabalha o conceito de sinais dos tempos, parte-se de uma constatação básica de
que se trata de sinais atuais da presença e dos planos de Deus na história. Deus se comunica a
pessoas na história, faz-se reconhecer por ela como atuando. Deus continua presente na história,
Cristo exerce atual senhoria, o Espírito manifesta-se como realidade, verdade e novidade.
Distinguem-se as dimensões histórico-pastoral e histórico-teologal. A primeira refere-se à missão
pastoral e requer um adequado conhecimento da história, da novidade do momento atual, para
cumprir adequadamente e com pertinência tal missão. Mas o mais importante é reconhecer a
dimensão histórico-teologal no sentido de que a realidade histórica tem capacidade de manifestação
da presença do próprio Deus. . Tem uma dimensão sacramental. E faz-se mister não só captar o fato
mas também que tyraços do ser e projeto de Deus estão, em dado momento, dando-se a conhecer(8).

E quando se aponta para o verdadeiro sinal dos tempos, pensa-se na irrupção do pobre(9).
Este é o fato maior da nossa época e continente. Não necessariamente no sentido do protagonismo
histórico de maneira que o pobre será a grande força transformadora da sociedade. Os fatos estão a

6
A. Tornos, Escatologia, v. II, Madris. Publicaciones de la Universidad Pontificia Comillas, 1991, pp. 183-6.
7
J. B. Libanio, Discernimento y politica. Santander, Sal Terrae, 1977.
8
J. Sobrino, Los “signos de los tiempos” em la teologia de la liberación, in: Escritos eclesiásticos 64 (1089) 249-269.
9
“Entre tantos signos como siempre se dan, unos llamativos y otros apenas perceptibles, hay em cada tiempo uno que
es el principal, a cuya luz deben discernir-se e interpretar-se todos los demás. Esse signo es siempre el pueblo
históricamente crucificado, que junta a su permanencia la siempre distinta forma histórica del siervo de Yahvé, al que el
pecado del mundo sigue quitandole toda figura humana, al que los poderes de esse mundo siguen despojando de todo, le
siguen arrebatando la vida, sobre todo la vida”. I. Ellacuria, Discernir ‘el signo de los tiempos’, in: Diakonia 17 (1981)
p. 58.

25
desmentir tal visão. Os pobres e países pobres estão cada vez tornando-se mais pobres. Quem está
conduzindo a história são os ricos e países ricos. Apesar disso, continuam os pobres o fator maior
da história atual. Enquanto eles existirem, está se passando um atestado de incompetência técnica e
política aos ricos e países ricos. Mais. Está-se-lhes adscrevendo um libelo de perversidade ética. E
mais ainda. Desde a revelação, está a indicar-lhes onde Deus está presente e se não quiserem passar
à margem de Deus, devem voltar-se aos pobres e países pobres. Todo cristianismo e Igreja que
desconhecer tal fato maior terá que defrontar-se com o juízo de Jesus desde os pobres (Mt 25, 31-
45).

E quando se procura ir ao coração do significado da opção pelos pobres, chega-se até Deus.
A opção pelos pobres é a “compaixão de Deus para os que mais sofrem”(10), no sentido antes de
tudo de bem materialista, concreto, primeiro do sofrimento, onde falta o básico de humanidade.
Implica de nossa parte colocar tudo para tirá-los dessa discussão. Daí a dimensão pública e política
do discernimento.

2. Tirar de si todas as afeições desordenadas (11)

No processo de discernimento, mais que como critério, Inácio coloca, como sua condição e
fim ao mesmo tempo, “tirar de si todas as afeições desordenadas”. De fato, não se encontra a
vontade de Deus, em outros termos, não se discerne verdadeiramente, sem uma atitude profunda de
liberdade diante das afeições. Contudo o escopo dos exercícios espirituais e do próprio
discernimento é ajudar o exercitante a livrar-se de suas afeições desordenadas, ordenando sua vida.

Pode-se, porém, dizer que é um critério de juízo sobre a validez mesma dum discernimento a
disposição da liberdade, de desapego das afeições desordenadas, já que elas viciam na raiz qualquer
escolha. Inácio chama esta atitude de “indiferença”. No fundo, trata-se de uma percepção profunda
da relatividade de todas as coisas criadas, de todos os nossos desejos espontâneos, de todos os
nossos sonhos imediatos diante do absoluto do mistério de Deus que nos manifesta em dada
realidade.

10
J. L. Segundo, La opción por los pobres como clave hermenéutica para entender el Evangelio, in: Sal Terrae 74
(1986/6) p.480.

26
A espiritualidade tem trabalhado esta atitude em nível pessoal, quer na dimensão consciente
como também inconsciente. A ascética batalhou e ainda batalha com todas as suas armas em vista
de purificar os sentidos desde uma razão ordenada pela fé e a própria razão e razões desde uma
visão radicada na revelação. A psicologia tem colaborado muito no desmascaramento de
racionalizações que se vestem no nível aparentemente consciente de perfeita lógica e no fundo não
passam de subterfúgios e fugas do real.

