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Myrtes Maria da Silva Folegatti

O Musical Modelo Broadway nos Palcos Brasileiros


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710514/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Letras.

Orientador: Pina Maria Arnoldi Coco

Rio de Janeiro
Abril de 2011
Myrtes Maria da Silva Folegatti

O Musical Modelo Broadway nos Palcos Brasileiros

Tese apresentada como requisito parcial


para obtenção do grau de Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras do
Departamento de Letras do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710514/CA

abaixo assinada.

Profa. Pina Maria Arnoldi Coco


Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz


Departamento de Letras – PUC-Rio

Prof. Alexandre Montaury Baptista Coutinho


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Ana Maria de Bulhões-Carvalho


UNIRIO

Profa. Neyde de Castro Veneziano Monteiro


Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 11 de abril de 2011.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da
universidade.

Myrtes Maria da Silva Folegatti

Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio (2007), com


especialização em Teatro Musical pela TISCH, NYU (2010), professora
de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio do Colégio
Teresiano CAP/PUC, designer, editora e cinegrafista em vídeo. Integra
o corpo docente da pós-graduação em Leitura da PUC-Rio desde 2008 e
faz parte da equipe de projetos da Cátedra Unesco de Leitura da mesma
universidade.
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Ficha Catalográfica

Folegatti, Myrtes Maria da Silva

O musical modelo Broadway nos palcos brasileiros / Myrtes


Maria da Silva Folegatti ; orientador: Pina Maria Arnoldi Coco. –
2011.

187 f. ; 30 cm

Tese (doutorado)- Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro, Departamento de Letras, 2011.

Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Musical modelo Broadway. 3. Teatro


musical brasileiro. 4. Teatro de revista. 5. Teatro engajado. 6. Teatro
didático. 7. Möeller, Charles. 8. Botelho, Cláudio. I. Coco, Pina
Maria Arnoldi. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800
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Aos meus pais, com amor, gratidão e um sorriso.


Ao Sergio, pela paciência e amor incondicional.
À minha Louise, com amor que não tem fim.
Agradecimentos
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Gostaria de agradecer a todos aqueles que me auxiliaram na elaboração desta tese,


especialmente a Pina Coco, companheira de teatro, sempre com ouvidos para as
minhas infinitas histórias. A Marie Costanza, minha orientadora na NYU,
professora enciclopédica e generosa, que me abriu as portas do teatro musical. À
CAPES, por ter viabilizado, por meio de incentivo – bolsa de doutoramento – a
realização dessa pesquisa. Às minhas irmãs Mirian e Daisy, verdadeiros presentes.
A Monica Barbosa, incansável em sua colaboração e fonte de abraços
reconfortantes. Ao Colégio Teresiano, que me incentivou em minhas pesquisas.
Ao Claudio Botelho e Charles Möeller, pela generosidade e comentários
oportunos. Aos que tornaram a minha trajetória mais deliciosa, inclusive meus
alunos, meus estagiários, Tereza, Alice Maria, Nuccia, Thiago. Gostaria também
de manifestar o meu reconhecimento ao professor Júlio Diniz, pessoa amiga e
sempre disponível. Acima de tudo, ao meu anjo da guarda.
Resumo

Folegatti, Myrtes Maria da Silva; Coco, Pina Maria Arnoldi (Orientadora).


O Musical Modelo Broadway nos Palcos Brasileiros. Rio de Janeiro,
2011. 187p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio do Janeiro.

O teatro musical americano é conhecido internacionalmente devido ao seu


poder de entretenimento e grande popularidade. É um gênero híbrido, com raízes
europeias, cujos modos de organização se consolidaram no modelo Broadway de
exportação ao longo do século XX. O teatro musical brasileiro tem um percurso
mais oscilante, alternando momentos de prestígio, à época do teatro de revista,
momentos de apelo populista ou didático, caso do teatro musical engajado, e
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longas entressafras. Desde a década de 1990, o modelo Broadway assalta os


palcos brasileiros e, através da apresentação de clássicos do teatro musical
americano, educa o gosto da audiência, que se familiariza com as convenções do
gênero, como as transições ininterruptas do diálogo para a música e vice-versa. O
objetivo desta pesquisa é evidenciar a estrutura do modelo consagrado através de
seus elementos constitutivos – book, score – e de sua variedade formal –
integrado, conceitual, jukebox – e, desta forma, contribuir para minimizar o
desequilíbrio qualitativo dos musicais de autores nacionais face ao modelo
Broadway e motivar a criação de libretos que deem continuidade à trajetória do
teatro musical brasileiro.

Palavras-chave
Musical Modelo Broadway; Teatro Musical Brasileiro; Teatro de Revista;
Teatro Engajado; Möeller e Botelho.
Abstract

Folegatti, Myrtes Maria da Silva; Coco, Pina Maria Arnoldi (Advisor).


The Broadway Style Musical on Brazilian Stages. Rio de Janeiro, 2011.
187p. PhD Thesis – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio do Janeiro.

The American musical theater is internationally known due to its


entertaining power and its huge popularity. It is a hybrid genre, with European
roots, whose organizational methods consolidated into the Broadway-style model
for export during the 20th century. The Brazilian musical theater followed a more
unsteady path, alternating moments of prestige during the era of the revue,
moments of populist or didactic appeal, which is the case of the politically
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engaged musical, and long off season periods. Since the 1990s, the Broadway
model of musical has taken the Brazilian stages by storm, and through showing
the classic American musicals, audiences are being educated and familiarized with
the conventions of the genre, such as the non-stop transitions between dialog and
song and vice-versa. The aim of this research is to highlight the structure of the
model that has proven longstanding by the elements that it’s made of – book,
score – and its variety in form – integrated, conceptual, jukebox – and in this way
contribute to minimize the unbalance in quality between the musicals produced by
national authors and the Broadway model and to motivate the creation of librettos
that will help the Brazilian musical continue on its journey.

Keywords
Broadway-style Musical; Brazilian Musical Theater; Revue; Politically
Engaged Theater; Didactic Theater; Möeller and Botelho.
Sumário
Introdução .............................................................................................................. 11

1. O Teatro Musical da Broadway ......................................................................... 14


1.1 No princípio até 1920................................................................................... 14
1.2 A década de 1920 ......................................................................................... 20
1.3 A década de 1930 ......................................................................................... 24
1.4 A década de 1940 ......................................................................................... 30
1.5 A década de 1950 – The Golden Age ......................................................... 40
1.6 A década de 1960 ......................................................................................... 45
1.7 A década de 1970 ......................................................................................... 52
1.8 De 1980 a 1990 ........................................................................................... 55
1.9 O novo milênio ........................................................................................... 56
1.9.1 Os musicais jukebox ............................................................................. 57
1.9.2 Relevância ............................................................................................ 60
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2. Sondheim e o Musical Conceitual ..................................................................... 62


2.1 A evolução da forma .................................................................................... 62
2.2 O conceitual em Sondheim ......................................................................... 71

3. Elementos Dramatúrgicos do Teatro Musical ................................................... 85


3.1 O libreto ....................................................................................................... 85
3.1.1 O book .................................................................................................. 86
3.1.2 Elementos ............................................................................................. 90
3.1.3 Atributos ............................................................................................... 92
3.1.4 Mecânica .............................................................................................. 94
3.1.5 Estrutura ............................................................................................... 95
3.2 O score ......................................................................................................... 97
3.2.1 Elementos de um score ........................................................................ 99
3.2.2 Canções dramáticas ............................................................................ 103
3.2.3 Mais alguns elementos de canções para musicais .............................. 105

4. O Teatro Musical no Brasil ............................................................................. 107


4.1 O teatro de revista ..................................................................................... 108
4.1.1 A estrutura revisteira .......................................................................... 109
4.2 Teatro musical engajado ........................................................................... 119
4.2.1 A contribuição de Chico Buarque para o teatro musical .................... 121
4.2.2 Gota d´água ....................................................................................... 125
4.2.3 Ópera do malandro ............................................................................ 138
4.2.4 O rei de Ramos ................................................................................... 144
4.3 O modelo Broadway no Brasil .................................................................. 158
4.4 Do jukebox ao biográfico .......................................................................... 159
4.5 7 – O Musical ............................................................................................ 162

5. Considerações Finais ....................................................................................... 176

6. Referências Bibliográficas .............................................................................. 178


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A cultura é herança e transformação

Ferreira Gullar
Introdução

Era um domingo, e a fila dava a volta no imenso quarteirão na Praia de


Botafogo, nos difíceis anos 70. Acompanhando meus pais, vivi a minha primeira
experiência de impacto com a multidão. O cine Ópera, reinaugurado após uma
reforma, abria suas portas para o público assistir a That’s Entertainment - Era
uma vez em Hollywood. Uma tarde inteira na fila e mais a espera dentro do
cinema (havia uma escadaria que nos conduzia ao mezanino) para a próxima
sessão. Finalmente, o filme começa, uma colagem de fragmentos dos filmes
musicais preferidos da família, com as músicas cantadas nos almoços, nas longas
viagens de carro. Foi o meu début. Bastante entediada nos primeiros minutos -
pré-adolescente que descobria Chico, Caetano, Alice Cooper e Pink Floyd - não
compreendia porquê assistir no cinema a algo que não fosse uma história, e já
conhecido de todos. O público competia entre si ao dizer imediatamente o nome
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do ator ou atriz que surgia na tela, quase sempre com outras vozes atravessando,
que gritavam o nome do filme. E meu pai cantava, minha mãe fazia humhumhum
no ritmo da música, e a plateia batia palmas em transe, um verdadeiro ritual. A
conta gotas eu começava a fazer parte do conjunto, encantada com as cenas de
sapateado, com as coreografias, integralmente imersa ao ver o espetáculo aquático
de Esther Williams.
O repertório da família fora renovado, e agora eu começava a participar
das discussões. A reboque dessa exibição, festivais começaram a acontecer no
Rio, e pude assistir integralmente a vários filmes no Studio Paissandu e no
Cinema Asteca. Só depois, quando comprei o LP de Chico Buarque A Ópera do
malandro, descobri que antes de Hollywood havia a Broadway. E em pouco
tempo assisti ao meu primeiro musical: A Chorus Line. As pessoas podem não
saber o que é o teatro musical, mas jamais irão esquecê-lo depois que o virem pela
primeira vez. Porque essa é uma arte presencial, que precisa ser assimilada ao
vivo.
Teatro musical (refiro-me à peça, ou show, como é chamado na Broadway)
é aquele em que a música é essencial, mas funciona integrada aos outros
elementos, não aparece de forma aleatória. Se for possível deslocá-la para outra
12

cena ou tirá-la do espetáculo, então não é um musical modelo Broadway maduro,


é um subgênero qualquer, ou um aspirante a sê-lo.
O musical The Phantom of the Opera - O Fantasma da Ópera -, de
Andrew Lloyd Webber, que teve a sua estreia em 1988, celebrou no dia 26 de
janeiro de 2011 23 anos em cartaz, batendo o recorde de permanência na
Broadway. Mais de 14 milhões de pessoas já assistiram ao espetáculo, que
arrecadou mais de $800 milhões de dólares em bilheteria só em Nova York, outro
recorde. Além da Broadway, O Fantasma se encontra em cartaz em Londres,
Budapeste, Nagoya, Seul e Las Vegas.
Qual o segredo para se criar um espetáculo dramático que permaneça
quase um quarto de século atraindo o público e mantendo o teatro sempre lotado?
Como se estrutura um musical? Quais são os aspectos de um musical modelo
Broadway absorvidos pelo modelo brasileiro? Partindo do princípio de que o
modelo Broadway de teatro musical é uma matriz, apropriada internacionalmente,
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quando o teatro musical brasileiro atingiu a maioridade formal?


Para responder a essas questões satisfatoriamente, fui até a Great White
Way, no período em que se comemorava o octagésimo aniversário do mais
cultuado compositor e letrista da Broadway, Stephen Sondheim, “He`s God”, ouvi
dezenas de vezes durante a minha pesquisa.
Munida de um referencial teórico e de inúmeros dados coletados, o que
apresento aqui é resultante de três cursos, várias palestras, conversas, troca de e-
mails e reflexões próprias, e mais todos os shows a que assiti. A escolha de um
método de pesquisa de natureza exploratória se justifica pelo fato da inexistência
de fortuna crítica em nosso país sobre o teatro musical modelo Broadway.
Portanto, justapostas às citações de fontes bibliográficas no corpo desse trabalho,
hão de surgir anotações de aula, do curso regular e dos cursos de verão feitos na
NYU nos quais fui subsidiada pela CAPES, fragmentos de e-mails e libretos de
musicais não publicados, como é o caso do libreto de 7 - O Musical, enviado por
Claudio Botelho através de e-mail.
É tarefa árdua estudar a atualidade, ainda mais quando se trata de
dramaturgia brasileira, um gênero não muito prestigiado, que não é publicado e
nem disponível para os estudos acadêmicos.
A organização desse trabalho abrange no Capítulo 1 um breve histórico da
evolução do musical americano. O Capítulo 2 discute as diferenças entre o
13

musical integrado e o musical conceitual. O Capítulo 3 apresenta o libreto e a


constituição de suas partes, a textual - o book - e a musical - o score. O Capítulo
4 faz um breve levantamento da história do teatro musical no Brasil, desde o
teatro de revista até as mega-produções importadas. O trabalho se encerra com a
apresentação das considerações finais, buscando responder às questões levantadas
na Introdução.
Devido à parca produção de material original desse gênero de teatro, ainda
não foi desenvolvido um vocabulário próprio que dê conta da nomenclatura dos
termos específicos do teatro musical. Desta forma, optei por utilizar a
nomenclatura em seu idioma original, evitando também os empréstimos, como é o
caso de score, que encontramos facilmente traduzido por partitura ou substituído
pelo seu equivalente cinematográfico trilha sonora, sendo que nenhum dos termos
supracitados define o seu significado.
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14

1
O Teatro Musical Modelo Broadway

O musical pode ser definido como uma produção no teatro (stage), cinema
ou televisão, que utiliza canções em estilo popular e diálogo para contar uma
história (musical book) e/ou apresentar os talentos de diversos intérpretes
(revues), conforme definição de Kenrick (2008; 8).
Um histórico dessas manifestações trará à tona diversas maneiras de
organização, de elementos constitutivos, originais ou não, eventualmente
incorporando novidades da época de sua apresentação. Várias denominações eram
utilizadas de modo bastante vago. Segundo Kenrick (Ibid., 9), o gênero musical
abrangia comic operas, operettas, opera bouffe, burlesque, burletta,
extravaganza, musical comedy, dentre outras. As revues, por sua vez, tiveram
suas origens em variety, vaudeville, music halls e minstrel shows, que eram
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esquetes, historietas e números, com intérpretes diversos e variados, mas sem uma
história com desenvolvimento de um enredo e de suas personagens.
A formação desse gênero, – musical –, hoje reconhecido como tipicamente
um produto do entretenimento americano, teve origens tanto em tradições
europeias quanto em algumas experimentações estilizadas por imigrantes
europeus nos séculos XIX e XX.

1.1
No princípio até 1920

A América era uma colônia inglesa, e os palcos americanos estavam


dominados por peças teatrais britânicas, cuja oferta musical incluía as
pantomimes1 e as ballad operas2. Por volta de 1790, após a Independência
Política das Treze Colônias, os primeiros musicais, as óperas cômicas, localmente
originados, começaram a surgir, e levaria algum tempo para que o produto da casa
se equiparasse à popularidade das obras importadas.

1
Pantomimas, cujos enredos e personagens derivavam geralmente dos contos de fadas da Mamãe
Ganso (Mother Goose). Eram escritas no mesmo estilo musical que as óperas cômicas.
2
Peças cômicas, temperadas com baladas populares e adaptadas com letras satíricas.
15

No início de 1800, os melodramas tornaram-se populares, pois ofereciam


histórias dramáticas animadas por música de fundo, com interpolations3 de
canções populares e efeitos de palco. Havia também os romances que, apesar de
serem mais sentimentais que as óperas cômicas, eram escritos no mesmo estilo
musical.
Em 1821 surge em Nova York o primeiro estabelecimento que oferecia
entretenimento ao público afro-americano, banido dos outros teatros. Além da sua
superlotação, o fato atraiu brancos curiosos, que podiam ver elencos
essencialmente de negros no mesmo tipo de peças e musical acts 4encontrados nos
teatros dos brancos. A segregação racial forçou o fechamento do teatro e as
produções dos negros regressariam à Broadway somente após um século. No
entanto, esse efeito perverso de preconceito não impediu o surgimento de uma
nova forma de entretenimento de variedades chamada minstrel shows.
Por volta de 1830, os artistas brancos já costumavam pintar seus rostos
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imitando os negros – blackface - nos chamados colored song and dance acts5. Em
1842, um grupo de atores desempregados e com experiência em blackface
routines6 criaram um espetáculo noturno completo. Satirizando os populares
menestréis tiroleses da Suíça, denominaram-se The Virginia Minstrels. O sucesso
de suas "canções das plantações", suas danças e o modo de encadeamento nas
apresentações causaram grande sensação, favorecendo o surgimento de inúmeros
imitadores. Surgiam, assim, os minstrel shows.
Musicais originais já tinham espaço na Broadway por volta de 1850, mas
nenhum deles era chamado de musical. Uma peça teatral com canções ou
passagens musicais poderia ser divulgada como burletta, extravaganza, spectacle,
operetta, comic opera, light opera, pantomime e, até mesmo, parlor opera, mas
essas classificações eram muito vagas.
Durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), verificou-se, na cidade de
Nova York, um aumento expressivo na frequência do público aos teatros, uma vez
que as pessoas procuravam distrações leves. Após a guerra, o teatro musical
entraria em uma fase de extraordinária redefinição. Em 1866, The Black Crook foi

3
Prática de se ter canções inseridas em um show, escritas por outro compositor, diferente daquele
que escreveu a partitura básica do show (a palavra show refere-se a espetáculos teatrais tais como:
musical, opereta, ópera etc.).
4
Números musicais.
5
Números de canções e danças apresentados por pessoas de cor, ou seja, negros.
6
Sequências de uma coreografia, cena etc.
16

um grande evento teatral, e muitos historiadores o consideram o primeiro


importante ancestral da comédia musical americana, já que as coristas vestidas em
tights7 eram uma das suas atrações (EWEN: 1968; 17). The Black Crook tornou-se
um sucesso sem precedentes e demonstrou que o teatro musical poderia ser
lucrativo nos Estados Unidos. No entanto, a repercussão obtida é marcante tanto
pelo tempo em que permaneceu em cartaz quanto pelo lucro obtido: em uma
época em que as produções ficavam em cartaz por duas ou três semanas, esse
espetáculo ficou um ano em cartaz obtendo arrecadação total de mais de um
milhão de dólares na época8 (KENRICK: 2008; 12).
O período entre 1870 a 1920 foi um tempo dinâmico e de muitas
mudanças nos Estados Unidos. A revolução industrial havia mudado a aparência
da América rural pré-Guerra Civil e praticamente metade da população agora se
concentrava nas cidades. Esses 50 anos foram marcados pela imigração europeia,
pelo crescimento das cidades, e um aumento de renda pessoal e tempo de lazer
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que beneficiava tantos os trabalhadores das fábricas quanto os dos escritórios.


Com férias anuais e outros direitos trabalhistas começando a se tornar mais
comuns, os habitantes das cidades começaram a tirar meia folga aos sábados e os
parques de diversões passaram a atrair pessoas de todos os tipos. Assim, a
indústria do lazer entrava em franco desenvolvimento.
A maioria dos variety shows, o teatro de variedades, era inadequada à
frequência de mulheres e crianças9 e os minstrel shows começaram a perder a
popularidade. Para preencher esta lacuna surgiu o vaudeville, como uma forma de
diversão estabelecendo uma ponte entre os públicos das classes alta e baixa. Após
o tumulto de 1849, chamado de Astor Place Riot10, o entretenimento em Nova
York se dividiu em categorias de extratos sociais: a ópera essencialmente para as

7
Um tipo de vestimenta colante com os ombros expostos. O chorus line, a fileira de coristas,
tornou-se mais tarde um ingrediente básico da comédia musical
8
Nesse montante estão incluídas a temporada na Broadway, as tournês nacionais e as primeiras re-
montagens da obra em Nova York.
9
Um show popular de burlesque na década de 1870 era um tipo de teatro de variedades, voltado
para o público masculino da classe baixa e trabalhadora, com garotas vestidas em tights, saias
curtas e humor grosseiro. (BORDMAN, 1982) A comédia era construída em torno de situações
familiares para o público, insinuações sobre sexo estavam sempre presentes, como também sátiras
de convenções sociais e idiossincrasias linguísticas. Na década de 1920, com o término dos
"circuitos" do velho burlesque, o strip tease foi introduzido nos shows, passando a ser o
ingrediente dominante do gênero na década de 1930.
10
Esse tumulto foi um motim em frente a Astor Place Opera House, resultado de tensões entre a
elite frequentadora da ópera e a classe trabalhadora da região do Bowery no sul de Manhattan.
(www.answers.com/topic/astor-place-riot-1)
17

classes alta e média alta; os minstrel shows e melodramas para a classe média; os
variety shows em bares de concerto para homens da classe operária e para a classe
menos privilegiada.
A busca de lucro decorrente de um amplo espectro de público para os
espetáculos contribuiu para o desenvolvimento do vaudeville e atraiu
empreendedores. De acordo com Kenrick (Ibid., 96), um desses empreendedores
foi Tony Pastor (1832-1908), o primeiro a apresentar um teatro de variedades
bem-sucedido e mais adequado à presença feminina e infantil.
Além de ter conquistado fama como vocalista em variety, ele era
compositor de canções e empresário na região do Bowery em Nova York. Seus
variety shows obtiveram um sucesso imediato atraindo um público entusiasta de
todas as idades e classes sociais, inclusive as pessoas mais influentes da ilha.
O formato inovador de T. Pastor foi imitado especialmente por Benjamin
Franklin Keith e Edward Albee, que fizeram fortuna com produções não
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autorizadas das operetas inglesas de Gilbert e Sullivan. Keith e Albee iniciaram


uma rede de teatros através do nordeste dos Estados Unidos instituindo uma
política de múltiplas performances diárias que passaram a chamar de vaudeville.
Com o sucesso de público e bilheteria, o gênero se espalhou pelos Estados Unidos
fazendo surgir outras redes teatrais.
De acordo com Grant (2004,104), os antecedentes dos musicais da
Broadway foram as operetas do final do século XIX, também chamadas de light
operas, apresentadas nos teatros considerados oficiais na ilha de Manhattan os
quais, por volta de 1880, vinham se tornando conhecidos como Broadway.11
As operetas vienenses de Offenbach e, sobretudo, as operetas inglesas de
Gilbert e Sullivan, exportadas para a Broadway, tiveram um enorme impacto na

11
Por volta de 1880, Broadway era o termo genérico para os inúmeros teatros que se
concentravam ao redor da rua 14. O centro do distrito do teatro foi criado em 8 de abril de 1904,
quando teve seu nome alterado de Long Acre Square para Times Square, em homenagem ao jornal
The New York Times e a inauguração do metrô. Times Square tornou-se o coração da cidade,
trazendo visitantes de todas as partes, tornando possível o acesso de um maior público aos teatros
da Broadway cujos limites agora se estendiam até a rua 45. Com um número cada vez maior de
turistas visitando a cidade, a Broadway tinha condições de sustentar mais produções e mantê-las
mais tempo em cartaz. A expansão das linhas de trem pelos estados continentais possibilitou levar
as produções em tournê de modo mais fácil e mais rentável do que nunca, sendo que, por volta de
1900, havia mais de 3.000 teatros nos Estados Unidos, dos quais pelo menos 1.000 estariam
equipados para receber produções ao nível da Broadway (KENRICK: 2008;34).
18

formação do musical americano. Enquanto outros compositores importantes dessa


época foram esquecidos pela história, Gilbert e Sullivan permaneceram.12
A década de 1890 foi a época das farses e burlesques e também da
primeira revue (revista musical) da Broadway. Essa revista derivada da fórmula
vaudeville alternava canções, esquetes (pequenas cenas) e números especiais,
tornando-se logo comum. No entanto, sua importância e seu período áureo de
desenvolvimento histórico teriam que aguardar o início do século XX e o talento
de Florenz Ziegfeld.13
No início do século XX, mesmo Londres sendo ainda a capital financeira
do mundo, Nova York crescia rapidamente tanto em tamanho quanto em
sofisticação. Paralelamente, as produções musicais se tornavam mais frequentes
atraindo cada vez mais a crescente e próspera classe média e trabalhadora. Os
espetáculos eram tão lucrativos que quase todos aqueles que, à época,
trabalhavam nessa atividade, em qualquer de suas fases, encaravam o teatro como
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um negócio e não como uma forma de arte em si. Por volta de 1920, os irmãos
Shubert controlavam aproximadamente 75% dos teatros profissionais na
América.14
Nesse período, surgiu George M. Cohan, considerado por Ewen o pai da
comédia musical. Ele não só escrevia, compunha e dirigia, como também
estrelava e produzia suas musical comedies. Suas personagens utilizavam uma

12
No início da década de 1870, William S. Gilbert e Arthur Sullivan revolucionaram o teatro
musical com suas operetas: canções com melodias e ritmos inteligentes e libretos, com uma
mistura de tolices e sátiras, e situações que iam desde a pura fantasia até a surpreendente realidade.
Suas obras, divulgadas como light operas, atraíam um público amplo e um de seus musicais,
H.M.S. Pinafore, teve tal impacto nos EUA, em 1878, que o fato foi chamado de "a loucura de
Pinafore" (KENRICK: 2008;30).
13
Ziegfeld, o primeiro grande empresário americano, tornou-se legendário com suas Follies em
1907. Inspiradas no Folies Bergères, o teatro de revista parisiense, ele deu a esse formato um
toque americano, com sofisticadas produções e uma legião de coristas extremamente belas, que,
com sensualidade sem tender para a vulgaridade e intuito de glorificar a garota americana, eram
bastante atrativas para o público americano. Dentro das várias séries de revistas das décadas de
1910 e 1920, as Ziegfeld Follies eram consideradas as melhores e se tornaram o principal
entretenimento do teatro de variedades. Com mais de vinte "edições", as Follies estabeleceram um
novo padrão técnico-artístico para o teatro profissional nos EUA. Ziegfeld não poupava nem
esforços nem recursos para que seus espetáculos fossem sempre os melhores da Broadway. O
termo extravaganza também era empregado para descrever seus espetáculos, onde eram
enfatizados efeitos espetaculares no palco, embelezamento e ornamentação, sequências longas de
dança, cenários e figurinos grandiosos, mulheres atraentes em vestidos e poses provocantes. Ele
fez esse gênero prosperar por uma década no Winter Garden Theater com o astro Al Jolson e por
cerca de vinte anos no Hippodrome Theatre (EWEN:1968;49). Ziegfeld era também um visionário
com dom especial para descobrir novos talentos, como Fanny Brice (interpretada por Barbra
Streisand no filme Funny Girl) e o comediante negro Bert Williams, contratado para trabalhar nas
suas produções, fato inusitado na época devido à questão racial.
14
Foi um dos irmãos Schubert, Lee Schubert, quem descobriu Carmen Miranda.
19

linguagem coloquial com a qual o público americano se identificava.


(EWEN:1968; 50) Duas de suas canções (Yankee Doodle Dandy e Give my
regards to Broadway) o tornaram um nome conhecido em toda a nação. Além do
seu talento para a criação e de sua performance, Cohan tornou-se um dos mais
poderosos produtores do show business. A partir de Cohan, a maioria dos
compositores de canções usaria uma "forma padrão" para as canções na Broadway
e na música popular em geral, até a chegada do hard rock na década de 1960.
A estrutura da canção comumente aceita como padrão era AABA. A, a
melodia principal, geralmente é repetida três vezes, em parte, a fim de ser
lembrada. B é outro elemento melódico que deve contrastar o mais possível com
A. Isso torna as canções mais acessíveis e fáceis de serem ouvidas e memorizadas,
como também induz os compositores os letristas a serem mais concisos e
eficientes.
Com características imitadas de hinos cristãos comuns aos ouvidos do
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povo americano, a maioria tinha duas partes: o verso que estabelecia a premissa
da canção era normalmente de 16 compassos (CHRISTMAN: 2006; 203) e o
refrão, a parte central e mais importante da canção, era estruturado em 32
compassos (RODGERS: 1975; 79). Outras variantes utilizadas seguiam o padrão
ABAB (Embraceable You dos Gershwin), segmentos múltiplos de AABA
(Soliloquy em Carousel de Rodgers & Hammerstein II), ou ainda adotavam a
estrutura ternária ABA.
Embora o público da Broadway se orgulhasse cada vez mais dos
espetáculos nacionais, o maior fenômeno desde a estreia americana de H.S.M.
Pinafore de Gilbert e Sullivan em 1878, foi a opereta The Marry Widow (A Viúva
Alegre) de Franz Léhar, em 1905. A produção da Broadway encantou os
americanos com seu romance e sensualidade refinada, e seu sucesso desencadeou
uma verdadeira mania por operetas vienenses que se seguiram até a década de
193015.

15
Outro compositor proeminente no início do século XX foi Victor Herbert, imigrante irlandês e
músico erudito (hoje praticamente esquecido) que compôs mais de quarenta comédias musicais e
operetas. Suas obras exigiam vozes líricas hábeis para cantar melodias sofisticadas e expressavam
sentimentos americanos contemporâneos com o refinamento musical do Velho Mundo. Herbert
preparou o caminho eventualmente seguido por Jerome Kern, Richard Rodgers e outros grandes
compositores da Broadway.
20

1.2
A década de 1920

Segundo a historiadora Ann Douglas (PBS: 2004, disco 1, episódio 2,


Prohibition)16, essa década foi um tempo de mudanças incrivelmente rápidas e
modernização. Nova York se transformara na cidade mais cosmopolita do mundo
e a Broadway era uma vitrine para transformações impetuosas que modificariam a
cultura americana. Segundo ela, nada mudava mais rápido do que a mulher
americana: as saias e cabelos ficaram mais curtos, os quadris desapareceram, as
costas começaram a serem expostas e, mais ousadamente, ela fumava, bebia e
frequentava os speakisies17.
Essa década foi marcada por um grande desenvolvimento artístico. Novos
talentos, entre compositores, letristas, libretistas, compositores de canções,
intérpretes, resultaram em uma rica variedade de teatro musical. Nesses anos
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agitados, conforme Kenrick (2008; 31), aconteciam mais de cinquenta musicais


estreando em uma mesma temporada na Broadway. Outro impulso importante foi
a longa batalha finalmente vencida pela The American Society of Composers,
Authors and Publishers (ASCAP), em 1924, para que os compositores tivessem
controle criativo sobre suas composições. Com apenas as interpolations
autorizadas e permitidas pelos compositores, o musical começou a crescer de uma
maneira que ninguém poderia prever. A diversidade das montagens se refletia nas
denominações utilizadas (musical comedies, musical revues, follies, Scandals,
Garrick Gaieties), nas incorporações do cotidiano e do imaginário americano e na
utilização de influências musicais como o jazz.
Apesar dessa variedade de espetáculos encenados na Broadway, a maioria
dos musicais dessa época era elaborada de acordo com algumas convenções já
pré-estabelecidas: uma história engraçada ou tola, uma “estrela” no palco, uma
canção, uma cena cômica e/ou uma dança eram ingredientes típicos da ideia de
um musical dessa década (PBS: 2004, disco 1, episódio 2, Musical Comedies).

16
BROADWAY: The American Musical. Film by: Michael Kantor. Public Broadcasting Service,
2004. Distribuição: Paramount Home Entertainment, Hollywood. 6 dvds (approx. 12 hours), color
& B&W. As referências futuras a este musical serão citadas no corpo do texto como PBS: 2004,
especificando o disco, o episódio e o assunto.
17
Lugares onde se servia bebidas alcoólicas durante a Lei Seca. Devido à clandestinidade, as
pessoas deveriam conversar baixo. Quando o tom de voz se elevava, vinha o alerta “speak easy,
boy!”, que acabou por denominar tais bares de speakisies.
21

Nomes conhecidos eram Jerome Kern, George e Ira Gershwin, Richard Rodgers e
Lorenz Hart, Vincent Youmanns and Irving Caesar, Otto Harbach e, nos últimos
anos, Cole Porter, Arthur Swartz e Howard Dietz.18
A revista musical, por sua vez, era uma representação do pluralismo da
vida americana, pois capturava um pouco de tudo. Florenz Ziegfeld, a partir da
Folies Bergères parisiense, cria a fórmula americana de suas Follies, surgindo
como o primeiro grande empresário e produtor a trazer aos musicais da Broadway
a imitação do desenvolvimento de Nova York.
Cada produtor tentava superar o outro, em cenários e ambientações
extravagantes, efeitos complexos no palco, exposição da beleza feminina, danças,
canções etc. As Follies atingiram o seu ápice entre 1915 e 1922, sendo a última da
série apresentada em 1931. Outros concorrentes no estilo das Follies eram os
Scandals de George White (a partir de 1919), que introduziram a sensibilidade
jazzística (FLINN: 1997; 112-13), as The Music Box Revues, produzidas e escritas
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por Irving Berlin em 1921, e as Vanities and Sketchbooks de Earl Caroll, em


1923.
A quebra da Bolsa de Valores em 1929 e a Depressão que se seguiu
liquidaram Ziegfeld financeiramente. Pouco a pouco, em decorrência da crise
financeira, esses espetáculos que haviam se tornado extremamente dispendiosos
foram sendo substituídos por revistas baseadas em melhores talentos e enredos do
que no luxo e na beleza física das atrizes (Ibid., 114) Paralelamente às revistas
exuberantes e luxuosas de Ziegfeld, na década de 1920, surge um tipo de revista
mais íntima, as Garrick Gaities, uma série de três que, a partir de 1925, fizeram a
carreira de Richard Rodgers e Lorenz Hart deslanchar na Broadway.19
Na década anterior, Irving Berlin ficara internacionalmente conhecido com
sua canção Alexander's Ragtime Band, a qual influenciou profundamente a
música popular americana e o teatro musical, e o jazz abriria caminho para Nova
York (LERNER: 1986; 45). Em 1921 um musical criado por artistas e intérpretes
negros, Shuffle Along, chegou à Broadway, ficando em cartaz durante quase dois
anos. O sucesso desse musical inspirou novos musicais de negros despertando o

18
Howard Dietz foi quem posteriormente inventou o famoso leão da Metro-Goldwyn Mayer
(MGM), tornando-o um elemento identificador de todos os filmes dessa companhia
cinematográfica.
19
Sua canção Manhattan causou uma sensação, tornando-se um sucesso e a dupla se estabeleceu
no show business (KENRICK: 2008: 37)
22

interesse nos night clubs do Harlem, os quais passaram a estimular uma nova
geração de entertainers negros. Os músicos desses night clubs passaram também
a escrever para o teatro de revista. Uma das mais contagiantes contribuições da
Broadway para a Era do jazz veio de um show de negros chamado Runnin' Wild,
produzido por um branco, o dançarino e produtor George White, que introduziu
danças como o charleston e o black-bottom (PBS: 2004, disco 1, episódio 2,
Shuffle Along). Mesmo com a novidade trazida pelo jazz e o sucesso da comédia
musical na Broadway e em Londres, a opereta americana obtinha sucessos com os
compositores Victor Herbert (Naughty Marietta), Sigmund Romberg (Rose
Marie)20 e Rudolf Friml (The Student Prince in Heidelberg) e os
libretistas/letristas Otto Harbach e Oscar Hammerstein II.
No final dessa década, um musical marcaria de modo determinante a
história do teatro musical americano: Show Boat, resultado da colaboração de três
gigantes do teatro americano: o produtor Florenz Ziegfeld, o compositor Jerome
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Kern e o letrista/libretista Oscar Hammerstein II. Jerome Kern se interessou pela


história de Show Boat, um romance da escritora Edna Ferber publicado em 1926,
ficando fascinado pelas possibilidades que a história oferecia. Segundo Ewen
(1968; 75), a escritora havia trazido para a ficção aspectos históricos de uma
América que, até então, poucos conheciam, isto é, a dos barcos de espetáculos que
subiam e desciam o Rio Mississipi no final do século XIX. Ao contar a história de
um período de quarenta anos dos habitantes de um desses barcos, temas
polêmicos como a miscigenação e a separação no casamento foram abordados.
Kern usou uma completa variedade de estilos musicais, traçando a história
da música popular americana seguindo a ideia dos 40 anos do enredo. O projeto
foi um grande desafio para Ziegfeld como produtor, pois, por não ser uma história
cômica, era completamente diferente das suas Follies (PBS: 2004, disc 1, episode
1, Show Boat). A definição do gênero do espetáculo gerou muita polêmica na
época. Seria uma opereta, uma comédia musical, uma ópera? (KELLER: 1999;
20). Apesar do talento criativo da produção e do elenco de grandes nomes, Show
Boat foi um projeto um tanto arriscado, pois nada parecido havia sido feito antes
na Broadway. Show Boat triunfou imediatamente e foi a última realização
legendária da carreira de Ziegfeld. Essa obra mostrou que o teatro musical poderia

20
A MGM fez as versões para o cinema destas duas operetas, estrelando a inesquecível dupla de
cantores-atores da década de 1930, Jeanette MacDonald e Nelson Eddy.
23

também ter um tom melancólico e apresentar algo que retratasse a paisagem e a


realidade de um típico cenário americano, representando de certa forma uma
súbita ruptura significativa com a tradição alegre e divertida do entretenimento.
Além do mais, a estrutura desse musical inaugura um novo gênero de musical.
A comédia musical proporcionava um contexto onde todos os elementos
inerentes ao show – história, canções, dança, cenário – serviam para dar destaque
a uma atriz, uma estrela que garantisse a aprovação da audiência e,
consequentemente, o retorno de bilheteria. O compositor Jerome Kern foi o
primeiro a fugir dessa fórmula de sucesso. Ele revolucionou a história do teatro
musical ao insistir que o texto (book musical) deveria ser o ponto de partida para
se construir uma história dramática. Antes dele, as músicas dominavam o teatro
musical, mas ele insistia na ideia de que teatro musical deveria ser “teatro”,
encenado no palco por atores, que utilizariam as técnicas dramáticas junto à
música para revelar alguns aspectos da vida humana. O que daria forma e
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substância a esta arte não poderia ser a expressão do sentimento na música, um


componente simples, mas algo mais completo, mais abrangente, mais vital, em
que todos os colaboradores pudessem construir uma criação artística unificada.
A partir de Kern, os elementos de um musical deixariam de ser
independentes, o espetáculo não mais seria fragmentado. Ele mesmo afirma: “Eu
apenas costuro musicais. Escrevo músicas que somente se encaixam em
determinadas situações, personagens ou letras, da mesma forma que um alfaiate
acerta uma roupa em um manequim.” (KISLAN, 1980: 111) O objetivo de um
compositor deve ser revelar o personagem, o pensamento ou o sentimento para o
público em sugestivas imagens musicais.
De acordo com Kislan (Ibid.,113), muitos consideraram que surgia uma
nova estrutura de comédia musical, mas na verdade era uma nova forma, a peça
musical (musical play). Nela, cada música tinha um lugar na história. No texto
havia uma organicidade, nenhum elemento era destinado a funcionar sem o outro.
A reação de um público-alvo não era pré-requisito para a criação ou a
performance. Personagem, situação, tema eram prioridade sobre a canção, a
estrela, as piadas e, principalmente, a fórmula de sucesso. Para tecer uma música
mais profunda no tecido do drama musical, Kern baseou-se na teoria do leitmotiv,
ou seja, criar uma unidade na representação das personagens, situações e ideias
recorrentes através de motivos musicais. As canções, que um dia foram
24

coadjuvantes do drama, agora se tornam parte essencial. As peças musicais


apresentavam uma verdadeira alternativa ao público americano, uma experiência
dramática no palco onde o público poderia se espelhar. Eram histórias de pessoas
comuns com um tratamento artístico.
Em comédias musicais, artistas comediantes, mesmo os mais engenhosos,
interrompiam a fluidez do show com suas performances. Agora, personagens
eram colocadas em uma sucessão lógica de situações risíveis. As letras, por sua
vez, perdiam a dicção literária e se harmonizavam à língua falada, livre de clichês,
rimas previsíveis, temas óbvios e significados forçados. Tal novidade
impulsionará uma mudança que explodiu dezesseis anos mais tarde no musical
Oklahoma! de Rodgers e Hammerstein.

