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Pedro Demo
POLÍTICA CIENTÍFICA E
EDUCACIONAL NA
UNIVERSIDADE
Duas seriam as funções centrais da Universidade hoje: reconstruir conhecimento e
educar novas gerações. Não insisto na trilogia oficial ensino, pesquisa, extensão porque a
considero arcaica. Primeiro, é bem melhor substituir ensino por educação, quando menos para
evitar o instrucionismo que nos assola, e, segundo, faz pouco sentido manter a extensão como
algo fora da organização curricular. O desafio da cidadania geralmente despachado para a
extensão permanece algo extrínseco, voluntário e intermitente, quando deveria ser a alma do
currículo. Por isso, defini em outra ocasião a extensão como "a má consciência da Universidade",
ou seja: sabendo que está longe da sociedade e incomodada por isso, procura pontos de contato
com ela, enredando-se freqüentemente com assistencialismos e pedagogismos eventuais. Cuidar
de uma favela, por exemplo, longe de ser apenas a solução eventual de uma Universidade mal-
amada, deveria fazer parte do currículo de formação e pesquisa de todos os cursos, ou seja, fazer
parte do trajeto formativo de todo estudante e professor. Por outra, não é o caso a extensão
organizar um projeto de recapacitação dos professores da rede escolar, porque stricto sensu
deveria fazer parte do curso de educação curricularmente falando. Na Europa, as grandes
Universidades não conhecem o termo extensão, porque julgam que garantir à sociedade acesso
qualitativo ao conhecimento e educar os jovens é o que se espera delas basicamente. Não se trata
de condenar a atenção social que a Universidade pretenderia oferecer à sociedade, mas isto só faz
sentido se for algo curricular. Caso contrário, é função mais específica da política social pública
(Botomé, 1996).
Por isso, atenho-me neste trabalho preliminar às duas funções que considero centrais:
reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Ressaltarei este horizonte principalmente na
figura dos professores, responsáveis mais diretos pela qualidade da oferta. Para além deles,
desempenha papel decisivo a direção da Universidade, que deveria comprometer-se sobretudo
com tais objetivos, não reduzindo a gestão a meros procedimentos gerenciais. A Universidade
precisa garantir que os alunos aprendam a pesquisar e a aprender.
Ensino Superior no Século XXI: Aprender a Aprender
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I. Política científica
Espera-se que a Universidade não se torne apenas sucursal do mercado, olvidando seus
horizontes educacionais e culturais. Ainda assim, o compromisso com a reconstrução do
conhecimento faz parte de sua alma, desde sempre. Olhando a cena nacional universitária, esta
exigência parece extemporânea, porque, como regra, as Universidades não se ligam ao processo
de construção do conhecimento. Bastam-se em dar aula. O docente também só faz isso: dá aula.
Por isso também se inventou o "horista", que é contratado só para isso. Não se espera dele nem
é pago para tanto que estude, se atualize, produza conhecimento, acompanhe o processo de
inovação do conhecimento. Acabamos definindo o professor pela aula, estritamente. Evito falar
de "construção do conhecimento", não porque tenha alguma crítica a Piaget, mas porque
considero expressão excessivamente forte: normalmente, reconstruímos conhecimento partindo
do conhecimento já existente e disponível. A idéia de construir conhecimento, como aponta
Harding (1998), pode sugerir que inventamos sem mais nem menos novas teorias e métodos, e,
quando aplicada à realidade, pode sugerir que a inventamos ao bel-prazer. Com efeito, a realidade
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fora de nós existe apesar de nós, embora a concepção que cada qual faz dela dependa
essencialmente de nós.
a mesma que pode colonizar. Neste sentido, a Universidade não poderia recair no
"efeito do poder" do conhecimento: ao mesmo tempo que precisa reconstruir conhecimento
sistemática e criativamente, precisa investir na ética, com vistas a superar dois males intestinos de
nosso crescimento econômico: aguçar a concentração da renda e destruir a natureza.
É preciso, por isso, discutir hoje o papel da pesquisa, tanto como princípio científico,
quando como princípio educativo, ao lado da elaboração própria (Demo, 2001a). Como regra,
não buscamos forjar um pesquisador profissional, mas um profissional pesquisador, ou seja, que
sabe usar a pesquisa como expediente permanente de aprendizagem e atualização. Perante o
conhecimento não cabe a atitude subserviente de engolir o que vem de fora, mas de fazer-se
sujeito de idéias próprias, reconstruídas com mão própria. Piaget, em que pesem as críticas de
estruturalismo e cognitivismo, codificou uma mensagem cristalina e certeira: conhecimento não
se copia; se constrói (Becker, 2001). Ultimamente, tem desempenhado algum papel o programa
do CNPq de pesquisa para os alunos (PIBIC), porque introduziu a oportunidade de os alunos
participarem da reconstrução do conhecimento sob orientação dos professores. Embora seja
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programa muito seletivo, detém mensagem cristalina: aprende de verdade o aluno que pesquisa.