Desde a América Latina, tem-se desenvolvido no discernimento outra dimensão, menos


estudada até então, da força perniciosa e deturpadora das ideologias, do lugar social, das opções
sociais prévias. Ninguém se aproxima de uma realidade, nem faz uma leitura do evangelho, sem
uma pré-compreensão de natureza ideológi8ca-social. Esta, por sua vez, não pode fundar-se na
letra do evangelho, porque se cairia no círculo vicioso. Ela tem uma gratuidade hermenêutica, que
não arranca da letra do evangelho, mas encontra nele sintonia (ou não) (12).

Esta pré-compreensão é fruto do jogo de fatores fundamentais: da graça (ou pecado), da


liberdade e da experiência-lugar social. Sem o lugar social não se percebe tal pré-compreensão. Sem
a graça (ou pecado) não se capta (resiste a ) seu alcance teologal. Sem a liberdade humana, não se
assume tal preocupação, não somente no nível da leitura dos acontecimentos, mas sobretudo das
exigências de prática daí decorrentes.

Há uma consideração de natureza antes estrutural, que já vimos trabalhando. Ela funda-se na
natureza mesma do conhecimento de decisão humanos. Ninguém se aproxima de uma realidade sem
vir carregado de apriorismos, de valores introjetados, de mitologias, de mitologias de classe e de
cultura(13). Elaboram-se racionalizações, não somente de caráter estritamente pessoal, mas de
origem social, ligadas aos interesses (in)conscientes de classe, de raça, do entorno. Permanece
pertinente a afirmação de K. Marx de que “as idéias dominantes são as idéias das classes
dominantes”. Por isso essa rede de valores, apriorismos, racionalizações que dominam a atual
sociedade são, em sua parte dominante, geradas e transmitidas pelas forças dominantes da
sociedade.

11
Santo Inácio, Exercícios Espirituais, n. 1.
12
J. B. Segundo trata muito bem desta questão no artigo citado.
13
P. Peter-Hans Kolvenbach, Alocução do Padre Geral na sessão inaugural no congresso mundial de antigos alunos e
alunas, Loyola-Bilbao 1991, in: Antigos alunos e a espiritualidade inaciana, São Paulo, Loyola, 1991, col. Ignatiana n.
36, p. 17.

27
Os discernimentos e decisões feitos nesse universo, sem uma atenção muito especial a tal
fato, correm o risco de virem contaminados pelos interesses dominantes. Não vem a propósito
elencar a rede de valores da ideologia neoliberal, do neocapitalismo vitorioso e dominante até as
raias da arrogância, sobretudo depois da falência do “socialismo real”. João Paulo II alerta-nos para
esse risco, ao julgar como “inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado ‘socialismo
real’ deixa o capitalismo como único modelo de organização econômica”(14).

No discernimento funcionam as motivações profundas. Elas configuram lentamente no


interior da pessoa, como fruto de suas decisões livres, da graça, mas também da infiltração sutil das
impressões, dos preconceitos, do universo simbólico em que se vive, do imaginário social atual. O
discernimento visa precisamente a reagir a decisões confusas e de motivações mescladas.

A realidade histórico-concreta vista desde a América Latina dos pobres permite perceber
com maior clareza os engodos ideológicos do atual sistema neocapitalista dominante. Antes de
tudo, rompe a ilusão, tão cara a certa linha de uma espiritualidade de reconciliação(15), de que a
realidade seja neutra e que seja possível uma reconciliação prescindindo do conflito e para além
dele enquanto se viver na história humana. Há uma circularidade hermenêutica entre a realidade
social e as decisões com seu respectivo discernimento. DE um lado, a realidade social batalha
continuamente o discernimento com sua ambigüidade ideológica e, do outro lado, as decisões, por
mais pessoas que sejam, terminam por afetar esse jogo ideológico. Portanto não se pode pensar num
discernimento sem levá-lo em consideração.

A novidade maior que a espiritualidade da América Latina traz para o discernimento é a


presença do pobre. De novo, volta-se à mesma tecla. A presença do pobre não simplesmente como
um dado objetivo, neutro, estatístico da realidade, ainda que ele seja grave e escandaloso(16). É uma
interpelação de Deus a toda consciência humana e cristã.

14
João Paulo II, Centesimus annus, n. 35.
15
Congresso Internacional sobre la Reconciliación, Temas para una teologia de la reconciliación, Arequipa (11-13
enero 1985), in: Vida y Espiritualidad (1985) n. 1, pp. 115-123; Card. Alfonso Lópes Trujollo, Teologia de la
reconciliación, in: Vida y Espiritualidad 1 (1985) n. 2, pp. 119-122.
16
Medellín e nas suas pegadas Puebla afirma esse caráter de escândalo, de pecado social, de contradição com o ser
cristão. Conclusões de Puebla, nn. 28, 436487, 1257. O documento de consulta para a Assembléia de São Domingos
retoma mais uma vez esse fato de concentração de riqueza na mão de poucos e da grande maioria empobrecida como
“grave falta de solidariedade para com quem tornou possível a acumulação desses capitais”. Depois de descrever os
rostos da pobreza, diz o documento: “E pior é que todas essas situações de pobreza ocorreram em países que se dizem
católicos. Tal contradição é escandalosa e fere profundamente nossa alma de pastores”: CELAM, IV Conferência geral
do Episcopado latino-americano. Documento de Trabalho, São Paulo, Loyola, 1992, n. 133, 164.