1.3
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A década de 1930

A década de 1930 se inicia sob o impacto do tumulto financeiro e político


causado pela Grande Depressão, com a fome e o desemprego atingindo toda a
nação americana e falência de empresários e produtores. Ao mesmo tempo,
acontece o desenvolvimento do cinema falado e a popularização das rádios que
ofereciam programas de entretenimento gratuitamente. Apesar de todo esse
cenário desfavorável, o musical da Broadway atingiu um pico criativo na década
de 1930, ao explorar exatamente o estado de espírito reinante na população em
geral.
Conforme Stanley Green esclarece:

O teatro musical, a mais opulenta, escapista, extravagante e declaradamente a


forma teatral mais comercial, não podia se omitir do que estava acontecendo. É
claro que ainda podia proporcionar alívio da realidade, oferecer noites com
canções e "glamour", mas mostrava uma crescente consciência da sua habilidade
singular de criar comentários cantados sobre temas como: a loucura da guerra, a
corrupção municipal, campanhas políticas, os trabalhos do governo federal, o
despertar do movimento trabalhista, o perigo da direita e esquerda extremas e a
luta entre a democracia e o totalitarismo. Ele descobriu que a letra de uma
canção, uma melodia, piadas frívolas, um pouco de comicidade, uma sequência
de dança, podiam dizer coisas com maior eficácia do que muitos dramas sérios,
simplesmente porque apelava ao público de teatro em um espectro muito mais
amplo (GREEN:1971; 12).
25

Nessa década, o musical da Broadway oferecia sátiras políticas e folk


operas21, trazendo esperança e alívio, em tempos de tensão e desespero. A
Broadway oferecia um tipo de antídoto contra o tempo mais sombrio da América.
Os shows dos anos 20 não refletiam a realidade da vida, mas deliberadamente
mostravam a vida como se ela fosse um mar de rosas. Com o aprofundamento da
crise econômica e os crescentes sinais de instabilidade na Europa, mudanças
começaram a ocorrer com os espetáculos, que se tornaram mais pensativos e
mordazes em uma relação direta com o cotidiano das pessoas.
Embora a maioria das canções populares ainda mantivesse um ar de
ingenuidade, a Broadway abriu-se para fazer novas experiências em forma e
conteúdo. Como uma dessas experiências, a balada Brother, Can You Spare Dime
de uma revista musical chamada Americana, gravada pelo cantor Bing Crosby,
tomou a parada de sucessos de surpresa. Essa canção, que falava do coração, das
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emoções e dos pensamentos de todos aqueles que viveram durante o período da


Depressão, tornou-se um tipo de hino nacional no início da década. Com seu
conteúdo e mensagem de conotação social, ela foi banida das rádios em um
determinado momento.22
Ernest Harburg, filho do libretista/letrista Yip Harburg, observa:

As editoras de música eram os censores máximos de toda canção popular que


surgia. Se alguém não conseguisse passar por elas, então não conseguiria colocar
sua canção nas ruas. Os editores só queriam canções de amor e canções
escapistas. A maneira pela qual essa canção rompeu tal censura foi porque ela
pertencia a um espetáculo da Broadway. A Broadway sempre significou o
máximo de liberdade para um artista nos Estados Unidos. (PBS: 2004, disco 2,
episódio 3, Brother, Can You Spare a Dime?)

O dramaturgo Jerome Chodorov também dá o seu depoimento sobre como


era a vida dos artistas durante esse período:

Durante a Depressão, todo mundo tentava ganhar a vida. A coisa principal era
trabalhar, sobreviver... as pessoas não estavam pensando tanto na "arte do
teatro"... trabalhavam por um salário... Mas isso não foi de todo mal, pois elas
fizeram espetáculos que não teriam sido feitos em tempos normais. (PBS: 2004,
Ibid.)

21
Óperas de gosto popular, folclóricas.
22
Sua mensagem era essencialmente a seguinte: "nós construímos o país, por que não podemos
compartilhar da sua riqueza?" (PBS: 2004, disc 2, episode 3, Brother, Can You Spare a Dime?).
26

Ao mesmo tempo em que a revista musical se tornava mais criativa e mais


popular, ela também sofria uma radical mudança e redefinição em seu conteúdo,
tornando-se politicamente mais consciente. Com Ziegfeld já falecido em 1932,
Irving Berlin ajustou-se a essa nova postura política que se abria na cultura
popular. Juntamente com o talentoso escritor Moss Hart, ele usou a estrutura de
um jornal, com manchetes, fofocas e histórias em quadrinhos, como base para o
seu novo espetáculo As Thousand Cheer (1933). Cada canção se associava a uma
manchete de jornal, havia muitas esquetes e muitas canções, e a presença da atriz-
cantora Ethel Waters do Cotton Club, no Harlem, estrelando, sinalizava a
inquietação racial (PBS: 2004, disc 2, episode 3, Ethel Waters).
The Band Wagon (1931), com Fred Astaire e sua irmã Adele, texto e
música completos escritos por Howard Dietz e Arthur Schwartz, foi uma das
melhores revistas da década nessa nova forma mais íntima, simples, mas
sofisticada. Outra revista de grande sucesso, no final da década, surgiu de fontes
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inesperadas: Pins and Needles (1937), patrocinada pela International Ladies


Garment Workers Union23. Foi uma produção de baixo custo, com todo o elenco
composto por homens e mulheres da classe operária. A música era do jovem
compositor/letrista Harold Rome. O material era novo e engraçado, e a
repercussão foi tão entusiasta, que a revista se expandiu em horário integral,
obrigando o elenco a abandonar seu trabalho diurno. Como o show se estendeu
até a década seguinte, novas canções e números foram adicionados.
Por outro lado, algumas produções procuravam levantar o moral do povo
americano abatido pela grave crise; nesse aspecto, o melhor exemplo talvez seja
Cole Porter, que escreveu mais canções de sucesso durante a década de 1930 do
que qualquer outro compositor da época. (KENRICK: 2008; 54) Tal fato não
deixa de ser uma grande ironia visto que, herdeiro de uma fortuna de nove
milhões de dólares em espécie, ele conseguiu durante a Depressão atingir o
coração das pessoas, oferecendo ao público da Broadway uma fuga em direção a
um mundo de refinamento, luxo e despreocupação.
Segundo Kimbal, (PBS: 2004, disco 2 episódio 3, Anything Goes), se fosse
necessário escolher um espetáculo que melhor representasse essa década, a

23
Sindicato das operárias de roupas femininas.
27

escolha recairia em Anything Goes (1934). Estrelado por Ethel Merman, William
Gaxton e Victor Moore, a música de Porter era exuberante e incluía as canções
Anything Goes, I Get a Kick out of You, Blow Gabriel, Blow e You're the Top.
Kimbal ainda esclarece melhor o significado desse musical ao afirmar que Porter,
por escrever tanto a música quanto as letras de suas canções, colocou tanta energia
que elas poderiam ser consideradas como um tônico para uma nação que tentava
se reerguer do desastre econômico-financeiro. You're the Top, por exemplo, traz a
seguinte mensagem para as pessoas em 1934: "Sim, nós todos estamos nos
sentindo péssimos, mas talvez agora seja a hora de nos sentirmos um pouquinho
melhor".24 Porter também escreveu a música para inúmeros filmes musicais em
Hollywood, onde um deles ficaria para sempre imortalizado pelos
atores/dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers e a canção Night and Day. 25
Assim, por volta de meados da década de 1930, entre tendências diversas,
a opereta americana em que o sentimentalismo e o romance eram ingredientes
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básicos, começava a perder o seu público. Compositores como Victor Herbert,


Rudolph Friml e Sigmund Romberg não conseguiram acompanhar essas
mudanças.
O único musical de Romberg que ultrapassou 200 apresentações (número
considerado como indicativo de sucesso) não foi uma opereta, mas sim uma
tentativa de fazer uma musical play26, May Wine, em 1935. Com ambientação em
Viena, a trama abordava a Psiquiatria, um tema contemporâneo na época. No
entanto, anos mais tarde, Romberg realizou seu sonho de escrever "em estilo,
background e tempo americanos" uma comédia musical de sucesso. Up in Central
Park foi levado em 1945 na Broadway e fez imenso sucesso (EWEN:1968; 45).
Não é possível discorrer sobre a evolução do teatro musical americano na
década de 1930 sem falar de George Gershwin. Apesar da fama e fortuna devido
ao sucesso de Rhapsody in Blue (1924), ele foi mais um compositor do teatro
musical do que para salas de concerto. Como muitos outros jovens compositores,

24
Kimbal ainda considera tanto o espetáculo quanto essa canção em especial como a "a
personificação civilizada do restabelecimento do governo Roosevelt" (PBS: 2004, disc 2, episode
3, Anything Goes).
25
Gay Divorce, estreado na Broadway em 1932, introduziu essa balada e logo foi realizada a
versão cinematográfica.
26
Nova denominação do musical que veio à sua maturidade com Oklahoma! (1943).
28

seu primeiro trabalho foi em Tin Pan Alley27 como song plugger28, local que lhe
proporcionou contatos no meio musical. Em 1919, estreou na Broadway com La,
La, Lucille, sendo que uma de suas canções, Swanee, interpretada pelo astro Al
Jolson, tornou-se um sucesso vendendo em um ano um milhão de partituras e
posteriormente mais de dois milhões de discos. A partir desse sucesso, Gershwin
foi contratado por George White para compor a música da revista Scandals.
Entretanto, apenas em 1924, sua carreira no teatro toma grande impulso
com Lady, Be Good! A parceria com seu irmão Ira, que escrevia a letra das
canções, foi um fator poderoso e influente no estímulo da capacidade criativa e
originalidade musical de George Gershwin. Essa parceria continuaria até a
precoce morte de George em 1937 (EWEN: 1968; 48). Em 1930, os Gershwin
fizeram Girl Crazy29, do qual três versões cinematográficas foram feitas. Em
1931, o sucesso do musical Strike Up The Band levou os irmãos Gershwin,
juntamente com os escritores George S. Kaufman e Morrie Ryskind, a produzir
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um novo musical: Of Thee I Sing (1931). Se o primeiro musical era uma sátira
anti-guerra, o segundo zombava abertamente do sistema político americano30.
Jerome Chodorov esclarece muito bem o significado do sucesso:
“Ninguém nunca havia feito uma sátira política... As pessoas vinham em grupo,
cantavam uma canção, contavam uma piada e isso era o texto. Na verdade não
havia texto. Em Of Thee I Sing havia um texto, havia uma história, tinha ótimas
ideias e era maravilhoso!” (PBS: 2004, disco 2, episódio 3, Of Thee I Sing).
Na primavera de 1932, Of Thee I Sing recebeu o Prêmio Pullitzer, sendo o
primeiro musical a receber tal honraria. Com esses dois musicais, George
Gershwin conseguiu expandir e enriquecer a música para o teatro, sendo
consideradas como as mais notáveis produções do teatro musical americano na
década de 1930 (EWEN, op. cit. 48). Através do exemplo de Gershwin, outros
compositores de seu tempo foram encorajados a incorporar aspectos e

27
Termo coloquial do mundo da música popular, reduto das editoras de música em um beco da rua
28, entre a 5ª Avenida e a Broadway.
28
Pianistas, demonstradores de canções nas editoras de música.
29
Entre os músicos da orquestra, se encontravam Benny Goodman, Glenn Miller e Jimmy Dorsey,
que viriam a se tornar famosos com suas bandas de jazz e de dança de salão. No entanto, a estrela
do musical foi Ethel Merman, que fazia o seu début no teatro musical americano.
30
O espetáculo original havia saído de cartaz em Filadélfia em 1927. Se o padrão da canção-cena
Wintergreen for President lembrava o estilo de Gilbert e Sullivan, remetendo o público a uma
nostálgica lembrança, o enredo ridicularizava a inaptidão do Congresso, a importância excessiva
que a Suprema Corte se dava e o total despropósito do seu Vice-Presidente, Alexander
Throttlebottom.
29

procedimentos da música erudita na escrita musical para o teatro comercial


(EWEN: Ibid., 49). Essa mistura singular dos estilos erudito, popular e jazz, só era
possível na Broadway.
George Gershwin fez muitas parcerias com Robert Russell Bennett (1894-
1981), considerado o maior orquestrador da Broadway. Ele fez a orquestração
completa e/ou parcial de mais de 300 musicais entre 1920 e 1975. Sua
colaboração junto a compositores como Irving Berlin, Jerome Kern, Cole Porter,
George Gershwin, Frederick Loewe, e Richard Rodgers foi muito importante.
Geralmente trabalhando a partir de simples linhas melódicas e harmonias
incompletas, Bennett, cujo nome não é muito conhecido, produziu muito daquilo
que definiu o "estilo do teatro musical americano". Gershwin trabalhou em
parceria até Porgy and Bess. Diferentemente da média dos musicais mais curtos e
que eram orquestrados no máximo até seis semanas, essa obra levou seis meses
até que a orquestração fosse concluída. Juntando-se ao dramaturgo DuBose
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Heynard, na adaptação da sua peça sobre negros pobres que viviam no Catfish
Row de Charleston, na Carolina do Sul, os Gershwin produziram o que poderia
ser chamado de grand opera; no entanto, o compositor a considerava folk opera.
Havia paixão, infidelidade, estupro, sofrimento por amor, questões étnicas, enfim,
todos os ingredientes para uma grande tragédia. Entretanto, canções como It Ain't
Necessarily So, There's a Boat Leavin' Soon for New York e A Red Headed
Woman Makes a Choochoo Jump its Track mostravam claramente a influência da
comédia musical americana. A direção foi de Rouben Mamoulian, dramaturgo
russo, que já havia se estabelecido tanto na Broadway quanto em Hollywood.
(FLINN: 1997; 196).
Apesar de todas essas inovações no modo de se fazer um espetáculo
musical, a maioria do público não estava talvez preparada para ver um espetáculo
tão sério e, assim, a primeira produção foi um fracasso financeiro31. Com o passar
dos anos, Porgy and Bess foi se tornando um ícone na Broadway, com sucessivas
reapresentações em 1942, 1952 e 1976. Em 1985, tornou-se o primeiro musical a
fazer parte do repertório do Metropolitan Opera House em Nova York.
Se, em grande parte, essas manifestações do teatro musical americano
tinham lugar em Nova York, a costa oeste não ficaria atrás na busca de

31
O espetáculo ficou somente 15 semanas em cartaz e devido ao alto custo da produção, os
ingressos foram mais caros do que o normal.
30

entretenimento. Após receberem convite e generoso contrato com a Paramount


Pictures para trabalhar em Hollywood, Richard Rodgers e Lorenz Hart rumaram
para a costa oeste nos tempos difíceis da Depressão. No meio da década de 1930,
a dupla retornaria à Broadway, no topo de sua carreira, compondo uma série de
excepcionais comédias musicais. Algumas dessas produções foram: Jumbo
(1935), On Your Toes (1936), Babes in Arms (1937), I'd Rather Be Right (1937), I
Married an Angel (1938), Too Many Girls (1939).32

1.4
A década de 1940

No início da década, os produtores da Broadway e os críticos de teatro


achavam que boas canções e divertimento era tudo que o público de teatro
desejava. O objetivo não era fazer "grande arte" no teatro musical, mas distrair o
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público das agruras da Depressão do início da década anterior e do conflito que já


envolvia a Europa.
A década inicia-se com um musical bastante chocante para a época: Pal
Joey (1940), de Rodgers e Hart, sob a direção de George Abott. Baseado nas
histórias de John O'Hara, o espetáculo dispensava o otimismo inocente da tradição
do teatro musical. Embora tenha sido um projeto arriscado por ser o primeiro
musical na Broadway centrado em um anti-heroi, ele se tornou um marco na
carreira da dupla. A história girava em torno de um gigolô, dançarino de um night
club e seu relacionamento manipulador com uma mulher casada e rica,
interpretada por Vivienne Segal que, no final, o abandona. Apesar da ferrenha
objeção dos críticos, o musical ficou em cartaz por um ano.33 O reconhecimento
do espetáculo pela crítica viria somente em 1952 em sua reapresentação na
Broadway quando Brooks Atkinson, renomado crítico de teatro do jornal The New

32
Nessas produções, artistas como Jimmy Durante, Ray Bolger (ator/dançarino), George
Balanchine (coreógrafo), The Nicholas Brothers (dançarinos), Desi Arnaz, Van Johnson
(atores/comediantes) e especialmente o diretor e libretista George Abbott, foram alguns dos quais
colaboraram para o sucesso desses espetáculos.
33
O protagonista era o jovem novato Gene Kelly que, com charme, talento e presença, conseguiu
conquistar o público. Segundo Stanley Donen (PBS: 2004, disco 2, episódio 3, Pal Joey), Pal Joey
foi um evento incomum na história da Broadway. A música continha excepcionais canções tais
como I Could Write a Book e Bewitched, Bothered and Bewildered, que se tornaram clássicos da
música popular americana.
31

York Times, reformulou seu severo julgamento e reconheceu o significado e


importância da obra.
Marcando o retorno em grande estilo de Ira Gershwin à Broadway após
seu afastamento devido à morte de seu irmão George, Lady in the Dark estreia em
1941. Em parceria com o compositor Kurt Weill e o dramaturgo Moss Hart, Ira
Gershwin inovava novamente ao fugir dos temas tradicionais. Nesse espetáculo, o
enredo34 traz à cena a questão da Psicanálise, tema que começou a receber atenção
nos anos 30 e, embora ele tenha sido usado em comédias musicais anteriores, com
Lady in the Dark obteve efeito extraordinário. Depois de várias infrutíferas
tentativas de se elevar o nível do libreto dos espetáculos, Pal Joey e Lady in the
Dark demonstraram a possibilidade de um musical ser algo mais do que apenas
um evento de entretenimento alegre (LERNER: 1986; 151). No entanto, apesar de
lucrativos para os produtores, somente anos mais tarde ambos seriam
reconhecidos como influência significativa no desenvolvimento do teatro musical
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(BORDMAN: 1992; 525).


O último trabalho da dupla Rodgers and Hart, By Jupiter (1942) foi uma
típica comédia musical cujo tema era mais leve e contava o conflito entre gregos
antigos e guerreiras amazonas. Sua versão original ficou mais tempo em cartaz
dentre os musicais compostos pela dupla. Segundo Kenrick (2008; 66), além de
contar com a presença do astro Ray Bolger35, a canção Wait Till You See Her
obteve também sucesso. A peça saiu dos palcos por causa da Guerra, pois ao ser
comissionado para entreter as tropas americanas no Pacífico, os produtores
acharam que Bolger era um dos atores insubstituíveis no espetáculo. A parceria de
23 anos, que havia presenteado o teatro e o mundo com algumas das melhores
músicas e letras jamais conhecidas, se encerraria em 1943 com a morte de Hart.
Com a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial em 1941, Irving
Berlin, considerado o compositor mais popular da América desde 1912, foi
novamente chamado pelo governo americano para criar uma revista musical. De
maneira similar ao que ele havia feito na I Grande Guerra, This is The Army foi
produzida. Com elenco todo composto de soldados36 do exército, exceto o próprio

34
O enredo é basicamente a história de um editor de revista que usava a Psicanálise para explorar
as inseguranças de uma mulher.
35
O espantalho do filme The Wizard of Oz (O Mágico de Oz).
36
Segundo Julie Andrews: "um dia típico de alguns desses soldados poderia ser descrito como:
dançar pela manhã, atirar com rifles à tarde e, à noite, os mesmos soldados vestirem-se de
32

Berlin, o tema do musical girava em torno das dificuldades e tribulações da vida


militar, e isso feito de uma maneira alegre e agradável. Na sua estreia na
Broadway, em 1942, o teatro teve uma lotação de 2.000 pessoas. O show saiu em
tournê por todo o país, e posteriormente, uma versão cinematográfica foi feita
com o papel do tenente interpretado por Ronald Reagan, futuro presidente dos
Estados Unidos.
No meio da II Guerra Mundial, Richard Rodgers encontra em Oscar
Hammerstein II um novo parceiro. Essa parceria, talvez a mais bem sucedida e
criativa que o teatro musical americano conheceu, trouxe ao musical uma forma
de arte muito mais sofisticada. Na verdade, eles foram os pioneiros em um
espetáculo no qual a "história", mais especificamente o book musical, era mais
importante do que qualquer outra coisa. Em 1943, com Oklahoma!37, uma outra
etapa do desenvolvimento do teatro musical americano diferente daquela que
Rodgers e Hart haviam conhecido começava. Para Rodgers, 1943 foi o ano do
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início de sua segunda carreira no teatro (EWEN: 1968; 143). Para Hammerstein
era também um novo recomeço. Em 1943, ele, já veterano do teatro musical como
letrista e libretista, havia colaborado em produções de sucesso de primeira
grandeza que o haviam conduzido a um lugar de importância no teatro musical
americano38. O problema da integração total de todas as partes de uma produção
musical convergindo em uma unidade indivisível, que tanto preocupara a dupla
Rodgers e Hart por anos, apresentou finalmente uma solução em Oklahoma! Com
ela, uma nova forma de teatro musical chegava à sua maturidade: a musical play
(Ibid., 145), ou teatro musical integrado.
Após a 2ª Guerra, o teatro musical americano seguiu dois caminhos
separados: um que levava à musical play – cujo texto é mais importante do que a
canção - e outro à musical comedy. O desenvolvimento da musical play como uma
nova e vibrante arte, não tornou a comédia musical obsoleta. Mesmo aderindo aos

mulheres. Tudo isso, é claro, com a aprovação do exército" (PBS: 2004, disco 2, episódio 3, This
is The Army).
37
Oklahoma! é uma adaptação musical da peça folclórica americana Green Grow the Lilacs, de
Lynn Riggs, sobre cowboys (vaqueiros) e ranchers (donos de ranchos). A trama envolvia uma
garota de fazenda em Oklahoma, decidindo se iria a um baile com um trabalhador da fazenda, que
ela temia, ou com um cowboy que ela amava. Esse romance aparentemente inofensivo muda
completamente, quando o trabalhador se mostra um assassino psicopata e o cowboy tem de matá-
lo para se autodefender.
38
Juntamente com Jerome Kern, Hammerstein ajudou a revolucionar o teatro musical com Show
Boat (BORDMAN, 1992).
33

mesmos métodos e estereótipos que a caracterizou ao longo dos anos, a comédia


musical continuou a florescer em meados de 1940, e nas décadas de 1950 e 1960.
Alguns novos compositores, letristas e libretistas que vieram à proeminência após
a 2ª Guerra, preferiam escrever musical plays, enquanto outros preferiam a "velha
comédia musical" (Ibid., 155). Rodgers e Hammerstein concordavam em relação à
necessidade de um tratamento diferente para a comédia musical tradicional, e
ambos, a partir de suas vastas experiências, se propuseram a reinventar a estrutura
do musical. Se houvesse alguma dose de humor, ela teria que surgir natural e
logicamente de uma situação ou de uma personagem. Em relação às letras das
canções, elas teriam que ser parte essencial do texto, o que para muitos, significou
que elas deveriam ser escritas a priori. Números de dança deveriam ser não só
uma extensão do desenvolvimento da trama, mas completamente integrados com
39
o cenário e com as personagens. (EWEN: 1968; 218) Nada de números para
servir de vitrine para uma estrela, nada de canções escritas com o único intuito de
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se tornarem sucessos populares, nada de grupo de coristas e nada de insinuações


de caráter sensual40.
Ao demonstrar que uma história bem elaborada, comovente, engraçada ou
dramática poderia se tornar o elemento essencial de um musical para a Broadway,
Oklahoma! se tornou um dos marcos fundamentais do teatro musical americano,
com inovações tão importantes a ponto de influenciar a maneira de pensar não só
de Rodgers e Hammerstein em seus futuros trabalhos, mas também de outros
criadores e críticos do teatro musical americano. Oklahoma! permaneceu em
cartaz na Broadway por cinco anos e nove meses, sendo também o primeiro
musical a ter gravação musical completa, vendendo mais de um milhão de discos
(BORDMAN, 1992). Essa disposição de inovar e incorporar novas tendências da

39
Já na primeira cena do show, quando as cortinas sobem, surge uma mulher batendo manteiga,
enquanto um cowboy entra cantando um solo sobre a beleza da manhã, Oh, What a Beautiful
Morning, algo totalmente inusitado.
40
Após sua pré-estreia em New Haven (era usual um musical ser previamente apresentado antes
de sua estreia em Nova York), as notícias eram de que este espetáculo não teria sucesso: "no girls,
no gags, no chance" (sem garotas, sem piadas, sem chance). Na sua estreia na Broadway, para
lotar o teatro, o elenco decidiu oferecer ingressos gratuitos aos soldados americanos que partiriam
para a guerra. A resposta emocional desses soldados foi um indício do enorme sucesso que o
musical faria: permaneceu em cartaz por cinco anos e nove meses. Incorporando o imaginário do
"autêntico americano" e a razão pela qual esses soldados lutariam, esse musical foi também o
primeiro a ter gravação de cada número principal da obra, nascendo assim o formato original cast
album, que preservou centenas de musicais até hoje. Artistas jovens como Alfred Drake e Celest
Holm (Curly e Laurie) e a não muito conhecida Agnes de Mille, obtiveram fama imediata com
Oklahoma! . O musical foi chamado de cowboy musical, folk opera e até mesmo de opereta.
34

dupla trouxe a coreógrafa americana Agnes de Mille41 para os palcos e o sucesso


do teatro musical42. Assim, ao usar a dança como instrumento narrativo, algo
nunca antes visto na Broadway, Oklahoma! induziu também a integração de todas
as artes teatrais como instrumentos de condução da trama (LERNER, 1986).
O sucesso de Oklahoma! inspirou jovens artistas. No início de 1944, o
coreógrafo Jerome Robbins havia criado o ballet Fancy Free com música do
compositor Leonard Bernstein. Com a adição de texto e letras de Adolph Green e
Betty Comden, esse ballet se transformou em On the Town43. Seguindo o exemplo
de Oscar Hammerstein II, eles também estavam em busca de um "musical
integrado". A música de Bernstein, segundo o regente Michael Tilson-Thomas,
conseguiu capturar a pulsação energética da cidade de Nova York, e mostrou que
a orquestra em si poderia ser uma protagonista principal no musical agregando
energia à dança produzindo assim um poderoso efeito dramático (PBS: 2004, disc
2, episode 4, On the Town).
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Apesar das novidades introduzidas, musicais convencionais ainda


obtinham sucesso, como foi o caso de Song of Norway (1944-45), baseado em
uma biografia fictícia e romantizada do compositor norueguês Edvard Grieg. O
musical utilizava sua música como fonte para as canções do espetáculo, que
simplesmente encantou o público da Broadway durante dois anos. Como um
projeto da costa oeste de Edwin Lester, Diretor da Los Angeles Civic Light Opera
Association e da San Francisco Civic Light Opera, havia adaptação de músicas
pela dupla de veteranos letristas e compositores de canções da MGM Robert
Wright e George Forrest, além de coreografia de George Balanchine. Segundo
Bordman (1982), o sucesso do espetáculo paga tributo à música de Grieg, a uma
ótima montagem e a cantores extraordinários. Em um tempo em que a guerra e
Hollywood haviam privado os palcos de melhores vozes, Song of Norway
ofereceu ao público brilhantes cantores, não só nos papéis principais como

41
Agnes de Mille acreditava na possibilidade de a dança ser muito mais do que somente
entretenimento para as pessoas. Ela criou coreografias que uniam as canções e o libreto dando ao
espetáculo um poder nunca antes visto em qualquer comédia musical. Ela foi a criadora da forma
dream ballet (PBS: 2004, disc 2, episode 4, Oklahoma!).
42
O tradicional grupo de belas coristas se contrapunha às "verdadeiras" bailarinas.
43
A história conta as aventuras de três marinheiros de licença em Nova York por 24 horas, em
busca de diversão e romance. O sucesso do show resultou na versão cinematográfica ainda nos
anos 40, estrelando Gene Kelly e Frank Sinatra. On the Town nunca mais foi reapresentado na
Broadway.
35

também nos secundários. A canção que se tornou um sucesso foi Strange Music.
De acordo com Mordden (1999), a montagem de Londres em 1946 também foi
um sucesso absoluto e com um número de 860 apresentações permanece até hoje
como a opereta que ficou mais tempo em cartaz nos palcos londrinos, sendo ainda
ocasionalmente apresentada por companhias de ópera, mas nunca mais foi
encenada na Broadway.
Na trilha das inovações, após o sucesso de Oklahoma!, Rodgers e
Hammerstein fizeram uma escolha ousada: adaptar Liliom, um drama húngaro
ambientado na Nova Inglaterra do século XIX. A peça girava em torno de um
intenso caso de amor, porém fadado à perdição e não um típico romance de um
musical. Assim surge Carousel (1945). A primeira parte do musical é focada no
realismo e romance e, após o clímax com o suicídio do herói, a história se
transporta para o mundo da fantasia44. De acordo com Kenrick, "essa história, às
vezes sombria, fez aliança com uma música esplêndida."45 (KENRICK: 2008; 86)
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Carousel contava ainda com uma coreografia dramática criada por Agnes de
Mille e com um elenco notável que revelaria ao estrelato os cantores-atores John
Raitt e Jan Clayton, nos papéis centrais.
Embora naquela época uma temporada de 890 performances representasse
um tremendo sucesso, Carousel não teve uma história de performances tão
espetacular como Oklahoma!. Em certos aspectos, Carousel se distinguiu mais do
que o seu antecessor quanto à sua realização artística. Nesse sentido, foi muito
mais feliz nos objetivos estéticos e nos propósitos da dramaturgia musical. Em
Carousel há maior compaixão, humanidade e ternura que raramente são
encontradas em Oklahoma! (EWEN, 1968). Três semanas após a estreia de
Carousel, a guerra na Europa chega ao fim. Por um curto período na década, uma
América mais inclusiva se refletiu nos palcos da Broadway em espetáculos como

44
O personagem central, Billy Bigelow, trabalha em um parque de diversões e se encarrega do
carrossel, a atração principal do parque. Lá, ele conhece a bela jovem Julie Jordan, perde o
emprego, mas os dois se apaixonam e acabam se casando. Billy era um homem rude e abusivo
com sua mulher; no entanto, seu comportamento muda quando ele descobre que vai ser pai. A
famosa canção Soliloquy expressa essa extraordinária mudança, como também revela a magnífica
voz de John Raitt, no papel do protagonista. Incapaz de se adaptar em outro emprego a não ser no
carrossel e dada à necessidade de sustentar o filho por nascer, Billy participa de um assalto e é
pego. Para não ser preso, ele comete suicídio. Anos depois, Billy retorna do céu à terra por um dia,
a fim de ajudar sua filha e mulher a seguirem com as suas vidas.
45
As canções If I Loved You, You'll Never Walk Alone tornaram-se "clássicos" inesquecíveis do
repertório do teatro musical.
36

St. Louis Woman, Call Me Mister (1945) e, posteriormente, Finian's Rainbow,


com temas morais e sociais (PBS: 2004, disc 2, episode 4, Carousel).
Nessa época, os escritores da Broadway sentiam a pressão de escrever uma
musical play. Com sua sólida e vasta experiência no teatro, Rodgers e
Hammerstein, conhecedores do show business, tornaram-se produtores para que
ambos pudessem controlar seu próprio trabalho e ampliar seu espectro
profissional. Assim, eles se dispuseram a correr riscos em produções como Annie
Get Your Gun (1946). Segundo o escritor Phillip Furia (PBS: 2004, disc 2,
episode 5, Annie Get Your Gun), a ideia da história sobre a atiradora Annie
Oakley veio de Dorothy Fields, escritora do texto, em parceria com Herbert
Fields. Rodgers e Hammerstein aceitaram o desafio e convidaram o compositor
Irving Berlin para escrever a música. Embora Berlin tivesse encantado o público
americano com sua música por toda uma geração, ele não tinha certeza se poderia
se adaptar ao novo estilo de um musical integrado, que ele chamava de situation
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show. No entanto, a pedido dos produtores, Berlin aceitou levar o script para uma
leitura durante o fim de semana. Logo na semana seguinte, ele apareceu com três
canções: Doin' What Comes Naturally, You Can't Get A Man With A Gun, e They
Say It's Wonderful.
Annie Get Your Gun (1946) produziu oito canções de sucesso; uma delas,
There's No Business Like Show Business acabou se tornando o "hino" não oficial
do musical americano. Apesar da reação negativa dos críticos que consideraram a
música como "antiquada", o musical teve 1.147 performances em Nova York,
uma companhia em tournê estrelando Mary Martin e foi sucesso absoluto também
em Londres por quatro anos (BORDMAN, 1982). Esse foi também o mais longo
sucesso de Ethel Merman, a dama do teatro musical americano, e até os dias de
hoje, continua sendo um dos musicais mais reapresentados da década de 1940.
Nos últimos anos da década de 40, novos talentos criativos foram surgindo
e obtendo popularidade acompanhando as realizações de Rodgers e Hammerstein.
Vários musicais notáveis, populares por muitas décadas, foram aos palcos dos
quais dois deles, Finian's Rainbow e Brigadoon, ambos de 1947, merecem ser
mencionados. Finian's Rainbow foi o primeiro musical a lidar abertamente com o
tema do preconceito racial, embora em tom divertido, provando que um musical
poderia funcionar como uma válvula de escape para a sátira social (KENRICK:
2008; 80). Ao publicar o texto, seus autores colocaram o subtítulo A Musical
37

Satire by E. Y. Harburg & Fred Saidy, declarando expressamente a intenção do


libretista e do letrista (JONES, 2003)46. Com música de Burton Lane, as canções
How are Things in Glocca Morra, Look to the Rainbow e That Old Devil Moon
tornaram-se populares instantaneamente, tornando esse musical um sucesso
absoluto.
Brigadoon (1947)47, uma fantasia musical ambientada na Escócia, leva a
dupla Alan Jay Lerner e Frederick Loewe48 às alturas. A fantasia e o encanto
evocados na história, juntamente com o texto poético de Lerner e a música
extremamente feliz e adequada de Loewe, continuam irresistíveis até hoje,
obtendo sempre o mesmo sucesso em suas reapresentações no teatro, filme ou
televisão. Muitas das canções de Loewe revelam intencionalmente um toque
escocês de temas folclóricos: Come To Me, The Heather on the Hill, Waitin' for
My Dearie. Em contrapartida, a canção principal, Almost Like Being In Love, um
dos maiores sucessos de 1947, é reconhecivelmente típica da Broadway, o que já
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demonstrava o distanciamento de Loewe de seu forte maneirismo vienense. No


entanto, o mais importante sobre estas canções, independentemente de suas
características, é a maneira pela qual o espírito da fantasia da peça foi captado e
realçado. Nessa mesma direção, as três notáveis sequências de ballet,
coreografadas por agnes de Mille, devem ser igualmente mencionadas. O
reconhecimento da importância desse musical se deu ao receber o prêmio de

46
A história é sobre um irlandês que, após roubar um pote de ouro dos duendes, vem para América
com sua filha para enterrá-lo na região de Fort Knox e recomeçar uma nova vida. Seu pensamento
era de que, plantado naquele solo, o pote iria crescer e torná-lo milionário. Atrás do irlandês, desde
a Irlanda, um duende o segue tentando recuperar o pote, pois o roubo estaria causando a perda dos
poderes mágicos de todos eles. Este ser da fantasia descobre o amor humano, e embora fosse
perdendo seus poderes, consegue ainda, travessamente, transformar um senador racista em um
negro.
47
A peça conta a história de dois americanos, Tommy Albright e Jeff Douglas, que saem para
caçar nas Terras Altas da Escócia e se perdem. De repente, os dois vêem um vilarejo que não se
encontrava no mapa e decidem conhecer a pequena vila. Essa vila somente surgia por um dia a
cada cem anos, fruto de um milagre concedido por Deus ao ministro de Brigadoon, que, já idoso,
temia pelo futuro de seu povo e pelas influências malignas do mundo sobre ele. Cansado da vida
sem sentido que levava em Nova York, Tommy se apaixona pela bela Fiona e sente-se feliz no
lugar, enquanto Jeff, não acreditando em milagres, não gosta da vida provinciana e só pensa em
partir dali. Tommy com medo de abrir mão de tudo e ali ficar, decide voltar com Jeff no final do
dia e vê o vilarejo desaparecendo nas brumas da Escócia. De volta a Nova York, ambos não se
readaptam às suas vidas. Tommy, não consegue esquecer sua amada Fiona e, em um momento de
ímpeto, os dois decidem voltar ao mesmo lugar na Escócia. Brigadoon reaparece novamente e
Tommy reencontra Fiona e lá permanece, enquanto seu amigo vê o vilarejo se evaporar outra vez
no ar.
48
Autores de My Fair Lady (1951).
38

melhor produção musical daquele ano, honra esta concedida pela primeira vez ao
gênero pelo The Drama Critic's Circle Award.
O ano de 1948 terminou com a comédia musical Kiss me Kate de Cole
Porter, que, instantaneamente, tornou-se um sucesso. Baseado na história de A
Megera Domada de Shakespeare, as críticas exaltaram o espetáculo. Kiss me Kate
foi o primeiro musical a receber The Antoinette Perry Award. A balada So in Love
tornou-se um clássico e, até hoje, é utilizada para testes de musicais nos Estados
Unidos. De acordo com Lerner (1986;172), esse musical foi não somente uma
obra prima de Porter, mas uma obra prima do teatro musical.
Somente quatro meses mais tarde, a Broadway veria outro musical de
igual estatura: South Pacific, de Rodgers e Hammerstein. Baseado nos Tales of
the South Pacific de James Michener, e com um enredo49 extremamente bem
elaborado e canções de muito bom gosto e facilmente assimiláveis como Some
Enchanted Evening, Younger than Springtime, Bali Ha'i e I'm in Love with a
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Wonderful Guy, o musical foi uma sensação criando uma demanda sem
precedentes por ingressos (KENRICK: 2008; 92).
Os anos 40 acolheram grandes mudanças no teatro musical, seja como
uma "forma de arte" ou como negócios. A II Guerra Mundial deu novo fôlego à
economia americana e grandes musicais surgiram ao longo da década,
especialmente após Oklahoma! que, de certa forma, redefiniu o gênero.
Uma vez no contexto da fase madura do musical americano, cabe-nos
iniciar uma reflexão que privilegie a forma e a construção de letras de um
musical, mas notemos que é quase impossível discutir forma sem observar o
conceito que está por trás de uma criação.
No final dos anos quarenta, os compositores de teatro começaram a
arriscar mais. Allegro (1947), de Rodgers e Hammerstein, tentou quebrar o molde
da canção AABA, introduzindo um coro grego para comentar a ação. O musical
não foi bem sucedido, mas a ousadia na renovação da estrutura não passou
despercebida. Em 1948 Benjamin Britten trouxe à Broadway Rape of Lucretia,
uma ópera baseada na peça Le Viol de Lucrèce, do inglês André Obey. O trabalho
mais sofisticado até o início da nova década havia sido Kiss Me Kate, que, embora

49
O enredo girava em torno de duas histórias de amor, ameaçadas por preconceitos raciais durante
o período da II Guerra Mundial. Estrelado por Mary Martin e Ezio Pinza, o renomado baixo da
Metropolitan Opera House, South Pacific foi o segundo musical a ganhar o Pulitzer Prize for
Drama, o Drama Critic's Award e o Tony Award como o melhor musical da temporada.
39

tenha tido a sua cota de canções comerciais (Another Op'nin', Another Show; So in
Love; Wunderbar — todas em estrutura AABA), foi capaz de capturar em uma
música como I Hate Men! a inventividade shakespeariana. Para o mesmo musical,
Cole Porter criou um pseudo-elisabetano soneto de amor com versos como "Were
Thine That Special Face” e “Where Is the Life That Late I Led?”, inovando para
além da fórmula com um série de dísticos que transitam entre o antigo e o
contemporâneo:

Where is the life that late I led?


