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Revista do Faculdade de Leras SLINGUAS. E LITERATURAS® Porto, XIV. 199%, pp. 81-98 HISTORIA DA LINGUA / ENSINO DA LINGUA * Pretendo, neste trabalho — e como esta patente na expresséo justa- posta Histéria da Lingua/Ensino da Lingua que constitui 0 seu titulo —, chamar a atengdo para certas conexdes possiveis entre 0 estudo da histo- ria de uma lingua (ou da linguistica historica em geral) € 0 ensino dessa mesma lingua, procurando sublinhar a importancia do estudo da Historia da Lingua na formagdo dos professores de lingua materna. Tradicionalmente, a Histéria da Lingua Portuguesa esta ligada a duas reas do ensino do Portugués: —o estudo dos fendmenos atestados de mudanga lexical (etimologia e de mudanga fonética; —o estudo das variedades da lingua. Estas duas dreas n’io devem constituir compartimentos estanques, uma vez que as mudangas historicamente determinadas e a variagio detec- tada em sincronia (contemporanea) so aspectos de um mesmo fenémeno: a variagdo da lingua. Nesta perspectiva, tentarei ilustrar, apresentando uma proposta de andlise de testemunhos de uma sincronia do passado — tex- tos medievais, neste caso —, fendmenos de mudanga diacrénica (seman- tica e fonética) historicamente determinados, sem deixar de considerar tam- bém esses textos como um corte sincrénico representative de um momento do passado da lingua, a partir do qual podem ser feitas incursdes retros- pectivas € prospectivas no percurso historico de determinadas formas. Paralelamente, ao considerar esses testemunhos de uma sincronia do pas- sado como um corte sincrénico, é importante fazer ressaltar a sistematici dade de aspectos especificos do estado de lingua que representam como, * Reproduzo neste artigo, com algumas alteragdes pontuais, 0 texto de uma comunicagdo apresentada as VI Jornadas de Formagao de Professores da Universidade Catélica Portuguesa (Viseu, 1995). 81 CLARA BARROS Por exemplo, o sistema fonol6gico (em estreita relagao com a ortografia) ou algumas caracteristicas da morfo-sintaxe. Tentarei ainda mostrar, por outro lado, que a andlise das variedades sincrénicas da lingua pode ser encarada quer como estudo da inscrigaio em sincronia de diversas fases histéricas do idioma, quer como observagiio de mudangas em curso numa fase mais ou menos adiantada de expansio. No ambito da formagio cientifica do professor de Portugués, 0 estudo da Histéria da Lingua implica a aquisigio de diversos tipos de saber: © conhecimento do funcionamento da evolugao linguistica que engloba a compreensto de fenémenos de evolugao fonética ¢ analogica definidos em si mesmos e/ou integrados numa explicagao ampla da evolu- $40 de um sistema linguistico em geral; © conhecimento das fases de expansio/propagacao das mudangas ¢ a regularidade da variaco; 0 conhe- cimento particular de fenémenos de variagao histérica cronologica e geo- graficamente determinados — os da lingua portuguesa, Para além disso, 0 estudo da Historia da Lingua confere também uma capacidade de trata- mento critico do testemunho, seja este relativo a sincronias do passado Ganalise de textos com maior ou menor grau de antiguidade) ou a mudane sas recentes ou ainda em curso (andlise de textos actuais como entrevis- tas, fragmentos de discurso oral, etc). A formagao em Hist6ria da Lingua dé, portanto, ao professor de line gua materna, uma competéncia diversificada que poderd assumir formas muito variadas na pratica do ensino. Assim, por exemplo, 0 conhecimento Profundo do fenémeno de variagdo terd certamente repercussdes na atitude do professor perante as produgées horizontal e verticalmente diferenciadas dos seus alunos, uma vez que esse conhecimento implica nao apenas saber © que € a variagdo mas também ter consciéneia do cardcter ndo motivado, do ponto de vista linguistico, quer dos fenomenos de atribuigaio de presti- gio as diferentes variedades quer do caracter acidental da situagdo geogra- fica das mesmas. Sera também seguramente afectado Por essa formagio o modo de tra- lamento dos textos antigos que, segundo os actuais Programas, continuam © Unico testemunho