Os outros apenas assistem a aulas.
Tenho discutido este desafio sob a noção de aprendizagem, entendendo a esta como
horizonte reconstrutivo e político. As teorias modernas e sobretudo pós-modernas têm ressaltado
com extrema insistência o caráter reconstrutivo da aprendizagem, à medida também em que se
afasta a pecha de instrucionismo. A crítica ao instrucionismo parte de sua marca de fora para
dentro e de cima para baixo, quer dizer, impositiva externa, tipicamente deseducativa. Sobretudo
a biologia tem mostrado que os seres vivos através do fenômeno da autopoiese para Maturana
são caracterizados por postura de adaptação ativa, não lhes cabendo a posição de receptores
apenas manipulados. Do "ponto de vista do observador", na argumentação de Maturana
(Maturana/Varela, 1994), não é a realidade externa que se impõe, provocando no cérebro nada
mais que uma "representação" copiada, mas é o cérebro que seleciona o que pode captar e
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Outros autores apontam para os saltos evolucionários, que ultrapassam muito a simples
"replicação", como é caso do surgimento da vida. Edelman/Tononi (2000), estudando a
consciência e o cérebro, destacam a propriedade surpreendente de "a matéria produzir
imaginação". Que a matéria (o pedaço de carne que é o cérebro) produza imaginação é algo
incrivelmente reconstrutivo: a matéria produz algo que parece ir muito além de si mesma. Da
forma similar, a aprendizagem também é fenômeno reconstrutivo, não linear, criativo
naturalmente. Usando a argumentação mais conhecida das ciências humanas de teor
hermenêutico, o conhecimento só pode entrar na cabeça pela via da interpretação pessoal e
culturalmente marcada. Por mais que se queira impor idéias aos outros, os outros inevitavelmente
as interpretam a seu modo. Por isso, toda cultura é própria, por mais que possa ser imposta.
Neste sentido, somos criativos por natureza, e, para quem acredita que a natureza é dialética,
complexa, não-linear, como Prigogine (1996; Prigogine/Stengers, 1997) por exemplo, esta
criatividade faz parte da própria natureza.
A aprendizagem apresenta ainda outras marcas centrais, com destaque para a questão
emocional e das inteligências múltiplas, mas que aqui não levarei em frente, por ser mais familiar.
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À sombra das duas características reconstrutiva e política, no entanto, é possível fazer uma crítica
contundente à didática prevalecente na Universidade, completando a argumentação acima em
torno do desafio de reconstruir conhecimento. A necessidade de pesquisar e elaborar comparece
com a devida força, já que sem isto não se pode falar de aprendizagem. Acresce a face política:
saber aprender, argumentar, contestar, pensar não significa apenas exercício lógico, mas exercício
de autonomia, habilidade de intervenção alternativa, capacidade de mudar a história e a realidade.
É fundamental perceber o lado pedagógico da pesquisa e da elaboração própria. Por exemplo,
uma coisa é preparar o aluno para poder ocupar um emprego, outra é prepará-lo para criar
trabalho com autonomia. Na primeira postura, o profissional espera a oportunidade, enquanto na
segundo é levado a criá-la. Não se pode, por certo, banalizar esta idéia, como se o mercado fosse
passível de modelagem livre, mas o importante é o aspecto educativo emancipatório. A própria
ONU, através de seu Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), tem
elaborado uma proposta de desenvolvimento calcada na noção de oportunidade, com realce
maior para a educação (PNUD, 1900...2001). Com efeito, educação não só é uma instrumentação
pertinente para fazer oportunidade, mas sobretudo é o meio para a pessoa "fazer-se"
oportunidade (Demo, 2000a).
Não se trata de acabar com a aula. Trata-se apenas de colocá-la em seu devido lugar:
como didática supletiva, jamais como centro da aprendizagem. A aula tem a "vantagem" de evitar
que o aluno pense por si, construa conhecimento próprio, argumente com autonomia, elabore
com mão própria. Persiste entre nós como função básica do professor "tirar dúvida", quando, na
verdade, as teorias da aprendizagem reconstrutivas políticas indicam que papel do professor é
fazer dúvidas, até que o aluno entenda que ele mesmo as deve resolver e sobretudo com elas
criativamente conviver. Dizia Piaget, a seu modo: sempre que tiramos uma dúvida da criança,
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evitamos que ela aprenda. O espírito do vestibular assola a Universidade, reeditado agora pelo
"provão". Imagina-se também que a única maneira de avaliar seja pela prova, quando seria muito
mais produtivo e digno colher material de elaboração própria durante todo o semestre, através da
pesquisa sistemática. Não se poderia aceitar notas definitivas durante o percurso, porque a
avaliação só pode servir para garantir a aprendizagem, ou seja, o que o aluno faz mal ou errado
deveria sempre poder refazer. Afinal, esta é a função do professor: garantir que seu aluno
aprenda. Para isso, precisa avaliar sempre (Perrenoud, 1999).