Where is it now? Totally dead!
Where is the fun I used to find?
Where have they gone? Gone with the wind! 50
A married life may all be well,
But raising an heir could never compare
With raising a bit of hell!
So I repeat what first I said,
Where is the life that late I led?51
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"I've Come to Wive it Wealthily in Padua," outra canção de enredo, usa


um limerick52 para o seu refrão:

I've come to wive it wealthily in Padua,


If wealthily then happily in Padua
If my wife has a bag of gold
do I care if the bag be old?
I've come to wive it wealthily in Padua.53

Configurando uma forma totalmente nova, Porter cria uma longa série de
dísticos rimados (repetindo a mesma melodia) para explicar por que o herói
chegou a Pádua. . .

I heard you mutter, "Zounds! A loathsome lad you ah!"


I shall not be disturbed one bit
If she be but a quarter wit,
If she only can talk of clo'es
While she powders her goddam nose!

50
Pronunciado de forma a rimar com “find”, aos moldes da poesia Elizabetana.
51
(http://www.allmusicals.com/lyrics/kissmekate/whereisthelifethatlateiled.htm. acesso em
20/05/2010)
52
Limerick é uma letra ou poema espirituoso, composto de 5 versos. Seu nome vem de Limerick,
cidade da Irlanda. Os dois primeiros versos rimam com o quinto verso. Os terceiro e quarto rimam
entre si. O dia de Limerick (Limerick Day) comemora o aniversário do escritor Edward Lear
(1812-1888), que popularizou a forma em 1846, em seu livro Book of Nonsense.
53
(http://www.allmusicals.com/lyrics/kissmekate/ivecometowiveitwealthilyinpadua.htm. acesso
em 20/05/2010.)
40

(…)
'Twouldn't give me the slightest shock If her
knees now and then should knock, If her
eyes were a wee bit crossed, Were she
wearing the hair she'd lost, Still the damsel
I'll make my dame, In the dark they are all the same. 54

E o autor conclui a música com um refrão:

With a nunny, nunny, nunny and a hey, hey, hey,


Not to mention money, money for a rainy day.
I've come to wive it wealthily in Padua!55

Os exemplos acima expostos ilustram que a regra básica é não considerar a


forma como uma barra de ferro, uma vez que pode ser moldada a serviço do
conceito.
A estreia de South Pacific (1948) coincidiu com o advento da gravação de
músicas em um Long Play, e, pela primeira vez, o público pôde levar para casa
em um único disco praticamente todas as canções de um show. As seleções de
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programas de sucesso haviam sido registradas em acetato, mas estas gravações


eram frágeis e complicadas. Girando em 78 rpm, ficavam frequentemente cheias
de ruído de superfície. A nova gravação em 33 rpm abriu um novo mundo de mais
fácil compreensão, armazenamento e preservação. O desenvolvimento desta
maneira mais simples de gravação foi mudar o sistema de gravações de marketing
e de influenciar a futura criação de músicas e letras de forma tremenda. South
Pacific, com a sua trilha sonora extremamente longa e bem sucedida, não
acrescentou nenhuma mudança à forma teatral, mas abriu novos caminhos no
teatro musical, expondo o preconceito como um valor sem sentido56.

1.5
A década de 1950 – The Golden Age

Este foi talvez o período mais rico e mais produtivo que o teatro musical
americano já conheceu. Os nomes dos shows que estrearam nesta década nos

54
Ibid.
55
(http://www.allmusicals.com/lyrics/kissmekate/ivecometowiveitwealthilyinpadua.htm. acesso
em 20/05/2010.)
56
O musical ainda apresentou uma canção, You've Got to Be Carefully Taught, que sutilmente
trouxe à tona a mensagem de que os preconceitos não são inatos, mas adquiridos.
41

remetem a um baú de ideias musicais e uma grande liberdade de forma: Guys and
Doll, The King and I, Wonderful Town, Kismet, The Golden Apple; The Pajama
Game, Fanny; House of Flowers; Silk Stockings; Damn Yankees; My Fair Lady;
The Most Happy Fella; Bells Are Ringing; Candide; West Side Story; The Music
Man; Gypsy; The Sound of Music.
A década começou com uma das obras-primas do teatro musical, Guys and
Dolls (1950)57.
No primeiro número, Fugue for Tinhorns, três jogadores de cavalo
argumentam em canon58 sobre os méritos do cavalo favorito de cada um. Apesar
da sobreposição, podemos compreender tudo. Loesser escolheu um estilo musical
argumentativo alcançado através do contraponto. Um personagem não pode
terminar sua fala antes que o outro inicie a sua; Benny começa seu discurso sobre
Valentim, enquanto Nicely ainda está cantando sobre Paul Revere. As letras soam
verdadeiras, porque este estilo nos remete ao jargão das locuções de corridas de
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cavalos:

Nicely: I got the horse right here


His name is Paul Revere,
And there's a guy who says
if the weather's clear
Can do, Can do Benny: I'm picking Valentine
Cause on the morning line
This guy has him figured at
five to nine.
Has chance, has chance.59

Se Fugue for Tinhorns nos dá insights sobre a psiqué das personagens-


apostadores de corrida, Oldest Established Permanent Floating Crapgame in New
York nos dá uma visão dos protagonistas (ao estilo ionesco)60 jogadores de
pôquer. Na canção seguinte, I'll Know, o título nos sugere uma balada romântica,
e é exatamente isso que nós temos, mas uma non sentimental. Adelaide’s Lament
se tornou uma cena clássica de música cômica construída sobre uma sólida

57
Book de Jo Swerling e Abe Burrows, letra e música de Frank Loesser, baseado nas personagens
criados por Damon Runyon.
58
Canon ou corner é uma composição musical na qual duas ou mais vozes cantam exatamente na
mesma melodia, porém iniciam o canto em intervalos diferentes ou no mesmo, variando a letra.
59
(http://www.lyricsmania.com/fugue_for_tinhorns_lyrics_guys_and_dolls.html acesso em
23/05/2010)
60
“para um texto burlesco, uma interpretação dramática; para um texto dramático, uma
interpretação burlesca‟‟
42

fundação psicossomática. Adelaide, que namora (aguarda o casamento) há 14


anos com Nathan Detroit, tenta descobrir as razões de seus espirros frequentes. A
música está em ritmo lento e normalmente é cantada em suspensão, e palavras
como Brooklynese são mal pronunciadas. Há três estrofes e três refrões e, ao
contrário das canções de Cole Porter ou de Larry Hart, onde refrões sucessivos
parecem repetitivos, Loesser cria estrofes mais divertidas. Ele rima "post nasal
drip" com "la grippe," e nos diverte com "from a lack of community property, and
a feeling she's getting too old,/ a person can develop a bad, bad, cold!"
Uma leitura da primeira estrofe e refrão evidencia a forma ousada de
Adelaide’s Lament:
Estrofe:
The average unmarried female, basically insecure
Due to some long frustration may react
With psychosomatic symptoms, difficult to endure
Affecting the upper respiratory tract.
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Refrão:
In other words,
Just from worrying whether the wedding is on or off,
A person can develop a cough.

And further more just from stalling and stalling and stalling the wedding trip,
a person can develop La grippe.
[…]
A person can develop La Grippe, La Grippe, La post-nasal drip,
With the wheezes, and the sneezes, and the sinuses really a pip!
From a lack of community property and a feeling she's getting too old,]
A person can develop a big, bad cold!61

The King and I (O Rei e Eu), de Rodgers e Hammerstein de 1951, nos


conta sobre a relação que se desenvolve entre uma tutora Inglesa e o teimoso rei
do Sião. A peça pouco acrescentou para a evolução da forma do musical
americano, mas deu à heroína a chance de cantar o tipo de solilóquio que essa
dupla escrevia tão bem. Em Shall I Tell You What I Think of You?, a forma está a
serviço da raiva da professora:

Anna:
Your servant! Your servant!
Indeed I'm not you servant --
Although you give me less than servant's pay --

61
(http://www.allmusicals.com/lyrics/guysanddolls/adelaideslament.htm acesso em 20/05/2010).
43

I'm a free and independent employ (pronunciada "employay")...


employee.

Because I'm a woman


You think, like ev'ry woman
I have to be a slave or concubine.
You conceited, self-indulgent libertine! ... (pronunciada "liberteen")
libertine!62

Em Hello, Young Lovers, no momento em que Anna relembra seu falecido


marido Tom, nos é dado um verso longo, típico de operetas, já em desuso. Este,
porém, é verdadeiramente poético:

I remember this,
And I always will...
There are new lovers now
On the same silent hill,
Looking on the same blue sea.
And I know Tom and I are a part of them all --
And they're all a part of Tom an me.
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Hello young lovers, whoever you are,


I hope your troubles are few.
All my good wishes go with you tonight,
I've been in love like you.63

Embora a história deste musical se passe no exótico Sião, a forma da


maioria das músicas não poderia ser mais Broadway (AAABABAC).
Kismet(1953), cujas melodias de Borodin foram adaptadas por Wright e
Forrest, embora tenha mantido o sentido comercial, devido às melodias de forma
estranha do compositor russo, permitiu que suas letras usufruíssem de uma maior
liberdade formal.
A ópera praticamente ressurgiu com The Golden Apple, The Consul,
Candide, West Side Story e The Most Happy Fella. Todos esses privilegiaram a
combinação de ária com música popular. Lerner e Loewe, em My Fair Lady
(1956), reuniram todos os gêneros musicais típicos de um show: pop song (On
the Street Where You Live); ária (Just You Wait, 'Enry 'Iggins); solilóquio (Why
Can't the English Learn to Speak?; Let a Woman in your Life); trio (The Rain in
Spain); música para dança (Get Me to the Church on Time); gavota (The Ascot

62
(http://www.stlyrics.com/lyrics/thekingandi/shallitellyouwhatithinkofyou.htm. acesso em
20/05/2010)
63
(http://www.stlyrics.com/lyrics/thekingandi/helloyounglovers.htm acesso em 20/05/2010)
44

Gavotte); valsa (The Embassy Waltz); música para sapateado (With a Little Bit of
Luck). Este show representou a fruição gloriosa da teatro musical integrado. A
coesão da trama, baseada em Pygmalion, de George Bernard Shaw, e a maneira
como as canções são integradas à história definiram um modelo para todos os
musicais que ainda viriam. Como Shaw viveu em Londres na virada do século,
um momento de convulsão social, Alan J. Lerner concebeu a história (e grande
parte dos títulos das músicas) a partir do conceito de soapbox64 (comício), típico
do período. Há várias situações divertidas: quando o bacharel e especialista em
linguística Henry Higgins pergunta: "why can't a woman be more like a man?" ou
quando o aproveitador Doolittle dá ao público a sua receita para evitar o
trabalho, With a Little Bit of Luck:

Alfred The Lord above gave man an arm of iron


So he could do his job and never shirk.
The Lord gave man an arm of iron-but
With a little bit of luck, With a little bit of luck,
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Someone else'll do the blinkin' work! The three


With a little bit...with a little bit...
With a little bit of luck you'll never work!65

Desde o início da criação de My Fair Lady ficou decidido que o papel do


Prof. Higgins seria interpretado por um ator em vez de um cantor. Rex Harrison
falava/cantava os versos suavemente. Depois dessa experiência, foi possível
lançar estrelas no papel principal para garantir a bilheteria. Compositores,
principalmente letristas, tiveram que criar para os astros canções faladas em que
se imprimia um ritmo, para que o público não percebesse que suas vozes não
possuíam timbre ou potência. Jule Styne, que compôs para Gypsy; Meredith
Wilson, que escreveu Music Man; Frank Loesser, que escreveu The Most Happy
Fella; e Leonard Bernstein, que compôs a música para West Side Story e Candide,
antes da década terminar, não fizeram coro a tal procedimento. Suas trilhas
precisavam de cantores com vozes possantes. Na busca por melodias crescentes e

64
Soapbox é uma plataforma elevada sobre a qual alguém sobe para fazer um comício. A origem
do termo vem da época em que os oradores subiam em caixotes de madeira usados originalmente
para carregamentos de sabão ou outros mantimentos secos do fabricante para o revendedor.
65
(http://www.stlyrics.com/lyrics/myfairlady/withalittlebitoluck.htm acesso em 01/06/2010)
45

enredos realísticos, todos eles tentaram fugir da forma canônica ABAB or AABA.
Nestes musicais, eles foram bem sucedidos.

1.6
A década de 60

Nos anos 60, o musical tradicional da Broadway perdeu o compasso,


quando o rock, os movimentos de luta pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã
começaram a afetar profundamente a cultura americana. Mas, desde West Side
Story (1957) (Amor, Sublime Amor) uma nova geração de talentos criativos
começou a repensar o musical. Assim, compositores como Stephen Sondheim,
John Kander e Fred Ebb junto com diretores como Harold Prince, Bob Fosse e
Michael Bennett criaram novos trabalhos impressionantes, novos sons e um
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ousado novo paradigma para a Broadway.


O que Sondheim mais gosta em West Side Story é “ser uma mistura de
música, literatura, dança e poesia.” (PBS: 2004, disco 4, episódio 5, Tradition) O
tipo de coreografia que se vê, não é balé, nem dança tradicional de um musical,
mas a própria ação em movimento. A coreografia de Jerome Robbins é o símbolo
de sua autoria no show, pois há um casamento dos movimentos da dança com a
história, algo novo no teatro musical. O coreógrafo teve a dupla função de dirigir
e coreografar um musical da Broadway. Isso já havia sido feito antes dele; Agnes
de Mille, por exemplo, aplicou a ideia da sequência do dream ballet de
Oklahoma! em todo a peça.
Nos anos 50, ao mesmo tempo em que deixava a sua marca na Broadway,
em trabalhos como The King and I (O Rei e Eu) e Peter Pan, o coreógrafo Jerome
Robbins também desenvolvia um projeto particular, adaptar Romeu e Julieta, de
Shakespeare, para um musical. Com a colaboração de Arthur Laurents, que
escreveu o book, e do compositor Leonard Bernstein, a tragédia ganhou vida entre
gangues rivais de Nova York. A temática foi inovadora. Morte, estupros e
assassinatos passaram a ser vistos em musicais. Ao mesmo tempo, a música de
Bernstein também era incomum em um musical. Era uma composição sinfônica
com uma vitalidade, uma energia e uma originalidade típicas do sincretismo
norte-americano. Jonathan Sheffer, compositor, afirma que “o espetáculo é levado
46

pela música, é intenso do início ao fim, é uma mistura de Wagner, Stravinsky,


Mahler, mambo e Broadway.” (Ibid.).

Rosalia:
Puerto Rico, You lovely island,
Island of tropical breezes.
Always the pineapples growing,
Always the coffee blossom blowing.

Anita:
Puerto Rico, You ugly island,
Island of tropic diseases.
Always the hurricanes blowing,
Always the population growing,
And the money owing,
And the babies crying,
And the bullets flying.
I like the island Manhattan.
Smoke on your pipe and put that in!

Girls sans Rosalia:


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I like to be in America!
O.K. by me in America!
Ev'rything free in America
For a small fee in America!
(…)
Girls sans Rosalia:
Immigrants goes to America.
Many hellos in America.
Nobody knows in American,
Puerto Rico's in America!66

A partir de West Side Story, atores deveriam, além de atuar, cantar e


dançar.
O espetáculo também uniu dois ambiciosos e talentosos amigos: o
produtor de 29 anos Harold Prince, que desejava atuar como diretor, e o letrista de
27 anos, Stephen Sondheim, que queria se tornar compositor. Ainda levaria 13
anos para que Prince dirigisse um espetáculo de Sondheim. Mas juntos, eles
repensariam o que poderia ser cantado na Broadway.
Em 1959 foi a vez de Gypsy, estrelando Ethel Merman como uma
arrogante mãe do showbiz. 1964 foi um ano de viradas, no qual Barbra Streisand
imortalizou o papel de Fanny Brice em Funny Girl. Nesta mesma temporada,
Carol Channing estrelou o nostálgico Hello, Dolly. Mas o maior sucesso de 1964,

66
http://www.elyrics.net/read/w/west-side-story-lyrics/america-lyrics.html acesso em 03/06/2010.
47

que bateu o recorde de espetáculo que ficou mais tempo em cartaz na história da
Broadway foi o azarão Fiddler on the Roof (Um Violinista no Telhado). Baseado
no conto de Scholem Aleichem que descrevia um vilarejo de judeus na Rússia em
1905, esse foi o último trabalho original de Jerome Robbins para a Broadway. O
que funciona em O violinista é a ideia de trabalhar com a mudança de um estilo de
vida baseado em tradições. A partir desta visão, foi criado o número de abertura,
onde eram contadas para o público algumas das tradições judaicas. Mas, tradições
existem para ser quebradas, e poderíamos interpretar que tal ideia serviu de
metáfora para o fim de uma era nos musicais da Broadway, no estilo Rodgers &
Hammerstein, os quais passariam o bastão para o frescor dos novos que
começavam a surgir.
O advento do rock´n´roll empurrou o musical para fora do topo da cultura
americana, porque até então a música da Broadway sempre alcançava o topo das
aparadas de sucesso do país, mas isso começou a mudar e pelo final da década de
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60 já era fato consumado.


Em maio de 1964, a interpretação de Louis Armstrong em Hello, Dolly
ficou uma semana no topo das paradas, batendo os Beatles após 3 meses
consecutivos nas paradas. Foi uma das últimas vezes no século 20 que a
Broadway colocou uma canção em primeiro lugar. (PBS: 2004, disco 4 episódio
2: Before the Parade Passes By)
Apesar da cultura mudar, a Broadway tentava ignorar os anos 60. No auge
da guerra do Vietnã, um musical típico poderia ser algo como How Now Dow
Jones, ou George M, shows como Promises, Promises, que não tinham
absolutamente nada a ver com as expressões culturais do momento. Foi isso o que
realmente decretou que o musical da Broadway perdesse a sincronia com a cultura
pop.
Por volta de 1966, protestos e passeatas tornaram-se uma presença
inevitável nos Estados Unidos. Harold Prince, agora diretor, foi inspirado por essa
luta pelos direitos civis enquanto preparava um novo trabalho com música e letras
de John Kander e Fred Ebb.
“Nosso país andava bem agitado quando comecei Cabaret. Eu trouxe uma
foto da revista Life, uma foto de duas páginas de uma gangue de rapazes arianos
nazistas rosnando para a câmera. E é claro que era no nosso país e mostrava-os
rosnando para uma coitada de uma menina negra. Então usei aquilo para afirmar
48

que, não importa onde você esteja, coisas terríveis podem acontecer”, relata
Harold Prince. (PBS: 2004, disco 4 capítulo 2, Cabaret)
Cabaret foi uma adaptação das Histórias de Berlim, escritas por
Christopher Isherwood, e de uma peça baseada nelas. O espetáculo mostrava a
dissipação de Berlim entre as guerras e a ascensão dos nazistas ao poder, contadas
por um mestre de cerimônias do Kit Kat Club.
“Eu estava no exército em 1949 na Alemanha. Eu fui a um pequeno clube
noturno chamado Maxime‟s que era no sótão de uma igreja bombardeada e lá
havia um apresentador minúsculo com batom nos lábios, cílios postiços e blush
para esconder a verdadeira idade.67
Um show, que, a primeira vista, parecia ser cantado em alemão. Seu
ambiente era de uma sexualidade andrógina que deixava o público impactado.
A maioria das pessoas achou péssima a ideia de um musical sobre a
Alemanha nazista, mas Prince, Kandr, Ebb e Joe Masteroff tinham essa visão
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sombria e eles encontraram um formato em termos de música de cabaré no qual os


números musicais comentavam sobre a ação. No palco dois cenários se
alternavam, o dos quartos reais e o limbo, e neste último é que aconteciam os
números que indiretamente comentavam sobre a história no palco. Na metade do
segundo ato, Sally Boowes deixa o mundo real, atravessa uma cortina prateada,
entrea no mundo fictício do limbo e canta Cabaret. Ao final da canção, ela sai e
resolve fazer um aborto. O que ela descobre no início da canção é que ela está
grávida. A sua decisão ao final da canção é que ela não deseja o bebê. Era um
assunto bem forte para um musical da Broadway.
Em seu livro The American Musical Theater, Gerald Boardman considera
a abertura de Hair (música de Gait MacDermot, letras de Gerome Ragni e James
Rado) em 29 de Abril de 1968, na Broadway, "em todos os aspectos comerciais,
históricos, estéticos (...) de longe o mais importante musical oferecido nesta
temporada, possivelmente nesta era." (2001; 723)
A profunda ruptura causada pela Guerra do Vietnã levou o público
americano a ter consciência de que eles eram parte dessa guerra terrível, e que não
poderiam sair como vencedores, afinal, era uma guerra provavelmente injusta. Na
música e no teatro ouviam-se protestos contra a guerra, e isso abalou a cultura.

67
Inspiração para a personagem Emcee, o mestre de cerimônias que canta Willkommem.
49

Em 1967 a guerra do Vietnã e os protestos contra ela polarizavam o país. Dois


jovens atores, Gerome Ragni e James Rado focaram esse conflito em uma
proposta para um novo musical. Para apoiá-los, buscaram Joseph Papp, um
produtor inovador que havia acabado de criar o Public Theatre (Teatro do Povo),
com um espetáculo sem fins comerciais no centro da cidade. Conhecido por
apresentar Shakespeare no Central Park, Papp também era conhecido no teatro
contemporâneo.
“O Vietnã era um ponto importante do espetáculo”, declara Galt
MacDermot, compositor de Hair, mas o tema central não era a guerra realmente,
era o estilo de vida. Parecia ser mais sobre os hippies, sobre deixar o cabelo
crescer, usar roupas diferentes.” ( PBS: 2004, disco 4, episódio 3, Let the
Sunshine In)
A trama de Hair é uma verossímil combinação de problemas. Preconceito
étnico, homossexualismo, amor livre, pobreza e drogas pesando sobre as cabeças
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das personagens, muitas vezes, sem motivação, mas o suficiente para permitir que
as fortes canções com palavras de protesto pudessem brilhar. A verdadeira força
de Hair é a sua trilha musical, rica em melodias, um show completamente
contemporâneo em seu conceito e em suas letras, orquestradas para permitir que o
som do rock brilhasse e caísse nos ouvidos da plateia, a maioria formada por um
público que possuía o dobro da idade dos criadores desse musical. Pela primeira
vez, uma peça representante da contracultura, porta-voz da juventude, tinha
espaço na Broadway, e, apesar de Hair não possuir as rimas polidas dos mestres
letristas, tal fato tornou-se secundário. Na música Frank Mills, MacDermot
desloca uma prosa simples e a transforma em canção:

I met a boy called Frank Mills


On September twelfth right here
In front of the Waverly but unfortunately
I lost his address

He was last seen with his friend


A drummer, he resembles George Harrison of the Beatles
But he wears his hair
Tied in a small bow at the back

I love him but it embarrasses me


To walk down the street with him

He lives in Brooklyn somewhere


50

And wears this white crash helmet

He has golden chains on his leather jacket


And on the back are written the names
'Mary and Mom
And Hell's Angels'

I would gratefully appreciate it


If you see him, tell him
I'm in the park with my girlfriend
And please

Tell him Angela and I


Don't want the two dollars back
Just him68

Poucas canções utilizavam a o cânone ABAC ou AABA. A maioria


apresentou a forma do rock contemporâneo, com estrofe e refrão.
Company, apesar de estrear em 1970, traz um aroma de musical dos anos
60. Este é um dos primeiros musicais a categorizar a ideia de musical conceitual,
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cujo destaque é a importância de música e letra servindo de comentário sobre um


determinado momento na vida do protagonista, com a ação em segundo plano.
Também foi o trabalho mais ambicioso até aquele momento. Stephen Sondheim
compôs as canções e George Furth criou o book sem enredo. Ao contrário de
Hair, não foi uma tentativa de trazer um público apreciador de rock para o teatro,
mas procurou apelar para um grupo mais sofisticado intelectualmente, mais cool.
Suas letras e rimas eram plenas de alusões literárias e sua música não era
melodiosa, mas ultra-sofisticada.
No final dos anos 60, Stephen Sondheim já havia trabalhado em 6 shows
da Broadway. Depois das letras de West Side Story (Amor, Sublime Amor), veio
outro sucesso, Gypsy, e em seguida ele escreveu música e letras para uma série de
shows, incluindo A Funny Thing Happened on the Way to the Forum. Em 1970
Sondheim se juntou a Harold Prince em Company e levou os musicais para uma
nova era. O show era baseado em uma série de peças curtas de George Furth que
dramatizavam as realidades da vida de casado em Nova York. (PBS: 2004, disco
5, episódio 3, A City of Strangers)
O protagonista, um solteirão chamado Bobby, comemora o seu aniversário
de 35 anos na companhia de quatro casais, todos da classe média alta, os quais

68
http://www.elyrics.net/read/h/hair-lyrics/frank-mills-lyrics.html acesso em 01/06/2010.
51

vivenciam as suas relações matrimoniais, cada par com as suas idiossincrasias.


Todos desejam que Bobby se case, mas ele não parece desejar isso, ao menos por
enquanto. Mas, mesmo assim, ele confirma à plateia que está aberto ao amor na
canção final — Being Alive - , mostrando-se uma pessoa mais afável:

AMY: Blow out the candles, Robert, and make a wish. *Want* something! Want
*something*!

ROBERT:
Somebody, hold me too close,
Somebody, hurt me too deep,
Somebody, sit in my chair
And ruin my sleep
And make me aware
Of being alive,
Being alive.

Somebody, need me too much,


Somebody, know me too well,
Somebody, pull me up short
And put me through hell
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And give me support


For being alive,
Make me alive.

Make me confused,
Mock me with praise,
Let me be used,
Vary my days.
But alone is alone, not alive.69

Além do tema provocativo, Sondheim e Prince também desafiaram o


público desconstruindo o roteiro do musical, uma vez que não havia história
central. Harold Prince já havia experimentado em Cabaret um roteiro que era
linear e não linear simultaneamente, mas Company era totalmente não linear.
(PBS: 2004, disco 5, episódio 3, A City of Strangers)
Promises, Promises, com canções de Burt Bacharach and Hal David, e
book baseado no fime The Apartment, de Neil Simon, apresentou a única música
(além das de Hair) da década que chegou a ser um sucesso, I'll Never Fall in Love
Again, com um sopro de contemporaneidade.

69
http://www.allmusicals.com/lyrics/company/beingalive.htm acesso em 01/06/2010.
52

1.7
A década de 1970

Os custos subiram e os produtores não estavam mais dispostos a investir


dois milhões de dólares em um compositor ou letrista inexperientes. A Broadway
estava se tornando um lugar de revivals de musicais de grandes compositores, há
muito falecidos: Duke Ellington (Sophisticated Ladies), Thomas "Fats" Waller
(Ain't Misbehavin), Jerome Kern (Roberta), Vincent Youmans (No, No, Nanette).
Cantores famosos que poderiam lotar um estádio de 25 mil lugares em um único
show não assinavam contratos de seis meses de permanência em um musical. Eles
poderiam ganhar muito mais através da gravação de um álbum que se tornaria
recorde de vendas do que um produtor da Broadway poderia pagá-los. Muitos
foram para a indústria cinematográfica de Hollywood. Para compositores
tarimbados em estúdios de gravação, onde tinham total autonomia sobre seu
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próprio produto, seria insensato trabalhar em um projeto onde provavelmente


alguns produtores não-artísticos reorganizariam as suas letras, ou suas músicas
poderiam ficar à mercê de um diretor de dança e, possivelmente, de uma estrela
emergente.
Mesmo assim, houve tentativas de renovação. Depois do sucesso de Hair,
musicais de rock floresceram na década de 1970, Jesus Christ Superstar,
Godspell, The Rocky Horror Show e Two Gentlemen of Verona. Alguns desses
musicais começaram como "álbuns conceituais" e depois foram transformados em
filmes ou peças, como Tommy. Outros não tinham qualquer diálogo ou eram uma
reminiscência de ópera com drama, temas emocionais; por vezes, começavam
como álbuns conceituais e acabavam como óperas-rock. Outras direções também
foram apontadas. Shows como Raisin, Dreamgirls, Purlie, e The Wiz trouxeram
uma significativa influência afro-americana para a Broadway. Mais variados
gêneros e estilos musicais foram incorporados pelos musicais da Broadway e off-
Broadway.
O ano de 1975 trouxe um dos grandes musicais contemporâneos para o
palco. A Chorus Line surgiu do registro de sessões de grupo – na verdade
workshops – que o coreógrafo Michael Bennett conduzia com os gypsies –
dançarinos e cantores coadjuvantes em um musical - da comunidade da
Broadway. De centenas de horas de fitas gravadas, James Kirkwood Jr. e Nick
53

Dante confeccionaram um enredo sobre uma audição para um musical,


incorporando nele muitas das histórias de vida daqueles que assistiram às sessões.
Com música de Marvin Hamlisch e letras de Edward Kleban, A Chorus Line
estreou no Public Theater de Joseph Papp em Manhattan. A divulgação boca-a-
boca de que algo extraordinário estava prestes a explodir impulsionava as vendas
de ingressos e, depois da estreia, os críticos ficaram sem superlativos para
descrever o que eles haviam testemunhado. (PBS: 2004, disco 5, episódio 4, I
Need this Job)

Claramente, o público da Broadway estava ávido por musicais que se


desviassem do estilo e temática habituais. John Kander e Fred Ebb exploraram a
ascensão do nazismo na Alemanha em Cabaret e em Chicago, a era de proibição,
que contou com velhas técnicas do vaudeville para contar sua história de
assassinato e da mídia. Pippin, de Stephen Schwartz, foi ambientado na época de
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Carlos Magno. O filme autobiográfico de Federico Fellini 8 ½ se transformou em


Nine, de Maury Yeston, e Evita ofereceu ao público a mais séria biografia política
a que ele estava acostumado em musicais. No entanto, durante este mesmo
período, valores tradicionais ainda estavam abraçados em sucessos como Annie,
42nd Street, My One and Only.
Sondheim e Prince desafiaram as condições otimistas dos musicais. A
nostalgia do teatro tornou-se amarga em Follies, e uma opereta toda escrita em
tempo ¾ , A little Night Music, era carregada de ansiedade. Em 1979, eles
adaptaram o impensável para um musical da Broadway. Era uma história de
assassinato e canibalismo passada na Londres do século XIX. Sweeney Todd é um
conto desagradável sobre um barbeiro falsamente acusado e condenado por um
crime, que retorna a Londres buscando vingança. Ele se livra dos corpos das
vítimas com a ajuda de M. Lovett, que cozinha os suculentos pedaços de carne e
coloca-os em suas tortas.

(…)
LOVETT: Here we are, now! Hot out of the oven!
TODD: What is that?
LOVETT: It's priest. Have a little priest.
TODD: Is it really good?
LOVETT: Sir, it's too good, at least!
54

Then again, they don't commit sins of the flesh,


So it's pretty fresh. 70

A última fala do primeiro ato da peça diz „Eles caem nos braços um do
outro às gargalhadas”. (Idem) Essa é uma boa hora para se cantar. E do que eles
estão rindo? Da possibilidade de saber o sabor das pessoas.

(spoken) Now then, this might be a little bit stringy,


but then of course it's... fiddle player!
TODD: No, this isn't fiddle player -- it's piccolo player!
LOVETT: 'Ow can you tell?
TODD: It's piping hot!
LOVETT: Then blow on it first!
[…]
TODD:
The history of the world, my sweet --
LOVETT:
Oh, Mr. Todd,
Ooh, Mr. Todd,
What does it tell?
TODD:
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Is who gets eaten, and who gets to eat!


LOVETT:
And, Mr. Todd,
Too, Mr. Todd,
Who gets to sell!
TODD:
But fortunately, it's also clear
BOTH:
That [L: But] ev'rybody goes down well with beer!71

A visão sombria de Sondheim levou o musical a um lugar onde o público


pôde se identificar com uma história de assassinato e canibalismo. Conforme a
trilha se junta, árias alcançam o clímax, Sweeney Todd executa sua vingança
sobre a sociedade.

TODD:
And if you‟re beautiful what then
With yellow hair, like wheat
I think we shall not meet again,
My little dove, my sweet,
Johanna

70
http://www.allmusicals.com/lyrics/sweeneytodd/alittlepriest.htm acesso em 02/06/2010.
71
http://www.allmusicals.com/lyrics/sweeneytodd/alittlepriest.htm acesso em 02/06/2010.
55

ANTHONY:
I‟ll steal you, Johanna

TODD:
Goodbye, Johanna
You‟re gone and yet you‟re mine
I‟m fine, Johanna
I‟m fine72

Os musicais sempre tentaram manter o lado escuro da cultura fora dos


palcos. Sondheim foi o primeiro a tentar cantar sobre a escuridão. Sweeney Todd
seria a sua melhor expressão. (PBS: 2004, disco 5, episódio 6, He Trod a Path
that Few Have Trod)

1.8
De 1980 a 1990
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A década de 1980 e 1990 viu a influência dos "mega-musicais" europeus


ou "pop óperas," que geralmente apresentavam um score de influência pop,
grandes elencos e mega cenários notáveis pelos seus efeitos especiais, com a
queda de um candelabro em cena, ou um pouso de helicóptero no palco (Miss
Saigon). Muitos foram baseados em romances e outras obras de literatura. Os
escritores mais importantes dos mega-musicais incluem o time francês de Claude-
Michel Schönberg e Alain Boublil, responsável por Les Misérables. A equipe, em
colaboração com Richard Maltby Jr., continuou a produzir sucessos, incluindo
Miss Saigon (inspirado na ópera de Puccini Madame Butterfly).
O compositor britânico Andrew Lloyd Webber estava em cena com Evita,
baseado na vida da primeira-dama argentina Eva Perón, e agora Cats, musical
proveniente de poemas de T.S. Eliot. Estreavam também The Phantom of the
Opera (O Fantasma da Ópera), adaptação do romance de Gaston Leroux, Le
Fantôme de l'Opéra, e Sunset Boulevard (a partir do clássico filme de mesmo
nome). Várias dessas obras se apresentaram (ou ainda estão em execução) ao
longo de décadas em Nova York e Londres.
Os anos 90 viram também a influência das grandes corporações sobre a
produção de musicais. O mais importante foi a The Walt Disney Company, que

72
Ibid.
56

começou a adaptar alguns dos seus filmes musicais de animação para o palco,
como Beauty and the Beast (A Bela e a Fera) e The Lion King (O Rei Leão). A
Disney também criou produções originais como Aida, com música de Elton John.
Com a escala crescente (e custos) dos musicais, o estilo e a temática foram
ofuscados pelos grandes cenários, produtores não se arriscavam com novidades
estruturais ousadas. No entanto, muitos escritores romperam com este padrão e
começaram a criar em menor escala musicais aclamados pela crítica e bem
sucedidos financeiramente, como Falsetto, Passion, Little Shop of Horrors (A
Pequena Loja dos Horrores). Alguns destes têm sido observados como shows
imaginativos e inovadores (SHAW, 2007).
O custo dos bilhetes para a Broadway crescia em uma proporção para além
do orçamento de muitos espectadores, e a tendência era ter um público cada vez
menor para assistir os shows. Rent, musical de Jonathan Larson (baseado na ópera
La Bohème) foi comercializado para aumentar a popularidade dos musicais entre
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um público mais jovem e se tornou um sucesso. Seu público, estudantes que se


proclamavam Rentheads, formava uma fila interminável no Nederlander Theatre
na esperança de ganhar na loteria os bilhetes a U$20, alguns tendo assistido ao
show mais de 50 vezes. (BLANK, 2011)

1.9
Novo milênio

1.9.1
As tendências recentes

Nos últimos anos, percebe-se uma contenção em relação aos projetos


arrojados, produtores e investidores somente investem no que lhes parece familiar.
Espetáculos novos e inusitados apresentam geralmente um orçamento modesto:
Urinetown (2001), Avenue Q (2003), Spring Awakening (2006), In the Heights
(2007) and Next to Normal (2009). Mas a maioria tomou uma rota segura, com
revivals de tarifa familiar, tais como Fiddler on the Roof, A Chorus Line, South
Pacific, Gypsy, Hair, West Side Story e Grease, ou com histórias bem sucedidas
em outras mídias, tais como filmes (The Producers, Spamalot, Hairspray, The
Color Purple, Xanadu, Billy Elliot e Shrek) ou na literatura (The Scarlet
57

Pimpernel e Wicked). A apropriação de filmes animados, especialmente os da


Disney (como Mary Poppins e The Little Mermaid), tem sido considerada por
alguns críticos como uma redefinição da Broadway, em vez de uma saída criativa,
uma atração turística. (KENRICK: 2008; 306)
É menos provável hoje que um único produtor, como David Merrick ou
Cameron Mackintosh, apoie um musical. As empresas patrocinadoras dominam a
Broadway, e muitas vezes as alianças são formadas para musicais que exigem um
investimento de US$10 milhões ou mais. Normalmente, teatros off-Broadway e
regionais tendem a produzir musicais menores e, portanto, menos dispendiosos, e
o desenvolvimento de novos musicais tem tido cada vez mais espaço fora de Nova
York e, em locais menores. Spring Awakening (O Despertar da Primavera) foi
apresentado off-Broadway antes de ser lançado na Broadway.
Vários musicais voltaram ao formato espetáculo que foi sucesso nos anos
1980, como Phantom of the Opera (O Fantasma da Ópera), lembrando
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extravagâncias que foram apresentadas, às vezes, ao longo da história do teatro.


Exemplos são vistos nas adaptações musicais de Gone With the Wind (E o Vento
Levou, 2008) e The Lord of the Rings (O Senhor dos Anéis, 2007), o último dos
quais foi anunciado como a maior produção de palco na história do teatro musical.
As produções caras perderam dinheiro. Por outro lado, The Drowsy Chaperone,
The 25 Anual Putnam County Spelling Bee, Xanadu e outros são parte de uma
tendência a apresentar musicais da Broadway sem intervalo, com duração inferior
a duas horas. Os dois últimos, junto com obras como Avenue Q (Avenida Q),
também representam uma tendência a apresentações em menor escala.