28
Há uma inverdade em relação à realidade que não se define simplesmente como erro noético
ou ignorância, mas como desonestidade, mentira, encobrimento da verdade-realidade, manipulação,
regidas por interesses ideológicos de manutenção de (des)ordem estabelecida. E desde os pobres da
América Latina tal situação se deixa ver. Por isso, tem-se mostrado que perturba mais o
discernimento cristão, não uma negaçãop de Deus – ateísmo –, nem mesmo um secularismo
imanentista, – já que seu contraste com a revelação é tão flagrante que não permite ilusão – mas a
idolatria. Este é o maior risco já que valores e realidades criadas se vestem de Deus, de absoluto e
conseguem infiltrar sob esta veste religiosa nas motivações e decisões de muitos cristãos. A
denúncia da idolatria precisa encontrar um horizonte a partir do qual se podem perceber os ídolos.
Este é o deus da vida que, oposto aos ídolos que sacrificam vítimas a si, se entregam para a vida dos
mais pobres(17). Nega-se o Deus da vida, não através de uma palavra heterodoxa, mas de uma
prática incompatível com ele. Muitas vezes o discurso de um discernimento pode ser puramente
ortodoxo nas suas formulações, mas radicalmente ferir a ortopráxis cristã. Jesus viveu em relação
com os fariseus este problema, ao defrontar-se com a ortodoxia da posição deles sobre o sábado,
mas incompatível com o Deus que queria a vida dos enfermos. O discernimento de Jesus é modelo e
critério para o nosso. Ele o fez não a partir de uma teoria ortodoxa de Deus, mas da exigência de
vida da realidade, na qual Jesus viu a bondade do Pai. O critério de autenticidade do discernimento
passa, portanto, pela prova da realidade no sentido de saber a voz de Deus nos acontecimentos.

3. Dialética do “magis” e da pequena mediação

Outro critério fundamental do discernimento inaciano é a articulação correta das


exiG6encias do “magis” com a pequena mediação. H. Rahner, em genial estudo, mostrou que tal
dialética acompanhou toda a vida de Inácio e que se iluminou na sua conversão e continua sendo a
estrutura fundamental do discernimento para os pósteros(18).

Na interpretação do “magis” e das pequenas mediações a perspectiva latino-americana pode


trazer a sua contribuição. De fato, o “magis” da maior glória de Deus pode ser interpretado numa

17
G. Gutiérrez, O Deus da vida, São Paulo, Loyola, 1990; V. G. Feller, O Deus da revelação. A dialética entre
revelação e libertação na teologia latino-americana da “Evangelii Nuntiandi” à “Libertatis conscientia”, Col. Fé e
Realidade, n. 24, São Paulo, Loyola, 1988: nesta obra o A. apresenta a tensão fundamental entre revelação e realidade
na perspectiva da dupla face da TdL, a saber, da luta contra uma falsa imagem de Deus e da afirmação do Deus da vida,
como centro da revelação bíblica. Deus Pai é origem da libertação, o Filho de Deus é nosso irmão nesse processo e o
Espírito gera comunhão e participação.
18
H. Rahner, Inácio de Loyola. Homem de Igreja, Porto, Liv. Tavares Martins, 1956.

29
perspectiva pessoal individual de apelo para o percebido na própria consciência. A situação da
América Latina mais uma vez coloca no horizonte do “magis” a situação concreta do pobre, que
relativiza certas percepções do “magis”. Pequeno fato pode dar alguma luz. Certa vez, um
missionário europeu estava trabalhando na construção de um gigantesco centro de catequese numa
região da África. Aproximou-se um negro pobre e perguntou-lhe para que aquela construção.
Diante da resposta que era para evangelizar, responde: “Aqui na África para evangelizar basta a
sombra de uma árvore”!

Certas situações de pobreza servem para questionar discernimentos pastorais. No momento


está em andamento um projeto de evangelização – Lumen 200 – que envolve enormes somas de
dinheiro(19). No discernimento de tal projeto, a perspectiva dos pobres pode trazer alguma luz para
questionar o desejo desse “magis” de seus criadores. O “magis” é entendido na perspectiva da
libertação dos pobres no contexto da América Latina. Este horizonte permite assumir também
grandes projetos, não por causa de sua grandeza, mas enquanto estão na linha dos pobres. A questão
coloca-se, portanto, fundamentalmente em relação com os meios, as mediações concretizadoras do
“magis”. De novo, a perspectiva latino-americana trouxe elementos novos para o discernimento.

Em geral, esses meios eram vistos, lidos e interpretados desde a experiência pessoal
individual. A dimensão política de tais meios apenas aflorava. Essa dimensão individual é antes
uma vertente interpretativa de textos de Inácio que sua própria prática. Pois Inácio foi alguém que
pessoalmente trabalhou muito as mediações políticas. Ele se situava no centro das grandes decisões
do mundo, tratando com papas, cardeais, imperadores, nobres, senhores poderosos, com a única e
exclusiva intenção de anunciar o evangelho. Ele era uma pessoa sensível ao social, ao político, seja
por própria experiência e formação na corte espanhola, seja por uma percepção espiritual da
necessidade das mediações humanas no serviço de Deus (20).