de aspectos relacionados com a evolucdo, sendo enca- tados como possiveis repositérios de (interessantes) fenémenos histéricos !. ' Sobre este ¢ outros aspectos da inadequagdo dos Programas de Portugués. no Sue respeita & Hist6ria da Lingua, ver Prista, L. — Os Novos Problemas de Portugués 6 a Historia da Lingua, in “Documentos do Encontro sobre os Novos Problemas de Portugués”, Lisboa, 1991, pp. 37-43, 82 HISTORIA DA LINGUA / ENSINO DA Lil \GUA ‘A andlise desses textos nao deverd esgotar-se numa procura de “curiosida~ des” etimoldgicas (Iexicais ou fonéticas) mas tomar-se mais ampla, abran- gendo todo 0 sistema fonolégico de sincronias do pasado, relacionando-o com a miltipla variagao patente no portugués moderno ¢ tratando também de aspectos morfossintacticos caracteristicos. £ evidente que os conhecimentos de Historia da Lingua nem sempre serio directamente objecto de ensinofaprendizagem, mas constituirao uma base formativa e informativa do professor que ird possivelmente moldar e fecundar a sua pratica pedagégica. E essa formagio vai torné-lo apto/habi- litado para resolver a tarefa de transmissfio adequada dos items programé- ticos relacionados com a insergao da lingua na historia, na continuidade de uma tradigdo linguistica ¢ institucional. ‘As rubricas que, nos Programas de Portugués, dizem respeito a fend- menos de natureza diacrénica so aspectos geralmente considerados de caracter informativo € no interactivo € constituem como que um residuo, um pouco marginal, mantido talvez por respeito a tradi¢lio dos estudos filolégicos. Creio, porém, que o professor com uma boa formagaio em his~ toria da lingua estd habilitado para fazer mais do que habitualmente se the pede no Ambito da linguistica historica. Tentarei mostri-lo nesta exposigo, sublinhando dois aspectos da relagio que ¢ possivel e desejavel estabele- cer entre a Historia da Lingua ¢ 0 ensino da Lingua, a saber: —o tratamento de testemunho de sincronias do passado (andlise de textos) —o tratamento da variagio em sincronia: as variedades da lingua portuguesa. Analise de textos do passado 0 estudo de textos de outras épocas constitui, sem davida, um momento priviligiado da aula de portugués para a reflexdo sobre a origem € evolugio da lingua. © estudo da linguistica historica confere particular competéncia para 0 tratamento de textos de sineronias do passado, uma vez que implica que se adquira a nogio da necesséria critica do testemu- nho. Sobretudo no que respeita a textos medievais, € necessario ter em conta dados materiais da leitura do manuscrito, e devem, por isso, ser uti- lizadas edig®es criticas cuidadas que tenham os critérios de transcri¢ao explicitados ¢ que possibilitem 0 acesso ao texto original. 83 CLARA BARROS Os textos de sincronias do passado podem no ser estudados exclu- Sivamente como objectos culturais/literdrios representantivos de épocas da historia da literatura portuguesa; sto igualmente testemunhos linguisticos de estados de lingua afastados no tempo. E a falta de conhecimento da lin- gua da época vai seguramente acarretar dificuldades de interpretagio des- Ses textos que ndo deixardo de afectar a compreensio da sua representati- vidade cultural e literdria, Tradicionalmente, a andlise linguistica do texto medieval ocupa-se sobretudo com o levantamento de termos mareados do Iéxico, caracterist. cos do estado da lingua em questo por estarem ausentes em sincronias Posteriores. E 0 caso, por exemplo, de algumas palavras do vocabuldrio vernaculo medieval que serdo substituidas por termos introduzidos no século XVI, num processo de “relatinizagao” lexical; havera sempre nos textos exemplos de palavras que recuaro em estados posteriores perante neologismos renascentistas. Atente-se, a titulo de exemplo, nos pares ditoso/ledo — feliz, coita — pena ou sanha ~ ira. Os termos abandona- dos so sentidos hoje como arcaismos, marcados por um “sabor” medie- val, porque ou cairam em desuso ou desapareceram em estados linguist Cos Posteriores, sendo substituidos por termos que sao formas eruditas e neolégicas 7, E muito caracteristico da lingua do séc. XVI este fenémeno de