1.9.2
Musicais Jukebox

Outra tendência tem sido a criação de uma trama mínima para atender a
uma coleção de canções que já foram sucesso. Após o êxito anterior de Buddy -
The Buddy Holly Story, vieram Movin' Out (2002, baseado no som de Billy Joel),
Jersey Boys (2006, The Four Seasons), Rock of Ages (2009, apresentando
clássicos do rock dos 1980) e muitos outros. Este estilo é muitas vezes referido
como musical jukebox. Semelhante, porém mais direcionados por uma trama,
surgem musicais baseados em torno do cânone de um grupo pop particular:
58

Mamma Mia! (1999, baseado nas canções do ABBA), Our House (2002, baseado
em músicias de Madness), and We Will Rock You (2002, sucessos do lendário
Queen).
O final do século XX e o início do novo milênio foram agraciados com
algumas mudanças sutis para a arte do teatro musical. Pode-se dizer que, na
primeira década do século XXI, o teatro musical se tornou verdadeiramente
global, graças à facilidade em se fazer viagens internacionais, à tecnologia da
informação, aos computadores e à Internet. Musicais americanos, de My Fair
Lady a Hairspray têm sido produzidos em dezenas de línguas e países diferentes.
Nem sempre foi assim. No século XIX, o sucesso internacional era restrito
principalmente a três culturas da Europa Ocidental: francesa, britânica e
austríaca/alemã. A França abriu o campo com Offenbach e seus pares, seguida
pela Grã-Bretanha com Gilbert & Sullivan, e a Alemanha com Strauss e Lehár. Os
poucos musicais americanos que foram exportados geralmente falharam, até que
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The Belle of New York se apresentou em Londres, em 1898. As duas guerras


mundiais inibiram a exportação do teatro musical, com um efeito balcanizador. A
proliferação de produções de My Fair Lady em países como Escandinávia, Rússia,
Israel e Japão, na década de 1960, potencializou o teatro musical territorialmente.
Há pouco tempo China e Coreia começaram a produzir musicais americanos com
elencos nativos e com tradução local. Agora, é possível fazer reservas de
ingressos para ver Rent na Coreia, A Little Night Music em Paris, Baby nas
Philippinas, Sugar em Bogotá, Zorba em Budapeste, Hair e La Cage aux Folles
(Gaiola das Loucas) no Brasil.
O papel do filme em relação ao teatro musical foi radicalmente redefinido.
Historicamente, após a introdução do som em 1927, filmes musicais foram mal
vistos pela indústria teatral, como a concorrência mais barata que o palco. Aos
poucos, houve uma evolução simbiótica desta relação, musicais bem sucedidos no
teatro descobriram uma segunda vida no filme, o qual possibilitaria a exibição do
musical ao redor do mundo e em cidades menores, onde a versão original – teatral
- não poderia ser produzida. Até peças consideradas menores, como Higher and
Higher, Murder at the Vanities or Paint your Wagon são lembradas hoje por
terem sido filmadas, mesmo que os filmes tenham modificado a concepção
original.
59

Hoje, muitos musicais são baseados em filmes de sucesso não-musicais,


refilmados como um musical (Kiss of the Spider Woman /O beijo da mulher
aranha, 1985), e talvez até mesmo adaptados para a televisão em uma versão
posterior. De fato, os revivals de West Side Story, The Sound of Music ou Grease
são muitas vezes obrigados a se apropriar da imagem visual de um filme ou
interpolar uma música que foi criada apenas na versão cinematográfica.
Produções como The Wizard of Oz, High Society e Xanadu costumam reproduzir
fielmente a aparência e o estilo vocal das personagens do cinema, a fim de não
contrariar a expectativa da audiência.
A primeira década do século XXI testemunhou um triste declínio no
predomínio do book bem elaborado com uma trilha sonora original composta para
o teatro (pondo de lado os leões do teatro musical, como Stephen Sondheim,
Harold Prince e John Kander e Fred Ebb). O surgimento concomitante de música
pop, rock e rhyth’m and blues como língua dominante do teatro musical é agora
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indiscutível. Para além do off-Broadway e The 101 Dalmatians Musical, a


temporada 2009-2010 da Broadway incluiu apenas dois musicais com trilhas
originais compostas para o teatro, The Adams Family (A Família Adams) e
Memphis, este último uma homenagem explícita ao som derivado do ritmo
familiar e blues de meados dos anos 1950, músicas que um novaiorquino deve ter
ouvido falar ou poderia ter ouvido na jukebox da época. Quer se trate da música
afrobeat de Fela!, do som de Sinatra em Come Fly Away, o vislumbre do início
do rock'n'roll de Million Dollar Quartet, ou o rock contemporâneo da banda punk
Green Day em American Idiot, é cada vez mais provável que os novos musicais
serão montados a partir de músicas preexistentes. Os produtores podem minimizar
seus riscos dando às audiências a música que elas conhecem; os novos
espectadores estão menos interessados ou talvez menos dispostos a absorver a
música nova e desconhecida. (O efeito benéfico de privilegiar a música popular
dominante no teatro musical contemporâneo é a sua capacidade de atrair um
público mais jovem.) E, no entanto, este fenômeno não é tão recente como ele soa.
O ragtime, o jazz e a invasão da música afro-americana na Broadway no início do
século 20 foram controversos em sua época, mas acabaram por ganhar aceitação
generalizada. Se o teatro musical sempre irá refletir a tendência musical de cada
geração, que assim seja!
60

Antigamente novos musicais eram testados ou experimentados em Boston,


Filadélfia, Chicago, Los Angeles e outras cidades com um público cativo fiel;
seus criadores aparavam as arestas do espetáculo na presença da audiência, com a
ajuda dos críticos locais. Como esse sistema de ensaio aberto desapareceu nos
anos 1960 e 1970 por razões de economia, Michael Bennett aperfeiçoou o
workshop (oficina) como uma ferramenta criativa para os novos musicais como
em A Chorus Line. Um dispositivo menos comum tem sido o álbum conceitual ou
ópera pop, em que o score é colocado em cima do palco, como foi em Jesus
Christ Superstar, Evita, Tommy ou American Idiot. Nas últimas duas décadas,
incubadoras alternativas têm surgido para o desenvolvimento de musicais novos.
Teatros regionais, paralelamente ao trabalho de produção da Broadway, agora
contratam dramaturgos residentes, acolhem competições de roteiros e recrutam
patrocinadores co-produtores, todos com um olho para a criação em Nova York.
Instituições como NYMF (New York Musical Theatre Festival) e NAMT
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(National Alliance for Musical Theatre) são apenas duas das muitas organizações
com essa finalidade. Os artistas vivos não estão obsoletos ou eclipsados, apenas
são incentivados pelas instituições, que apoiam ativamente a criação, em Nova
York, de novos dramaturgos, compositores e letristas.
É importante ressaltar, sem julgamentos, o surgimento no cinema e na
televisão de High School Musical em suas muitas edições, e agora a série Glee,
que são portais para o teatro musical para uma geração mais jovem, extremamente
importante para o teatro musical se o objetivo é desenvolver novos públicos,
atores, roteiristas e diretores, que podem levar o gênero para outras mídias,
YouTube, concertos de rock, jogos de computador, iPhones, e por novos formatos
de entretenimento que estão ainda por ser descobertos.

1.9.3
Relevância

A Liga da Broadway anunciou que na temporada 2007-08, 12.270 bilhetes


foram comprados para os espetáculos da Broadway por um valor de venda bruto
61

de quase um bilhão de dólares.73 A Liga informou ainda que durante a temporada


2006-07, cerca de 65% dos bilhetes da Broadway foram comprados por turistas, e
que 16% dos compradores eram turistas estrangeiros.74 (Estes números não
incluem teatros off-Broadway e off-off-Broadway.) Além disso, há um mercado
internacional de produtores de musicais particularmente ativo nos últimos anos.
No entanto, Stephen Sondheim foi pessimista:

“Você tem dois tipos de espetáculos na Broadway - revivals e o mesmo estilo de


musical que não se renova, todos espetáculos. Você compra seu bilhetes para The
Lion King com um ano de antecedência e, essencialmente, uma família ... passa
aos seus filhos a ideia de que isso é o que o teatro é - um espectáculo musical que
você vê uma vez por ano, uma versão teatral de um filme. Não tem nada a ver
com o teatro. Tem a ver com o que é familiar .... Eu não acho que o teatro vai
morrer per se , mas ele nunca vai ser o que era ....(agora) É uma atração turística"
(FRANK, 2000)

O sucesso do material original como Urinetown, Avenue Q, Spelling Bee e


In the Heights, bem como as apropriações criativas de filmes, incluindo
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Thoroughly Modern Millie, Hairspray, Billy Elliot and The Color Purple, e peças
que se tornaram musicais, como Spring Awakening, levam o historiador da
Broadway John Kenrick a escrever:

"O musical morreu? ... Absolutamente não! Está mudando? Sempre! O musical
tem mudado desde que Offenbach fez a sua primeira reescrita em 1850. E a
mudança é o mais claro sinal de que o musical é ainda um gênero vivo e
dinâmico. Será que algum dia voltaremos à chamada Golden Age, com musicais
no centro de cultura popular? Provavelmente não. O gosto do público sofreu
mudanças fundamentais, e as artes comerciais podem fluir apenas onde o público
pagante permite". (KENRICK, 2003)

73
Roush, Matt (June 30, 2008). "Exclusive: First Look at Joss Whedon's „Dr. Horrible‟".
TVGuide.com. http://www.tvguide.com/roush/Exclusive-Look-Joss-9886.aspx. Retrieved May
26, 2009.
74
Broadway League (November 5, 2007). "League Releases Annual „Demographics of the
Broadway Audience Report‟ for 06-07". Press release.
http://www.broadwayleague.com/index.php?url_identifier=press-releases&news=league-releases-
annual-demographics-of-the-broadway-audience-report&type=news. Consultado em 26 /05/2009.
62

2
Sondheim e o musical conceitual

Stephen Sondheim, celebrado por escrever musicais como Company, Into


the Woods, Sweeney Todd e Assassins, é por muitos considerado o criador do
musical conceitual moderno. Apesar das diferentes definições de musical
conceitual, é geralmente aceito que a forma incorpore um estado de espírito - ou
uma identidade específica - que se comunica com o público emocional e
intelectualmente.
As contribuições revolucionárias do compositor/letrista Stephen Sondheim
para o teatro musical têm sido criticamente debatidas tanto no meio acadêmico
internacional como na mídia impressa e digital. Entre os produtores, diretores,
atores, críticos e membros do público que respondem ao seu trabalho
regularmente, seus shows tornaram-se um tópico de complexas discussões sobre
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tema e estrutura no musical moderno. Por se tornar o objeto central deste debate
analítico, Sondheim tem contribuído para o aumento da imagem do teatro musical
como uma experiência intelectualmente estimulante. Para compreender melhor o
musical conceitual, elo estabelecido entre musical integrado e musical híbrido da
atualidade, é necessário assimilar com clareza essa ideia desenvolvida dentro da
"Era Sondheim," quando o teatro musical teria reforçado a sua identidade na
perspectiva da crítica e da teoria das artes dramáticas.

2.1
A evolução da forma

As definições de musical conceitual têm variado muito desde que o termo


se tornou popular na década de 1970, e a sua identidade tem evoluído ao longo
das últimas décadas em resposta à habilidade crescente das modernas audiências
para perceber o teatro musical plenamente desenvolvido, como uma expressão
teatral de forma madura. Ao longo da curta história da evolução do musical
conceitual, a forma tem incorporado a apresentação de uma ideia ou conceito em
construção para uma audiência.
63

É geralmente aceito que o precursor imediato do musical conceitual é o


musical integrado, que se tornou popular nos Estados Unidos durante a primeira
metade do século XX.
Em contraste com os vaudevilles e as revistas que dominaram o
entretenimento musical na virada do século, os musicais integrados evitaram o
formato plural das apresentações fragmentadas em favor do desenvolvimento
contínuo de um único número principal. O público de um musical integrado
poderia, assim, ter a visão linear de um espetáculo em que a música, roteiro e
dança se misturassem em prol de uma revelação harmoniosa do enredo principal e
das personagens associadas a ele (BORDMAN: 2001; 485). Os elementos
estruturais, tais como a coreografia e o underscoring poderiam, então, dar peso às
motivações das personagens e impulsionar a ação no palco, reforçando o enredo.
Gerald Bordman considera Showboat (1927), de Jerome Kern e Oscar
Hammerstein, um dos mais proeminentes exemplos deste tipo de musical. Em
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Showboat, um modo de vida é descrito e uma única história principal domina o


musical. Canções como Old Man River e Life Upon the Wicked Stage são mais do
que simples apresentações de vinhetas para o público, elas representam o papel
específico de cada personagem dentro da história e a maneira como eles
entrelaçam as suas vidas dentro do mundo da música como um todo. O público
pode assistir a tal produção e compreendê-la com base na relação causal dos
eventos sequenciais no palco e personagens que continuamente comunicam
sentimentos e ações através da música, fala e movimento. Por exemplo, quando
Julie canta Can't Help Man Lovin 'Dat, e Joe afirma que nunca ter ouvido alguém,
a não ser os negros, cantar essa canção, Julie revela a sua herança genética e a
canção simboliza o seu pertencimento a este determinado contexto. Sua
identidade é importante para a trama porque antecipa o seu destino, que é ser
abandonada devido ao preconceito étnico. Mais tarde, Julie reprisa Can't Help
Man Lovin 'Dat com mais emoção, pois neste momento já vivenciou o que só
conhecia na teoria, e isso significa uma evolução simultânea da personagem e do
enredo de um momento para o próximo no musical. Este tipo de interpretação do
enredo linear e desenvolvimento da personagem através da síntese de música,
canções, movimento e performance se tornou a marca registrada do musical
integrado em contraste com a estrutura episódica dos vaudevilles, das revistas e
dos melodramas musicais dos primórdios do século XX.
64

Com base neste fundamento, Rodgers e Hammerstein refinaram a técnica


de integração em Carousel (1945). Neste musical, o undescore foi utilizado em
um nível sem precedentes para possibilitar as transições ininterruptas da música
para a fala e vice-versa.
Essa ponte serviu para combinar padrões de canto e fala de uma forma
que, além de simplesmente revelar a natureza da personagem e do enredo,
avançou estes elementos dentro das canções. Ou seja, desde Carousel, as
personagens no palco não mais iriam simplesmente revelar suas relações e
sentimentos para o público através da música, elas iriam realmente utilizar as
músicas para o avanço dessas relações e da história. Martin Gottfried (1993; 28)
fornece uma análise detalhada da "cena do banco", considerada por ele um marco
no avanço em tempo real do enredo e tema, fazendo uma analogia com o "teatro
lírico", no qual o texto falado é integrado com o verso cantado, permitindo que
palavras e letras não sirvam apenas para transmitir uma relação, mas para fazer
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avançar esta relação. Aqui, Julie Jordan e Billy Bigelow descobrem um amor
recíproco alternando fala e canto, apresentando ao público musicalmente suas
nuances e seus comentários descritivos em conjugação com o avanço em tempo
real do enredo através da música If I Loved You. Ao final da cena musical, o
relacionamento das personagens avançou para um nível diferente do inicial.
Simultaneamente, a letra da música ilustra a evolução de um dos temas principais
do show - o conceito condicional de if e seu papel na definição dos sonhos das
personagens e seus desejos românticos. O público é, então, capaz de reagir com a
constante evolução das personagens e da história enquanto refletem sobre o tema,
uma vez que todos esses elementos podem ser desenvolvidos simultaneamente
através de uma única canção. Em tempo real o avanço da trama e dos temas
explorados no musical foram, portanto, os elementos condutores dentro deste
tempo. Músicas, letras, falas e movimento se unem para contribuir para o avanço
da trama e reforço do tema. Até a década de 1940, foi este tipo de enredo baseado
no espetáculo "integrado" que encarnou a imagem do musical moderno.

Julie
[spoken]
But you don't!

Billy
No, I don't!
65

[sung]
But somehow I can see
Just exactly how I'd be
If I loved you,
Time and again I would try to say
All I'd want you to know.
If I loved you,
Words wouldn't come in an easy way
Round in circles I'd go!
Longin' to tell you,
But afraid and shy
I'd let my golden chances pass me by!
Soon you'd leave me,
Off you would go in the mist of day,
Never, never to know
How I loved you
If I loved you.

[spoken]
Aha...I'm not the kinda fella to marry anybody!
No, even if a girl was foolish enough to want me to,
I wouldn't!
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Julie
Don't worry about it, Billy!

Billy
Who's worried?

Julie
You were right about there bein' no wind.
The blossoms are comin' down by theirselves.
Just they're in time to, I reckon.75

Em 1947 Rodgers e Hammerstein criaram novamente um marco formal:


Allegro, que é frequentemente creditado como o primeiro musical conceitual.76
Allegro conta a história de um médico de uma pequena cidade americana que vive
o dilema moral entre perseguir uma carreira promissora ou dedicar sua vida a
ajudar os pacientes menos afortunados. Este musical se destaca pelo fato de que o
estado de espírito ou o "conceito" do dilema moral, o desafio apresentado por esse
dilema se torna mais importante do que o enredo em específico ou qualquer
75
GOTTFRIED, 1993, p.28.
76
De acordo com Stephen Citron, "[Os críticos] de Allegro muitas vezes o citam como o primeiro
musical conceitual, ou um show escrito em torno de um tema" (2001;41). Alguns diretores
contemporâneos também têm essa visão, como mostrado pelo jornalista do Washington Post
Michael Toscano, janeiro de 2004, em entrevista com Eric Shaeffer, diretor artístico da
Arlington‟s Signature Theatre. Toscano Schaeffer cita que Allegro é o "primeiro musical
conceitual," um marco que contribuiu para justificar uma produção atualizada do show no
Signature Theatre (The Washington Post 2004/01/01).
66

característica da personagem. De acordo com Hammerstein, "Eu queria escrever


uma grande história universal" (GREEN: 1976; 274), na qual as personagens se
tornariam mais representativas do que individuais, permitindo que temas
universais se sobressaíssem aos elementos do enredo e do desenvolvimento das
personagens especificamente. O espetáculo, portanto, substitui a ideia de
integração para o domínio conceitual, uma vez que a prioridade foi a apresentação
de um tema universal - o dilema moral - para o público, oferecendo-lhe a
oportunidade de formar seus próprios comentários sobre as questões temáticas
levantadas. Ou seja, o público já não era solicitado para simplesmente seguir uma
trama linear e encontrar o sentido dentro dela quando aplicado a personagens
específicos, como em Carousel; agora o público era presenteado com uma ideia,
um conceito central, e solicitado a formar uma opinião baseada em seus
conhecimentos sobre a sociedade, uma vez aplicados ao mundo universal da
música. De acordo com o historiador musical Denny Martin Flinn, Allegro foi o
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primeiro musical a dar prioridade à ideia ou conceito, em vez de o enredo.


Nas palavras de Flinn, "[Allegro] define o rumo para Harold Prince e
Stephen Sondheim, pelos números de apresentação, pela fluidez, pelo conceito ..."
(1997; 234). Antes desse musical, a ênfase no teatro musical estava dentro da
integração dos elementos da música, dança, linguagem e temática, a fim de contar
uma história contínua. A partir de Allegro, no entanto, a ênfase maior é dada à
integração de música, dança, fala, o tema e a história em si, a fim de suportar um
modo central ou conceito. Após Allegro, então, a base em um enredo não era mais
uma condição sine qua non para um musical da Broadway, em vez disso, a
principal função do musical conceitual seria promover um clima ideológico
especial para o seu público, a criação de um formato que permitisse ao público
adotar uma perspectiva universal e, portanto, desenvolver suas próprias
observações com base nos temas apresentados.
O objetivo de favorecer a reflexão sobre uma ideia temática universal
diminuindo a importância do enredo levou à necessidade de se propor uma nova
estrutura que permitisse a cada musical comunicar o seu conceito de maneira
própria. No desenvolvimento de Allegro, por exemplo, Rodgers e Hammerstein
utilizaram o coro grego, que pontuava a ação com advertências para as
personagens. Consequentemente, os números musicais se tornaram episódios
comentados, algo no estilo dos vaudevilles que precederam o musical integrado.
67

Diferentemente dos antigos vaudevilles, no entanto, esse musical não possuía uma
estrutura fragmentada; cada número era destinado a trabalhar em estreita
colaboração com os diálogos, com o movimento e com outros números musicais
para descrever um tema comum, como nos musicais integrados. Parece que o
musical conceitual, então, prioriza o tema e minimiza a estrutura do enredo. Esta
foi a ideia básica sobre a qual os musicais conceituais tomaram forma ao longo
das décadas seguintes.
Segundo diversos historiadores e teóricos, a linha de espetáculos
conceituais que se seguiram a Allegro inclui uma diversidade de produções como
Love Life (1948), Hair (1968), A Chorus Line (1975), Cats (1982), Baby (1983),
Starlight Express (1987) e outros. Devido a uma ampla variedade de personagens,
tramas, estilos de apresentação e datas de origem desses musicais, os analistas do
teatro musical diferem em suas tentativas de identificar uma definição precisa do
conceito musical. Cada um desses musicais apresenta uma estrutura específica
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para descrever o tema, no entanto, a natureza da relação entre estrutura, tema e


conceito tem sido amplamente debatida. Portanto, uma análise das várias teorias é
necessária para se chegar a uma definição funcional do musical conceitual.
Richard Kislan oferece uma definição onde compara a ideia de conceito
com a de tema, diferenciando-as: "O tema de um espetáculo musical é a sua ideia
principal; o conceito de uma produção musical é como essa ideia é incorporada ou
interpretada (...) Conceito vai além do tema em direção de alguma declaração ou
imagem sobre o que show significa, ou o que pretende, ou como irá tratar o
tema"(1995; 182). Kislan infere que o conceito descreve a "personalidade" do
espetáculo; conceito não é simplesmente aquilo sobre o que o show é, mas o que o
show é. Conceito, então, descreve uma entidade abstrata, que parece em si
intangível, mas que encontra a sua existência na síntese de outros elementos do
musical, na música, expressão, movimento, tema etc. Assim, de acordo com
Kislan, muito do conceito reside na própria estrutura do espetáculo - como está
estruturado e apresentado ao público, além do tema que aborda.
Esta definição de conceito como a "personalidade" de um musical
conceitual é adequada, pois ele descreve uma amálgama necessário entre a
estrutura e o tema. O conceito, então, não é a estrutura ou o tema, mas sim o
resultado de sua colaboração. Por exemplo, a estrutura em Assassins (1990),
musical conceitual de Sondheim, se assemelha à do vaudeville, ou da revista
68

americana, refletindo o conteúdo temático do show, que fala sobre os assassinos


de diversos presidentes dos Estados Unidos, sugerindo que assassinos políticos
são um produto da cultura norte-americana. Nem o tema nem a estrutura de tal
peça poderiam descrever completamente o conceito per se. Ou seja, temas da
cultura norte-americana podem ser explorados em um musical, mas sem o estilo
de apresentação de vaudeville estes temas não descrevem um conceito. Por outro
lado, um estilo de apresentação como o vaudeville não pode formar um conceito
por si só, sem um tema-guia; uma peça nesse estilo seria simplesmente um
vaudeville da virada do século e composto por vinhetas independentes.
Ethan Mordden afirma que um musical conceitual "é uma apresentação
melhor do que um espetáculo estritamente narrativo" (2003; 127). Utilizando o
termo "apresentação", Mordden se refere ao método de abordar a identidade
global do musical através do detalhe estrutural, ou apresentação. Em Allegro, o
estilo de apresentação encarna o coro grego, como descrito acima, enquanto que
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em Assassins, é o vaudeville. Em A Chorus Line, o estilo de apresentação possui


uma estrutura de teste, uma vez que os membros do elenco realizam "audições"
para um espetáculo dentro de um espetáculo – um metaespetáculo - tornando-se
assim ele próprio. Quando as personagens contam suas histórias de vida ao
diretor-personagem durante as suas audições, elas estão, na verdade,
"apresentando" essas histórias para um público real, proporcionando uma visão
direta de apresentação sobre a vida de um bailarino e criando um clima realístico
de audição. Outros musicais conceituais, como Into the Woods, Cats e Starlight
Express empregam elementos de fantasia para introduzir o conceito. Nas palavras
de Mordden, um musical como esses, em que os contos de fadas se embaralham, o
mundo animal é personificado, e personagens high-tech futuristas patinam no
palco, respectivamente, "(utiliza) técnicas de vanguarda para desafiar unidades de
espaço, tempo, ação". (Ibid., 127) Estes elementos fantásticos descrevem o estilo
de apresentação do espetáculo, que por sua vez determina a estrutura através da
qual o conceito é introduzido.
A importância do estilo de apresentação descrevendo a estrutura leva a
outro ponto polêmico do conceito musical. Como apresentação é um elemento-
chave na definição de um conceito musical, segue-se que um musical conceitual
não é plenamente realizado a menos que seja apresentado para uma audiência.
Kislan, por exemplo, acrescenta que um musical conceitual só é plenamente
69

reconhecido na produção (a diferença entre um "espetáculo musical", com um


tema, e uma "produção musical", com um conceito (1995; 182). Segundo essa
visão, o conceito é, na realidade, a realização da visão unificada do compositor,
letrista, bookwriter, diretor e designer, uma vez que cada um desses criadores
contribui para a maneira na qual a peça é apresentada para o público. Seria
inconsistente analisar um musical conceitual a partir de uma perspectiva
estritamente literária ou musical, pois esses elementos só têm potencial para dar
identidade completa ao show quando este é apresentado para uma plateia.
Entre os teóricos que argumentam que um conceito musical, de fato,
realiza-se plenamente apenas quando em produção, segue-se que a equipe
envolvida também utiliza o conceito como força motriz do início ao fim do
processo de produção. Ou seja, o conceito, descrito conjuntamente pela estrutura e
tema de um musical, deve servir de inspiração desde o início da criação de uma
peça. Isto contrasta com a produção de um musical baseado no enredo, que
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começa com uma trama na qual o ponto de vista do diretor se sobressai durante os
ensaios.
Durante o processo de produção de A Chorus Line, a ênfase foi dada sobre
o conceito de personagens que estavam fazendo testes para ser coristas,
representando aqueles que fazem (ou desejam fazer) carreira no show business.
Suas histórias são individuais e específicas, mas, além disso, são representativas
do estilo de vida de uma dançarina da Broadway. Assim, o ponto de início
determina a concepção da escrita da peça até a sua realização na produção como o
elemento definidor, que serve para sintetizar todos os outros aspectos do musical.
Como resultado, o público é envolvido e conduzido pela ideia que forma o
conceito, uma vez que o conceito é reforçado por todos os elementos inerentes ao
espetáculo - música, dança, voz, letra, enredo, tema, elementos de design - mais a
visão do diretor.
Uma vez que o conceito ou espírito do musical serve como fonte de
inspiração para toda a equipe de produção, tem-se debatido amplamente o quanto
se deve enfatizar a história ou enredo na integração de uma peça como um todo
para que a peça permaneça um musical conceitual. A maioria dos críticos e
teóricos concordam que o musical conceitual deve integrar música, movimento,
linguagem e temática equitativamente ao longo do show, mas discordam
amplamente se o enredo deve receber igual ênfase, ou mesmo se o enredo deve
70

existir. Scott Miller, no entanto, escreve que alguns musicais conceituais possuem
"um conceito central que é mais importante, mas (...) ainda empregam uma trama
linear” (187). Assim, de acordo com Miller, a trama, ou o book do musical pode
desempenhar um papel significativo na contribuição para o conceito.
Richard Kislan concorda que o musical conceitual pode conter um plot
(enredo), ou "sequência de ações destinadas a expor o drama em caráter, ideia e
situação", mas ele diferencia plot (enredo) e story (história): "enredo não significa
história. Enredo implica em uma sucessão específica de eventos; história implica
o conto que se conta (1995; 179). Kislan afirma que um enredo move a situação
para adiante; uma história é um desenvolvimento linear de eventos, e um musical
conceitual não incorpora uma história. Segundo esta definição, "história" implica
uma forte relação de causa e efeito entre os eventos da trama, mas a causalidade é
secundária em um musical conceitual. Do ponto de vista de uma audiência, então,
a produção é importante não por revelar o que acontece depois, mas por construir
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continuamente o conceito apresentado.


Neste ponto, parece que as definições do musical conceitual tornaram-se
excessivamente complexas, requerendo manipulações variadas da mesma
terminologia. Essencialmente, o principal requisito é que o conceito atue como
força motriz entre todos os elementos da produção, e que esses elementos
trabalhem harmonicamente, com a mesma intensidade, para apoiar o conceito.
Seja história, ou enredo, ou ambos presentes, parece irrelevante desde que as
unidades se equilibrem, desde que o conceito determine tanto o processo de
produção quanto a experiência vivenciada pelo público. Seria, de fato, difícil
descrever um show em que nenhuma ação causal ocorre. (Mesmo em Follies
pode-se dizer que há uma história em torno de quatro pessoas que olham para o
seu passado, mas redescobrem um ao outro no processo.) Assim, parece que um
musical conceitual pode empregar uma história ou um enredo com o mesmo peso
que as canções, o movimento, e o ambiente no palco - para apoiar o espírito ou o
conceito do espetáculo.
Para resumir, então, o conceito descreve a identidade, ou a "personalidade"
de um musical conceitual, incorpora a temática e a estrutura. Como a estrutura
tem um papel tão proeminente na concretização do conceito, o musical conta com
um estilo de apresentação que define a sua estrutura para o público, tornando o
musical conceitual uma forma que só é plenamente realizável na produção. Como
71

tal, o espetáculo segue o conceito do começo ao fim do processo de produção,


lembrando seu antecessor, o musical integrado, na síntese de música, dança, texto,
enredo e tema para realizar um todo unificado.

2.2
O conceitual em Sondheim

Sondheim explorou novos territórios a cada novo musical. Isso não o


levou à aclamação e ao sucesso financeiro automaticamente; os triunfos de
Sondheim são de uma ordem diferente. Seria equivocado, porém, sugerir que a
inovação do trabalho de Sondheim é devida exclusivamente à seriedade de seus
temas e à qualidade do seu conteúdo perturbador. Grande parte do significado de
sua obra reside na sua utilização criativa da forma.
Muito tem sido escrito sobre as estruturas "integradas" do cânone musical
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de Rodgers e Hammerstein. A partir de 1943 (com o sucesso sem precedentes de


Oklahoma!) até a morte de Hammerstein, em 1960, esse tipo de criação dominou
o teatro musical americano. Seu trabalho forneceu um modelo, não só para o
público e para os críticos, mas para outros escritores e compositores também.
Havia, naturalmente, espetáculos que fugiam à nova regra, mas geralmente a
fórmula de Rodgers e Hammerstein definia o padrão que o musical poderia e
deveria ser. Em seu trabalho, eles fundiram as duas principais correntes de
influência no teatro musical americano: o romance sentimental da opereta
europeia e o coloquialismo jazzístico da revista. Tal forma foi pioneira quando
Hammerstein and Kern lançaram Showboat, que consistiu em uma combinação de
cena, música e cenário onde a ação culminava com a música delineando a
personagem na história. Após um blackout, a cena mudava, e se repetia o padrão
básico. Isto soa tão simplista quando resumido, mas antes de tal trabalho não
havia nenhuma conexão íntima e necessária entre as músicas, danças, cenas e o
book. As músicas nos primeiros musicais eram essencialmente não-
contextualizadas. Elas poderiam ser inseridas em qualquer show e frequentemente
eram deslocadas. Com Oklahoma! a integração de música, dança e diálogo
tornou-se obrigatória, e a estrutura de Rodgers e Hammerstein foi aprovada sem
qualquer alteração por mestres como Lerner e Loewe, Loesser e Harnick, e Bock.
72

Embora essa fórmula tenha sido lucrativa e bem sucedida, tornou-se


cansativa e previsível no momento em que West Side Story (1957) elevou a
"integração" para um novo patamar de excelência com a dança se unindo à música
e à ação dramática em uma totalidade teatral (Rodgers e Hammerstein já haviam
tentado, sem sucesso, modificar a fórmula em 1947 com Allegro). As fronteiras
entre os componentes do musical foram borradas.
Foi a partir de antecedentes como esse que o talento de Sondheim se
manifestou. De protegé de Oscar Hammerstein (de quem, além de aprendiz, foi
assistente no show experimental Allegro) para o seu primeiro trabalho como
letrista de West Side Story. E logo em seguida como letrista em Gypsy (1959).
Sobre Gypsy e Allegro ele afirma:

Eu realmente acredito que Gypsy é um dos dois ou três melhores espectáculos


que já foram feitos. Foi o melhor dentro do estilo de teatro musical de Rodgers e
Hammerstein - onde você pega uma história e conta-a com cena-música-cena-
música, onde os picos de emoção são levados adiante pela música. (...) Allegro
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foi um desenvolvimento que utilizaram o coro grego, iniciou o tipo de musical


que Hal Prince gosta de fazer, como Cabaret e Zorba, onde há comentários sobre
a história ao mesmo tempo em que está sendo contada. (ZADAN: 1971; 26)

No entanto, a forma de um musical de Sondheim vai muito além de


Allegro, Gypsy e West Side Story. Embora canções e números de dança em um
musical de Rodgers e Hammerstein se relacionem aos personagens e ao texto, elas
possuem uma vida própria fora do teatro. Muitas de suas canções são padrões no
mundo da música popular americana.77 Já as músicas e letras de Sondheim
raramente possuem essa vida independente. Elas são tão intimamente intrincadas
ao texto do trabalho que não podem simplesmente ficar sozinhas. Send in the
Clowns é talvez o único verdadeiro sucesso que teve alcance na mídia. Muitos
críticos afirmam que esta falta de popularidade reside na qualidade não-melódica
de sua música; que suas músicas não são passíveis de ser cantaroladas. O fato é
que sua linha melódica está intimamente ligada à letra; a letra, o ritmo e o tom de
cada canção pertence especificamente à personagem que está cantando a música
naquele momento específico da ação.

77
De acordo com Stephen Citron, em Song Writing: A Complete Guide to the Craft, Limelight
Editions, New York, 2002, p.331, o piano é o instrumento básico da música popular americana, às
vezes metal e corda; refrão de 32 durações – forma AABA or ABAC.
73

Além disso, a música de Sondheim é mais sofisticada e complexa, mais


avançada em harmonia, forma e melodia do que as dos compositores
paradigmáticos do teatro musical integrado. Sondheim modifica e muitas vezes
despreza a estrutura convencional da música de teatro, com sua forma AABA.
Esta estrutura garantiu ao compositor tradicional que o ouvinte fosse exposto ao
tema pelo menos três vezes. E as canções eram frequentemente reprisadas, várias
vezes, como cobertura para uma mudança de cena. Se o público não cantarola
após um musical de Sondheim, é devido à falta de exposição às melodias tantas
vezes e porque a música de Sondheim não é simples. A textura é mais densa e os
conteúdos mais complexos. Por conseguinte, é mais difícil de compreendê-la no
imediatismo fugaz do momento teatral. Com cada nuance musical e lírica
perfeitamente adaptadas às especificidades de uma determinada personagem,
músicas, letras, personagem e enredo se entrelaçam em um conjunto harmonioso,
mais perto de uma ópera wagneriana do que de uma tradicional comédia musical.
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Se, no entanto, tudo o que Sondheim ofereceu era mais uma intrincada
mistura de elementos de um musical, então, seu trabalho seria mais uma extensão
do que uma inovação. Conceito, o termo cunhado para descrever a forma do
musical de Sondheim, sugere que todos os elementos do musical, desde o tema até
a apresentação, são integrados para sugerir uma imagem ou ideia teatral central.
Esta unidade é certamente encontrada na obra de Sondheim, mas nenhum rótulo
pode eventualmente abranger a ampla gama de inovações que ele trouxe. O
próprio, com sua aversão por generalizações levianas, repudia a designação:

"Conceito" é a palavra em voga desta década, assim como "integrado" foi a


palavra da moda no teatro musical dos anos 40, referindo-se a uma abordagem
em que a história é contada e os personagens avançam na ação por meio da
música. O divisor de águas, o marco musical foi, indiscutivelmente, Oklahoma!.
Tudo o que se seguiu pode ser visto como um desenvolvimento disso - quer seja
uma rejeição ou continuidade. Eu estou levando isso a frente, fazendo variações.
(Sondheim apud FLETEY: 1976; 69-70)

O estilo de Sondheim tem sido caracterizado como neo impressionista,


pós-moderno78 e desconstrutivista79. Torna-se evidente, mesmo sem uma

78
SF Stoddard explora esta visão em seu ensaio "Visions and Re-visions: The Postmodern
Challenge of Merrily We Role Along" (2000; 187-198), assim como Edward T. Bonahue, Jr. em
"Sunday in the Park with George as Postmodern Drama "(GORDON: 1990; 171-186).
74

conceituação destes termos teóricos aqui, que, além de sintetizar música,


movimento, expressão, enredo e tema herdados dos musicais integrados e
musicais conceituais anteriores aos seus, Sondheim introduz uma perspectiva em
seus musicais que renova a cena do teatro musical.
Antes de Sondheim, o musical era construído em torno de sua história. A
estrutura da narrativa era centrada principalmente em uma relação de amor e se
interligava a todos os elementos: canções, danças e diálogos. Os cenários eram
naturalistas, quando não extravagantes, e utilizava-se um padrão básico de
apresentação, complicação, e desfecho. A estrutura do book destes musicais
significava a história. A estrutura do book para Sondheim, por outro lado,
significa a ideia. Música, letra, dança, diálogo, concepção e direção fundidos para
apoiar um pensamento. Um conceito principal controla e modela toda a produção,
para que todos os aspectos da produção sejam misturados e subordinados a uma
única visão. O impulso temático do trabalho é transmitido para o público através
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de uma imagem ou metáfora primária que determina não só o conteúdo da obra,


mas também a sua forma de apresentação. Forma e conteúdo não podem ser
separados, eles são interdependentes. É por esta razão que cada uma das obras de
Sondheim é única. O padrão em todo musical modelo Rodgers e Hammerstein é
basicamente o mesmo, mas Sondheim desenvolve uma nova lírica, música e
linguagem teatral para cada trabalho. As músicas e letras de Sondheim crescem a
partir da ideia dramática inerente ao conceito do show e se tornam parte do drama,
já as canções de teatro musical integrado só refletiam o drama. Rodgers e
Hammerstein podem ter definido a cena de The King and I em Sião, mas,
geograficamente, a localidade oriental era meramente decorativa. A música e os
conjuntos podem sugerir o oriente, mas a textura e o impacto do trabalho não se
diferenciou muito do de Oklahoma!.
O efeito contrastante criado por Sondheim em Pacific Overtures (1976),
história sobre a ocidentalização do Japão, onde todos os elementos do trabalho são
produtos da uma ideia central, não poderia ser mais marcante. O musical foi
concebido no estilo teatral kabuki; as letras, baseadas em haikus; somente homens
trabalharam atuando, inclusive fazendo os papéis femininos; os atores eram
orientais.