Em sua vida pessoal conjugou tanto o tempo dedicado aos trabalhos mais simples, humildes,
aparentemente ineficazes como visita a doentes nos hospitais, cuidado de prostitutas, como horas
dedicadas a escrever cartas aos grandes desse mundo. Era alguém aberto aos estímulos culturais da
época. Desde cedo descobre pra si e para sua ordem a importância das letras, dos estudos sérios, não
simplesmente das ciências sagradas, mas também da cultura humanística pagã, da retórica, dos

19
Délcio M. de Lima, Enquanto o diabo cochila, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990, pp. 100ss.
20
Nesse sentido, pode-se entender o que Inácio de Loyola escrevia que “aquele (que) não acha bom servir-se destes
meios (humanos ou indústrias humanas ou fatores humanos), não entendeu corretamente como ordenar todas as coisas
para a glória de Deus. E na Carta se refere a exemplos bíblicos de como Deus usou de autoridades em benefício do
povo: José do Egito, Ester e Mardoqueu, etc.

30
clássicos da filosofia. Inácio desenvolve uma linha de discernimento que articula o que na
linguagem teológica clássica se chamava de natural e sobrenatural, a saber, os recursos humanos, as
qualidades e conhecimentos naturais com a intencionalidade, com os desejos, com os objetivos do
maior serviço de Deus e salvação das pessoas. Essa prática inaciana está na fonte inspiradora do
discernimento.

Na perspectiva da América Latina, a mediação fundamental para concretizar tal prática de


síntese é mais uma vez o grande sinal dos tempos da presença do pobre, não só enquanto
humanidade, mas enquanto pobre no sentido mais material do termo. “Encarnar-se para Jesus não
significou situar-se na totalidade da história para a partir daí a totalidade de Deus; significou, antes,
escolher aquele lugar determinado da história que fosse capaz de encaminhá-lo para a totalidade de
Deus. Este lugar não é outra coisa que o pobre e o oprimido”(21).

“Parcialidade significa que Jesus se situa no mundo da pobreza e dos pobres, defende sua
causa e assume seu destino. Jesus é o verdadeiro homem sendo pobre; faz-se o homem universal a
partir do pequeno”(22).

Para verificar a verdade do discernimento, Inácio deixa num dos prelúdios da


“Contemplação para alcançar o amor” preciosa observação sobre a atitude básica em todo esse
processo. Os dons recebidos devem ser reconhecidos para que se possa “em tudo amar e servir a
Sua Majestade”(23). Os dons recebidos existem e adquirem sentido se postos à disposição dos outros
em sinal de amor e serviço. Em nota preliminar nessa mesma contemplação, Inácio afirma
categoricamente que “o amor deve pôr-se mais em obras que em palavras”(24). Em termos atuais,
dir-se-ia que a práxis é um critério de verificação do amor.

A verdadeira práxis do reino se concretiza através de palavras corretas, de uma ortodoxia


imaculada, de declarações de efeito, mas do real compromisso com os pobres e oprimidos. E o sinal
de que esta práxis toca a raiz do mundo do pecado é a reação que ela provoca. Inácio na meditação
das Duas Bandeiras descreve-nos essa luta. Na configuração histórica de hoje esta luta leva muitos
cristãos a serem perseguidos, rejeitados e até martirizados. O critério do 30 grau de humildade não
se concretiza nas pequenas humilhações pessoais do cotidiano simples, mas em violentas
perseguições, no martírio. O martiriológio da nossa recente história da Ighreja atesta

21
J. Sobrino, Jesus na América Latina, São Paulo, Loyola, 1982, p. 199.
22
Id. p. 56.
23
EE. EE. n. 233.

31
abundantemente esta realidade(25). E a Companhia de Jesus experimentou isso de modo violento no
assassinato de toda uma comunidade que vivia seu compromisso sério com a libertação dos pobres
em El Salvador (26).

Inácio atribuía muita importância ao tempo da confirmação. Existe uma confirmação interior
através da consolação. Mas existe também uma confirmação exterior que é a proximidade objetiva
com o Cristo perseguido e crucificado. O povo latino-americano está a apontar para essa realidade.
E a solidariedade com essa situação torna-se critério de verificação do discernimento. A cruz é o
grau máximo da renúncia de si, como entrega de vida ao irmão. E se a cruz nos vem do
compromisso com o pobre, acontece ainda com maior clareza evangélica o sinal verificador da
presença de Deus.

A própria solidariedade no sofrimento, na práxis com os mais pobres necessita passar pelo
critério de espírito de bem-aventurança (Paulo VI).