importago de vocabulos latinos que constituiu uma verdadeira relatini- zacdo do léxico portugués. Nesta adopgao ¢ uso de palavras latinas impor- ‘adas foi relevante o papel de diversos autores quinhentistas sendo prova- velmente “Os Lusfadas” de Camées 0 exemplo mais significativo deste fenémeno. Estes termos alatinados, extremamente frequentes no poema camoniano, no tiveram todos a mesma divulgagao, nem sobretudo o mesmo futuro. Alguns, raros ou até desconhecidos entre outros autores seus contemporaneos, nao sobreviveram: € 0 caso de palavras como altis- Sono, erastino, potestade ou rdbido. Outros, no entanto, entraram no vocae bulario culto, literério © muitas vezes comum e nao so sentidos como lati- ® Ver Carvato, J. G. Herculano de — Contribuigdo de “Os Lusiadas” para a renovacdo da Lingua Portuguesa, Sep. da «Revista Portuguesa de Filologia», vol. XVIII, Coimbra, 1980, p. 38. Esta hipdtese de andlise, proposta por Herculano de Carvalho, ¢ muito sugestiva para a pritica pedagégica, apesar de se notar alguma impre- cisto na delimitagdo dos conceitos de“latinismo natural” e de “latinismo no natural”: de facto, ndo ¢ tida em conta a muliplicidade de factores potenciais que favorecem ou desfavorecem a posterior entrada dos voedbulos no Iéxico comum. 84 HISTORIA DA LINGUA/ENSINO DA LINGUA nismos no uso modemo do portugués. E verosimil que a substituicio das formas verndculas ditoso ou ledo pela forma culta alatinada feliz fosse sentida, na época, como uma aberrago de eruditismo, mas essa mesma palavra nao desperta certamente esse sentimento no falante do portugués actual, o mesmo se passando com palavras como admitido, aluno, méquina ¢ moderno, entre muitas outras; € também sentida hoje como natural a for- magiio dos superlativos em -issimo, que s6 surge na lingua comum a par- tir do século XVI. Estes factos demonstram 0 éxito da importago voca- bular renascentista, que esta na base de casos do fendmeno de divergéncia patentes no portugués actual: certas palavras latinas apresentam mais do que um resultado: PLANU — chio PLENA — cheia/ preia(mar) plano plena MACULA — malha/ mancha/ magoa ~~ FACTU — feito macula facto Nota-se que uma das palavras (plano, mécula, facto, plena) & muito préxima da latina porque, tendo entrado tardiamente na lingua, nao sofreu alteragdes fonéticas significativas. E comum dizer que estas palavras so de “via erudita” opondo-as as de “via popular”; estas designagdes tem em conta, por um lado, a introdugiio das palavras (no caso das eruditas) pela acgdio de autores de textos literdrios, e por outro lado, 0 facto de estas palavras se manterem num uso de lingua restrito, mais culto. No entanto, se & defensiivel a hipétese de nem todos os falantes de portugués usarem a palavra macula, nem todos os latinismos renascentistas sfio hoje palavras eruditas. Nos casos de divergéncia, além do processo diferente de entrada na lingua, é também importante 0 momento histérico diferente em que entram no vocabulirio do portugués. H4, portanto, no fenémeno de diver- géncia uma dimensio cronoldgica que é fundamental e que nao esté muito clara nas designagdes, muito correntes, “via erudita” ¢ “via popular”. E também oportuna, na andlise de textos medievais 3, a referéncia 4 alteragtio do significado (evolugdo seméntica) sofrida por diversos voca- 3 Para a caracterizagio do Portugués medieval utilizei sobretudo as propostas por TeyssieR, P. — Historia da Lingua Portuguesa, Lisboa, 1982, pp. 24-32, ¢ NETO, S. da Silva — Historia da Lingua Portuguesa, 32 ed., Rio de Janciro, 1979, pp. 397-425. 