79
Stephen Banfield refere-se a desconstrução de A Funny Thing Happened on the Way to the
Forum (1993; 92).
75

A contribuição de Sondheim para o avanço do gênero também pode ser


vista em sua ruptura com a lógica tradicional de desenvolvimento do teatro
realista. Tempo e espaço são fragmentados e distorcidos. Conexões lógicas são
associativas e não-lineares. Sondheim e o diretor Harold Prince reconheceram que
este estilo de apresentação era inspirado na obra da diretora inglesa Joan
Littlewood, cuja abordagem teatral inovadora resultou em produções como Oh,
What a Lovely War! e The Hostage. (PRINCE: 1974; 73) Littlewood rejeitava os
padrões da narrativa tradicional e preferiu um formato no estilo revue (revista).
Isto, combinado com sua habilidade de misturar realidade e fantasia e usar
fragmentos de música para repreender o público, intrigava Sondheim e Prince.
Eles reconhecem, por exemplo, que o estilo de Company derivou de seu trabalho.
Sondheim e seus colaboradores concebem o teatro como um jogo que o público
ativamente joga. Muitos dos saltos criativos necessários para a compreensão
somente são alcançados com a colaboração do público. A participação da
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audiência é intelectual. Como uma extensão desta característica lúdica, Sondheim


aprimorou sua linguagem musical de forma singular. O alto impacto emocional da
tonalidade, o efeito estimulante do ritmo, a qualidade tranquilizadora da
harmonia, a expansão e compressão do tempo e do sentimento - essas forças
emotivas de sua música ficam bem estabelecidas, e Sondheim, naturalmente,
explora todas as ressonâncias conotativas da forma musical.
Sondheim usa as várias formas e padrões da música de teatro como
comentários sobre si mesmas. Certos estilos musicais são definitivamente
associados na mente de uma audiência com certas épocas, certas emoções e certas
verdades. Sondheim leva essas formas conhecidas de música e coloca-as em
situações dialéticas. Letra e personagem ficam, assim, em desacordo com a
sugestão musical. Esse deslocamento de estilo e conteúdo atinge um número de
resultados interessantes e eficazes, levando o público a examinar tanto a verdade
da letra e as implicações emocionais contrastantes da estrutura musical. Sondheim
menciona o uso desta técnica muito brevemente, em duas entrevistas dadas no
início dos anos setenta:

Eu tinha começado a sentir (...) que todo musical da Broadway dependia das
músicas-integradas - números que brotavam do diálogo e do enredo - e que isso
deveria ser reexaminado, e talvez modificado. Embora o tom de Anyone Can
Whistle estivesse fora, as canções rompiam com a tradição: eles comentavam
76

sobre a ação ao invés de avançá-la, e acho que sua relação com o book era
excelente. Em Forum, eu já tentava uma outra ruptura: músicas que eram lapsos
de ação. Em Company as canções eram tréguas e comentários. (Sondheim apud
BURKE: 1970; 17)

Anyone Can Whistle é um espetáculo cult. (...) Foi experimental e começou uma
técnica para mim que eu usei desde então e espero nunca voltar a usar - o uso da
linguagem tradicional da comédia musical para fazer pontos. Todos os números
que Angela [Lansbury] cantou no show foram pastiche. (...)
Aliás, a técnica do uso de atitudes ao invés de emoções para Angela no Whistle
eu usei em Side by Side by Side e em You Could Drive a Person Crazy de
Company, e em grande quantidade em Follies, onde era realmente necessário.
(Sondheim apud ZADAN: 1971; 24)

Mas o uso que Sondheim faz da linguagem de comédia musical é muito


mais complexo e eficaz do que estas observações sugerem. O pastiche resulta não
apenas em um comentário da personagem, mas também em um comentário sobre
o público e sobre a sociedade em geral. Martin Gottfried, ao comentar sobre este
dispositivo estilístico, tem uma resposta negativa:
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"A sátira musical está sempre around the corner na obra de Sondheim. Ele se
entrega a esse gosto com muita frequência e isso se torna cansativo. Isso pode ser
o resultado de sua memória musical prodigiosa ou um reflexo de sua indisposição
para ser emocionalmente expressivo. Zombaria, afinal, é uma forma de se
escamotear." (1979; 322)

É certo que o dispositivo é satírico, mas Sondheim não o está usando


simplesmente como um meio para se ocultar. A justaposição de um estilo anterior,
mais frívolo, a uma questão contemporânea ou a uma personagem funciona tanto
como destaque e comentário irônico sobre as duas épocas contrastantes e a
diferença na expectativa da audiência de outrora e de agora. Sondheim utiliza a
colagem de músicas provenientes de outros períodos históricos, assim como de
gêneros variados. E também a integração de estilos musicais específicos dentro de
uma única música, como a valsa The Sun Sits Low em A Little Night Music ou um
motivo circense conjugado com ritmos latinos em Another Hundred People
(Company), provocando impressões da vida moderna na audiência.
Gottfried rejeita a técnica, pois resulta em uma ruptura do vínculo de
empatia. Há uma grande distância, porém, entre as crenças que produziam as
melodias alegres da comédia musical anteriores e o cinismo cortante de hoje. Os
musicais de Sondheim não são tranquilizadores nem complacentes. Um de seus
77

principais métodos para fazer a plateia inquieta é esta técnica de dupla exposição.
A declaração de Gottfried nos remete à ideia de que musicais devem ser um
entretenimento essencialmente escapista.
Um exame cuidadoso do trabalho de Sondheim revela que, embora a sátira
possa ser uma característica, não o é de forma isolada. Musicais de Sondheim não
são sentimentais, mas isso não significa que eles são estéreis ou insensíveis. Uma
explosão emocional enorme está no cerne do teatro sondheimiano, mas para ele,
isto é mais uma referência do que um ingrediente: as velhas formas, os estilos
bem-amados, lembram-nos do que o teatro pode fazer, e o que a sociedade foi um
dia. A canção satírica informa-nos sobre o que nossas vidas são agora. O conflito
e o contraste entre ambos configura uma estimulante experiência teatral. O uso da
linguagem teatral por Sondheim, além disso, não se restringe a canções
individuais ou mesmo a antecedentes da comédia musical. Seus trabalhos
diversificam a forma teatral escolhida para representar o conceito em questão: A
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Funny Thing Happened on the Way to the Forum e a farsa romana; Company e o
drama drawing-room; Follies e as revistas de Ziegfeld; A Little Night Music e a
opereta; Pacific Overtures e o teatro kabuki: Sweeney Todd e o melodrama
victoriano; Sunday in the Park with George e o pontilhismo; Into the Woods e os
contos de fadas.
A saída de Sondheim dos padrões tradicionais do teatro realista afetou a
natureza fundamental de suas personagens. Lehman Engel afirma: "Uma das
principais diferenças entre a maioria das peças e a maioria dos musicais (...) é que
as personagens nas peças frequentemente não são o que parecem ser: em musicais
elas invariavelmente devem ser". (ENGEL: 1972; 16) Esta simplicidade e
superficialidade intrínsecas das personagens pode ter sido verdade nos primeiros
anos de desenvolvimento do musical, mas não é uma qualidade essencial do
gênero, Isso não se aplica ao trabalho de Sondheim. Sondheim enfatiza
repetidamente a importância das personagens multidimensionais e admite uma
preferência por “personalidades neuróticas" Ele reconhece:

Pelo menos metade das minhas músicas lidam com a ambivalência, percebe-se
dois sentimentos ao mesmo tempo. (...) Eu gosto de pessoas neuróticas. Eu gosto
de pessoas problemáticas. Não que eu não goste de pessoas quadradas, mas eu
prefiro as pessoas neuróticas. Eu gosto de ouvir rumores abaixo da superfície. (
Sondheim apud MICHENER: 1973; 55)
78

Essas personagens complexas e problemáticas têm pouco em comum com


as simples e ingênuas criações que Engel sugere como endêmicas ao teatro
musical.
As músicas que Sondheim compõe para as suas dramatis personae
exploram a profundidade e a agitação inerente a cada uma delas. Suas
personagens nunca estão seguras sobre o que elas são, pois como ele explica:

(...) "Não é qualquer letrista que compreende o funcionamento de uma música em


um musical (...) Eles escrevem canções em que uma personagem se explica. Isto
é auto-destrutivo. Uma canção deve revelar a personagem para o público, mas ela
não tem suficiente auto-conhecimento para descrever-se nestes termos. (Wilson
apud GORDON: 1990; 18 )

As letras e músicas de Sondheim investigam o intrincado labirinto


particular de sensibilidade emocional do qual a personagem é constituída. A
audiência participa desta procura da personagem em busca de si e de sua
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estabilidade. Consequentemente, personagens nunca são recortes unidimensionais.


Esta combinação de formas sentimentais, com o comentário mordaz sobre a vida
moderna é um dado irônico com o qual muitas audiências não estavam
acostumadas na década de 1970. É um assassino psicopata cantando uma balada
de amor às suas navalhas em My Friend (Sweeney Todd), bem como um grupo de
assassinos políticos harmonizando versos, referindo-se ao sonho americano em
Everybody’s Got the Right (Assassins). Através da justaposição de ideias irônicas
como essas, Sondheim ressignifica o déjà vu dentro de um contexto
contemporâneo, além de desafiar o público intelectualmente.
Certamente as personagens sondheimianas não possuem o apelo imediato
de Anna Leonowens ou o Rei do Sião, de Rodgers e Hammerstein, mas em troca
dessa simplicidade emocional direta, suas personagens possuem uma
complexidade que é igualmente válida teatral e emocionalmente.
Embora alguns tenham dúvidas sobre o gênio Sondheim como compositor,
ninguém duvida de seu brilhantismo como letrista. No musical americano, letra e
música estão intimamente relacionadas e muito do impacto teatral de toda a
produção dependente da percepção, sagacidade e perspicácia das letras. As
palavras do libreto são tão essenciais como as notas para o qual são fixadas, pois
"belas canções não são sempre maravilhosamente teatrais, e ninguém vai ao teatro
79

para fechar os olhos." (MARX: 1973; 125) Uma das conquistas do teatro musical
americano é a exploração das possibilidades musicais e teatrais do vernáculo
americano. Sondheim, em suas letras cintilantes e harmonias complexas,
desenvolveu uma síntese convincente da linguagem musical e da linguagem
americana e seus padrões. Palavra e som se misturam, se contrastam e se
complementam, além de criar um momento teatral apropriado, uma expressão
válida sobre a idiossincrasia de uma personagem. Palavra e som são inseparáveis.
Sondheim deixa bem claro que as letras que lhe interessam são "letras em
uma situação dramática em um palco em termos de personagem." (SONDHEIM:
1974; 61) Arthur Lauren, que trabalhou com Sondheim em quatro shows, explica
que "Steve é o único letrista que quase sempre escreve canções que só podem ser
cantadas por uma e somente uma personagem em particular.” (Ibid., 55)
Sondheim acredita que há dois princípios básicos que ditam o que um escritor
lírico pode e deve fazer, o primeiro é que as letras existem no tempo. Um público
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não pode pedir a um intérprete para cantar lentamente ou repetir a canção, pois "a
música é um motor implacável que faz a letra seguir. "(Ibid., 64) Esse princípio
leva a outro, que Sondheim explica assim:

A letra vai com a música, e a música é muito rica, na minha opinião, a mais rica
forma de arte. Ela também é abstrata e faz coisas estranhas com suas emoções.
Assim não somente você acompanha com ela, mas com as luzes, figurinos,
cenários, personagens, atores. Há muita coisa para ouvir e receber. Letras,
portanto, têm de ser subscritas. Elas têm de ser muito simples na sua essência.
Isso não significa que você não possa fazer letras complexas, mas essencialmente
o pensamento é o que conta e você tem que alongar o pensamento o suficiente
para que o ouvinte tenha uma boa chance de compreendê-lo. Muitas canções
sofrem por ser muito condensadas." (Ibid., 64)

A tarefa do letrista é difícil porque ele tem que carregar cada palavra com
significado. A letra pode possuir toda a complexidade da poesia, explorando tanto
as ressonâncias conotativas e denotativas de cada palavra. Além disso, a própria
música acrescenta ainda diferentes níveis de profundidade e de significado.
Contudo, uma vez que cada letra é efêmera e tem uma exposição muito restrita,
cada palavra tem de ser precisa. Consequentemente, a letra escrita é um ofício
extremamente rigoroso. Sondheim mostra o quão exato um compositor deve ser
em sua sensível análise do número de abertura de DuBose Heyward em
80

Summertime de Porgy and Bess. Sobre o verso Summertime and the livin' is easy
(Summertime e a vida é fácil), Sondheim escreve:

Vale a pena uma grande dose de atenção para este and (e). Eu escreveria
Summertime when (quando), mas este and configura um tom, um tom
poético, para não falar de um tipo de dicção que vai ser utilizado na peça,
uma dicção informal e inculta, e um fluxo de consciência que será
utilizado em muitas canções, como em My Man's Gone Now. É a palavra
mais correta, e a palavra vale o seu peso em ouro. Summertime when the
livin' is easy é um verso chato comparado ao Summertime and. As
escolhas entre ands (e) e buts (mas) se tornam quase traumáticas quando
você está escrevendo uma letra - ou deveriam - pois cada uma pesa muito.
(SONDHEIM: 1974; 65)

Sondheim reconhece três grandes influências em seu trabalho: Oscar


Hammerstein, Burt Shevelove e Arthur Laurents. Como Hammerstein, Sondheim
está perfeitamente consciente das necessidades dos seus cantores. Questões de
ordem técnica, como terminar uma canção sobre um som aberto, escolhendo com
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cuidado as consoantes, criar um número final para puxar os aplausos são


evidentes no trabalho de ambos. E o mais importante, Sondheim aprendeu que o
conteúdo é o mais importante, o que se diz e não como se diz, fazendo o
pensamento claro para o ouvinte. Oscar disse ainda que, "diga o que sente, não o
que outros compositores sentem." (Ibid., 66) A partir dos conselhos de seu
mentor, Sondheim elaborou o seu trabalho de forma profundamente diferente.
Considerando que Hammerstein acreditava na fé e no otimismo e procurava
expressar essa crença em seus musicais, o trabalho Sondheim reflete cinismo e
distanciamento.
A segunda maior influência sobre a técnica de Sondheim foi Burt
Shevelove, que juntamente com Larry Gelbart escreveu o book para A Funny
Thing Happened on the Way to the Forum. Shevelove enfatizava a clareza, e
passou a Sondheim que era melhor uma ideia sem brilho do que mal apresentada.
Uma letra inteligente que não se encaixasse na música comprometeria a
performance do ator/cantor, e isso esfriaria a audiência.
Sondheim trabalhou com Authur Laurents, sua terceira maior influência,
em West Side Story, Gypsy, Anyone Can Whistle e Do I Hear a Waltz?. De
Laurents, Sondheim acredita, aprendeu a apreciar o significado e a importância do
"subtexto". Sondheim tenta investir em palavras com vários níveis de significado.
81

Muitas vezes o significado do subtexto estará em total contraste com o conteúdo


manifesto da letra, mas essa complexidade não é acidental, ou algo acrescentado
por um ator sutil. É definida pelo letrista. Outro axioma no sistema de Sondheim é
"conteúdo dita forma." A estrutura, o ritmo e a complexidade do esquema de
rimas e da forma melódica, e o tom de cada música são cuidadosamente adaptados
às necessidades dramáticas das personagens. Sondheim salienta que a "estrutura
gramatical" da música e da letra deve ser combinada. O metro do verso deve ser
acoplado com o acento das notas na música, pois caso contrário a clareza da
expressão fica seriamente comprometida. Sondheim aconselha:

Quando uma frase musical chega ao fim, a letra também deve chegar ao fim, caso
contrário, configura-se um conflito para quem ouve. A letra deve acompanhar a
música com uma vírgula, um ponto e vírgula, ou apenas até a concretização de
uma frase. (...) As palavras têm de assentar com a música a fim de se tornarem
claras para o público. Estou falando de clareza. . . e clareza tem a ver com aquela
coisa que eu falei, o tempo. Você não tem a chance de ouvir a letra duas vezes ou
lê-la. E se a letra não salta quando a música salta e não sobe quando a música
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sobe, não é apenas uma questão de mau-acentos, que são ruins o suficiente, mas
se não se levanta e cai com a música, o público se confunde. (SONDHEIM:
1974; 75-76)

Música e letra devem complementar-se. A música, Sondheim aponta, é um


meio tão rico que o compositor deve ter o cuidado de nunca substituí-la. Ele
acredita que, se uma letra muito pesada é combinada com uma melodia romântica,
o público vai ser esmagado. Para que uma música complemente uma
caracterização, algo deve estar implícito. Muitas vezes uma letra pode parecer
banal no papel, pois a sua dimensão poética só se revela quando cantada.
Sondheim também enfatiza a sua convicção em relação ao uso da variante
linguística que reflete a personagem. Em muitos aspectos, uma canção que
funciona como um monólogo, em que a motivação interna de um personagem
pode ser transmitida, tem que ser coerente com o seu universo linguístico. Ele
admite uma rejeição às suas próprias letras de West Side Story por esta razão:

Um dos momentos mais embaraçosos da minha vida como letrista foi depois de
uma leitura rápida do musical West Side Story, quando alguns dos meus amigos,
incluindo Sheldon Harnick, estavam presentes. Perguntei a Sheldon após o show,
"O que você acha?", achando que ele ia cair de joelhos e lamber a calçada. Mas
ele não o fez, e eu pedi a ele que dissesse o que estava errado. É essa letra I Feel
Pretty, ele disse. Agora, eu pensei I Feel Pretty era fantástica, eu tinha gasto um
ano da minha vida rimando day e way e me e be, e com I Feel Pretty eu queria
82

mostrar que eu podia fazer rimas internas também. Então eu tive essa menina
[Maria] portoriquenha cantando, It's alarming how charming I feel [É alarmente
como me sinto encantadora]. Você sabe, ela [a música] não teria sido mal
recebida na sala de estar de Noel Coward. Sheldon era muito gentil, mas, oh!
doeu. Eu fui imediatamente de volta à prancheta e escrevi uma versão
simplificada da letra, que ninguém relacionado ao show aceitou, por isso está
tudo lá, me envergonhando cada vez que é cantada, porque ela é cheia de erros
como esse. (SONDHEIM: 1974; 84-85)

Em contraste com a simplicidade de Maria, Sondheim, criou muitas outras


personagens sofisticadas que podem ilustrar o seu espírito criador e complexo. A
canção de Joanne The Ladies Who Lunch (Company), o ataque cáustico de Phyllis
em Could I Leave You? (Follies), o modo espirituoso como Fredrik faz uma
alusão literária em sua tentativa de sedução em Now (A Little Night Music), e as
conversas inteligentes, mas ocas, dos nova-iorquinos em Putting It Together
(Sunday in The Park with George) são apenas alguns dos exemplos que
demonstram como Sondheim consegue colocar a sua mente hábil a serviço de um
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esquema primoroso de rimas para tecer uma personagem.

Now (A Little Night Music)

FREDRIK:
(...)
For something romantic,
De Sade is to trenchant
And Dickens too frantic,
And Stendhal would ruin
The plan of attack,
As there isn't much blue in
"The Red and the Black."
De Maupassant's candour
Would cause her dismay,
The Brontës are grander
But not very gay,
Her taste is much blander,
I'm sorry to say,
But is Hans Christian Ander-
Sen ever risque?
Which eliminates A...80

Martin Gottfried escreveu sobre as letras de Sondheim:

80
http://www.allmusicals.com/lyrics/littlenightmusic/now.htm acesso em 10/06/2010.
83

Se a obra de Sondheim tem pontos fracos, eles estão na complexidade excessiva e


na falta de calor. No entanto, ele é, sem dúvida, o letrista mais influente de seu
tempo, porque o seu trabalho lida não apenas com palavras, mas com toda a
estrutura do musical. Sondheim está tentando fazer mais com as letras do que
ninguém jamais tentou. (...) Mesmo seus colegas têm sido influenciados por sua
abordagem teatral na escrita das letras. Por ele escrever não somente canções,
mas cenas musicais, em um estilo peculiar desenvolvido para o teatro. Embora
possamos perder a simplicidade e a cordialidade de uma canção simples em seu
trabalho, Sondheim cria letras e músicas direcionadas a um propósito maior do
que a música independente. Será por causa de seu trabalho que as letras de um
musical serão finalmente reconhecidas por serem tão importantes quanto o book e
a música. (1979; 71)

Apesar da inovação de forma, conteúdo e estilo, apesar de inúmeros


elogios, prêmios Tony e uma Prêmio Pulitzer, o trabalho de Sondheim permanece
controverso. As razões para ambos, succès d'estime e falta de apelo popular estão
relacionadas. O trabalho de Sondheim é complexo e grande parte da audiência não
quer ser desafiada. As atitudes predominantes de seus detratores é articuladamente
expressa por John Lahr:
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Musicais tradicionais dramatizam o triunfo da esperança sobre a experiência.


Devido ao seu flerte com a modernidade, os shows de Sondheim são um misto de
explosão de alegrias e desesperos eufóricos. Ele admite que a alegria escapa dele.
"Se eu me sentasse e conscientemente dissesse que queria escrever algo que
pudesse fazer as pessoas saírem do teatro muito felizes, eu não saberia como
fazê-lo." Seus musicais maduros cantam sobre uma nova excelência americana: a
desolação. Sondheim ficou de fora da turbulência do final dos anos 60 em sua
casa em Manhattan, ressurgindo com Company, um musical em sintonia com o
novo momento pós-protesto. Sondheim vinha com seu tempo: as emoções
guardadas e o seu próprio sentido de vida minimizado eram partilhados por uma
nação obcecada com o seu desespero. A loquaz dureza de Sondheim refletia o
espírito de uma época de pragmatismo. Ele se tornou um fenômeno até então
inédito no musical da Broadway: um campeão em desilusão.
Uma sociedade que se sente irremediavelmente perdida necessita de uma lenda
derrotista. E os shows de Sondheim estão na vanguarda desta atmosfera de
colapso. Ele compartilha tanto o senso de impotência da cultura quanto o seu
novo hábito de extrair forças da loucura. Ele é um conhecedor do caos. (...) Os
scores maduros de Sondheim mitificam a desolação. (LAHR: 1979; 70)

Lahr escreve de forma persuasiva e com inteligência sobre o niilismo


encontrado na obra de Sondheim. Sua crítica é fascinante, mas ultrapassada em
sua premissa. Ele mostra seu preconceito na seguinte frase-síntese, "Antes de ser
arte, o musical era divertido." (Ibid., 72-74) Lahr fica intrigado, fascinado, mas
ofendido com a capacidade de Sondheim para fundir a angústia (em suas diversas
faces - psicológica, política, social) da América contemporânea com uma forma
84

que ele acredita que deve ser, em última análise, fútil. Ele critica o fato de que
"Sondheim definiu-se como um vanguardista de uma forma assumidamente
popular," (Ibid., 74) desprezando o gênero. Ele afirma de forma inequívoca, "a
comédia musical está para a música assim como o ping-pong está para o tênis."
(LAHR: 1979; 74) Mesmo seu uso do termo"comédia musical" em vez de "teatro
musical" mostra seu preconceito.
O musical pode ter sido "trivial" no passado, mas a sua grandeza não
reside em sua trivialidade. Sondheim mostrou que o teatro musical pode ser grave,
triste, e ainda emocionante. Ele é o expoente desta nova forma musical. Seu
trabalho redefiniu o gênero, e, como resultado, o abismo que separava o teatro
"sério", “legítimo” do teatro musical foi sobreposto por uma ponte.
Sondheim, então, desenvolveu o que é atualmente considerado o epítome
da forma cada vez mais sofisticada conhecida como musical conceitual. Seus
musicais, ao que parece, recorrem a referências históricas, numa medida sem
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precedentes a fim de introduzir justaposições únicas de culturas, épocas e gêneros


criativos. Ao fazê-lo, seus trabalhos sugerem maior envolvimento dos níveis
intelectual e emocional por parte do público. Assim, na década de 1970, na “Era
de Sondheim” o teatro musical americano atingiu a sua maturidade através do
musical conceitual contemporâneo.
85

3
Elementos Dramatúrgicos do Teatro Musical

O teatro musical é uma empreitada altamente colaborativa, um espetáculo


resultante da síntese de várias artes: literatura dramática, letras, músicas, parte
recitativa, voz, dança, entre outras. Todas essas artes se unificam no libreto. Ou
seja, personagem, diálogo, forma, inserção da música e da dança, tom, todos
colocados a serviço da história ou do conceito. A seguir, vamos desmanchar a
costura de um musical e conhecer a composição de cada elemento que o constitui.
Este capítulo foi elaborado a partir de minhas anotações em aula e
exercícios práticos feitos nos cursos de verão de 2010 oferecidos pela TISCH –
Graduate Musical Theatre Writing, New York University (NYU), a saber:
Musical Theatre Writing Workshop; Crafts of Musical Theatre: Lyric Writing e
Crafts of Musical Theatre: Bookwriting.
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3.1
O Libreto

O termo libretto vem do italiano e significa pequeno livro. Os roteiros das


primeiras óperas italianas eram frequentemente muito incompletos e dificilmente
poderiam ser considerados uma peça. Assim nasceu a palavra libretto, e os novos
escritores tornaram-se conhecidos como librettisti. O título transitou em operetas
e teatro musical, e a indicação "libreto de" caiu em desuso em torno de 1960. Alan
Jay Lerner, que escreveu o book e as letras para seus shows, desprezou o termo
"libretista" e insistiu que ele era um playwriter. Ele argumentava que My Fair
Lady não era um "livrinho" musical. Mas então o mesmo pode ser dito sobre as
grandes óperas. O que está implícito em "libreto" não é o tamanho ou a duração
ou mesmo a integridade do libreto, mas o fato de que ele é secundário para o
score. Óperas e musicais são tecidos sobre um score, reza a lenda. Mas as óperas
mais populares e queridas são as que apresentam as melhores histórias e as
personagens mais interessantes. Os musicais da Broadway que são mais
frequentemente remontados são aqueles em que o libreto é reapresentável. Se o
score é o mais importante, por que se preocupar com o book? Porque Sondheim
86

tem razão: o book vem em primeiro lugar - não apenas na ordem da criação, mas
muitas vezes na composição de um espetáculo de sucesso.
Atualmente, o vocábulo libreto designa o conjunto, isto é, o book, com o
texto e as rubricas - e o score81, que engloba toda a parte musical.

3.1.1
O book

Quando perguntaram a Stephen Sondheim "O que vem primeiro? A


música ou a letra?", ele prontamente respondeu: "The book". Sondheim não
escreveu os libretos para seus shows, mas ele certamente entende a importância
do book hoje no teatro musical. E ontem também. Antes de Oklahoma! e os
musicais integrados, antes mesmo de Show Boat e da peça musical, o libreto foi
fundamental para o sucesso de uma comédia musical.
Assim eram os primeiros shows. Primeiro Ato: boy meets girl. Segundo
Ato: boy loses girl. Terceiro Ato: boy gets girl. Por mais ridícula que pareça essa
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premissa, ela acompanhou a comédia musical. A maneira como o libretista


preenchia essa fórmula é que fazia a diferença, mesmo que todas as histórias
parecessem familiares.
Comparemos dois espetáculos dos irmãos Gershwin; Oh, Kay! (1926) foi
um sucesso de temporada (256 performances) com hits como Clap Yo’ Hands,
Do, Do, Do; já Treasure Girl (1928) com os hits I’ve Got a Crush on You e I’m
Falling só teve 68 performances. O rapaz encontrou, perdeu e recuperou a garota
em ambos os shows, mas a fórmula sozinha não foi o suficiente.
Um book é uma moldura resistente que define os limites de tudo o que um
show pode oferecer à sua plateia. Somado a padrões de excelência literária, ele
evolui na mesma proporção em que leva a música, a dança e a performance a
fazerem no palco aquilo que as palavras per se não conseguem fazer: abrir a
emoção do espetáculo numa sucessão de situações e desenvolvê-las até uma
resolução satisfatória através da música e do movimento. Como a expressão da
ideia ou do sentimento é o objetivo maior, tudo em um book deve conspirar para
que as canções se destaquem.

81
Score é um vocábulo específico do teatro musical cujo significado abrange muito mais do que
uma partitura; ele indica aos atores suas entradas musicais verticalmente.
87

A variedade de expressões musicais - solo, dueto, trio, quarteto, coro,


underscore, sequencial (segue), música para coreografia - assumem uma função
específica em baladas, músicas cômicas e cenas musicais. Consequentemente, o
ouvido é o primeiro a detectar a diferença básica entre o roteiro de uma peça e um
book. As palavras em uma peça projetam sentido dramático através de seu próprio
som falado. As palavras de um book projetam sentido dramático através dos sons
extendidos da letra acoplada à música ou pela substituição da linguagem de sons
pela linguagem de movimento.
Uma vez que o libreto enreda música, dança e texto, um book não deve
carregar o peso dramático de um musical com personagens profundas e diálogos
densos. O simples e óbvio compõem a cena onde tudo é exatamente o que
realmente parece ser. Não há tempo para sondar a situação ou prolongar todos os
níveis da psiqué de uma personagem. Assim, economia de expressão junto a uma
indispensável clareza são fundamentais em um book.
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No texto teatral, caso a plateia não apreenda algum elemento em jogo, há


uma boa chance de tal elemento reaparecer em outra cena ou ser comentado por
outra personagem. Certamente, há tempo e espaço em uma peça para reforços.
Mas as demandas do book musical não permitem ao bookwriter tal luxo. Os
musicais avançam com o book e devido a ele. Isso é uma verdadeira façanha, na
medida em que uma adaptação para musical implica em uma redução significativa
do material original.
Na virada do século, quando o termo comédia musical era usado para
distinguir um book de shows de entretenimentos nativos da ópera bufa e da
opereta, o book servia apenas para costurar as músicas e danças que mais
agradavam à audiência. Tal condição persistiu até o século XX. Jerome Kern
revolucionou a filosofia do book e aplicou suas teorias com sucesso nos
espetáculos do Princess Theatre, mas a maioria dos produtores, escritores e
compositores resistiram à sua influência. A batalha do book tornou-se uma luta
longa e frustrante. A aliança entre as canções de sucesso e o poder dos grandes
artistas era um adversário respeitável. Uma dessas batalhas se destaca das demais:
Oscar Hammerstein II tinha sido contratado para colaborar com Jerome Kern e
Otto Harbach em um musical para Marilyn Miller chamado Sunny (1925). Os
colaboradores aceitaram o desafio e, com energia e estímulo marcharam
apressadamente ao escritório do produtor, armados com as possibilidades
88

dramáticas e teatrais do projeto. Houve resistência, o show deveria apenas


destacar a estrela. Em desespero, os colaboradores leram um detalhado esboço do
enredo. Marilyn Miller indagou, "Quando eu faço o meu número de sapateado?"
Dois anos depois, Jerome Kern e Oscar Hammerstein II escreveram Show
Boat.
O teatro musical americano moderno oferece vários tipos de books, a
maioria dos quais se enquadram nas abrangentes classificações descritivas como
comédia musical, peça musical, peça com música, opereta moderna e ópera
pop(ular).
Em um determinado momento, o termo genérico “comédia musical”
identificava qualquer forma de entretenimento musical americano que se
apropriasse de elementos da opereta, ópera bufa, revista, burlesco, espetáculo e
extravaganza. Hoje, um book de comédia musical contém canções e danças, com
a predominância do estilo cômico e um contexto leve e frívolo, apenas de
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entretenimento. Shows como Annie Get Your Gun ou Hello, Dolly! permitem à
plateia sentar-se confortavelmente, relaxar e divertir-se. A comédia musical está
para um musical assim como a ópera cômica está para a grande ópera: a diferença
não é de qualidade, mas de intenção.
Sem se abster de valores de entretenimento, um show musical aspira à arte
séria através de conteúdos ambiciosos, universalidade do tema, drama
proeminente, forma corajosa e produção mais exigente. Um musical intensifica o
drama através de uma letra, música ou dança, e utiliza a comédia como válvula de
escape para aliviar o peso; pode ser sombrio e complexo, mas, ao mesmo tempo,
agradável. O uso de Sunrise, Sunset durante a cena do casamento de Tzeitel e
Motel, de Fiddler on the Roof, ilustra esse paradoxo. Aqui está uma canção
sentimental, de letra graciosa e melodia agradável, que poderia apenas se referir
ao sentimento dos pais no momento do casamento, evidenciando suas reflexões
sobre a passagem da condição de filha para esposa. O que distingue tal canção no
musical é o seu contexto, o sentimento universal particularizado na situação
específica dramática do pogrom82. A maneira como o bookwriter faz uso dessa

82
Pogrom é um ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente
(casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos
em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras
minorias étnicas da Europa, porém é aplicável a outros casos, e envolve países e povos do mundo
89

canção acrescenta camadas de intensidade dramática que dão dignidade ao


momento teatral. Habilmente contextualizada, cala fundo a emoção plateia,
envolvendo-a.
A peça com música é semelhante à peça musical no temperamento, mas
não no conceito. A diferença entre elas envolve juízo crítico. Os componentes
peculiares de um musical - letras, música e dança – não são fundamentais para a
vida desse material no palco; é possível removê-los sem prejuízo ao texto.
Tal como os seus antepassados, o opereta moderna se rende ao romance
com o charme e a graça habituais. A Little Night Music não está muito longe de
The Merry Widow (A Viúva Alegre). The Fantasticks, The Sound of Music e A
Little Night Music vivem no território da opereta. A maneira como as personagens
são feitas para agir, pensar e sentir-se trai sua origem inconfundível. Ainda assim,
a escrita fica aquém da rendição completa ao romance escapista e sentimental.
Um acorde novo e moderno soa em relação ao enredo, letra, diálogo e
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personagens. O número de abertura de um musical geralmente dá o tom do show e


pistas para o público sobre a natureza do entretenimento da noite. Quintet, número
de abertura de A Little Night Music (1973), que é intercalado com os casais
coreografando uma valsa, nos prepara para um escândalo ocorrido no “Velho
Mundo”, repleto de imagens típicas das operetas: um idílio familiar, passeios no
campo, no bosque, desejos sexuais reprimidos, desencontro de casais. Stephen
Sondheim repete a palavra remember 18 vezes na letra. Obviamente, o passado
será feito presente neste material. No entanto, nada antiquado acontece no book. A
esposa virgem foge com o enteado, o marido abandonado retorna à sua antiga
amante. Nada aqui acontece com em Naughty Marietta.83 A opereta moderna olha
para trás e para frente simultaneamente.
Por outro lado, óperas populares como Porgy and Bess e Jesus Christ
Superstar recorrem às antigas convenções formulaicas da ópera. Tudo é dito com
música, o libreto na ópera popular é centrado na música do começo ao fim.
Enquanto o estilo de música para a ópera popular varia de acordo com a época ou

inteiro. A palavra tornou-se internacional após a onda de pogroms que varreu o sul da Rússia entre
1881 e 1884, causando o protesto internacional e levando à emigração maciça dos judeus.
83
Naughty Marietta é uma opereta em dois atos, com libreto de Rida Johnson Young e música de
Victor Herbert. Ambientado em Nova Orleans em 1780, ela conta como o capitão Richard
Warrington é encarregado de desmascarar e capturar um notório pirata francês que se chama "Bras
Priqué" - e como ele é ajudado e prejudicado por uma carismática fugitiva, Contessa Marietta. O
score inclui muitas canções conhecidas, como Ah! Sweet Mystery of life.
90

o gosto popular, as convenções do libreto permanecem fixas, tanto que, a


comparação entre a ópera italiana do século XIX e a ópera-rock do século XX
revela semelhanças de qualidade e temperamento. Summertime (Porgy and Bess)
tem sido considerada um standard no repertório da música popular americana por
mais de cinco décadas. Assistir à performance dessa canção no palco, no entanto,
faz a audiência relevar o status de canção pop em prol de sua profunda fidelidade
à tradição da ária lírica adaptada ao propósito moderno, isto é, uma canção
dramática estendida com forma definida e música de largo compasso vocal
cantada com expressividade e intensidade. A adaptação se dá na utilização de uma
letra vernácula.
Tampouco a utilização do rock como gênero musical invalida a tradição:
Hosana (Jesus Christ Superstar) soa no palco como uma operística marcha
triunfal no estilo de Prokofiev, e I Only Want To Say (Gethsemane) desenvolve
uma melodia lírica no estilo característico de uma ária de Puccini.
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3.1.2
Elementos

Cinco principais elementos dramáticos combinam dentro de um book para


dar conta de seus valores originais, peso e proporções. Eles são personagens,
enredo, situação, diálogo e tema. Os elementos de um book devem ser concebidos
e executados com o propósito único de comunicar através da canção.
A personagem é fundamental no drama, ela deve ser lembrada além do
musical. Enquanto o dramaturgo almeja uma caracterização rica e completa, um
bookwriter deve se limitar a criar personagens simples, sem profundidade. Para
compensar essa leveza, os protagonistas devem aparecer logo no início da trama e
ser identificáveis pela audiência como tal. Carousel começa com um prelúdio de
valsa situado num parque de diversões, onde estão Billy Bigelow e Julie Jordan.
Próxima a eles, a Sra. Mullin demonstra estar enciumada ao observar a crescente
atração entre Billy e Julie. A cena inteira é executada através de pantomima
sincronizada com a música. Tradition, de Fiddler on the Roof, funciona da mesma
maneira, só que acrescenta letras, música, diálogo e dança. Neste caso,
personagens simples e planos não se caracterizam como estereótipos
91

unidimensionais. Para completá-los, há a riqueza da música, do canto e da dança,


que lhes dão vida em suas performances. Tevye é singelo, não esconde nenhum
segredo, não há curvas em sua identidade. O padrão de simplicidade não significa
que as personagens não possam crescer; eles não devem mudar, apenas
desenvolver-se.
Enredo é a sequência de ações planejadas para revelar o drama das
personagens, uma determinada ideia ou uma situação. O enredo não é a história
propriamente dita. Gypsy, musical cujo book foi escrito por Arthur Laurents, e
Gypsy: by Memoir, escrito por Gypsy Rose Lee, contam a mesma história. No
entanto, cada um desenvolve um enredo diferente. Essa diferença não é tão trivial
quanto possa parecer. A partir do surgimento do musical conceitual - onde todos
os elementos de um musical contribuem para incorporar uma ideia - foi posta em
questão a necessidade de se contar uma história. Company apresentou uma
estrutura fragmentada que desafiou a antiga teoria do fio da narrativa, fazendo
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com a história linear o que fez a pintura cubista com o espaço. No entanto,
playwriters que reconhecem a necessidade de uma história, obedecem a um
princípio fundamental: o enredo deve revelar em vez de falar sobre o drama. A
verossimilhança do gênero dramático advém da imitação da ação dramática, e
esse princípio aristotélico também é um dogma no teatro musical.
A situação opera dentro do enredo como qualquer momento capaz de gerar
o drama, sustentar a atenção do público, e implicar em uma resolução final. Como
micro unidades dramáticas, muitas situações se somam para fazer o macro enredo.
E cada situação deve favorecer as expressões de música e dança. Embora a
maioria dos musicais importantes desde Oklahoma! tem sido adaptada de peças
teatrais plenamente realizáveis, não é todo drama que sustenta uma adaptação para
um espetáculo musical. Certas situações resistem ao tratamento musical. Romeu e
Julieta tem uma longa história de adaptações de sucesso na ópera, no balé e no
teatro musical, devido à sequência de situações melodramáticas que eliminam a
necessidade de palavras e incentivam a substituição por som e movimento. Em
West Side Story, exceto por um momento de pausa cômica oferecida pela cena
“Jeez, Officer Krupke”, cada número musical no score surge das três principais
situações dramáticas do book: Os Jets-Sharks, Tony-Maria e Anita-Maria. A
progressão dessas situações que se refletem em cada canção diz tudo o que você
precisa saber sobre a premissa, o desenvolvimento e a resolução desse show.
92

Diferentemente do drama falado, o diálogo em um book sempre é


acompanhado por uma canção. Onde um dramaturgo, no teatro falado, usa o
diálogo para apresentar uma personagem e expandir o efeito dramático, o
bookwriter condensa o volume de diálogo e o leva a um ponto que só pode ser
continuado através de uma canção. A partir do teatro musical integrado, se a
canção não for o cerne da cena, então não há nenhum propósito em fazer um
musical a partir deste material. Onde canções funcionam bem como cenas, o
diálogo deve ser econômico. E uma vez que ele não pode ser generoso, deve ser
afiado, nítido e ir direto ao ponto. Cada frase deve justificar o seu espaço e a
clareza é fundamental para um bookwriter. A linguagem deve ser apropriada à
personagem, sempre adequada ao espírito e ao tom desejado para o espetáculo.
Um tema não é um conceito. O tema de um espetáculo musical é a sua
ideia principal, o conceito de uma produção musical é como tal ideia toma forma
ou é interpretada. O bookwriter coloca o tema de um musical em um conteúdo
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onde a personagem, o enredo e os diálogos são projetados para a plateia. O


conceito vai além do tema em alguma declaração ou imagem sobre o que o
espetáculo significa, ou o que pretende fazer, ou como ele vai fazer sobre isso. O
tema de Cabaret seria a busca dos jovens pelo prazer imediato como resposta às
injustiças da vida. O conceito torna esse dramático hedonismo do tema em um
mundo vigoroso e decadente, ambientado em um café em Berlim dos anos 30. Em
um nível elementar, o tema está para a criação assim como o conceito está para a
interpretação. Em um nível sofisticado do musical conceitual, conceito é a criação
e a interpretação. Normalmente, o conceito enriquece o tema e dá ao diretor e à
equipe uma direção no desenvolvimento do musical.