Há avatares de uma opção militante pelo pobre que no fundo não traduz a perspectiva
evangélica, quando se busca o protagonismo da prática libertadora a todo preço, quando se afoga o
projeto popular com a imposição da própria prática, quando se assume posição dogmática
indialogável, quando se absolutizam certas práticas concretas anteriormente a qualquer
discernimento, quando se assume uma atitude ética purista intransigente e insensível a qualquer
crítica diferente, quando se manipula a dimensão religiosa em vista de efeitos políticos, quando
finalmente qualquer fracasso eqüivale a desânimo já que se conta unicamente com a vitória(27). A
experiência evangélica com e do pobre corrige todas essas deturpações, já que percebe neles, antes
de tudo, a presença da misericórdia e ternura de Deus.

4. Buscar Deus no cotidiano

Buscar a Deus nas mediações do cotidiano é a tarefa mais importante na prática do


discernimento. Subjaz a tal prática uma percepção teologal profunda, vinda da mais lídima tradição

24
EE. EE. n. 230.
25
Instituto histórico centro-americano de Manágua. Sangue do povo. Martirológio latino-americano, Petrópolis, Vozes,
1984; J. Sobrino, Oscar, profeta e mártir da libertação, São paulo, Loyola, 1988; J. Marins e equipe, Martírio – Memória
perigosa na América Latina hoje, São Paulo, Paulinas, 1984; M. P. Ferrari e equipe, O martírio na América Latina, São
Paulo, Loyola, 1984.
26
J. Sobrino, Depoimentos sobre os seis jesuítas mártires de El Salvador, São Paulo, loyola, 1990, p. 9-37.
27
J. Sobrino, org., Espiritualidad y seguimeiento de Jesus, in: I. Ellacuría – J. Sobrino, org. Mysterium Liberationes.
Conceptos fundamentales de la Teologia de la Liberación, II, Madrid, Trotta, 1990, pp. 464s.

32
jesuana, a saber, que nenhuma tradição, por mais religiosa e de Deus que queira ser, nenhuma
estrutura dita do Reino pode ser considerada última e definitiva para todos os lugares. Deus é
sempre maior e deixa-se encontrar nas mais diversas formas.

Há uma tradição franciscana que desenvolveu belamente a presença de Deus nas criaturas,
cujo cântico das criaturas é a expressão mais lídima(28). Inácio retoma-a na contemplação para
alcançar o amor. Hoje tal experiência de Deus serve como excelente critério para discernir a
qualidade, a natureza, a intensidade, a direção do desenvolvimento tecnológico. Se do Primeiro
Mundo surge um grito de alarme em relação à destruição do ambiente, o Terceiro Mundo tem
dentro de si a causa mais poluente, a saber, a pobreza, a exploração e a dependência em relação aos
países ricos. De novo, o pobre torna-se o critério de teste, de verificação do discernimento.
Combater a poluição nos países ricos, transferindo para os países pobres as fábricas poluidoras,
fechar o olho à crescente pobreza, é negar a presença de Deus na criação. Não se trata de uma
simples experiência pessoal individual de extasiar-se diante da beleza da natureza. Há uma
percepção social de que a natureza está sendo destruída pela ganância, voracidade e desordem do
desenvolvimento, cuja repercussão se faz cada vez mais grave nas regiões pobres. Desde o pobre,
pode-se perceber e criticar tal desenvolvimento.

A originalidade maior de Inácio não foi tanto seguir a linha franciscana, mas antes assinalar
a presença de Deus nos acontecimentos, na história, no cotidiano das pessoas. Sua espiritualidade
forja-se sobretudo sobre esta intuição de modo que pode ser resumida na frase: “Buscar a Deus em
todas as coisas”, entendendo pela palavra “coisas” as realidades humanas, históricas, cotidianas(29).

Na concepção de mundo, a perspectiva latino-americana traz também novidade. A


linguagem do Primeiro Mundo concebe o mundo como totalidade e a ação de Deus como história
da salvação. Predominou uma concepção positiva a respeito do mundo e da história na esteira de
Teilhard de Chardin. Tanto mais compreensível é esta visão quanto mais se procurava superar uma
visão negativa do mundo, entendido como modernidade ou como materialidade, que se tornara

28
“Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol, pois ele é dia
e nos ilumina por si.
E ele é belo e radiante com grande esplendor,
E porta teu sinal, ó Altíssimo”:
Os escritos de São Francisco de Assis, introdução, tradução e comentários: K. Esser – L. Hardick, Petrópolis, Vozes,
1979, pp. 182ss. O santo louva a Deus pelas criaturas, Lua, estrelas, vento, ar, nuvem, céu, sereno, tempo, água, fogo,
terra, morte, pessoas que perdoam, suportam enfermidades e tribulações.
29
J. Stierli, Buscar a Deus em todas as coisas. Vida no convívio do mundo e oração inaciana. São Paulo, Loyola, 1990.