metodologia científica), até porque geralmente se fazem tais semestres sobre pesquisa sem
pesquisar: conhecem-se os métodos sem nunca os usar concretamente. Nesse sentido, é sempre
útil começar o 1o semestre de forma propedêutica, para que os alunos aprendam a aprender e a
pensar, antes de pretender qualquer outra coisa. Este 1o semestre poderia ser comum a todos os
cursos, sem exceção, tendo como objetivo central a pesquisa e a elaboração própria como
metodologia fundamental da aprendizagem, nas suas faces formal e política. No fundo, a política
científica e educacional servem para consolidar este "ambiente" reconstrutivo político nos
professores e alunos.
Para concluir
Ser professor hoje está mudando de rota, visivelmente. Duas virtudes comparecem cada
vez mais: reconstruir conhecimento e educar novas gerações. Estes papéis tornam o professor
figura absolutamente estratégica do desenvolvimento. Segue daí que é mister, em qualquer
política científica e educacional da Universidade, cuidar do professor. Geralmente é apenas alvo
de crítica, por mais que a mereç
am (DEMO, 2000b). Deveria ser igualmente alvo de todo cuidado que merece a figura
central da qualidade da oferta. Precisa formar-se bem, manter-se sempre bem formado,
reconstruir conhecimento com criatividade, mas precisa igualmente de remuneração e condições
de trabalho adequadas. A exigência cada vez mais pesada que recai sobre ele precisa ser
correspondida com sua valorização pertinente.
Bibliografia
CASTELLS, M. 1997. The Rise of the Network Society - The information age:
Economy, society and culture. Vol. I. Blackwell, Oxford.
CASTELLS, M. 1998. End of Millenium The information age: economy, society and
culture Vol. III. Blackwell, Malden (MA).
CAUFIELD, C. 1998. Masters of Illusion The World Bank and the Poverty of Nations.
Henry Holt and Company, New York.
PRIGOGINE, I. 1996. O Fim das Certezas Tempo, caos e as leis da natureza. Ed.
UNESP, São Paulo.
TAPSCOTT, D. 1998. Growing Up Digital The rise of the net generation. McGraw-
Hill, New York.
VARELA, F.J. et alii. 1997. The Embodied Mind Cognitive science and human
experience. The MIT Press, Cambridge, Massachusetts.
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UNIVERSIDADE E APRENDIZAGEM
1. Mandato essencial:
Conhecimento & Educação
2. Aprender a aprender
3. Sociedade do conhecimento
4. Economia intensiva de
conhecimento
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APRENDIZAGEM
1. Reconstrutiva
2. Política
3. Emocional
4. Professor
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CONDIÇÕES DE APRENDIZAGEM
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INSTRUCIONISMO
1. CIÊNCIAS SOCIAIS:
a) filosofia
b) psicologia
c) psico-sociologia
d) psicanálise
e) lingüística
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ARGUMENTOS RECONSTRUTIVOS
2. CIÊNCIAS NATURAIS:
a) biologia
b) física
c) matemática
d) inteligência artificial
e) interdisciplinar
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REDEFINIR O PROFESSOR
1. Profissional da
aprendizagem
2. Fazer o aluno aprender
3. Reconstruir conhecimento
4. Educar novas gerações
5. Saber pensar
6. Saber intervir
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POBREZA POLÍTICA
1. Ignorância cultivada
2. História própria
3. Oportunidade/emancipação
4. Vida e aprendizagem
5. Educação permanente
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POLÍTICA CIENTÍFICA
1. Reconstruir conhecimento
2. Pesquisa = princípio
científico e educativo
3. Iniciação científica
4. Qualidade formal
5. Produção científica própria 10
POLÍTICA EDUCACIONAL
1. Politicidade
2. Qualidade política
3. Saber pensar e intervir
4. Ética do conhecimento
5. Alternativas históricas
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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
1. Conhecimento colonizador
2. Concentração de renda
3. Destruição da natureza
4. Combate à pobreza política
5. Cidadania e autonomia
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TECNOLOGIA EM EDUCAÇÃO
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UNIVERSIDADE E FUTURO
1. Educar o conhecimento
2. Cidadania acima do mercado
3. Patrimônio humano
4. Lugar da aprendizagem
5. Lugar das alternativas
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