3.1.3
Atributos

Não há regras rígidas para os escritores que têm a tarefa específica de


misturar determinados ingredientes para a confecção de um espetáculo musical.
No entanto, o modelo das todas as obras potenciais e concretizadas no repertório
ativo do teatro musical americano popular sugere que um bom book musical
combina as qualidades de romance, emoção, lirismo e comédia. Canto e dança
93

prosperam a serviço do amor romântico, amor idealizado. A preocupação com o


amor romântico justifica o escopo emocional revelado pelos musicais modelo
Broadway de maior sucesso. O amor romântico pode abraçar crianças (Fiddler on
the Roof), dança (A Chorus Line), e ideais nobres (Man of La Mancha), bem como
maridos, esposas ou amantes. O amor romântico não conhece barreiras no
universo, incluindo idade e raça (South Pacific), classe social (My Fair Lady) ou
morte (Carousel).
O teatro musical é um teatro romântico e popular. Onde a razão escapa da
multidão, a emoção forte não escapa. É verdade que as colaborações de Stephen
Sondheim evitam igualar o sentimento de amor, mas também é verdade que seus
espetáculos nunca foram populares à proporção do talento e técnicas envolvidos.
Entretanto, a maioria dos musicais de grande sucesso de repertório clássico do
teatro musical apresenta o book sabiamente trabalhado em seu conteúdo
romântico-sentimental, e dá ao público a oportunidade de compartilhar esse
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sentimento universal, operando a catarse. Se o público sorri profundamente ao


deixar o teatro, é mais por alívio do que por reconhecimento de uma humanidade
compartilhada como experiência em um ato coletivo de resposta emocional
involuntária.
O grande teatro musical tem que envolver a plateia. Se ele falhar, é
provável que a natureza do material revelou-se inadequada ou mal desenvolvida.
A comicidade é o atributo de um libreto musical sempre apropriado. O
teatro musical popular abraça a visão da vida como ela deveria ser, a vida cheia de
música, dança e riso. Só os verdadeiramente derrotados nunca riem, e onde, no
repertório dos musicais de sucesso, encontramos personagens realmente
derrotados?
A comédia sempre foi a marca do teatro musical americano popular (e do
brasileiro também, diga-se de passagem). O que distingue a comédia do libreto
maduro da de seus antecessores é a sua nova natureza e função no book. A
comédia era originada fora do book nos primórdios da comédia musical. Artistas
contratados especificamente para esse fim interpolavam piadas, gags, ou o
pastelão para gerar as risadas. Os dispositivos geradores de riso eram genéricos e
poderiam ser atribuídos a qualquer um no elenco e muitas vezes pontuais o
suficiente para permitir a improvisação casual durante a performance. Em suma, a
comédia era um cosmético. Hoje, a comédia mais eficaz cresce organicamente a
94

partir dos elementos do book, em particular das personagens e da situação. Se o


aspecto cômico em um book não é divertido fora do contexto, é porque o contexto
é a comédia. Joseph Stein nos faz rir em Fiddler on the Roof, mas é do texto ou de
Tevye que nos lembramos? A visão da comédia no texto de um musical maduro
cresce graças às suas personagens. e a personagem é essencial no teatro dramático
musical. Além disso, a comédia de personagens-em-situação proporciona um
contraste natural de humor com os momentos mais graves do texto, sem causar
danos à crença da plateia em ambos. Onde a comédia do passado fragmentava o
espetáculo em momentos cômicos, separados e exclusivos dos igualmente
forçados momentos de romance no espetáculo, a comédia do teatro musical
maduro está contextualizada com todos os elementos. Ela pode funcionar como
paliativo entre momentos de tensão, pois cria cenas subsequentes para os
momentos de maior intensidade dramática.
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3.1.4
Mecânica

Brevidade, particularização, andamento84 e subtrama constituem a


mecânica original do texto musical.
A natureza do book exige a entrega do diálogo falado para as forças da
música e da dança. A música estende o som da voz humana no tempo. Ela possui
as vogais, aproveita uma pausa, e repete passagens inteiras no refrão. O tempo
adicional consumido pelo movimento, pela dança e pelo espetáculo deduzido do
limite de duas a duas horas e meia sobre o musical moderno, reduz o espaço para
os diálogos a um terço ou metade da extensão de uma peça musical de duração
média. Comparemos Pygmalion com My Fair Lady, Green Grow the Lilacs com
Oklahoma!, ou Romeu e Julieta com West Side Story. Como inventar um rico
cenário dramático povoado com personagens redondas comparáveis em
credibilidade com o teatro não-lírico com menos tempo e menos ferramentas?
Onde a habilidade ajuda o escritor em busca da concisão, o talento ajuda o
escritor na busca da efetiva particularização. Um drama musical comanda a
atenção de um público apenas na medida em que o bookwriter dota os elementos

84
Grau de velocidade que se imprime à execução de um trecho musical. Conforme esse grau,
consideram-se três tipos de andamento: lento, moderado e rápido.
95

do texto com características específicas e individualizadas. A particularização é


prova de destaque no mundo das coisas criadas. Por outro lado, quem se importa
profundamente com uma abstração? Por exemplo, o texto para Company envolve
o seu heroi, Robert, e quatro pares, seus amigos casados. Para particularizar cada
personagem, Sondheim criou para cada casal uma forma singular de chamar
“Robert”. O número de abertura Company apresenta-os através desse vocativo
específico que eles usam para lidar com ele. Alguns exemplos: "Robby", "Rob-o",
"baby Bobby", "Bobby Bubi".
O tempo e o espaço cerceam o texto musical. Como a brevidade acomoda
o problema de espaço, o andamento acomoda os problemas de tempo. O
bookwriter cria para cada cena dispositivos que conduzem o show para o próximo
estágio de desenvolvimento. Joseph Stein move Fiddler on the Roof para frente,
seu ritmo não espera por ninguém. Depois de Tradition, todas as peças do quebra-
cabeça dramático estão sobre a mesa esperando para ser movidas. O libretista
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conduz o público imediatamente para a relação Tzeitel-Motel. Antes que essa


relação chegue ao seu momento de pico, o público já está no caso Hodel-Perchik,
que prossegue de forma semelhante em relação à Chava-Fyedka e vai para o final.
O bookwriter controla o andamento do show de acordo com o conceito, a relação
estabelecida e a sequência de cenas. Quando há uma cena musical, nesse caso fica
a cargo do compositor e do letrista a elaboração da canção para avançar a ação,
levá-la para a próxima cena.
A subtrama é o mais peculiar mecanismo no teatro musical. Tal
mecanismo completa a trama de forma secundária e subordinada, e é executado
em contraponto à trama principal. Uma vez que a brevidade dos diálogos é um
pré-requisito para a boa mecânica de um espetáculo, as subtramas recheiam o
book com outros elementos – canções, danças - que vão proporcionar cenas
musicais adicionais, enriquecendo o musical.

3.1.5
Estrutura

A estrutura de um book se refere à organização única de todos os


elementos de um musical de acordo com as exigências do tema ou do conceito.
Um princípio domina toda a estrutura do texto musical: o conteúdo determina
96

forma. Cada ideia para um musical carrega consigo valores distintos e


possibilidades que exigem uma forma adequada. Uma vez definida a ideia, o
bookwriter poderá definir as características estruturais do texto musical.
A primeira característica baseia-se no padrão de exposição, conflito e
resolução. O autor do texto pode introduzir as personagens principais e outros
elementos vitais na cena ou música de abertura; pode estabelecer o conflito que
gera a tensão dramática, e deve cultivar na plateia um desejo sincero de resolução
para o problema. A segunda característica estrutural aplica-se a três momentos
críticos na sequência de um espetáculo: a Abertura, o Fim do Primeiro Ato e o
Final. Hoje, a Abertura de um show habilmente construído expõe à plateia todos
os elementos dramáticos e teatrais peculiares daquela produção: personagens
situação, temática, diálogo, criação, estilo, tom de abordagem, e os valores de
desempenho.
A divisão em dois atos faz com que a conclusão do Primeiro Ato adote
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alguma técnica para trazer o público de volta para o show com o interesse e
entusiasmo despertado pela Abertura. Nestas circunstâncias, alguma expressão
dramática de tensão que prolonga a expectativa de resolução funciona melhor.
Este é o princípio por trás do dream ballet em Oklahoma!, o burburinho em West
Side Story, o pogrom no casamento de Tzeitel em Fiddler on the Roof.
O Segundo Ato deve ser mais curto e menos complicado que o Primeiro
Ato. Geralmente, não mais que 45 minutos se interpõem entre a conclusão do
intervalo e final do Segundo Ato. Porém, a quantidade de material novo
adicionado ao Segundo Ato deve ser limitada. Um material novo leva tempo para
se desenvolver, o tempo que pode servir melhor para avançar o crucial para o final
do show. Alguns escritores preenchem o Segundo Ato com reprises abreviadas do
material do Primeiro Ato. Este dispositivo acrescenta interesse, não necessita de
um maior desenvolvimento, e não fornece nenhum obstáculo para o impulso de
crescimento do programa em direção a uma conclusão.
O final do musical deve ser mais do que uma solução previsível. Deve
resumir a experiência singular daquele espetáculo. Aqui, o autor deve fazer o
público sair do teatro com um momento para recordar, um momento previsto,
excitante por si só. O público retém a lembrança da imagem final de Tevye
acenando para o violinista; das cartolas e fraques de A Chorus Line; da canção
Rose's Turn de Gypsy.
97

A era da primazia do texto musical marca um fenômeno recente na longa


história do teatro musical americano popular. Mesmo hoje em dia, com essa
atmosfera criativa iluminadora, o potencial artístico do texto musical permanece
subdesenvolvido. Se o primado do livro musical assegura a maturidade do teatro
musical americano, no futuro, apenas a experimentação e desenvolvimento nessa
área vai sustentá-lo.

3.2
O score

A importância e versatilidade de música para o teatro levou seus


compositores a criarem um conceito mais especializado de score. Hoje, um score
implica mais do que a soma total dos números musicais escritos ou montados para
um determinado espetáculo. Ele deve ser um arranjo altamente especializado de
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muitos tipos fundamentais de canções de teatro, ao mesmo tempo unificado em


grande estilo e dedicado ao drama ou propósito teatral. Ele deve se desenvolver a
partir do book ou do conceito, evitar a imposição e a interpolação, e não fazer
concessões ao mercado comercial. Para surpresa e decepção de muitos na plateia,
o score não precisa ser popular para ser eficaz. Os mais importantes e duradouros
musicais modelo Broadway demonstram que o score é o book contado
musicalmente.
O teatro musical engloba uma vasta gama de gêneros, de revistas a óperas,
que se diferenciam por diversos aspectos, mas, principalmente, pela função
dramática da música na peça. Em revistas como An Evening with Cole Porter ou
Side by Side by Sondheim, canções populares realizadas por um compositor são
amarradas sem qualquer contexto dramático, enquanto que na ópera todo o drama
é transmitido quase que exclusivamente através da música. A distinção refere-se a
como os diferentes elementos da rede se aproximam para formar uma síntese das
artes, com todos contribuindo para o desenvolvimento da ação dramática. Em um
genuíno musical modelo Broadway, as canções não existem apenas por seu valor
de entretenimento, mas desenvolvem a história, o espírito, o tema, apresentando o
drama através da música.
Oklahoma! de Rodgers e Hammerstein estabeleceu um padrão de sucesso
para a integração das músicas e letras de um musical, criando um precedente
98

fenomenal. As normas para o musical agora estavam em alta, o grande desafio era
desenvolver esta parceria criativa e ter seu talento reconhecido. A maioria dos
musicais da Broadway, desde aquele tempo, tem seguido esse paradigma.
Anteriormente, letristas e compositores escreviam canções, mas agora eles se
tornavam parte integrante do libreto, trabalhando junto com o bookwriter,
utilizando canções para desenvolver a personagem e avançar a história. Rodgers e
Hammerstein abandonaram as bem sucedidas fórmulas da revista, comédia
pastelão e das coristas seminuas. Todos os elementos do musical agora deveriam
ter uma função dramática. As técnicas utilizadas em Oklahoma! continuam a ser
usadas em musicais do século XXI.
O book tem prioridade, todos os outros elementos co-existem para as suas
necessidades dramáticas. Ele fornece o esqueleto narrativo para um musical, bem
como o momento de entrada do canto e da dança para reforçar a história. O book
pode ser baseado em uma peça, romance, filme ou, raramente, desenvolve-se a
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partir de uma ideia original.


A história de Oklahoma! veio de uma peça, Green Grow the Lilacs,
lembrada somente devido à sua transformação em um musical.
Seu número de abertura (opening number) ajuda a criar a atmosfera e a
preparar para os temas do musical. O início lento, com um barítono solitário no
palco cantando o verso "There's a bright golden haze on the meadow" (Há uma
névoa brilhante e dourada no prado) define um tom diferente do habitual
espectáculo que se inicia com uma linha de coristas chutando alto suas pernas.
Esse número será repetido perto do final do show, ajudando a criar um senso de
unidade para toda a produção. Os colaboradores trabalharam para conseguir
transições suaves da fala para a música. As canções começam como uma
continuação do diálogo, como quando Will Parker avisa à sua menina Ado Annie
que, com ele, é “All er Nuthin” (tudo ou nada) em seu relacionamento. Desta
maneira as canções não interrompem o diálogo dramático, mas desenvolvem e
expandem-no. A música deve expressar os mais profundos pensamentos e
sentimentos das personagens naquele momento. As letras descrevem as ações e
eventos específicos dentro da história e seguem os padrões de fala natural das
personagens no vernáculo da peça. As personagens de Oklahoma! falam e cantam
com seus sotaques provincianos, não como virtuosos em uma ópera. O estilo de
música se relaciona intimamente com as letras específicas, como pode ser ouvido
99

em The Surrey with the Fringe on Top com o seu ritmo clip-clop constante, que
imita o som de cascos de cavalos. Músicas que se repetem muitas vezes são
usadas para mostrar o desenvolvimento da personagem. Durante People will Say
We’re in Love, Laurie e Curly cuidam para que eles não fiquem muito perto ou se
falem por muito tempo, as pessoas podem ter uma ideia errada a respeito deles.
Perto do final do espetáculo, a repetição muda a letra para "Let People Say We're
in Love", revelando uma mudança em sua relutância inicial a uma aceitação
mútua das suas relações.
Oklahoma! também apresentou um papel inovador para a dança. Em seu
sonho, Laurie imagina um confronto mortal entre Curlie e Judd (os três vértices
do triângulo amoroso), e a plateia vê uma coreografia que avança a história,
através da música e do movimento. O avanço desta ideia se notabiliza em West
Side Story, musical concebido como um balé dramatizado pelo diretor-coreógrafo
Jerome Robbins.
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Duas amplas classificações guiarão esta abordagem aos elementos de um


score. A primeira inclui os elementos agrupados de acordo com características
marcadamente musicais, como opening number, establishing number, throwaway
song, patter song, rhythm song, chorus number, musical scene, underscoring,
musical crossover, segue e reprise. O segundo grupo inclui tipos de músicas de
acordo com a função dramática implícita na ideia lírica: ballads, charm songs,
comedy songs, I am songs , I want songs, e specials. As categorias não são
mutuamente exclusivas. Como não foi encontrada uma equivalência de termos no
teatro musical brasileiro – somente alguns elementos possuem tal equivalência –
optou-se pelo registro original em inglês de todo o conjunto.

3.2.1
Elementos de um score

Um opening number é uma composição musical que pode variar em


forma, comprimento, conteúdo e método de apresentação que introduz o
espetáculo. Orquestrações formam a maioria das aberturas através da fusão de
melodias contrastantes montadas a partir das canções mais notáveis do score.
Normalmente, uma melodia viva ou rítmica começa a composição. Em sequência,
100

melodias ou outros fragmentos musicais de ritmo contrastante se juntam para


formar o corpo da música. Finalmente, todos os recursos sonoros convergem para
um encerramento pleno e vibrante. É uma fórmula que funciona. Mas esse tipo de
construção não torna essa canção menos estimulante. Orquestradores que desejam
afastar-se da fórmula de um opening number dispõem de outras alternativas. Um
compositor pode substituir uma composição completa e independente, evitar a
orquestra, substituir o coro vocal ou adicionar o coro à orquestra - até mesmo
subtrair efetivamente uma abertura. No entanto, a Abertura responde a objetivos
válidos teatralmente. Ela capta a atenção do público e lhe dá um fio condutor. O
compositor de Gypsy, Jule Styne concorda: "Tudo o que sei é que quando o
trompetista começou a tocar, a plateia foi à loucura. Fomos um sucesso mesmo
antes de abrir a cortina." (apud KISLAN: 1980; 183) A abertura coloca a plateia
no atmosfera desejada. Uma audiência é uma convenção de estranhos
despreparados para a participação emocional ativa em uma experiência teatral.
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Uma efetiva abertura pode sintonizar esse público no mesmo nível psicológico da
cena de abertura e criar a sua consciência coletiva para os eventos a seguir. A
abertura entretém o público, a repetição assegura o reconhecimento e a diversão.
As melodias que a audiência leva para fora do teatro são aquelas que serviram
triplamente à abertura, performance e repetição. Um opening number deve dar
pistas sobre a atmosfera do espetáculo, as personagens principais, descrever as
suas relações, estabelecer o tempo e o espaço, incorporar o tema, projetar a
situação e fixar o estilo da performance para toda a produção, dando assim, ao
público, uma base para o reconhecimento e a valorização do impulso inicial de
comunicação de um musical. Na abertura de Brigadoon, o quinto acorde exprime
uma nota que comunica a configuração na Escócia, antes da audiência ver o
cenário ou a indumentária das personagens. As notas em staccato e as frases
musicais da abertura de My Fair Lady transmitem o temperamento refinado de
todo o trabalho. Os acordes dissonantes no discurso de abertura, Carousel Waltz
do musical Carousel, espelham a atmosfera de tensão iminente que está
subjacente à situação principal do espetáculo.
Um establishing number estabelece uma ideia fundamental na canção a
partir da qual o musical pode evoluir. A maioria das canções em um score de
sucesso estabelece algo novo e que vai além da música anterior. Este movimento
coordenado e cumulativo sinaliza o desenvolvimento dramático-musical dentro de
101

um musical consistente. No entanto, nem todas as situações teatrais necessitam de


um establishing number.
Em alguns casos, o compositor pode adicionar uma throwaway song no
score, que vem a ser uma música que mascara uma mudança de cenário complexo
ou figurino, acompanha uma entrada ou saída, ou desvia a atenção do público
durante um inevitável atraso técnico. Às vezes, uma throwaway song pode
ascender de categoria. Jerry Herman criou Hello, Dolly para acompanhar a
entrada triunfal de Dolly Levi no Harmonia Gardens. A canção, que inicialmente
deveria preencher uma lacuna, tornou-se o grande sucesso do musical.
Uma vez que patter denota loquacidade, conversação rápida, O termo
patter song se aplica a uma música onde o compositor define uma sequência
rápida com letra compacta para um acompanhamento harmônico específico.
Patter songs são os recitativos do teatro musical popular, mas com funções que
vão muito além de uma simples exposição. A letra domina a música
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independentemente de sua função. Sua dicção, ritmo e rima determinam a canção


de uma personagem em particular, cuja fala se sobressai ao canto. Uma patter
song define as cadências melódicas de um diálogo falado a uma linha melódica.
Conduz a fala à música com um ritmo leve. Um material cômico se encaixa bem
nesse tipo de canção, especialmente quando a situação dramática encoraja o
humor gerado pela incongruência da linguagem.
Se uma patter song depende da performance de um ator, que deve
pronunciar o maior número possível de palavras sem perder o fôlego, usando uma
dicção especializada e a língua com agilidade, o apelo de uma rhythm song
baseia-se em valores musicais, particularmente em uma batida musical dominante.
Rhythm songs induzem a uma resposta animada, os pés batem, os dedos estalam e
o corpo se move. Nos primórdios do teatro musical americano, essas canções
eram apropriadamente chamadas de jump tunes, e toda produção possuía ao
menos uma canção desse gênero rápido e animado. O tempo atenuou a
intensidade dessas canções em um musical. Ainda assim, a tradição vive no ritmo
de canções mais sofisticadas, como em Luck Be a Lady Tonight (Guys and Dolls).
O chorus number proporciona um contraste com os solos de um score.
Para o letrista, oferece uma estrutura que expressa uma reação coletiva no interior
de uma ideia ou situação dramática. Para o compositor, a oportunidade de usar a
harmonia polifônica vocal com o acompanhamento de orquestra. Invariavelmente,
102

um chorus number projeta um conjunto de atores no centro das atenções para


narrar (Guinevere, de Camelot), servir de ponte para as ações dramáticas (The
Servants Chorus, de My Fair Lady), celebrar (Oklahoma!, em Oklahoma!) ou
comentar a cena ou as ações das personagens.
Uma musical scene define com a música uma ação dramática completa.
Essa é um tipo de canção muito utilizada, um dos mais antigos dispositivos
peculiares ao teatro musical ainda ativo. Proveniente da ópera e da opereta,
adapta-se perfeitamente a essas situações dramáticas em que o diálogo falado é
inadequado. Richard Rodgers utilizou tal dispositivo três vezes durante o Ato I de
Carousel. A sequência de If I Loved You utiliza o recurso do diálogo que irrompe
na música em oito ocasiões diferentes. Diálogo, canto e interlúdios musicais
coerentes em uma cena prolongada onde essas três formas fluem, sem interrupção
da ação dramática. Embora a letra de If I Loved You seja construída na tradicional
forma AABA, a música em si representa apenas uma unidade no total de
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expressão musical do cena. Esta cena musical com transições de diálogo se


desenvolve da seguinte forma:

(Diálogo)
You’re a queer one............................................... (Melody 1)
(Diálogo de transição)
I’m never goin’ to marry…................................... (Melody 2)
(Diálogo de transição)
When I worked in the mill.................................... (Melody 3)
(Diálogo com interlúdio)
If I loved you……………………......................... (Melody 4)
(Diálogo de transição)
You can’t hear a sound……................................ (Melody 5)
(Monólogo com interlúdio)
There’s a helluva lot o’stars................................. (Melody 5)
(Diálogo com interlúdio)
Kinda scrawny and pale……............................... (Melody 3)
(Diálogo com interlúdio)
If I loved you……………………......................... (Melody 4)
(Diálogo)
(Conclusão musical)…………….......................... (Melody 4)85

Integrados nesta "cena" estão cinco padrões de letras, cinco melodias,


monólogo, diálogo e interlúdios musicais. Dramaticamente, a sequência leva os

85
KISLAN, Richard. The Musical: A Look at the American Musical Theatre. Rev. Ed. New York:
Applause, 1995. p. 214.
103

protagonistas de um casual interesse mútuo ao beijo que sela o seu


relacionamento.
O Underscoring permite que o compositor aproveite o poder da música em
uma cena dramática específica. Ao contrário da música incidental, que possui uma
função secundária, fazendo um mero acompanhamento, underscoring representa
um grande esforço coordenado entre o compositor e libretista para enfatizar o
diálogo, as ações, ou uma cena em que a música se faz personagem.
Os musicais precisam avançar em um ritmo acelerado e rápido. Os
compositores da antigas comédias musicais usavam um técnica chamada musical
crossover, que consiste em tocar uma canção breve, de dança ou trecho de
comédia, antes do first traveler86 para ligar as cenas musicais. Em tempo, o segue
substituiu o crossover. Um segue é uma breve passagem orquestral adaptada da
música da cena anterior que empurra o fim de uma cena para a próxima. Quando
eficaz, um segue alinhava as diferentes partes de um show em uma perfeita
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estrutura teatral com impulso ininterrupto e impacto acumulado.


Uma reprise é um dispositivo que traz de volta uma música no final do
show para reforçar um ponto, preencher uma pausa na ação, ou acrescentar
alguma nova dimensão a uma ideia já estabelecida. A reprise, além de ser breve,
pois a canção já é conhecida do público, deve acrescentar alguma nova ideia,
alterando parte da letra ou não. Frequentemente uma reprise é utilizada com fins
comerciais, uma vez que ela dá ao público uma música para cantarolar ou assobiar
fora do teatro.

3.2.2
Canções dramáticas

As ballads - aqui podemos falar baladas - , em sua grande maioria, são


canções de amor de letras simples e melodias generosas. As letras sinceras
dominam esse tipo de canção. O que as torna inesquecíveis é a capacidade de
suspender, e em seguida, transportar através da música o mais sublime dos

86
O termo first traveller refere-se às cortinas transversas que ficam mais próximas da plateia, as
quais são abertas a partir de ambos os lados do proscênio. (Kislan, Richard. The Musical: A Look
at the American Musical Theater Prentice Hall Inc, NJ, 1980. p.216.)
104

sentimentos humanos. Uma canção como We Kiss in a Shadow, do musical The


King and I, ilustra bem uma ballad song.
Uma charm song fica a meio caminho entre a ballad e a comedy song. Ao
contrário da ballad, onde a melodia predomina, ou uma comedy song, em que
letra rege a música, a charm song dá a mesma ênfase para a música e a letra. Seu
conteúdo é menos determinado por uma definição precisa do que por uma
qualidade transmitida, essa categoria não exclui outros tipos de música. No
entanto, as charm songs de maior sucesso possuem um encanto e um teor otimista
que nos cativa. “Em algum lugar entre o amor romântico e o riso imediato vive
uma atitude de profundo e secreto sorriso”. (Kislan:1980; 217) Em Do You Love
Me? (Fiddler on the Roof), Tevye deseja saber se Golde, sua esposa, ainda o ama
após 25 anos de convívio. Ela responde sempre por meio de evasivas, mas ele
insiste na pergunta até que ela o diga claramente. A partir deste momento o
diálogo cantado toma forma de dueto. Uma fala popular, conhecida pelos amantes
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de musicais, diz que uma canção de amor só é cantada em dueto quando


realmente existe o amor.
Uma vez que a comédia no teatro nasce da incongruência na vida ou na
língua, uma comedy song se realiza na letra, tornando sua música subserviente.
Mesmo com essa ênfase nas letras, a música de uma comedy song mantém
algumas características geralmente compartilhadas, como um perfil melódico
simples e descomplicado, uma qualidade complementar ao invés de dominante, e
uma forte inclinação para assumir uma personalidade de patter song.
A eleven o’clock song originou-se como material especial destinado a ser
um número de destaque para uma a estrela apresentado minutos antes que a
cortina final fechasse. Hoje, é o número do Segundo Ato que deve ser forte o
suficiente para energizar o público para as cenas finais. A música Oklahoma!, no
musical homônimo, é um exemplo.
De acordo com o diretor-coreógrafo Bob Fosse, (Ibid., 219) certas canções
para o teatro se encaixam em categorias adicionais, como I am song e I want song.
Diferentemente dos tipos descritos acima, essas classificações recaem
exclusivamente sobre a mensagem dramática da letra. Uma I am song aparece
logo no início do Primeiro Ato de um musical. Ela estabelece algo essencial para
a audiência compreender a personagem e a situação. A mensagem pode ser "Eu
105

me sinto bem com a vida", "Eu estou apaixonado" ou "Eu sou capaz de lidar com
o que parece ser um relacionamento fracassado"
As personagens do teatro romântico deve aspirar além do estabelecido em
uma I am song. A canção que incorpora tal desejo é do tipo I want song. Uma I
am song corresponde à personagem e à situação; uma I want song, à trama. Esse
tipo de canção pode sugerir ou traçar um plano de ação para a personagem.
Muitas vezes, uma I want song prenuncia o curso da ação que o musical vai
seguir. Tonight e A Boy Like That, de West Side Story, traduzem bem esse
sentimento.

3.2.3
Mais alguns elementos de canções para shows musicais
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O título de uma música para o teatro deve representar algo mais do que um
nome descritivo do tema da canção. A canção é a cena no teatro musical maduro.
Portanto, o título da música deve carregar sua função dramática, tanto como o
propósito da cena, a natureza da situação, ou uma mudança no enredo, ação ou
personagem. Para ser eficaz, o título deve aparecer no início do refrão. Oscar
Hammerstein II sabia disso e ensinou-o a Stephen Sondheim. Mesmo em um
musical inovador como Company, onde as canções comentam a ação ao invés de
avançá-la, os títulos das canções aparecem no início do refrão. Em The Little
Things You Do Together, Sorry-Grateful, You Could Drive a Person Crazy, Have
I Got a Girl for You, Someone is Waiting, Another Hundred People e Ladies Who
Lunch, o título aparece no primeiro verso da letra. Embora seja trabalho do letrista
determinar um título apropriado para fins dramáticos, o compositor deve
responder pela criação do título com um tema musical adequado.
Desde o início de 1900, as estrofes das canções populares americanas têm
sido, tradicionalmente, 32 barras longas, normalmente divididas em quatro seções
de oito compassos cada - a forma AABA. Este formato força os compositores e
letristas a criarem suas canções eficientemente, mais como uma disciplina do que
uma limitação. “A” é a melodia principal, repetida duas vezes - de modo que
possa ser facilmente lembrada. B é a ponte (bridge), e contrasta tanto quanto
possível com A. Em seguida há um retorno à primeira melodia, que pode variar.
106

De Cohan a Jonathan Larson, todos os compositores modernos da Broadway têm


trabalhado dentro desta estrutura. Na verdade, AABA manteve o padrão para toda
a música popular até que o rock’n’roll, que utiliza a forma estrofe-refrão e 12
barras, aniquilou essas convenções em 1960. Canções que não usam a estrutura
AABA tendem a usar uma pequena variação do formulário. Uma música pode
dobrar o número de barras (quatro seções de dezesseis cada), ou simplificar a
forma, como em ABA. Alguns números introduzem uma terceira linha melódica
no final (AABC) - mas a estrutura AABA e as proporções continuam a norma.
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107

4
O teatro musical no Brasil

A prática do teatro musical no Brasil remonta à segunda metade do século


XIX, sobretudo a suas últimas duas décadas. Gênero de vigência irregular, que
tem conhecido momentos produtivos, seguido por períodos menos ricos, o
musical, atualmente, é um gênero de grande afluência de público, que chega a
atingir mais de 100 mil espectadores em uma temporada, e se alimenta da
nostalgia pelos cantores de rádio, marchinhas e sambas carnavalescos, ídolos do
passado e adaptações da Broadway.
No início do século XX, o teatro de revista era o gênero teatral mais
expressivo no Brasil. O Rio de Janeiro, a capital, era o pólo concentrador da
produção revisteira que se apresentava, com muita beleza, música, diversão e
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sátira político-social, a um público urbano fiel e crescente. Pesquisadores como


Flora Süssekind (1986), Roberto Ruiz (1988), Neyde Veneziano (1991), Salvyano
Cavalcanti de Paiva (1991), Delson Antunes (2002) e Tania Brandão (2004) para
citar só alguns, têm construído a historiografia recente desse gênero que conheceu
momentos de glória com as revistas carnavalescas e, posteriormente, com o
glamour das vedetes.
Em meados do século XX, a revista entrou em decadência e quase
desapareceu. O público foi-se tornando escasso, a nova audiência ansiava por
novidades, e o gênero revisteiro, aos poucos, passava o bastão para um novo
formato musical, uma dramaturgia que se organizava em espetáculo cantado para
responder, de modo crítico, ao regime militar. O musical engajado reciclava a
revista ao mesmo tempo em que se apropriava de formas musicais norte-
americanas, como a comédia musical. O compositor Fernando Marques (2006),
em sua tese de doutorado intitulada Com os séculos nos olhos – teatro musical e
expressão política no Brasil, 1964-1979, analisa algumas produções e as
categoriza em quatro famílias estéticas, com o objetivo de iluminar o modo como
as mensagens participantes se articularam à forma litero-musical nessas peças.
Após o declínio acentuado dos musicais de resistência no final do século
XX, o gênero recuperou o fôlego e voltou a atrair a atenção do público, a partir de
108

produções baseadas em biografias de personalidades ligadas ao mundo musical.


Ana Maria Bulhões-Carvalho (2001) dá continuidade ao projeto de memória do
teatro musical no Brasil desenvolvendo a sua pesquisa sobre musicais biográficos
na cena carioca contemporânea.
O teatro musical modelo Broadway aportou aqui em 1962 com My Fair
Lady, ou Minha Querida Dama. Adaptações do outros musicais de sucesso foram
se sucedendo e, atualmente, na primeira década do século XXI, há uma vasta
produção de musicais importados que dominam a cenal teatral musical, tanto no
Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Apesar de haver espetáculos nacionais bem
sucedidos, parecem ser as versões feitas do modelo norte-americano as que mais
atraem a audiência.
Uma vez que o foco dessa pesquisa está na identificação das convenções
estruturais de um musical modelo Broadway no nosso gênero híbrido -
principalmente no uso da canção como elemento fundamental - vamos verificar as
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nuances ou fases da evolução do teatro musical do Brasil através de um olhar


crítico que deseja perceber uma maturação estética decorrente da própria mudança
dos tempos, mas advinda também do exercício mesmo do espetáculo cantado.

4.1
O teatro de revista

Falar em teatro de revista brasileiro é falar necessariamente de um período


extremamente profícuo e criativo de produções e encenações. Introduzido no
Brasil seguindo, de início, os moldes franceses, o teatro de revista foi se
desenvolvendo até adquirir características nacionais peculiares, que culminaram
no que se pode definir como uma identidade genuinamente brasileira do gênero. A
princípio, caracterizada como revista de ano (na França, revue de fin d’année),
elaborada conforme regras bem determinadas, a revista tinha o objetivo de
oferecer uma re-visão resumida dos conteúdos e acontecimentos do ano anterior,
sob um viés crítico e cômico: uma resenha anual irônica, engraçada e bem
elaborada. Tal concepção sofreu alterações em sua estrutura, até chegar em uma
espécie de encenação, com quadros justapostos que pareciam não ter ligação entre
si, cujo desfecho era uma apoteose. Os textos revisteiros não abdicavam de um
109

olhar crítico e irônico sobre os acontecimentos comentados através da linguagem


alusiva. 87

Por se tratar de um teatro que dizia respeito diretamente à realidade que


abordava, os textos do teatro de revista faziam referência a diversos
acontecimentos e personalidades de sua atualidade, transpostos para a cena pela
linguagem da paródia e da caricatura.
A própria denominação “teatro de revista” aponta para um conceito de
estrutura e convenções específicas, seja nos seus primórdios, como Revista de
Ano, ou em sua fase genuinamente brasileira, como revista carnavalesca, ou como
revista feérica, privilegiando o luxo dos figurinos e cenários. A revista
carnavalesca tinha um período certo para apresentações, que era o pré-
carnavalesco. Preservava um enredo, ainda que tênue, e apresentava os blocos
carnavalescos na apoteose, além de divulgar e popularizar maxixes, sambas e
marchinhas, divulgando as canções em tempos anteriores ao rádio ou à sua
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difusão em grande escala. As revistas feéricas prendiam o espectador pelos olhos


– em montagens caras que acabaram, por seu custo temerário, por contribuir para
a morte do gênero (Veneziano, 1996).
Todavia, mesmo tendo se modificado no decorrer de sua trajetória, o teatro
de revista brasileiro preservou sua estrutura, possibilitando defini-lo justamente
como tal. A partir dessa premissa, faremos uma análise estrutural em três revistas
– Cocota (1884), Comidas, meu Santo (1925) e Você já foi à Bahia (1941),
procurando identificar os seguintes elementos: prólogo, números de cortina,
quadros de comédia, quadros de fantasia, monólogos e cançonetas e apoteose.

4.1.1
A estrutura revisteira

Cocota88(1884), revista de Artur de Azevedo e Moreira Sampaio, retrata o


momento de modernização do Rio de Janeiro, então denominado corte imperial.

87
“A revista é um espetáculo inteiramente composto por alusões voluntárias a fatos recentes. E a
alusão é um recurso de linguagem que consiste em se dizer uma coisa e fazer-se pensar em outra.
O encanto da revista reside no prazer da alusão”. In VENEZIANO, Neyde. Não Adianta Chorar –
Teatro de Revista Brasileiro...Oba! SP. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 30.
88
Cocota conta a história do fazendeiro Gregório, tio de Cocota, que, tísico, sofre de constipação.
Seu compadre Serapião lhe indica um milagroso remédio, denominado “erva virgiliana”, para
110

Cocota é uma revista de enredo e de ano: de enredo pela presença de um fio


condutor, meio frouxo89, o qual origina os quadros episódicos.90 De ano, pela
revisão resumida, de forma irônica e cômica, dos acontecimentos do ano anterior,
da política, da economia, da imprensa, entre outros. Possui 4 atos e 16 quadros
que se subdividem em cenas, as quais funcionam como marcação das entradas e
saídas de personagens. Os quadros de Cocota delimitam cada qual um local no
qual as cenas se desenrolam. Os ambientes são alternados e não se repetem, e, por
vezes, representam lugares realmente existentes no Rio de Janeiro do final do
século XIX, como o Saguão da Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II,
o corredor da Academia de Belas-Artes, o Corcovado, o Largo do Paço e o Derby
Club. A mudança dos locais se dava pela modificação do cenário e acontecia às
vistas do público, como se pode observar nas próprias indicações textuais, com
marcações de “mutação à vista”. A única exceção se dá ao se preparar o cenário
para o 4º quadro, que representa o fundo do mar. Ao final do 3º quadro o
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personagem Mercúrio fala, diante de um pano de nuvens, das mutações que estão
ocorrendo, utilizando-se da autoexplicitação reveladora dos procedimentos e
arquitetura revisteiros.
Há grande presença de coplas91 de apresentação; alternância de textos em
prosa e poesia, todos em linguagem inteligível e recheados de alusões; cenas
cantadas e faladas; tudo isso conferindo agilidade e movimento ao texto,
meticulosamente composto e pensado. Não há em Cocota uma sucessão
equivocada de acontecimentos: cada elemento tem seu porquê de surgir e ser

curar sua enfermidade. Contudo, tal remédio é produzido somente por um boticário do Rio de
Janeiro. Gregório, Cocota, e Bergaño (amigo de Gregório), partem então para o Rio de Janeiro em
busca do medicamento, quando se armam diversas situações de confusão que demonstrarão o
contexto sócio-político-cultural do momento. Neste ínterim, Cocota se perde do tio e de Bergaño,
o que origina a busca da mesma pelo tio. Ao final, Cocota reencontra seu tio e a situação se
esclarece.
89
A espinha dorsal das revistas de ano era justamente o fio condutor. Ele possibilitava o
desenrolar dos fatos, suscitando o surgimento de várias situações episódicas. A receita
aparentemente era simples: uma busca ou perseguição a alguém ou alguma coisa. Os personagens
centrais caminhavam, corriam, andavam, procuravam ou fugiam. Havia, continuamente, alguém
que perseguia e alguém que escapava por um triz. Aí estava a viga, a coluna mestra da revista de
ano. In VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil – Dramaturgia e Convenções. SP.
Campinas: UNICAMP, 1991, p. 88.
90
E, movidos por esta ação de buscar ou perseguir, estes personagens centrais (os pertencentes ao
fio condutor) iam se deparando com quadros episódicos, através dos quais se criticava a realidade
imediata. In VENEZIANO, 1991, loc. cit.
91
Copla é um pequeno grupo de versos composto para ser cantado, sempre de maneira clara e
funcional, permitindo a imediata compreensão do público, conforme a linguagem precisa do teatro
de revista.
111

citado. Atente-se, por exemplo, para a fala de uma das personagens, Serapião,
logo no 1º ato, 1º quadro, cena 3, quando comenta que um “jangadeiro virá à corte
receber ovações dos vadios (...)”92 Tal jangadeiro vai aparecer somente no 2º ato,
6º quadro, cena 5, numa cena de alusão política evidente.
Comidas, meu Santo93, de Marques Porto e Ari Pavão, é uma revista pré-
carnavalesca, em 2 atos e 25 quadros. Sem um enredo linear, a ação deste texto de
1925 tem outra estrutura, diferente da revista de ano. Aqui, não há a presença do
fio condutor, e o texto é composto de uma sequência de quadros que não
obedecem a uma ordem lógica e progressiva.
Pode-se afirmar que Comidas, meu Santo se trata de uma meta-revista:
uma crítica mordaz ao próprio universo artístico da revista e também da sociedade
do período.94 Tome-se o exemplo da personagem Chincha, uma caipira que é
seduzida pelo universo da revista, e, caindo nas artimanhas do malandro Chandas,
vai viver uma pseudovida de atriz/vedete, adotando o nome espalhafatoso de
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Dona Abóbora. No 23º quadro, Chandas argumenta, fazendo um alusão


debochada às atrizes da época: “D. Abóbora, você precisa dar mais escândalo;
uma crise de cocaína e uma cachaça por semana é pouco... Si não houver
escândalo, gente decente não vem aqui!”(PAVÃO e PORTO: 1925; 77).
Os quadros se dão em ambientes distintos, abordando temas e situações
diversos: o saguão do Teatro Recreio, a Praça Tiradentes, um necrotério, uma
tinturaria, dentre outros. Há a presença marcante do canto entremeando as falas;
os quadros são muito ágeis, com diálogos muitas vezes curtos e certeiros. As
mutações já não se dão à vista do público, sendo que as cenas com mudanças de
cenário são sempre intercaladas por números de cortina, componente
imprescindível do teatro de revista.