33
comum na Igreja. Uma leitura ascética vira a matéria, o corpo, as dimensões mais ligadas a ele,
como realidade hostil ao espírito. Além disso, o mundo (moderno) insurgia virulento contra a Igreja
nas suas principais correntes culturais. Naturalmente a Igreja até o final da era piana (pontificado
dos Pios, sobretudo IX a XII), resistira a tais embates. Com a entrada do Papa João XXIII, a
realização do Concílio Vaticano II, embaladas por muitas idéias teilhardianas, a teologia e a
espiritualidade européia encaminham-se numa visão positiva do mundo. O Terceiro Mundo, já não
pelas razões que comandaram a visão negativa a respeito do mundo na Igreja tradicional, mas pela
descoberta cada vez mais clara do que significa ser um mundo periférico, dependente, oprimido,
descobre que “atualmente, a humanidade está submetida à pobreza, à violência institucionalizada e,
em muitos casos, à morte lenta ou violenta. Teologicamente, a criação de Deus está ameaçada e
viciada. A proto-logia, e não só a escato-logia continuam sendo problema fundamental. Ademais,
como essa realidade não é simplesmente natural, mas história devido à ação de uns contra os outros,
a realidade é pecado, negação absoluta da vontade de Deus, gravíssimo e fundamental pecado”(30).

A perspectiva latino-americana alerta para o perigo de uma visão otimista da história


escamotear a verdade da realidade. A maior parte da humanidade está à margem do progresso. Sem
este olhar, os discernimentos se viciam. Diante da vida ameaçada para bilhões de pessoas, os
discernimentos pessoais não podem ficar insensíveis. Se os filósofos dizem que a filosofia nasce da
admiração, o discernimento na A. Latina nasce do assombro diante da situação dos pobres e duma
concepção dramática da história. Busca tornar a realidade transparente a fim de encontrar a vontade
de Deus. Pois esta deseja reconciliar o mundo consigo e os homens entre si. Pra isso, faz-se
necessário dizer um não rotundo ao pecado maior contra o reino de Deus, que é a opressão do
pobre. No fundo, trata-se de descobrir a verdade sobre o mundo e a história à luz do projeto de
Deus. Nesse sentido, o amor ao irmão mais pobre deixa de ser simplesmente uma exigência ética
para tornar-se uma realidade teologal. Pois vê-se no mundo não simplesmente um fruto de um
sistema social, mas a imagem de Deus violentada por esse sistema. Afirmar a fé no Filho de Deus
implica no nível de prática essa relação com o pobre.

Em termos bem concretos, esse movimento espiritual protesta e confessa um sim


incondicional à vida, resgatando-a do reino da morte, ao mesmo tempo que proclama um não
inegociável ao reino da morte. Nesse jogo, o cristão é chamado a viver a realidade da misericórdia
para com os seres ameaçados de morte e para com os atentadores à vida. Mas a maneira de viver a

30
J Sobrino, Liberación com espiritu. Apuntes para unas nueva espiritualidad, Santander, Sal Terrae, 1985, p. 25.

34
misericórdia é diferente. Em relação aos pobres, ela se traduz em acolhida, compromisso, assunção
de sua causa. Em relação aos morcegos da noite e da morte, a misericórdia assume a forma prática
profética de Jesus. Ele mesmo experimentou essas duas formas. Compaixão para com o povo sem
pastor e invectiva aos fariseus, condutores cegos.

No horizonte do discernimento está sempre a prática de Jesus que ilumina altamente a nossa
nesse jogo de contrastes. Jesus desmascara os engodos da realidade que a prática farisaica produz
(Mc 7,1-23). Exibe uma honradez e fidelidade à realidade a toda prova de ir descobrindo através
dela a vontade de seu Pai. Em todas essas situações, sabe ler o projeto do Pai, em quem confia até o
último momento na cruz. Com isso ele dá sentido a todas as contradições da história e da luta com e
pelos pobres. O Pai, ao ressuscitá-lo, confirma averdade de tal discernimento. Por isso, “honradez e
fidelidade em relação à realidade não é só pressuposto para uma experiência espiritual de Deus, mas
seu próprio conteúdo, fora do qual e independentemente do qual não se capta a revelação, nem se
responde a ela. Isto corresponde positivamente a tão repetida estrutura histórica da revelação de
Deus, tanto em suas origens, no decurso da história, na encarnação do Filho e inclusive na
escatologia final(31)”.

O cotidiano também varia segundo as classes e países. Na maioria dos discernimentos, o


cotidiano se resume na vida familiar, na profissão, nos deveres diários. O cotidiano moderno não é
fácil também para as classes mais abastadas. E a espiritualidade do discernimento tem ajudado
muitas pessoas nesse mundo a encontrarem a vontade de Deus. Mais difícil ainda é falar de
discernimento para aqueles que vivem o cotidiano na percepção da pós-modernidade. Tal reflexão
mereceria longo espaço. Mas não é eese o mundo que caracteriza a América Latina, por isso
deixaremos esse capítulo fora de nosso trabalho.

O cotidiano da maioria de nosso povo pobre é de outra natureza. Ultimamente têm-se feito
em nossos países experiências de retiro na vida com grupos populares onde a prática de
discernimento se faz no cotidiano popular(32). Sem querer entrar na questão de definir o sujeito
popular(33), pode-se afirmar que ele introduz no processo de discernimento certas inovações. Sobre
elas incide a presente reflexão. No meio popular, surgem novas realidades de discernimento. Uma
delas refere-se sobretudo à participação do cristão nos movimentos populares, nas suas lutas

31
Onde está o termo “revelação”. Pode-se ler, sem mais, “discernimento”: J. Sobrino, Liberación com espiritu, p. 32.
32
M Iglesias, Subindo para Jerusalém – Subsídios para um retiro, São Paulo, Loyola, 1985.
33
W. Cesar, O que é “popular” no catolicismo popular? In: REB 36 (1976) 5-18; Cultura popular e religiosidade
popular, in: Cadernos do CEAS 40 (1975), pp. 54ss.