85 CLARA BARROS bulos ao longo dos tempos. Assim, termos medievos como guisa/guisado, catar, freesta, adubar ou salvar vaio mater-se no Iéxico, com um sentido © uso afim mas mais restrito, ou seja, com perda ou ganho de alguns semas e especificicagiio de outros. Um termo como guisa (germanico *wisa) suscita também a con- sideragao de um outro processo envolvido na formagao do léxico do portugués: a influéncia de superestrato germénico, um tipo de influén- cia linguistica que € também muito notério na antroponimia e na topo- nimia. A referencia ao conceito de empréstimo/estrangeirismo é igualmente convocada, no estudo desta fase da lingua, pelo nimero de empréstimos do francés e do provengal que se podem detectar. Recorde-se que na Reconquista ¢ repovoamento do territério foi importante a acgaio de cavaleiros e de ordens religiosas como Cluny/Cister e que os contactos politicos e culturais foram também significativos, sobretudo a partir de Afonso III 4. Assim, na lirica trovadoresca, so de origem franco-proven- gal termos como sirventés, lais, trobador, trobar, refrao, cobra, jogral, entendedor e, mesmo no léxico comum do portugués medieval, aparecem empréstimos como: linhagem, portagem, frei, monge, fol,(folia, folido), manjar, libré, maré, gabar, albergue, esmalte, chapéu, chaminé, manjar, rouxinol, framboesa, assaz, alegre.. Neste dominio do estudo do léxico, seria interessante ¢ formativo realizar actividades pedagégicas que envolvessem, por exemplo, a consulta de dicionarios etimolégicos, pesquisas de toponimia, antroponimia e patro- nimia, actualizagao de textos a partir de um trabalho de “tradugiio”, de adaptagao lexical Mas a anilise do léxico pode ainda ser alargada ao Iéxico gramatical “arcaico”. O estudo das particulas gramaticais tem pelo menos dois aspec- tos histéricos a ter em conta: a queda em desuso e a evolugdo fonética e/fou sematica. De facto, ha preposigdes, advérbios e conjungdes que ou desapareceram ou adquiriram um sentido/uso diferente: hu (onde), eiri (ontem), ogano (este ano), mentre (entretanto), empero (mas), suso (acima); quando 0 uso de certas particulas sofreu este tipo de evolugao, torna-se necessirio um esclarecimento do seu sentido nas sincronias do + Ver a este propésito Teyssier, P. — Op. cit. p. 33. 86 HISTORIA DA LINGUA /ENSINO DA LINGUA passado que possibilite a adequada leitura do texto. Mustrando com alguns exemplo: _—uma conjungdo de uso multifacetado como, por exemplo, ca pode apresentar trés sentidos/usos: ca causal ( 15 Exercendo a sua actividade normativa, tendencialmente uniformizadora, favo- recendo a assimilagdo de padrdes de conduta. 95 CLARA BARROS dessas fracturas, niio poderé ignord-las, sob pena de esconder a realidade multifacetada da lingua, Nao € certamente produtivo ignorar um aspecto fundamental da propria definigdo de lingua que & a sua variagao diatépica ¢ diastrética porque ela esta em interacgdo com a variagio situacional cuja importincia € reiteradamente afirmada a propésito da adequagio dos cursos as situagdes de comunicagao. Por outro lado, o professor de lingua materna é diariamente confron- tado com este tipo de variagiio e muito particularmente em certas regides em que se verifica grande diversidade linguistica ¢ a ndo-coinciéncia com @ norma mais prestigiada, Para muitos alunos do ensino basico e secundé- tio a variedade de pertenga no coincide com a variedade padrio do por- tugués. Alguns desses alunos nao terdo sequer acesso 4 norma mais pres- tigiada em termos de produgio, sé a reconhecendo como variedade de teferéncia, encontrando-se, portanto na situagtio de subdesenvolvimento verbal que costuma corresponder & produgao tinica/exclusiva de uma varie~ dade geografica ou social “ilegitima”, porque desprestigiada ou estigma- tizada. A compreensao do fenémeno da variagao ¢ da sua origem histérica retira parte da reaccdo subjectiva, isto &, dos juizos de valor sociolinguis- ticos do falante comum porque os filtra através da objectividade cientifica, © professor no tem, evidentemente, que ensinar/explicar isso aos alunos, uma vez que esse conhecimento nao constitui directamente objecto de ensino-aprendizagem, mas faz parte da sua formagtio, como desde o inicio Sublinhei, ¢ permite-the interpretar os dados de modo mais profundo, rea- gindo de modo mais adequado as circunstancias especificas de cada situa- 40 escolar. Assim, perante um aluno que produz uma variedade des- prestigiada, 0 professor poder construir certas inferéncias como por exemplo: — grupo de pertenga provavel X —origem geografica eventual Y —qual ¢ a variedade, ou conjunto de variedades, que produz? © nao 0 juizo de valor — Que mal que fala!... — ainda que ele/ela efec- tivamente fale “mal” portugués se produzir aquela variedade em certas situagdes de comunicagao. Provavelmente aquela mesma variedade sera “bom” portugués no seu ambiente familiar ou dependendo do contexto espacial da comunicagdo e dos intervenientes em causa. 