92
AZEVEDO, Artur e SAMPAIO, Moreira. Cocota in Teatro de Artur Azevedo, Tomo II. Rio de
Janeiro: INACEN, 1985, p. 295.
93
Comidas Meu Santo se trata de uma revista metateatral, cujo prólogo é a entrada de personagens
para assistirem um teatro de revista. No decorrer da peça são apresentados de forma cômica e
crítica todos os mecanismos e estrutura de uma revista, tais como: a vedete, o compère e a comère,
a mulata, o português, até o público, entre outros. Alguns espectadores apresentados no prólogo
entram na revista e tornam-se os seus personagens. São apresentados quadros de fantasia, esquetes,
quadro de comédia, que são ligados pelas ações dos personagens como o malandro Chandas, a
Dona Chincha e seu Fetinga.
94
Ao utilizar-se sempre do popular e eficiente recurso da metalinguagem, a revista, ao mesmo
tempo, divertia e criticava a sociedade e o teatro como expressão da mesma, pois, (...) ao criticar-
se o funcionamento desse teatro, criticava-se o funcionamento da sociedade. In VENEZIANO,
1996, op. cit., p. 88.
112

Você já foi à Bahia95 (1941), de Freire Junior e J. Mara, é uma revista


carnavalesca de 2 atos e 24 quadros com a presença de clubes e blocos cariocas
carnavalescos. É recheada de marchinhas e sambas. Há indicação no texto para
execução de “motivos dos sambas em voga do carnaval”(FREIRE Jr e MARA:
1941; 16). Os diálogos são seguidos de canções carnavalescas, como não poderia
deixar de ser. As mutações são entremeadas de números de cortina ou cenas à
frente de telões, permitindo a troca de cenários sem a visualização da plateia. Há
cenas em locais diversos, mas a variação de cenários enquanto delimitação de
locais diferenciados onde se desenvolvem as ações é menor que nas duas revistas
anteriores: uma sala estilo colonial, uma sala de pensão modesta e uma sala de
curativos em um hospital. Outras cenas se desenvolvem no ambiente da rua, por
ser a rua o local onde se dá o carnaval, o que pode ser localizado no texto por
indicações de “cena de rua” e “telão de rua”.
Uma peça de revista começa necessariamente com o prólogo. Elemento
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imprescindível, Veneziano (1991; 94) afirma que “não há como se fazer uma
revista sem o prólogo”. O prólogo, que pode ser precedido de uma overture,96 tem
a função de desencadear o movimento do fio condutor da peça. Ao abdicar desta
função, o prólogo passa a ser o momento introdutório onde se apresenta toda a
companhia. Na sequência, é seguido de quadros alternados: números de cortina,
quadros de comédia, quadros de fantasia, números de plateia, culminando na
apoteose.
Em Cocota, o prólogo abarca o 1º e o 2º quadros, no qual se desencadeia o
fio condutor: as personagens e a situação se apresentam e delimitam,
evidenciando a que veio a presente revista. Já em Comidas, meu santo e Você já
foi à Bahia, o prólogo, abandonada a necessidade do fio condutor, assume a

95
Você já foi á Bahia? é regida ao toque de muita folia, por ser revista carnavalesca. A figura do
Rei Momo é imprescindível, surgindo com seu “decrepto” no qual afirma que o que vale é a festa
do carnaval. A trama que percorre a peça gira em torno de uma mentira que Fulgêncio e Castrinho
inventam para enganar suas esposas Rosália e Julieta e irem sozinhos aproveitar o carnaval do Rio
de Janeiro. O que eles não esperam é que a mentira é descoberta, e suas esposas, por vingança,
também decidem ir sozinhas para o carnaval do Rio. No Rio, as duplas aprontam muitas confusões
e muitos flertes, e acabam se hospedando coincidentemente na mesma pensão, a casa da D. Stela.
Na pensão estão D. Stela e seu esposo Anastácio; a filha deles, Juju, e seu esposo, Jeremias; e o
pai de D. Stela, Bento. Estes também se metem em confusões e flertes. Na atmosfera carnavalesca,
os casais mentem um para o outro, saem na folia, flertam uns com os outros, e no fim todos são
descobertos. Mas por ser carnaval, todos são perdoados...
96
Overture é uma abertura orquestrada, executada para que os últimos espectadores pudessem se
acomodar na plateia enquanto as luzes se apagavam.
113

função de apresentar toda a companhia, sendo musicado e cantado, composto de


maneira grandiosa, como as indicações nos textos permitem identificar.
Os números de cortina têm a função de preencher o tempo e ocupar a
atenção da plateia. Sendo apresentações simples feitas na frente de uma cortina,
divertem o público enquanto, atrás, se dá a troca de cenários. Sem obedecer a uma
regra pré-determinada, os números de cortina poderiam ser apresentados por
cantores, cançonetistas, casais de atores piadistas, em apresentação de música,
caipirada ou rábula.97 Ao final, a cortina se abria para o ambiente do quadro
subsequente.
Em Cocota é possível identificar somente um número de cortina: a cena do
3º quadro, na qual a personagem Mercúrio narra a mutação que está ocorrendo,
utilizando-se da linguagem de auto-explicitação, comentando os mecanismos da
própria revista durante a cena:
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Mandam dizer os simpáticos


Artur e Doutor Sampaio
(Este adjetivo no ensaio
Um dos dois tipos meteu.)
Que não foi sem causa séria
Que aquela escura cortina,
Representando neblina,
De cima abaixo correu.

A cena é complicadíssima,
E protesta o maquinista,
Que com mutação à vista,
Nada se pode arranjar;
Veio um pano e, enquanto, gárrulo,
Vou dando trela aos senhores,
Nos camarins, os atores
De fato podem mudar.

Belo quadro mitológico


Vós ides ver, e portanto
A minha presença espanto
Não cause de modo algum;
Vai passar-se um episódio
Que, embora estranho pareça,
Com o princípio e o fim da peça,
Nada terá de comum. 98

97
Rábula é uma denominação proveniente de Portugal, e consistia num papel curto e episódico
interpretado por grandes atores cômicos. Cf. Veneziano, 1991, op. cit., p. 102.
98
(AZEVEDO e SAMPAIO:1985;306)
114

Comidas, meu Santo possui diversos números de cortina: no 2º quadro,


número musical; no 4º quadro, número musical; no 6º quadro, também musical;
no 8º quadro, alternância de musical e comédia; no 10º quadro, número musical;
no 11º quadro, comédia seguida de número de plateia musicado, no 13º quadro,
um quadro de comédia; no 16º quadro, música seguida de comédia; no 18º
quadro, alternância de comédia e música; no 20º quadro, rábula seguida de
música; no 22º quadro, número de plateia musicado, no 23º quadro, número
musical seguido de comédia.
Em Você já foi à Bahia, os números de cortina são os seguintes: 2º quadro,
com a presença cômica da personagem Momo; 3º quadro, um número musicado;
6º quadro, uma comédia; 8º quadro, comédia seguida de musical; 10º quadro,
número musicado; 13º quadro, quadro musical de samba; 15º quadro, número
musical; 16º quadro, um quadro de comédia seguido de musical; 19º quadro,
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comédia seguida de musical.


O quadro de comédia consistia num pequeno esboço, “uma composição
sumária rapidíssima. Uma ideia numa pincelada forte, cinematográfica, dramática,
cômica ou estapafúrdia”. (Rangel apud Veneziano:1991; 102) Sendo rápidos e
certeiros, exigiam habilidade cômica dos artistas que o apresentavam.
Tais quadros podiam se apresentar sob a forma de esquetes, uma cena de
gabinete com visual quase naturalista, sem a necessidade de cenários elaborados e
mecanismos sofisticados. Os temas giravam quase sempre em torno da questão da
infidelidade, e havia um conflito que se resolvia de maneira surpreendente,
transformando aquilo que era considerado sublime em ordinário, subvertendo
valores considerados elevados, desconstruindo-os.
Os quadros de comédia podiam se apresentar ainda sob a forma de quadro
de rua, representando cenas que não se davam necessariamente na rua: podiam ser
num armazém, numa sala, num estabelecimento, saguão, etc. Demarcando um
local de passagem, no qual circulavam muitas pessoas, proporcionavam o desfile
dos tipos, ocasionando assim uma re-vista dos fatos mais imediatos, o que se
evidenciava como um eco das revistas de ano nas revistas posteriores.
Cocota apresenta uma sucessão de quadros de comédia muito bem
costurados, nos quais os diálogos, os versos e as músicas colaboram para conferir
graça e agilidade às cenas. Os quadros de comédia são a grande tônica do texto,
115

no qual a crítica política alusiva é constante.99 Note-se também que em Cocota,


visto se tratar de uma revista de ano, as variações quanto às formas de encenação
ainda não são tão presentes, sendo que os quadros são basicamente compostos de
cenas cômicas (55 cenas), permeadas, como já observado, da alternância de textos
em prosa e em poesia, diálogos cantados e falados, com a presença constante da
alusão e ironia política.100 O que se pode destacar em Cocota é a presença de
quadros cômicos que se apresentam como quadros habituais das revistas do
período: quadro político, quadro dos teatros e quadro da imprensa. O 8º quadro,
quadro dos teatros e das artes em geral, apresenta um panorama crítico e irônico
da situação da arte brasileira de então, e tem inclusive a presença de uma
personagem alegórica denominada Arte Nacional. O 10º quadro representa o
quadro da imprensa, com diversos personagens alegóricos satirizando a imprensa
do período: Anúncio, Publicação, e País. Em meio às críticas políticas constantes,
destaca-se o quadro político no 12º quadro, repleto de alusões a acontecimentos e
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personalidades de então, com a presença de personagens alegóricos e alusivos: o


Gás, um Vendedor, Imigrantes, Homens do Povo e Candidatos Políticos.
Comidas, meu Santo, com toda a carga cômica, têm quadros de comédia
bem delimitados, com situações dramatizadas específicas: o 3º quadro, um quadro
de rua com o desfile de diversos personagens no saguão do Teatro Recreio; o 5º
quadro, um esquete já dentro do referido Teatro; o 9º quadro, uma confusão com
diversos tipos numa tinturaria, representando um quadro de rua; o 13º quadro, um
esquete de diálogo cômico entre o malandro Chandas e a caipira Chincha; o 17º
quadro, esquete de um flerte hilário entre o português Aquino e a mulata
Alexandrina; o 21º quadro, um esquete grand-guignol101 numa sala de necrotério,

99
Conforme afirma Flora Süssekind ao analisar as revistas escritas por Artur Azevedo: Suas
revistas estão carregadas dos acontecimentos políticos que marcam o país, e normalmente se
fazem acompanhar de nítidas tomadas de posição. (SÜSSEKIND, Flora. “A Poética da Revista” in
As revistas de Ano e a Invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 89.)
100
A revista de ano, talvez pela extrema variedade dos acontecimentos que narra, pela necessidade
de dar conta das rápidas reformas urbanas e da transformação histórica, parece impedida, enquanto
gênero, de maiores variações formais. (...) Porque, efetivamente, pequenas variações à parte, é em
torno de um mesmo e repetido modelo que se narravam diferentes acontecimentos nas revistas que
se sucediam a cada ano. In Süssekind, 1986, ibid., p. 96.
101
O Théâtre du Grand Guignol, em Paris, situado no número 20 bis da Rue Chaptal, apresentou
no palco cenas de crime, violência e horror, de 1897 a 1962. As cenas traziam situações como
assassinato, estupro, esquartejamento, etc., visando manipular a emoção do medo da plateia a
partir de um timing específico. Fonte:
http://www.vigormortis.com.br/VigorMortis/GrandGuignol.html. Acesso em 20/07/2008. Síntese
de uma adaptação de trechos da tese de mestrado The Horror of The Grand Guignol, de Paulo
Biscaia Filho, Royal Holloway University of London, 1995.
116

conforme define Veneziano (1996; 90); o 23º quadro, no boudoir de Dona


Abóbora (Chincha), um esquete no qual Chincha recebe visitantes coronéis mal
intencionados; o 24º quadro, cena cômica de perseguição na rua.
Você já foi à Bahia também tem quadros de comédia específicos, todos na
forma de esquete, recortando as cenas e intermediando números de cortina e
quadros de fantasia: o 4º quadro, casa de Rosaria e Fulgencio, cena de gabinete
onde se estabelece o ludíbrio entre os casais; o 9º quadro, cena de gabinete, na
pensão de Dona Stela, onde os casais se hospedam; o 11º quadro, uma cena
hilariante que se passa na rua; o 14º quadro, uma cena cômica numa enfermaria; o
17º quadro, cena engraçadíssima onde as personagens aparecem fantasiadas de
Colombina, Arlequim e Palhaço (Pierrot); o 20º quadro, novamente na pensão,
marca comicamente a revelação das trapaças e a resolução das confusões.
Os quadros de fantasia se propunham a encantar a plateia. Extremamente
sofisticados, com figurinos extravagantes, iluminação feérica e cenografia
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impressionante, eram um verdadeiro deleite visual. Bailados acompanhados de


músicas e coreografias precisas, intercalados entre os números de cortina e os
quadros de comédia, no princípio da revista foram inseridos entre os quadros
como parte do enredo, mas depois foram se desligando do restante da encenação,
tornando-se independentes. Não havia então a necessidade de se ligarem a
nenhum assunto da revista. Os quadros de fantasia eram também permeados de
sensualidade, e neles se apresentava um desfile de belas e exuberantes mulheres.
Em Cocota, podemos identificar o quadro de fantasia no 4º quadro, que
representa uma cena no fundo do mar, um quadro mitológico com o trono da
personagem Netuno formado por uma grande concha, a presença do coro e de
personagens femininas, as Nereides, que realizam um bailado.
Em Comidas, meu santo há dois quadros de fantasia, os quais possuem
denominação específica: Rosa-Chá (7º quadro) e A Lenda das Rosas (19º quadro).
Tais quadros são especificados com uma descrição detalhada do cenário,
marcação e demais elementos, e permitem vislumbrar detalhes que remetem a
cenas extravagantes.
Já Você já foi à Bahia apresenta apenas indicações no texto, que aparecem
especificadas como “quadro de fantazia” ou “fantazia”, totalizando 3 quadros.
Não há descrição dos cenários, movimentações ou marcações.
117

Geralmente precedendo a apoteose, os quadros de monólogo dramático


consistiam num elemento estratégico que procurava ocasionar o choro da platéia
antes da euforia da apoteose. Alicerçados na ideia de contraste, 102 os espetáculos
de revista também faziam o trânsito entre tristeza e euforia, em meio a uma
atmosfera sentimental: faziam rir e também faziam chorar.
Não há a presença de monólogos dramáticos ou cançonetas em Cocota.
Em Comidas, meu santo há um contraste constante permanente de cenas, com
alternância de cenas líricas e poéticas e cenas cômicas e engraçadas, dentro de um
mesmo quadro (6º, 7º, 8º, 12º, 16º, 19º quadros). As cenas com atmosfera lírica
são cantadas, com belas composições. Entretanto, a cena de monólogo dramático
se dá no 14º quadro, intitulado Rehabilitação de Pierrot, no qual aparece
Arlequim, Colombina e Pierrot cantando canções de cunho sentimental e
melancólico, sucedendo-se o quadro da apoteose do 1º ato.
Você já foi à Bahia no 17º quadro, apresenta uma cena com desfecho de
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densidade dramática, no qual, coincidentemente, as personagens estão fantasiadas


de Colombina, Arlequim e Palhaço (Pierrot), cujo desfecho termina com uma
canção intitulada Trapo cantado pelo palhaço, após “uma gargalhada trágica e
nervosa”. (FREIRE Jr e MARA:1941; 58)

A apoteose era uma cena grandiosa que se dava ao final de cada ato do
teatro de revista, sendo que a apoteose do 1º ato costumava ser a mais importante.
Não tinha relação alguma com o tema abordado na trama da revista, na grande
maioria dos casos, e o tema era geralmente de caráter ufanista, com forte acento
de exaltação patriótica. Comemorava-se o Brasil, suas riquezas, suas regiões, seus
herois, seus acontecimentos políticos importantes.
Toda a companhia estava presente na apoteose, cuja evolução se dava
numa escada, elemento cenográfico posterior imprescindível do teatro de revista.
O quadro final apoteótico buscava provocar entusiasmo em meio a músicas e
encantamento, num verdadeiro convite aos aplausos.
Em Cocota, identificam-se quatro apoteoses, uma ao final de cada ato: a
primeira, um “cancã desenfreado”(AZEVEDO e SAMPAIO: 1985; 313) dando

102
O ritmo do espetáculo revisteiro era calcado na lei do contraste: a um ator que falava
pausadamente, contrapunha-se outro que metralhava o texto. Na construção dramatúrgica, uma
cena muito agitada era antecipada por outra mais parada. Contraste. Era o que não faltava na
revista. Ela aceitava quase tudo. In VENEZIANO, 1991, op. cit., p. 107.
118

sequência ao 3º quadro no fundo do mar no final do 1º ato; a segunda, no 7º


quadro, faz uma simulação de combate acompanhada de música militar,
finalizando o 2º ato; a terceira, uma paisagem do Rio de Janeiro, 12º quadro,
demonstrando a Ponte do Silvestre num “esplêndido panorama iluminado pelo
luar”(AZEVEDO e SAMPAIO: 1985; 352), ao final do 3º ato; a quarta apoteose,
no 14º quadro, que finaliza o 4º ato e dá o desfecho da peça, apresenta as
províncias do Ceará, Amazonas e Rio Grande do Sul empunhando uma flâmula
com os dizeres “não parar, não recuar e não precipitar”(Ibid., 366), em
comemoração à implantação das províncias e suas divisas, efetuadas pelo governo
de então. Observa-se claramente o caráter patriótico das apoteoses em Cocota.
Comidas, meu Santo tem duas apoteoses, uma ao final de cada quadro. A
primeira, ao final do quadro denominado Ultima creação de Alberto Lima, numa
ode a uma personalidade do Brasil de então. Já a segunda apoteose é uma marcha
final intitulada Comidas Finaes na qual a companhia inteira entra e canta.
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Finalmente, Você já foi à Bahia apresenta também duas apoteoses, sendo a


primeira intitulada Alô América no 12º quadro da peça, aparecendo somente como
indicação no texto, sem pormenores. A segunda apoteose, 24º quadro, é detalhada,
sendo que o texto especifica uma cena que representa a Avenida Getúlio Vargas e
a entrada de toda a companhia representando um grupo de foliões (rancho),
dançando e cantando ao final da peça.
Através da análise destes três textos é possível constatar a peculiaridade e
engenhosidade do fazer teatral revisteiro, que exigia conhecimento das técnicas e
um saber específico e bem aplicado, pois a revista era muito mais e muito além de
humor barato e vulgar, como erroneamente se costuma rotular.
Os textos estudados, recheados de humor e duplo sentido103, permitem-nos
vislumbrar o talento e criatividade dos escritores, que contribuíram de maneira
significativa para o teatro brasileiro e para a crítica da atualidade, enriquecendo a
produção nacional e dialogando com o mundo de então. Porém, a música é apenas
mais um elemento dentro do conjunto de convenções revisteiras, demarcando a
diferença entre o gênero revista e musical propriamente dito.

103
Double-sens era uma convenção marcante e importantíssima do teatro de revista, cuja
utilização evidenciava a malícia mesclada a certa ingenuidade dos personagens, sem cair no tom
ordinário e grosseiro. O duplo sentido estava além do texto, completando-se com a interpretação
artística que exigia dos atores e das atrizes grande talento agilidade ao se utilizarem de gestos
codificados, olhares insinuantes e pausas reveladoras. (cf. VENEZIANO: 1991; 173)
119

4.2
Teatro Musical Engajado

Em meados da década de 50, nova geração de autores, diretores e


intérpretes aparece – justamente a geração que, nas duas décadas seguintes,
responderá pelo espetáculo musical de propósitos políticos. Os primeiros musicais
nessa linha seriam Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, dirigido por
José Renato em 1960, no Rio de Janeiro (e logo depois em São Paulo), e A mais-
valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho, encenado por Francisco
de Assis no mesmo ano, outra vez no Rio. Criado em 1961 sob o impulso de A
mais-valia, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes
trabalharia também com musicais, de que um exemplo é Brasil – versão
brasileira, de Vianinha, mostrado em diversas cidades do país durante viagem da
UNE Volante, em 1962.
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Nos meses seguintes ao Golpe de 1964, desferido a 31 de março, os


artistas experimentaram alguma perplexidade, embora tenham tido, naquele
momento específico, “mais sustos do que problemas”, conta Yan Michalski em O
teatro sob pressão (1989). Os artistas de palco, de todo modo, foram os primeiros
a reagir coletivamente ao regime autoritário. Em dezembro daquele ano, estrearia
Opinião, texto de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes, sob a direção de
Augusto Boal. O espetáculo daria nome ao Grupo Opinião, responsável por outras
montagens do gênero, entre elas Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de
Vianinha e Ferreira Gullar (1966), e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, de Dias
Gomes e Gullar (1968). A série de textos e espetáculos, segundo o enfoque
adotado, estende-se até 1979, com O rei de Ramos, de Dias Gomes – ou até 1983,
se levarmos em conta Vargas, reedição modificada de Dr. Getúlio.
Na maioria das peças, o conteúdo político é sustentado por uma estrutura
dramática feita em versos metrificados e rimados, que casa com a música popular.
O gênero musical correspondia ao programa de um teatro popular, capaz
de capturar o público pela sensibilidade ao mesmo tempo em que lhe destinava
mensagens politizadas. Em A mais-valia, por exemplo, o interesse de Vianinha,
Francisco de Assis e Carlos Lyra (autor das canções, com letras de Vianna) era o
de esmiuçar a noção marxista que dá nome à peça, comunicando-a a plateias
numerosas com fantasia, humor e música.
120

Certos nomes e certas ideias são recorrentes no período – confusamente


rico, mas, de alguma forma, coerente. Os artistas reagiam a seu momento – não
escreviam para a posteridade ou não a visavam primordialmente; pretendiam
intervir no instante histórico –, com os atropelos e desacertos compreensíveis em
fases de exceção. A atitude ingênua de conscientizar o povo (povo foi noção de
que se abusou nos anos 60) começou a ser substituída, ainda no âmbito do CPC,
antes, portanto, de 1964, pela atitude mais sensata e generosa de captar nas classes
pobres elementos de seu acervo artístico – o samba, o mamulengo, o cordel, o
Carnaval –, trocando-se o panfleto pela pesquisa.
Fernando Marques (2006) agrupa a produção dramática do período em
quatro famílias estéticas. A primeira das famílias é a do texto-colagem,
correspondente a espetáculo próximo do show ou do recital. Nesse caso,
encontram-se Opinião, de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes, e Liberdade,
liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.
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Outra família consiste no texto épico de matriz brechtiana, categoria em


que se enquadram Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, ambos de Boal e
Guarnieri, além de Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra.
Uma terceira categoria contempla o texto inspirado diretamente em fontes
populares. A essa família, pertencem Morte e vida severina, de João Cabral de
Melo Neto e Chico Buarque, poema dramático ligado aos autos pastoris
pernambucanos; Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, farsa de
ambientação nordestina, escrita por Vianinha e Ferreira Gullar; Dr. Getúlio, sua
vida e sua glória e sua reedição, Vargas, de Dias Gomes e Gullar, que
aproveitaram a forma do enredo carnavalesco em textos que mesclam elementos
dramáticos e épicos; e As folias do látex, de Márcio Souza, que revisita a fórmula
da revista, politizando-a à maneira de Piscator.104
Por fim, no quarto grupo de obras, temos o drama e a comédia musicais. É
o caso de Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes (baseado na tragédia
grega Medeia e na adaptação televisiva feita por Vianinha da peça de Eurípides);
e das comédias Ópera do malandro, de Chico Buarque, e O rei de Ramos, de Dias
Gomes. De acordo com Marques (2006; 14), essas três peças baseiam-se nas

104
Diretor e produtor teatral, um dos mais importantes encenadores alemães do séc. XX que, ao
lado de Bertold Brecht, fundou o teatro épico.
121

convenções da comédia musical e, eventualmente, nas da revista. Essa família


estética é a do texto dramático inspirado na forma da comédia musical.
Ao se destacarem os traços que singularizam as famílias estéticas, vale
notar aspectos como a estrutura feita à base de associação de ideias – por
semelhança ou por contraste – que rege espetáculos-colagem como Opinião; o
vínculo com a tradição cômica, que se soma ao uso do verso popular, traços
presentes em Se correr o bicho pega; o texto épico, praticado e teorizado por
Boal, no qual se mobilizam recursos narrativos para recontar episódios históricos
sob novos pontos de vista; e, ainda, “a utilização das convenções da comédia
musical (a de Brecht, mas também a da Broadway ou Hollywood) articuladas a
lições das velhas revistas brasileiras em Gota d’água, Ópera do malandro e O rei
de Ramos (como exemplo dessas lições, podemos citar a apoteose com que se
encerram atos e espetáculos)” (Marques: 2006; 62).
O texto em verso, frequentemente praticado nessa fase, atravessa as quatro
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categorias, aparecendo em Morte e vida severina, Se correr o bicho pega e Gota


d’água, peças integralmente escritas em versos metrificados e rimados, e em
outras obras, combinados com a prosa, entre as quais estão Arena contra Zumbi e
Dr. Getúlio.
Com o intuito de perceber em quais aspectos o modelo brasileiro
pertencente à família drama e comédia musical tangencia a estrutura do modelo
norte-americano, faremos algumas considerações a partir da conceituação de
Fernando Marques e sobre suas observações em Gota d’água, Ópera do malandro
e O rei de Ramos.

4.2.1
A contribuição de Chico Buarque para o teatro musical

Chico Buarque de Hollanda, cantor, compositor, letrista-poeta, dramaturgo


e escritor, contribuiu ora como dramaturgo e músico, ora como letrista nas três
peças que serão analisadas. Embora o objetivo dessa pesquisa seja identificar as
convenções do modelo Broadway de musicais nas produções nacionais, não
podemos nos furtar a destacar a contribuição que esse artista deu ao teatro no
Brasil e lamentar que a sua carreira no teatro musical tenha sido preterida.
122

A primeira imersão de Chico Buarque no teatro se dá em 1965, quando ele


tinha apenas 20 anos. Compôs a música para o espetáculo Morte e vida severina,
poema dramático de João Cabral de Melo Neto montado em São Paulo pelo
Teatro da Universidade Católica (TUCA), dirigido por Silnei Siqueira. Na França,
em 1966, esse espetáculo recebeu o prêmio de crítica e público no IV Festival de
Teatro Universitário de Nancy. Sobre a criação da música para o poema de João
Cabral, ele declarou: “Com Morte e vida severina, eu procurei adivinhar qual
seria a música interior de João Cabral quando escreveu o poema” (SANT‟ANNA,
1986: 24).
A julgar pelo parecer do poeta pernambucano, a primeira participação de
Chico Buarque no teatro foi muito bem sucedida:

(...) a coisa mais extraordinária que eu encontrei na música de Chico, baseada nos
versos de Morte e vida severina, foi um respeito integral pelo verso em si. A
música segue cada verso, no ritmo total. A música segue cada ritmo, crescendo
ou não, de cada parte do poema. (...) Se a música é boa, não deve nada à
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colaboração minha ou conselho meu. Ele pegou o texto, respeitou o texto e, com
o talento extraordinário dele, fez uma música que eu considero totalmente
apropriada ao texto. (...) E, para terminar, vocês sabem que eu não posso ler, hoje,
nenhuma sequência de Morte e vida severina sem que a música me fique soando
no ouvido. Hoje, estou resignado a tirar das minhas Poesias Completas o auto de
Natal Morte e vida severina, pois creio que ele pertence mais ao Chico Buarque
do que a mim. (ibid.,p.24-25)

Em 1966 o compositor criou uma música para Os inimigos, de Máximo


Górki, dirigida por José Celso Martinez Correa. Posteriormente, essa canção
receberia letra e o título de Acalanto.
A trajetória do autor como dramaturgo inicia-se em 1967, quando ele
escreve Roda-viva. Montada no ano seguinte, também sob a direção de José Celso
Martinez Correa, a peça, que denunciava os bastidores do show business, causou
enorme escândalo devido à virulência da encenação.
Apresentando elementos autobiográficos, Roda-viva serviu para que Chico
Buarque pudesse exorcizar o estigma de “bom moço da música popular brasileira”
com o qual ficara marcado em virtude do lirismo nostálgico de suas primeiras
composições. Assim como o protagonista de sua obra, na segunda metade dos
anos 60, muitos músicos populares, por meio dos festivais da canção e das modas
criadas pela indústria cultural, alcançavam, da noite para o dia, os píncaros da
fama e da “glória”, sendo descartados e esquecidos com a mesma velocidade de
123

sua ascensão. Na peça, Benedito Silva, músico obscuro e sem nenhum talento, é
tragado pela indústria do entretenimento. Torna-se rapidamente um ídolo cultuado
religiosamente por uma legião de fãs, muda de nome duas vezes e é levado a
cometer suicídio. Então, sua esposa, Juliana, o substitui na condição de estrela
pré-fabricada, dando continuidade ao jogo de interesses estritamente financeiros
dos empresários do show business.
Em 1972, Chico Buarque e Ruy Guerra escrevem Calabar: o elogio da
traição. A peça, que buscava reinterpretar o episódio da ocupação do Nordeste
açucareiro pelos holandeses, entre 1630 e 1654, do ponto de vista dos
colonizados, e retratar uma nascente consciência nacional brasileira, demonstra
que todos os envolvidos naquele acontecimento histórico foram, de algum modo,
traidores. Não somente Calabar, como afirmam os livros de história escritos sob a
ótica dos portugueses, teria sido o traidor por excelência.
Desenvolvendo temas polêmicos, desmitificando a história oficial e
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colocando em cena representações de fenômenos muito característicos do Brasil


do então presidente Médici - tortura, traição, colonização, autoritarismo -, a peça
foi vítima da arbitrariedade da Censura. Tendo sido liberada no princípio de 1973,
às vésperas da estreia, os censores notificaram que o texto seria reexaminado,
demorando-se indefinidamente em tomar a decisão final sobre a liberação ou não
da montagem. Somente em 1980 a peça se realizou como espetáculo, sob a
direção de Fernando Peixoto.
Em 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes, partindo de uma ideia do
dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, escrevem Gota d’água, uma recriação da
tragédia Medeia, de Eurípides, no espaço de um conjunto habitacional de um
subúrbio do Rio de Janeiro. A peça, com seus dois enredos paralelos, um de
natureza passional - relativo ao amor-ódio de Joana, abandonada por seu
companheiro, o sambista Jasão de Oliveira - e outro de natureza social - relativo à
exploração dos moradores do conjunto habitacional da Vila do Meio-dia pelo
especulador imobiliário Creonte -, era atualíssima no momento de sua estreia por
colocar em cena o problema da crise habitacional no Brasil num instante em que
se tornava evidente o fracasso do Sistema Financeiro da Habitação, uma das
bandeiras do regime militar. Além disso, como Joana, o povo brasileiro também
era vítima da “cafetinagem” daqueles que o governavam.
124

Em 1977, Chico Buarque adapta Os Saltimbancos, texto do italiano Sergio


Bardotti inspirado no conto Os músicos de Bremen, dos irmãos Grimm. Esta
adaptação de uma fábula musical primordialmente destinada ao público infanto-
juvenil insere-se coerentemente na obra dramatúrgica do compositor. Dando
sequência a sua criação de um teatro dialético, o autor põe em discussão as formas
de organização social num momento em que se começava a falar em abertura
política e as entidades reprimidas pelo aparato de “segurança” da ditadura
buscavam o debate acerca de sua rearticulação.
A última criação dramatúrgica do autor é a Ópera do malandro, de 1978,
inspirada na Ópera do Mendigo (1728), de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs
(1928), de Bertolt Brecht. Desenvolvendo-se em meados dos anos 40, no final do
Estado Novo, na Lapa carioca, paraíso dos velhos malandros, a peça de Chico
Buarque retrata o fim de uma era e o início de outra. Mostra como a
industrialização do país fez com que a malandragem artesanal e municipal de
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antigamente passasse a ser exercida em grande escala e em âmbito federal. Ao


malandro da velha Lapa restaram dois destinos possíveis na nova ordem: ou se
marginalizar por completo e ser eliminado por um sistema que não pode mais
tolerá-lo ou se aburguesar e aprender a aplicar grandes golpes de cima para baixo.
A Ópera do malandro, primeiramente dirigida por Luiz Antônio Martinez Correa,
também fala muito de perto aos tempos finais da década de 70. Nesse momento,
como em meados dos anos 40, o Brasil saía de um longo período ditatorial e
buscava a normalização do processo político em bases democráticas. As analogias
entre as duas épocas se fazem de imediato.
Finalmente, vale lembrar as várias participações de Chico Buarque como
compositor de canções para textos e espetáculos alheios. As mais destacadas
dessas participações se deram em peças como O rei de Ramos (1979), de Dias
Gomes; Geni (1980), desentranhada da famosa canção Geni e o Zepelim, dirigida
por José Possi Neto; Vargas (1982), de Dias Gomes e Ferreira Gullar; O Corsário
do Rei (1985), de Augusto Boal. Para o palco, compôs ainda a música para o balé
O Grande Circo Místico (1983).
125

4.2.2
Gota d´água

Musical escrito por Chico Buarque em parceria com Paulo Pontes, Gota
d'água ganhou histórica montagem original em 1975, com a superlativa Bibi
Ferreira à frente, na pele da amarga Joana - a Medeia brasileira que, por ódio e por
desespero, decide se vingar do ex-companheiro sambista, Jasão, que a abandonara
para se casar com Alma, a filha do dono de um conjunto habitacional da periferia,
Creonte.
Paulo Pontes e Chico Buarque, os autores do musical, adaptaram a
tragédia grega Medeia, de Eurípides, a partir de concepção de Oduvaldo Vianna
Filho, morto em 1974. Mais que mera concepção, as ideias de Vianinha se haviam
materializado no “Caso Especial” que escrevera para a TV Globo no início dos
anos 70, trazendo para os subúrbios cariocas a trama da grande peça clássica.105
O tratamento dado por eles ao tema desenvolveu-se com independência
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em relação ao de Vianna, mas conservou diversos traços – a personagem principal


torna-se macumbeira e Jasão, seu ex-companheiro, é compositor popular em
ambas as histórias, por exemplo. A edição da peça em livro reconhece que o
trabalho foi “inspirado em concepção de Oduvaldo Vianna Filho”.
A Medeia de Eurípedes procede da Cólquida, para onde não pode voltar, já
que matou o próprio irmão para casar-se com Jáson (segundo os passos
mitológicos que antecedem a ação da peça). Vianinha, no texto escrito para a
televisão, fez corresponder a condição de estrangeira em Corinto à condição
também pouco favorável de moradora de um “conjunto residencial popular já
velho”. Era importante marcar a distância que separa a mulher do homem amado:
arrasada pela situação de abandono, a já pobre Medeia deixa que o dia-a-dia se
deteriore. Jasão, sambista que começa a fazer sucesso e que está noivo da filha de
Creonte Santana, “presidente de honra dos Unidos do Guadalupe”, tem boas
perspectivas, enquanto a ex-mulher entrega-se ao desalento.

105
A ideia de transportar histórias e personagens gregas para os morros ou subúrbios do Rio de
Janeiro já tinha sido posta em prática por Vinicius de Moraes em Orfeu da Conceição, com música
de Tom Jobim, texto levado à cena em 1956. Noutra chave, Nelson Rodrigues havia atualizado a
figura e a lenda de Electra (já filtradas pelo Eugene O‟Neill de Electra enlutada) em Senhora dos
Afogados, drama de 1947, rejeitado pelo TBC em 1953 e afinal encenado, sob a direção de Bibi
Ferreira, no Rio, em 1954. A principal diferença de Gota d’água em relação a essas obras reside
na ênfase política (que na peça de 1975 se combina à dolorosa trajetória da heroína), ênfase
prefigurada no “Caso Especial” de Vianinha.
126

A emblematização é clara. De um lado, os que foram aceitos para além da


porta estreita que divide ricos e pobres, representados em Jasão; de outro, os que
ficam, representados por Medeia. Esse esquema básico, segundo o qual o roteiro
de Vianinha se organiza, será reutilizado em Gota d’água.
A peça grega, como em geral acontece nas tragédias, não mostra a cena em
que a filha de Creonte e, em seguida, o próprio tirano são mortos em meio a dores
medonhas, provocados pelo véu e pelo diadema de ouro presenteados por Medeia
à jovem. A passagem é narrada pelo Mensageiro – o que de modo algum lhe retira
a força. Vianinha, atento aos hábitos dramáticos modernos, cria a cena da festa de
casamento em plena quadra da escola, fazendo que Jasão perceba o que está para
ocorrer e tente alertar Creonte e Creusa, sem conseguir evitar que pai e filha
provem do bolo envenenado com que Medeia os brindara.
O desfecho da adaptação televisiva difere do modelo grego (assim como o
final de Gota d’água irá divergir do adotado por Vianinha). Na peça de Eurípides,
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Medeia consegue matar Creonte, sua filha e, não contente, os próprios filhos; em
seguida, foge no carro do Sol. Jáson trava diálogo violento com a mulher, mas não
acha tempo sequer para tocar nos meninos mortos.
Vianinha, nas seções finais, optou por uma perseguição policial a Medeia,
com a busca dos garotos (Jasão e o povo participam da perseguição e da busca),
dando tom de thriller ao texto. Mas, talvez considerando a natureza do veículo a
que o roteiro se destinava, fez os quitutes envenenados de Medeia atingirem
Creonte e a filha, mas não as crianças – salvas no final. Assinale-se que, mesmo
tendo tido a intenção de poupar o telespectador de um desfecho inteiramente
mórbido, o autor conseguiu emprestar grande beleza a seu texto, com o
contraponto entre a dor de Jasão (Creusa morreu, Creonte ficará inválido) e a
alegria ingênua exibida pelas crianças, alheias aos fatos – alegria que se transmite,
é claro, ao pai.
Um dos traços mais importantes da Medeia de Eurípides é o fato de a ação
desencadear-se sem que seu curso esteja previamente determinado pelos deuses,
isto é, por forças superiores às personagens. Os sentimentos de Medeia,
estrangeira em Corinto, traída e abandonada por Jáson, pai de seus dois filhos,
pertencem somente a ela – a comunidade, o mundo à volta parecem alheios à sua
sorte. O coro de quatro figuras femininas, é verdade, participa, solidário, das
127

aflições de Medeia, mas o que está em causa é antes a condição social das
mulheres. A própria personagem principal, com a provável anuência do coro, diz:
“Das criaturas todas que têm vida e pensam,/ somos nós, as mulheres, as
mais sofredoras”.106
Egeu, rei de Atenas na peça grega, transformado em motorista de táxi,
lança o corpo da criminosa ao mar, atendendo a pedido feito por ela. Medeia
matou-se pretendendo deixar a impressão de sua vingança ter sido completa.
O coro de figuras femininas, presente à peça de Eurípides, reaparece em
Gota d’água, representado pelas Vizinhas. Outras mudanças dizem respeito à
dimensão das personagens. Para citar um exemplo: a filha de Creonte, na tragédia
grega, é apenas referida pelas demais criaturas, sem vir à cena; no “Caso
Especial” de Vianna Filho, ganha a forma de Creusa, que, no entanto, fala muito
pouco; e cresce em Gota d‟água, com o nome de Alma, personagem que tem
alguma importância, embora não decisiva, junto a Jasão.
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Os três textos, de todo modo, apontam para o fato de que o casamento de


Jasão com a filha do tirano não se fazia exatamente por amor, ainda que o homem
sinta o golpe desferido por Medeia contra a noiva e o futuro sogro – na peça grega
e no roteiro televisivo. Em Gota d’água, diga-se, o assassinato de Creonte e da
filha sequer chega a se realizar. Nesta última peça, a vitória pertence a Creonte,
mais que à vingativa Joana.
Do ponto de vista estético, vamos procurar entender como se estrutura o
musical. Beleza artística e empenho social são indissociáveis nesta obra, e o laço
entre as duas instâncias justamente responde por boa parte de suas características.
Chico Buarque e Paulo Pontes redigiram o texto em versos e o
enriqueceram com canções. Segundo afirmam na apresentação do livro, três
preocupações básicas nortearam o trabalho: compreender a “experiência
capitalista que se vem implantando aqui – radical, violentamente predatória,
impiedosamente seletiva”, experiência essa que “adquiriu um trágico dinamismo”
nos anos 70 (BUARQUE e PONTES: 1987; xi).
A segunda inquietação dizia respeito ao fato de que “o povo sumiu da
cultura produzida no Brasil – dos jornais, dos filmes, das peças, da TV, da