35
reivindicatórias, nas comunidades de base, no compromisso com as lutas sindicais, nas greves, nas
lutas partidárias. Desloca para o social o ponteiro do discernimento, antes predominantemente
centrado nos problemas pessoais individuais e subjetivos. Nesse momento, a prática de
discernimento necessita defrontar-se com questões novas, tais como, aproximar-se analiticamente
da realidade social para permitir que o exercitante descubra sua participação política com lucidez.

Antes de que se possa perceber a presença de Deus e o modo da mesma nos movimentos
sociais, tem-se que ter um mínimo de conhecimento de seus projetos, interesses, estratégias e
jogadas, além de conhecer a realidade dos verdadeiros atores sociais. Tal tipo de conhecimento só é
possibilitado por elementos sócio-analíticos de natureza política(34). Por isso, o discernimento desde
a ª Latina articula no seu interior mediações sócio-analíticas.

Este cotidiano conflitivo desafia critérios estabelecidos desde outra experiência do cotidiano.
A paz e alegria, colocadas como grande critério da presença de Deus(35), não se opõem nem se
contrapõem à experiência dolorosa da indignação, da ira em face à injustiça triunfante do poderoso
sobre o pobre(36). Experiência que aproxima o exercitante de profetas e homens do Antigo
Testamento nos momentos em que eles sofriam com o pobre explorado(37).

5. Sentire cum Ecclesia

É característico de Inácio o sentido eclesial. Vivia um momento de crise da Igreja. Em vez


de posicionar-se em atitude de confronto com ela e desde fora lançar-lhe dardos, preferiu de dentro
iniciar um profundo processo de reforma. Sofreu as contradições da Igreja na sua própria carne.
Assiste ao casamento da filha de Paulo III no próprio Vaticano, sofre sob a tenaz da inquisição.
Conheceu a prisão, as proibições, as suspeitas, as censuras. Sabia pessoalmente da fragilidade dessa
Igreja visível que estava saindo do triste período dos papas do renascimento, mais homens do
mundo que de Deus e da Igreja.

34
J. B. Libânio, Observações preliminares para uma hermenêutica dos Exercícios em vista dos meios populares, in:
Itaici: Cadernos de espiritualidade inaciana, n. 3, julho, 1990, pp. 51-61.
35
J. Leplace, Um retiro bíblico, São Paulo, Paulinas, 1968.
36
Pedro Casaldáliga, Creio na justiça e na esperança, Rio, Civ. Brasileira, 1978.
37
Basta citar os profetas Amós, Oséias, Isaías ou Miquéias que refletem a indignação de Javé diante das injustiças que o
mais fraco sofre. Javé tem um processo contra o seu povo, porque “os ricos se enchem de violência”, falsificam as
balanças, etc. Miq 6,12ss.

36
O discernimento espiritual de Inácio consiste em saber levar a tensão fundamental entre o
serviço à Igreja visível e a experiência da presença imediata de Deus. De um lado, a instituição,
com tudo o que ela tem de graça e pecado, de presença de Deus e fragilidade humana, e, de outro, a
força vulcânica de um Deus sempre maior percebido na oração, na vida, no cotidiano, nas
exigências. Inácio Não entendia uma Igreja que se buscasse a si, que quisesse o poder pelo poder,
que se concentrasse na conservação de si mesma por causa dela mesma. Inácio via a Igreja no
maravilhoso projeto salvífico de Deus em relação a todos os seres humanos. Se, de um lado, ela é a
Igreja das instituições, da palavra humana, dos sacramentos visíveis, institucional e oficial dos
bispos e do papa de Roma, nunca pode ser pensada e vivida fora do horizonte da presença imediata
de Deus em relação à consciência de cada pessoa, à experiência mística(38).

A experiência da A. Latina pode trazer também para o “sentire cum Ecclesia” elementos
novos. Não sem a influência do crescimento das igrejas locais com seus compromissos sociais na
América Latina. Paulo VI reconhece a importância do discernimento que se faz nas comunidades
locais no referente “às opções e compromissos que convém assumir para realizar as transformações
sociais, políticas e econômicas que pareçam necessárias com urgência em cada caso”(39).

A Igreja da A. Latina descobriu de modo forte a sua condição de povo pobre. É uma Igreja
que se faz povo pobre e um povo pobre que se faz Igreja(40), Esta dimensão popular da Igreja leva o
discernimento a pensar o serviço na dupla dimensão eclesial e popular. Tal reflexão ainda que
pareça formal, traz conseqüências pesadas para o discernimento. Por exemplo, um superior não
deveria discernir o deslocamento de algum súdito, agente de pastoral junto ao povo, sem escutar
antes esse mesmo povo e medir o significado para ele de tal mudança(41).