96 HISTORIA DA LINGUA/ENSINO DA LINGUA © professor podera equacionar 0 caso do seguinte modo: o aluno (qualquer aluno) tera todo o interesse, particularmente em situagdo formal, em produzir uma variedade que se aproxime da norma-padrdo. Tem que adquirir variaveis de prestigio, uma vez que disso depende também a efi- cécia do seu uso da lingua. A escola tem que transmitir 0 “valor” das varidveis prestigiadas, como forma de promogao social 16. Devera, no entanto, ser feita simultaneamente uma tentativa de despenalizagdo: as variaveis que se afastam da realizag%io padrao podem nfo ser classificadas genericamente como inadequagdes, mas como diferengas. Afirma-se repetidamente a importincia da aquisigo de uma capaci- dade de adequagao do discurso as situagées de comunicagiio. Ora essa ade- quagao passa pela escolha do estilo proprio definido por essa situagao. Por exemplo, a imagem que 0 locutor faz, ou dé, ou pretende dar de si pro- prio repousa certamente na estratégia de escolha do estilo, isto ¢, do modo como diz. E este “modo de dizer”, que engloba também a variedade pro- duzida, depende da integrago maior ou menor de varidveis de prestigio no seu discurso, de acordo com os parimetros da comunicagao (e entre eles a imagem que faz do alocutirio...). Os falantes tém vantagens no dominio da norma mais prestigiada e na aprendizagem da adequagao do seu dis- curso as situacdes, particularmente em interacgdes fortemente estruturadas por restrigdes sociais. Esta adequado pode ser também definida em ter- mos da variedade produzida, Sem esquecer, no entanto, que o falante nfio pode/deve perder a sua identidade e outros valores primordiais, e que a sua variedade de pertenga, mesmo quando nao coincide com a norma padrao e € desprestigiada, constitui, por outro lado, um repositério das raizes valores patrimoniais de uma cultura colectiva, regional. Este direito & diferenga nao pode ser exclusivo das produgées lite- rarias regionais; deve também ser garantido na produgao linguistica. As variedades de pertenga que nfo coincidem com a norma padrio podertio ser admitidas quando for suscitado 0 uso oral desbloqueado. Se a aula de Iingua materna é o lugar da tomada de consciéncia do modo de agir pela fala, inserindo-a em situagdes de comunicagio, é segu- 16 Este objectivo poderia ser atingido através de diferentes tipos de actividades como por exemplo a observagdo de mudangas em curso; a andlise do discurso de per- sonagens envolvidas em fendmenos de ascengdo social, com referéneia ao chamado “comico de linguagem”, que constitui um efeito do fenémeno de estigmatizagao (sendo © riso a primeira forma de sangio social); observacdo empirica das diferentes realiza- gies de certas varidveis, com constatagdo de juizos de valor subjectivos. 97 CLARA BARROS Tamente também o lugar privilegiado da tomada de consciéncia das estra- tégias ou jogos de adequagéo da variedade linguistica produzida. Dados os critérios de prestigio que se aliam as variedades, os alunos nao falam sé variedades diferentes do portugués, como também falam variedades com diferente grau de prestigio. Logo, no se trata sé de diferenga, mas tam- bém ¢ sobretudo de desigualdade. E o ensino da lingua matera deve estar Ro centro de toda a acco tendente a anular a desigualdade Procurei demonstrar que quer a perspectiva diacrénica de andlise da variagdo, quer a perspectiva sincrénica, pressupdem uma formag&o em Historia da Lingua, E parece desejével uma convergéncia entre as duas perspectivas: s6 ela permitiré uma pratica pedagégica que no fique limi- tada ao estudo de fenémenos isolados, tradicionalmente considerados his- toricos, mas que parta de um profundo conhecimento do fenémeno de variagao, redefinida no sentido mais amplo do termo. E a variagaio da lingua € sempre histérica. Clara Barros 8

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