A espiritualidade latino-americana tem procurado inserir mais na dimensão eclesiológica a


presença do Espírito. Em vez de trabalhar unicamente com o critério cristocêntrico, com o risco do
cristomonismo, tem-se buscado valorizar a dimensão pneumatológica da Igreja e portanto do
“sentire cum Ecclesia”. Com isso, não fica preso unicamente ao critério discernidor da hierarquia

38
K. Rahner, Palavras de Inácio de Loyola a um jesuíta de hoje, col. Ignatiana, n. 18, São Paulo, Loyola, 1981, pp. 29-
34.
39
Paulo VI, Octagesima Adveniens, n. 4
40
L. Boff, E a Igreja se faz povo. Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo, Petrópolis, Vozes, 1986.
41
J. B. Libanio. A articulação da fé e o compromisso social: discernimento da prática pastoral, in: id., Fé e Política.
Autonomias específicas e articulações mútuas. São Paulo, Loyola, 1985, pp. 71-116; resumo em: Seleciones de teologia
23 (1984) n. 90, pp. 144-160; C. Palácio, Vida religiosa inserida nos meios populares, col. Puebla e Vida religiosa, n. 6,
Rio, CRB, 1980.

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(L. G. n. 12). Elabora-se uma eclesiologia em que o carisma assume maior importância e se torna
princípio de organização da própria Igreja (42).

Esta comunhão com o povo de Deus, pleonasticamente popular, e a relevância da dimensão


do Espírito permitem um discernimento criativo, livre, que não se deixa aprisionar pela letra, por
uma obediência material e formal, por uma atitude servil, por uma felicidade canina, mais próxima
das copiadoras que do desenho criativo.

No discernimento nunca se trata de oposição e muito menos de exclusão. Cristo e Espírito


tem uma unidade profunda na distinção de pessoas. A unidade de ambos não nasce da negação das
diferenças e da distinção, mas, pelo contrário, de sua afirmação em tal plenitude e amor que termina
na mais profunda comunhão de unidade.

O que em Deus é pura harmonia, comunhão amorosa de distintos na unidade, na nossa


labuta terrestre de viver esses princípios trinitários é tensão, e, não raro, oposições. Didaticamente
somos chamados a acentuar o lado menos valorizado para evitar as hipertrofias. O movimento atual
da Igreja salienta o lado visível, a dimensão cristomonística, o poder central, as decisões da
hierarquia, e, desconhece o lado misterial, a dimensão pneumatológica, as comunidades locais e da
periferia, as deliberações do povo simples e pobre. A espiritualidade da A. Latina tem procurado
trazer para o processo de discernimento esta dimensão menos acentuada.

Sob certo sentido, vivemos um momento oposto ao de Inácio. No seu tempo a tempestade se
levantava do lado oposto à visibilidade da Igreja. A decadência escandalosa do poder da Igreja, a
venalidade de muitos elementos de sua hierarquia tinham provocado a avalanche protestante em
nome da liberdade, da pureza evangélica, dos critérios da consciência e da subjetividade. Inácio, em
resposta, quis manter-se firme no lado visível, mal grado a má companhia em que se colocava.
Hoje, a situação parece oposta. O movimento principal revigora o poder, a centralidade, a
visibilidade, a instituição, a inteligentsia dos poderosos(43). Colocar-se junto ao povo é andar em má

42
L. Boff, Igreja, carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia Militante, Col. CID Teologia/21, Petrópolis, Vozes, 1981,
pp. 234-249.
43
J. I. Gonzáles Faus, El meollo de la involución eclesial, in: Razón y Fe 220 (1989) nn. 1089-90, pp. 67-84; O
neoconservadorismo. Um fenômeno social e religioso, in: Concilium n. 161 – 1981/1; F. Cartaxo Rolim,
Neoconservadorismo eclesiástico e uma estratégia política, in: REB 49 (1989) pp. 259-281; J. Comblin, O
ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana, in: REB 50 (1990), pp. 44-73; P. Blanquart, Le pape em
voyage: la géopolitique de Jean-Paul II, in: P. Ladrière – R. Luneau, dir., Paris, Le Centurion, !987, pp. 161-178.

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companhia. A espiritualidade da A. Latina tem aceitado, na imitação de Jesus(44) e de Inácio, propor
colocar-se ao lado da má companhia popular e desde aí fazer o discernimento.

Conclusão

É um mesmo processo de discernimento que se opera em todas as partes, no sentido de que


se busca sempre sob a guia do Espírito a vontade de Deus. É um processo sempre diferente em
todas as partes, já que esta vontade se encarna nas diversas situações. A diversidade das maneiras é
riqueza. Riqueza que ajuda a cada um a viver em seu lugar com maior pureza e evangelicidade seu
discernimento. As luzes que nos vêm das maneiras de formular e viver o discernimento do Primeiro
Mundo ajudam-nos a viver a maneira de nós vivermos no Terceiro Mundo nossos discernimentos. E
esperamos que nossa maneira ajude aos do Primeiro Mundo a viverem com autenticidade a sua
busca da vontade de Deus. “Nós sabemos que tudo concorre para o bem dos que amam a Deus, que
são chamados segundo o seu desígnio” (Rm 8,28).

44
ª Holl, Jesus em más companhias, Lisboa, Moraes, 1972.

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