106
EURÍPIDES. Medeia. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES. Prometeu acorrentado; Édipo
Rei; Medeia. São Paulo: Abril Cultural, 1980.p. 28.
128

literatura etc.” (Ibid., xvi). Nesse sentido, a peça pode ser considerada uma
tentativa de retomar o projeto nacional-popular levado à cena, desde fins dos anos
50, por artistas identificados a posições de esquerda.
Por fim, os autores pretendiam trazer a palavra de volta aos palcos, já que
“as mais indagativas e generosas realizações desse período [os anos 70] têm como
característica principal a ascendência de estímulos sonoros e visuais sobre a
palavra”. Com o texto elaborado em versos, intensificava-se o diálogo, “um pouco
porque a poesia exprime melhor a densidade de sentimentos que move os
personagens”. Em suma, procurava-se compreender o que se passava no Brasil e
para isso era necessário devolver, “à múltipla eloquência da palavra, o centro do
fenômeno dramático” (Ibid., xviii).
Os autores falam em sets no que toca à disposição cênica dos ambientes:
há o set das vizinhas, o do botequim, onde os homens se reúnem, o set da oficina
onde trabalha mestre Egeu, líder local, o set de Joana, o de Creonte. Os
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dramaturgos jogam, em alguns instantes, com passagens de um a outro set,


inclusive fazendo com que dialoguem lúdica e ritmicamente: falas em um dos
locais parecem responder ou corresponder a falas ditas em outro, sem que haja
relação direta entre elas.
Gota d'água é constituída por dois atos. O primeiro mostra a repercussão
do abandono de Joana por Jasão e faz um inventário das dificuldades financeiras
enfrentadas pelos habitantes da Vila do Meio-dia em decorrência dos juros e da
correção monetária das prestações das moradias. O segundo gira em torno da festa
de casamento – a gota d‟água - que vai culminar com a vingança já anunciada,
uma tragédia carioca: Joana assassina seus dois filhos e se mata, enquanto Jasão
se torna o sucessor de Creonte.
O coro é encarnado pelos vizinhos do bairro onde Jasão morou com Joana.
Estas personagens secundárias vão fazendo o enquadramento do passado do casal
e da evolução da história. Quando os protagonistas surgem em cena, sabe-se bem
quem eles são e que conflitos vivenciam.
A peça começa sem um número musical de abertura, ouvimos o coro das
vizinhas comentando sobre a situação de abandono e penúria de Joana e seus
filhos. A cena continua no botequim onde Cacetão comenta o que lê no jornal;
paralelamente, na oficina de Egeu, uma discussão sobre as dificuldades de se
pagar a prestação da casa própria. Assim esses três núcleos vão se alternando até o
129

momento em que descobrem que Jasão é notícia de jornal, devido ao sucesso de


seu samba, Gota d’água. Após comentários gerais a respeito de Jasão, Cacetão
canta uma embolada, a primeira canção da peça, uma espécie de I am song, que,
analogamente, fala sobre o seu comportamento de gigolô e o de Jasão.
A próxima cena acontece no set de Creonte, onde estão Jasão e Alma
conversando a respeito de seu casamento. Pela primeira vez ouvimos um
fragmento de Gota d’água, leitmotiv da peça, na voz de Jasão. Creonte chega,
seduz Jasão com seu discurso manipulador, prega a sua doutrina e já designa uma
missão ao seu súdito e futuro sucessor: pressionar mestre Egeu a não insuflar os
moradores a manter sua inadimplência nas prestações dos apartamentos; e advertir
Joana de que ela pode ser despejada.
Voltamos às vizinhas lavando roupa e acompanhando a música de Jasão
que toca no rádio. Joana surge finalmente em cena. Em sua primeira aparição no
palco, seu ódio e ressentimento já se mostram desmedidos. Insinua que irá se
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vingar e que os filhos participarão dessa vingança. Seu ressentimento é também


dirigido a eles, a quem ela atribui uma espécie de inocência responsável. Assim
como Medeia, Joana reclama das condições a que tanto a natureza quanto a
cultura relegaram às mulheres, mas ressalta que nada há de mais terrível que uma
mulher ofendida em sua dignidade por aquele a quem dedicou o melhor de si. Diz
ela em sua primeira cena:

Eu fiz ele pra mim


Nao esperei ele passar assim
já pronto, na bandeja, qual o quê...
Levei dez anos forjando o meu macho
Botei nele toda a minha ambição
Nas formas dele tem a minha mão...
E quando tá formado, já no tacho,
vem uma fresca levar, leva não...
(...)
Ah, os falsos inocentes!
Ajudaram a traição
São dois brotos das sementes
traiçoeiras de Jasão
E me encheram, e me incharam,
e me abriram, me mamaram,
me torceram, me estragaram,
me partiram, me secaram,
me deixaram pele e osso
Jasão não, a cada dia
parecia mais moço,
130

enquanto eu me consumia
(...)
Pra não ser trapo nem lixo,
nem sombra, objeto, nada,
eu prefiro ser um bicho,
ser esta besta danada
Me arrasto, berro, me xingo,
Me mordo, babo, me bato,
me mato, mato e me vingo
me vingo, me mato e mato107

Em sua primeira aparição, Joana já prenuncia a catástrofe que se abaterá


sobre seu lar, alternando entre a consciência da mãe abandonada e a insanidade da
mulher traída, que não se quer ver vencida. Sua fala articula seu fatídico plano de
vingança, porém, ela não canta. Ela não canta.
Diferentemente do drama falado, o diálogo em um book sempre é
acompanhado por uma canção. Onde um dramaturgo, no teatro falado, usa o
diálogo para apresentar um personagem e expandir o efeito dramático, o
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bookwriter condensa o volume de diálogo e o leva a um ponto que só pode ser


continuado através de uma canção. A partir do teatro musical integrado, se a
canção não for o cerne da cena, então não há nenhum propósito em fazer um
musical a partir deste material. Onde canções funcionam bem como cenas, o
diálogo deve ser econômico. E uma vez que ele não pode ser generoso, deve ser
afiado, nítido e ir direto ao ponto.
Há exemplos de música correspondente à elaboração narrativa da história.
Isso acontece principalmente com a Gota d'água, cuja função no enredo é a de ser
o estopim do desenvolvimento dramático da linha narrativa. Além de todos os
outros significados que assume no desenvolvimento dramático da peça, realiza-se
como expressão da melancolia dos personagens. Sob a voz de Joana, o sucesso
musical de Jasão demonstra bem o significado trágico que o texto guarda. Posto
neste contexto específico, ilumina semanticamente toda a trama e contribui para a
organização narrativa da história, pois mostra-se como uma síntese do drama.
Joana, revelando ter dominado a situação, conversa com seu ex-
companheiro para fazer as pazes e assim efetivar a vingança. Então, depois que
Jasão saiu, entra a orquestra e ela canta:
107
BUARQUE, Chico & PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1987. pp 45-47.
131

Já lhe dei meu corpo, não me servia


Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro d e s f e c h o da festa
Por favor
D e i x a em paz meu coração
Que e l e é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
faça não
Pode ser a gota d'água108

Assim, ela desabafa sua mágoa e atualiza em cena o valor da máxima


popular, recuperando o tom ameaçador de seu amor desiludido. Seu cantar é como
uma resposta à felicidade do traidor, ela está prevenindo: a realização do
casamento será a gota d'água. E a melancolia é resultante do clima de despedida
que impõe ao quadro, pois seu objetivo é a morte.
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A tomada da posição de comando por parte de Joana é também


representada por música, canção denominada Basta um dia (Ibid., p.151). Sua
estratégia de ação é revelada neste instante em que a melodia constroi o sentido
pela repetição do conceito só um dia, como verificação de sua conquista, e pelo
crescendo intensificador do ritmo até a felicidade que pontua a primeira ação
enquanto sujeito (não mais vítima): chamar Jasão e dizer que sua dor está
passando:

(...) Um dia, preciso


mais do que isso? Por que? Pra que? Quem te pariu
só precisou de um dia. O que se construiu
em séculos se destroi num dia. O Juízo
Final vai caber inteirinho num só dia
Quando me deu um dia, você se traiu,
Creonte, você não passa de um imbecil,
porque hoje me deu muito mais do que devia
(A orquestra ataca; ela canta)
Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia

108
Ibid., p.159.
132

Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
(Joana, cantando, chegou em frente ao set de Egeu; enquanto chama Corina, a
orquestra segue tocando)
Corina. Corina... (Corina aparece) Faz um favor
pra mim, mulher. Vai chamar Jasão. Diz
que estou aliviada. Minha dor
está passando. Vai?...109

Os versos curtos demonstram a velocidade da ação e a alternância


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violão/orquestra marca a variação de temperamento de Joana, o da solidão e o da


ameaça. Resultado disso é a síntese da sua situação que proporciona a epifania
para o desencadeamento final do drama.
Sabemos que a intenção de Chico Buarque e Paulo Pontes não era criar um
musical modelo Broadway; como se vê, toda a trama vai se delineando e dando
forma ao que se pretende abordar na peça teatral. A palavra tem aí uma
importância indiscutível, a partir do momento em que é ela, e apenas ela, a
responsável pela narração insólita, lírica e poética de um momento histórico em
que os indivíduos buscavam justamente a liberdade de expressão como condição
primeira de autonomia dentro de uma sociedade de classes. Mas, uma vez que
Gota d’água é toda dialogada em recitativo, é de se lamentar as possibilidades de
se lançar mão de canções do tipo I am, I want, duetos, tercetos que não foram
aproveitadas.
A música de Chico Buarque, com todas as suas particularidades, é uma
constante na peça, com a presença da orquestra, da batucada, dos tambores do
candomblé, do violão, que fazem fundo musical. Toca-se para as personagens
dançarem, acompanhá-las em seus cantos solos ou em coro. Tanto a música

109
Ibid., pp.151-152.
133

underscoring quanto a segue pontuam o enredo, dão-lhe maior dramaticidade,


sublinham falas, caminhares, golpes de luta, fazem marcação rítmica do texto,
anunciam a personagem, como na entrada de Joana, antecipam e apresentam os
acontecimentos, como a festa do casamento de Jasão.
Ainda, por meio da linguagem musical, delineiam-se os estados
emocionais das personagens. Definem-se mundos, como a valsa sendo o do
pequeno-burguês e o samba, o da Vila do Meio-Dia. Determinam-se as
coreografias e representam-se o coletivo e a brasilidade da peça com a embolada,
o samba, a cantiga folclórica, o cantochão e as canções.
A música da orquestra geralmente se relaciona à situação "superior" de
Creonte e aqueles que estão à sua volta, simboliza a erudição de uma cultura
"desenvolvida". A possível nobreza dessa forma musical contrasta com a
hipocrisia das personagens, mas complementa o sentido de poder da sua posição
social. Como exemplo podemos considerar o acompanhamento musical da
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Cartilha da filosofia do bem sentar, no qual: “(A orquestra ataca a introdução


com ritmo bem marcado; enquanto canta, Creonte vai ajeitando Jasão na cadeira)”

CREONTE
Escute, rapaz,
você já parou pra pensar direito
o que é uma cadeira? A cadeira faz
o homem. A cadeira molda o sujeito
pela bunda, desde o banco escolar
até a cátedra do magistério
Existe algum mistério no sentar
que o homem, mesmo rindo, fica sério
Você já viu palhaço sentado?
Pois o banqueiro senta a vida inteira,
o congressista senta no Senado
e a autoridade fala de cadeira
O bêbado sentado não tropeça,
a cadeira balança mas não cai
(...)Tem cadeira de rodas pra doente
Tem cadeira pra tudo que é desgraça (...)
E quando o homem atinge o seu momento
mais só, mais pungente de toda a estrada,
mais uma vez encontra amparo e assento
numa cadeira chamada privada
(tempo) Pois bem, esta cadeira é a minha vida
Veio do meu pai, foi por mim honrada
e eu só passo pra bunda merecida.” 110

110
Ibid., pp. 32-33.
134

Em Gota d’água as formas musicais, geralmente, são melódicas, mas


usam também a harmonia minimalista de notas agudas ou graves alternadas com
intervalos de ausência de som. O resultado desse movimento sonoro harmônico é
a pontuação da ação, marcando o tom da fala do personagem como, por exemplo,
quando Joana desabafa para Jasão. (Ibid., p.75) A enumeração que ela faz de tudo
que realizou por seu ex-companheiro é irritantemente marcada pelo fundo
musical, recuperando a essencialidade da mágoa da personagem, a agudeza da sua
dor. No entanto, esse ritmo musical é substituído, na mesma fala, pela melodia de
Gota d'água, acompanhando a observação de Joana sobre a certeza do sucesso do
samba, numa forma de auto-referência que expõe um dos valores da obra de
autoria de Jasão para a dinâmica teatral dessa peça: a de estabelecer o contraponto
do conteúdo da fala, ressaltando-o.
O acompanhamento musical também define a entoação e o cadenciamento
da voz da personagem, atribuindo-lhe o tom nostálgico, raivoso, irônico,
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alucinado, jocoso, revelador ou satisfeito, conforme a situação do enredo,


contribuindo para a dramaticidade do contexto da história pela associação
psicológica que a música possibilita ao conteúdo. O efeito foi usado por Mozart e
Beethoven em suas óperas, estabelecendo o estilo dramático da música clássica,
onde ação e música se coadunam. Podemos verificar o acento de fala marcado
pela música no trabalho frenético da percussão como fundo para conversa da
personagem principal com as vizinhas (Ibid., p. 45). A velocidade da música e da
voz demonstra a obsessão da mulher abandonada juntamente com os filhos, e
pode sugerir a iminência de uma atitude precipitada para salvaguardar a sua
honra. Novamente recupera o primitivismo do som do batuque repetitivo,
expressão do que o ser possui de mais íntimo e irracional.
Outra maneira de acompanhar sonoramente a fala dos personagens é a
repetição de um tema musical em momentos diferentes da história, cujo contraste
canção/fundo associa sucintamente significados construídos. O que não acontece
somente com o tema principal que dá título à obra, mas também com o ritmo de
Bem querer como fundo para o solilóquio de Joana enquanto prepara o veneno
destinado a Alma e Creonte (Ibid., p. 160). A música representa a tomada de
posição do homem amado diante da mulher amante e o desejo de vingança
resultante do ato de exploração dela por ele. O acompanhamento musical a esse
135

momento de ação específico e significativo caracteriza a consumação da


vingança:

Orquestra emenda para uma suíte, nos diferentes sets


— Duas vizinhas vestindo a noiva (Alma) cantando refrão de Filosofia da Vida
— Dois vizinhos vestindo o noivo (Jasão) cantando refrão de Filosofia da Vida
— Creonte em sua cadeira, cantando refrão de Creonte
— Três vizinhos, no botequim, vestidos para o casamento. Brincando e cantando
Flor da Idade
— Egeu em sua oficina, trabalhando, sem cantar
— Três vizinhas, preparando a mesa do banquete e cantando Flor da Idade
— Alma cantando uma estrofe de Bem-Querer
— Jasão cantando uma estrofe de Bem-Querer
Agora, cada setor cantarola sua ária; BG; luz fica em resistência em todos os sets
e acende, clara e brilhante, no set de Joana que, habilmente, tempera com ervas
uns bolos de carne

JOANA
Tudo está na natureza
encadeado e em movimento —
cuspe, veneno, tristeza,
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carne, moinho, lamento,


ódio, dor, cebola e coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa
Misture cada elemento —
uma pitada de dor,
uma colher de fomento,
uma gota de terror
O suco dos sentimentos,
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,
lágrima, pus e suor
Mas, inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangre o coentro,
chore e envenene a gordura
Você terá um unguento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara o meu sofrimento
co‟a morte, lenta e segura111

111
Ibid., p.160.
136

Muitas vezes, a sonoplastia marca a espacialização da peça enquanto


transição entre os sets e o contraste entre as atitudes das diferentes personagens, o
resultado desse recurso acaba por ser paradoxal já que traduz-se como uma
maneira de conectar espaços e marcar trajetória, unindo-os, ao mesmo tempo que
os liga como pontos de vista variados de uma mesma realidade, possibilitando o
efeito brechtiano. Exemplo marcante dessa função é o momento em que vizinhas
e vizinhos estão cantando Gota d'água, acompanhando a música no rádio, e Joana
entra em cena (Ibid., p.41). A conexão entre música e momento do enredo revela a
diferença de valores entre os vizinhos e Joana e a diferença de situação de vida,
ampliando a distância entre eles e o drama da mulher de forma muito óbvia, para
gerar visualização crítica do momento.
A divergência é ampliada pela oposição do tom ameaçador da presença de
Joana, na sequência, que prepara o veneno: "Agora, cada setor cantarola sua ária;
BG; luz fica em resistência em todos os sets e acende, clara e brilhante, no set de
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Joana que, habilmente, tempera com ervas uns bolos de carne". (Ibid., p.160) O
paradoxo estabelecido entre a alegria do povo e a angústia de Joana revela-se na
síntese da relação dialética, gerada pela compreensão crítica global do espetáculo,
apesar da carga emotiva intrínseca.
A transição temporal de ação convergente se realiza quando as
personagens se movimentam, ainda cantando suas diferentes canções, em direção
a um ambiente só: o casamento. (Ibid., p.161) Cantam sublinhando a passagem do
tempo de preparação para a festa que se traduz como o motivo de união dos
personagens.
O tempo de preparação é uma forma de alienação da realidade de opressão
que sobrepassa todas aquelas vidas, resultando numa acomodação confortável que
carrega a ilusão da melhora de vida e suspende a temporalidade mordaz daquele
cotidiano. A situação torna-se irônica quando se confronta com a vida miserável e
submissa que ameaçou prorromper em revolta e deixou-se, por fim, lograr
ingenuamente pelo discurso populista de Creonte.
Durante a festa de casamento, a música é aproveitada conforme outra
perspectiva funcional, encaixando-se na trama para ilustrar o enredo e justapor-se
aos diálogos. O trecho de Flor da idade (Ibid., p.162) propicia a coreografia em
137

que os personagens se divertem na festa, dançando e cantando, contribuindo para


o desempenho cênico do casamento. Anteriormente, em uma primeira ocasião,
essa música é lançada figurando o momento de confraternização entre vizinhos e
Jasão, no instante da sua visita (Ibid., p. 61). Nesta, o teor de satisfação por
reencontrar o amigo que se deu bem é exteriorizado e reforçado pela inclusão da
música, a realização desta pelo coro de vizinhos autoriza a sua autenticidade como
forma espontânea de esboçar a vida que levam, ainda que lírica visão, em
contraposição ao silêncio nada cúmplice de Jasão, que não compartilha da festa. A
inadequação deste momento utópico, em relação à realidade suscitada pela
história, produz novamente o efeito de distanciamento do teatro de Brecht. Mas o
desconforto ameniza-se pela espacialização do boteco, que pressupõe alegria e
descontração, ou exacerbamento das emoções. Girard e Ouellet observam que:

Em Brecht, a música revela-se autônoma em relação às palavras; de modo algum


tautológica, entra, pelo contrário, em relação dialética com um texto que pode ser
contradito por ela uma vez que uma música arrebatadora contrasta
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significativamente com uma cena entristecedora. Em vez de se situar em um


único registro afetivo, pode desentoar e constituir um apelo à inteligência crítica
do espectador. (1980; 86)

Assim, observamos o quanto Gota d'água se relaciona dialeticamente com


as proposições do Teatro Épico sobre o uso da música, aproveitando efeitos mas
relativizando-os por atribuir-lhes novas interpretações que não se relacionam com
o estranhamento.
Seja como for, a riqueza temática e formal de Gota d’água não nos
autoriza a reduzi-la a seus pressupostos ideológicos (equivocados ou não) nem a
considerá-la ineficiente musicalmente, apesar de não se encaixar em nenhuma das
classificações do musical modelo Broadway .
Em O teatro sob pressão, Yan Michalski registra acerca do ano teatral de
1976: “No Rio, essa tendência continua sendo puxada por Gota d’água que,
lançada no fim do ano anterior, atravessa toda a temporada de 1976 com
impressionante sucesso popular. (MICHALSKI: 1989; 66-67).
Tanto pelo primoroso texto escrito em versos como pelas boas músicas
(Flor da Idade, Bem Querer, Basta um Dia e a intensa canção que batiza o
musical), Gota d'água ainda resiste como um dos títulos mais fortes da
dramaturgia brasileira. A peça foi remontada por João Fonseca em 2007, que
138

acrescentou dois sucessos de Chico Buarque – Partido Alto (de 1972) e O Que
Será (À Flor da Pele) (de 1976) - que não constam do texto original. Partido Alto
abre a encenação em intrincado jogo vocal que envolve quase todo o elenco,
fazendo as vezes de música de abertura, uma lacuna já apontada no início da
análise. Mais tarde, O Que Será (À Flor da Pele) pontua a tensão da narrativa
entre Joana e Jasão, ao fim do Primeiro Ato. Três músicas inéditas, escritas pelo
diretor musical Roberto Burgel também foram acrescentadas. Tal inserção foi
uma tentativa de aproximar o musical original ao modelo Broadway, uma vez que
o texto original privilegia os recitativos, e, só há de fato as quatro canções
mencionadas acima, a embolada cantada por Cacetão e a Corrente de Boatos que
encerra o Primeiro Ato, cantada pelo coro.
Se a porção musical cresceu em relação ao drama original, o oposto se deu
com o elenco e a duração das cenas: personagens foram condensados (restaram 10
das 15 figuras centrais), e a história agora chega ao fim uma hora antes (eram três
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horas e meia). Em 2009, o espetáculo teve temporada em Portugal.


A música cumpre o papel dos elementos conectivos no texto dramático da
peça analisada. Ela preenche a parte de ligação entre os inúmeros elementos
significativos, atando-os no momento da representação enquanto
acompanhamento ou ilustração, ou marcando a ação na história, como narração, e
na História, como símbolo de uma ideologia cultural.
Chico Buarque e Paulo Pontes deixam uma obra que, antes de mais nada,
resiste ao próprio tempo. Seja pela intertextualidade marcante, seja pela qualidade
lírica da peça, ou ainda, seja pela maneira tão particular de se evidenciar a cultura
popular, em Gota d'água o tempo se dilui, rendendo-se ao poder inigualável da
palavra.

4.2.3
Ópera do malandro

Escrita, estreada e publicada em 1978, a Ópera do malandro, assinalada


como "comédia musical", é também uma criação de caráter intertextual. Chico
Buarque se inspira novamente em textos ilustres da história do teatro para
produzir uma peça interessada em discutir a realidade brasileira de ontem e de
139

hoje. Os pontos de partida do autor são a Ópera do Mendigo (The Beggar's


Opera), escrita pelo inglês John Gay em 1728, e a Ópera dos Três Vinténs (Die
Dreigroschenoper), escrita pelo alemão Bertolt Brecht em 1928, com música de
Kurt Weill.
A ideia de fazer uma Ópera do malandro partiu de Luiz Antonio Martinez
Corrêa, diretor da primeira montagem da peça. Em meados dos anos 70, ele
começava a realizar uma tradução do texto de John Gay, quando morreu Gino
Amleto Meneghetti, bandido que se tornara lendário por sua ousadia e suas
diversas fugas da prisão a partir dos anos 20. Esse acontecimento fez com que
Luiz Antonio mudasse seus planos:

Se a gente tem um folclore policial tão grande, porque não fazer uma peça com
esses personagens? O Chico já vinha, há algum tempo, querendo trabalhar
comigo. E eu contei para ele a ideia de se fazer uma versão brasileira da Ópera
do Mendigo. Ele gostou e começamos a trabalhar. Aliás, essa ópera é um "roubo"
cíclico. Quando o John Gay escreveu sua versão, ele roubou a ideia original de
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Swift, pegou muitas canções populares e pôs letras nelas. Duzentos anos depois,
o Brecht fez a mesma coisa. Aproveitou a ideia do Gay mas pegou um pouco do
Kipling e François Villon. E temos a versão do Chico. Nas três peças conta-se a
mesma história. O que muda é o enfoque.(CORREA: 1979; 18)

As três peças tematizam essencialmente o relacionamento do ser humano


com o dinheiro, mas a Ópera do Mendigo trata do nascimento do capitalismo; a
Ópera dos Três Vinténs, da decadência desse modo de produção; e a Ópera do
malandro, do capitalismo multinacional. John Gay satiriza a aristocracia de seu
tempo, mostrando que seus negócios em nada se diferenciavam dos trambiques
dos marginais da sociedade inglesa do século XVIII. Bertolt Brecht demonstra
que e a estrutura social estabelecida e mantida pela burguesia é responsável pelo
surgimento de um submundo de marginalizados. Chico Buarque, por sua vez,
mostra a realização em grande escala de negócios escusos paralisando a ação dos
pequenos marginais, seja absorvendo-os e integrando-os ao sistema, seja
eliminando-os por meio da prisão, da completa exclusão social ou do assassinato.
A Ópera do malandro busca em John Gay a sátira corrosiva direcionada
ao extrato social dominante num determinado momento histórico da sociedade de
seu país. Em Bertolt Brecht, Chico Buarque encontra um modo de construção
teatral voltado para a reflexão sobre uma realidade, o teatro épico.
140

A peça de Chico Buarque se divide em uma introdução, dois atos, dois


prólogos musicais (um para cada ato) e dois epílogos musicais. A simples menção
dessa estrutura externa já mostra claramente a vinculação do texto ao teatro épico
brechtiano em seus aspectos formais.
Ambientada em um bordel, Ópera do malandro conta a história de um
malandro carioca, tentando sobreviver nos anos 40, final da ditadura de Getúlio
Vargas – clima bem parecido com o de 1978. Como espetáculo musical, que é, a
trama gira em torno de Max, ídolo dos bordéis. A temática, como não poderia
deixar de ser, retrata a malandragem brasileira no submundo da cidade do Rio de
Janeiro, com todos os ingredientes capazes de nos transportar àquela época, com a
chegada das meias de náilon e dos produtos norte-americanos, que entravam
clandestinamente. A Ópera do malandro põe em cena a rivalidade entre o
contrabandista Max Overseas e Fernandes de Duran, o dono dos prostíbulos da
Lapa. Bem no meio da briga está Terezinha, a filha única de Duran e de Vitória,
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que se casa com Max sob as bênçãos do Inspetor Chaves, o Tigrão, que "trabalha"
para os dois contraventores. O casamento é o golpe final na família Duran: o
desgosto dos pais de Terezinha – e, naturalmente, a ameaça aos negócios – é o
gatilho da trama em que todos tentam tirar vantagem de todos. A peça cria, ainda,
outras personagens inesquecíveis, como Geni e Lúcia, esta última filha de Tigrão
e rival de Terezinha. Ópera do malandro termina com uma passeata das
prostitutas e de outros grupos marginalizados em protesto contra a ditadura
Vargas. O desfile é comandado por João Alegre, sambista/compositor, autor
fictício da obra, que lembra o malandro nos tempos áureos da Lapa carioca. No
último momento, todas as personagens aderem à passeata, num final apoteótico
que ratifica a harmonização dos mundos da ordem e da desordem. A alegria
bizarra ocorre ao som de um pot-pourri de árias operísticas entoadas por todos e
arrematadas por um samba cantado por João Alegre.
Entre vários aspectos dessa obra de tanta força expressiva, tem destaque,
nessa pesquisa, o impacto resultante da mágica fusão de dois talentos de Chico
Buarque de igual quilate: o musical e o dramático. Ópera concilia o humorismo
da paródia com o lirismo da melhor música popular brasileira.
Ela se inicia com uma introdução muito característica do teatro épico à
maneira brechtiana. O fictício produtor da montagem sobe ao palco e anuncia o
espetáculo que será assistido dentro de instantes pelo público. Fala da necessidade
141

premente de "abrirmos os olhos para a realidade que nos cerca, que nos toca tão
de perto e que às vezes relutamos em reconhecer". (BUARQUE:1978; 19) Logo
após criticar as precárias condições do teatro brasileiro, preconiza a chegada da
hora e da vez do autor nacional, chamando ao proscênio o também fictício autor
da Ópera, o típico malandro carioca João Alegre. O produtor anuncia ainda que os
direitos autorais originários do espetáculo desta noite foram doados à Morada da
Mãe Solteira, instituição presidida pela Sra. Vitória Fernandes Duran, que
também é chamada ao palco. Depois de puxar aplausos para a "benemérita"
presidente, o produtor comunica que a própria Vitória Duran atuará no espetáculo
que virá a seguir.
Essa introdução deixa bastante marcada a teatralidade e o anti-ilusionismo
da Ópera do malandro, que, como se vê, realiza-se metalinguisticamente, como
peça dentro de peça.
Como nas peças de Gay e Brecht, os sambas e outras canções de Ópera do
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malandro podem ser ouvidos como criações independentes. Sua relativa


autonomia em relação aos textos falados existe já no bojo da peça. Na estreia, os
números musicais foram executados numa passarela do teatro ginástico do Rio -
espécie de palco dentro do palco - visualizando a estrutura en abîme de um
espetáculo musical inserido em peça teatral. Algumas personagens permanecem
fora da passarela, apreciando o desempenho de cantores e dançarinos, simulando
o público da vida real. A autonomia das canções é, naturalmente, relativa. as letras
entrelaçam-se com o enredo e com os diálogos, pontilhados de referências
mútuas. Peça e espetáculo musical integram-se mais estreitamente do que se
poderia inferir das palavras de Chico Buarque:

É uma proposta nova no gênero musical, já que os números musicais são, de certa
forma, dissociados do resto, apresentados numa passarela construída dentro do
palco. E isso, além de ser importante dentro da própria linguagem do espetáculo,
traz a vantagem de ser um musical mais apurado, com um tratamento mais
próximo de um teatro de revista ou de um programa de auditório, do que
propriamente uma peça de teatro. É um show à parte. 112

112
Coelho, L. A corrupção pedindo passagem. A Última Hora, de 26/07/78. Entrevista concedida
por Chico Buarque na data de estreia. apud OLIVEIRA, Solange Ribeiro. De Mendigos e
Malandros: Chico Buarque, Bertolt Brecht e John Gay - uma leitura transcultural. Ouro Preto:
UFOP, 1999. p. 98.
142

Nenhuma das três óperas se encaixa como opera seria, designação italiana
para forma teatral sem diálogos falados, totalmente musicada, com enredo de tom
elevado, às vezes trágico. Nada mais distante da Ópera de Chico Buarque. Ela é
uma opereta ou comédia musical, caracterizada pela inserção de formas musicais
populares de tipos diversificados: sambas, boleros, foxtrotes, mambos... A grand
opera foi igualmente descartada por Gay em The Beggar`s Opera. O antecessor
de Chico Buarque usou a ballad opera inglesa, composição dos séculos XVIII e
XIX, constituídas por baladas e canções populares. A novidade residia no
entrelaçamento das canções com grande número de diálogos falados. The
Threepenny Opera, com seu entrelaçamento de hibridismo musical e literário, está
ainda mais distante da opera seria.
Chico Buarque explora comicamente personagens, contexto histórico e
sócio-econômico. Também parodia a forma musical - especialmente a grand
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opera - criando letras cômicas para árias líricas, em uma apoteose final
semelhante às do teatro de revista carioca nos anos 40. A incongruência entre a
solenidade das composições parodiadas e o grotesco das letras resulta num
burlesco único.
O contexto musical para o qual sua letra foi concebida evidencia, além de
sua conjugação, outra função essencial: verso e melodia nem sempre correm
paralelamente. Uma interessante tensão opõe ocasionalmente esses dois
elementos, um atuando como comentário ou contraponto irônico do outro.
Também na letra e na música revela-se a presença contínua do processo paródico,
quando contêm citações de canções ou poemas conhecidos, acrescentando-lhes
nuances humorísticas.
Numa opereta, enredo e personagem habitualmente constituem meros
suportes para a melodia. Essa regra geral não é observada na Ópera do malandro.
Sem prejuízo de seu caráter ligeiro, voltado para o entretenimento, o texto
incorpora associações históricas e culturais ponderáveis. Longe de apenas
contribuírem como panos de fundo para realçar o perfil da obra, as referências
históricas e suas interrelações tornam mais denso o sentido da peça.
Indubitavelmente, seria possível assistir ao espetáculo sem refletir sobre o Brasil
do Estado Novo. Mas o texto será apreciado com muito mais intensidade pelo
espectador capaz de reconhecer as referências ao contexto histórico e cultural.
143

Seria deveras superficial uma leitura uma leitura da Ópera que ignore as raízes
históricas da figura do malandro, as inovações econômicas e trabalhistas do
Estado novo ou o papel da música popular, mediadora entre as elites e as classes
populares no Brasil.
O livro publicado em 1978, com o enredo e as canções da peça, tem a
seguinte ordem sequencial - um samba de breque (O Malandro); um bolero (Viver
do Amor); um tango (Tango do Covil); um chorinho com samba de breque (Doze
Anos); um mambo (Casamento dos Pequenos Burgueses); uma cantiga de roda
(Terezinha); uma marcha (Sempre em Frente); outro samba (Homenagem ao
Malandro); um samba-canção (Folhetim); uma canção em ritmo de fox-trot (Ai se
Eles me Pegam Agora); um xaxado com forró (Se eu Fosse teu Patrão); um
bolero (O Meu Amor), apresentado em dueto por Terezinha e Lúcia; uma música
que mistura elementos do fado com aspectos da música espanhola (Geni e o
Zepelim); uma canção lírica (Pedaço de Mim); e uma bricolagem, ou um mosaico
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de trechos de óperas italianas tradicionais, compondo a ópera do Epílogo Ditoso.


O autor da Ópera permanece um artista, ora mais tradicional, ora mais
conservador, especialmente admirável por reportar-se simultaneamente à tradição
musical e poética, tanto à popular quanto à erudita de seu e de outros países. O
artista movimenta-se com igual agilidade entre a recriação de Medeia, de
Eurípedes, em Gota d`água e a obra de João Cabral, em Morte e vida severina. Na
Ópera do malandro, não receia evocar a singela cantiga de roda em Teresinha
(nome ideal para acentuar o contraste irônico entre a heroína, supostamente
ingênua como a personagem da cantiga de roda e ágil aprendiz no jogo da
exploração). Chico Buarque revela-se o criador ideal para a canção enquanto
gênero musical, isolada ou integrada em um conjunto dramático. Sua obra faz
lembrar a poesia em suas origens, integrando música e verso, em interdependência
mútua.
Em 1985, Chico Buarque escreveu o roteiro da Ópera do malandro para o
cinema, reestruturando a trama e refazendo as personagens. A direção do filme foi
confiada a Ruy Guerra.
Em agosto de 2003, uma nova versão do musical Ópera do malandro,
dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho, foi encenada no Teatro Carlos
Gomes (RJ). Em 2006, da mesma dupla de diretores, o compacto Ópera do
144

Malandro em Concerto teve estreia mundial em Portugal e foi apresentado no Rio


e em Curitiba.
A peça seguiu os moldes dos espetáculos in concert (em concerto), que
acontecem com frequência no exterior. Basicamente foram apresentadas as
músicas, entremeadas com pequenos diálogos ou falas, utilizadas apenas para
interligar os números musicais e situar o espectador na história. Em cena, oito
atores/cantores e quatro músicos executaram as 25 canções de Ópera do
malandro.

4.2.4
O rei de Ramos

O rei de Ramos, comédia de Dias Gomes – com músicas de Chico


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Buarque e Francis Hime, letras de Chico Buarque e Dias Gomes – dirigida por
Flávio Rangel, estreou a 11 de março de 1979, no Teatro João Caetano, no Rio de
Janeiro.
Nos papéis principais, achavam-se Paulo Gracindo e Felipe Carone, que
interpretaram os contraventores Mirandão e Brilhantina, ricos e despóticos
banqueiros do jogo do bicho.
No volume no qual a peça foi publicada, no mesmo ano em que chegou à
cena, encontramos depoimentos do diretor e do dramaturgo.
Flávio Rangel oferece uma explicação para o sucesso de O rei de Ramos.
Trata-se quase de uma fórmula: de acordo com ele, quatro fatores fazem
compreender o êxito do espetáculo. Primeiramente, a temática popular; no caso, a
disputa entre banqueiros do bicho, somada a uma história de amor que lembra
Romeu e Julieta, de Shakespeare. Depois, personagens familiares que, como diz
Flávio, são “facilmente reconhecíveis” e podem ser encontradas “em qualquer
esquina do Rio de Janeiro”. Os dois últimos motivos para a aceitação do
espetáculo teriam sido “humor simples e direto e sátira política” (Rangel in
GOMES, 1979; 8).
Há um trecho do depoimento de Flávio Rangel especialmente significativo
para esta pesquisa:
145

A peça foi escrita por uma encomenda minha, na busca de retomar a tradição
interrompida do musical brasileiro. E na busca permanente daquilo que tem sido
a maior preocupação da geração à qual pertenço, e a uma visão de mundo
semelhante, como a que informa Dias Gomes, Guarnieri, Plínio Marcos, Ferreira
Gullar e preocupou Vianinha e Paulo Pontes: o estabelecimento de uma
dramaturgia popular, e um estilo nacional de interpretação. (Ibid., 9)

A procura desses objetivos em O rei de Ramos incluiu reuniões nas quais


Arthur Azevedo e outros autores de comédias de costumes do passado foram
diversas vezes lembrados. A intenção da equipe foi também a de homenagear as
“antigas revistas da Praça Tiradentes, que levavam ao palco os personagens do
dia-a-dia da cidade” (Arthur escreveu algumas delas já no século XIX). Esses
dados evidenciam o intuito mesmo de retomar o fio da meada, de recompor, quase
que dos escombros, a tradição do teatro cantado (dos escombros na medida em
que, embora essa tradição tenha chegado até 1960, corria o risco de se perder). A
nota participante também aparece nas palavras de Flávio: “Aproveitamos toda e
qualquer brecha da „abertura‟ política anunciada (escrevo no dia 26 de março de
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1979) para colocar no palco a opinião do povo sobre aquilo que se está passando.”
(1979; 9).
O rei de Ramos é uma comédia musical – rubrica com que a peça foi
publicada. Mas Flávio diz que pode-se considerá-la “uma revista musical”, usando
as palavras livre ou equivocadamente. De qualquer maneira, é interessante ouvi-lo
quando distingue entre essa peça e o musical americano. O espetáculo cantado
norte-americano, segundo Flávio Rangel, quase sempre “parte da proposta
musical para depois se preocupar com a temática e os personagens”. O rei de
Ramos, por sua vez, “propôs-se a ter todos os elementos constitutivos de sua ação
girando em torno de seu tema principal” (Ibid., 10).
Passamos ao depoimento de Dias Gomes. É revelador que o dramaturgo
lembre que Oduvaldo Vianna Filho tentou convencê-lo, ainda na década de 60,
“da necessidade de pesquisar as tradições do nosso teatro musical (a burleta,113 a
revista), a fim de salvá-lo da extinção e dele arrancar raízes populares para a nossa
dramaturgia,” (Ibid., 11)
É o próprio Dias Gomes quem afirma não se tratar de uma revista. As
revistas costumam exibir estrutura fragmentária, o que não acontece com o texto
em pauta. O rei de Ramos, diz o autor, “é uma peça onde a música desempenha

113
A palavra “burleta” designa comédia de costumes musicada.
146

um papel dramático, contribuindo para esclarecer e fazer andar a narrativa” (Ibid.,


12). Mas Dias Gomes admite ter procurado utilizar, na peça, elementos da revista
– como a figura de um narrador que abre alguns dos quadros falando em verso
(Pedroca), ao passo que as demais réplicas foram compostas em prosa. Em
verdade, podem ser tênues (embora efetivamente existam) as fronteiras entre a
comédia musical e a revista, sobretudo a revista de enredo; esta, um subgênero
que privilegia a história (como ocorre na comédia), enquanto na revista de ano e
nas suas descendentes a estrutura predileta é a da superposição de quadros (Cf.
VENEZIANO, 1996).
O dramaturgo admite ainda algo mais importante: a existência de
preconceito, por parte dos autores ditos sérios e por parte da crítica, contra o
gênero musical – preconceito que o próprio Dias Gomes revela ter alimentado por
algum tempo. A acusação contra o gênero é quase sempre a de frivolidade,
superficialidade, a de se tratar de entretenimento sem ambições. Nesse ponto faz-
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se necessário abrir uma janela, pois para uma nota de rodapé seria muito extenso,
e aqui é o melhor lugar para se fazer a observação a seguir.
As razões para o descrédito do gênero musical são muitas. No seu início,
nos primeiros anos do século XX, o teatro musical americano era pouco
sofisticado. O enredo era frágil. Houve tentativas para integrar a música e dança, e
uma fórmula básica de prazer e diversão: belas garotas, quadros cômicos e
baladas românticas prevaleceram. O moralismo simplista, o otimismo ingênuo, o
nobre heroi e a heroína ingênua foram incorporados a partir de melodrama do
século XIX. O sucesso comercial dessas peças incentivou sua fossilização em um
padrão previsível de extravagâncias sensacionalistas. O mérito artístico foi
considerado menos importante do que o retorno financeiro. O musical era visto
apenas como uma mercadoria.
Nem todos os musicais se prenderam rigidamente a este padrão. Alguns
tentaram introduzir profundidade temática e relevância social. Particularmente no
clima fervoroso político da década de 1930, os musicais começaram a refletir a
ansiedade social. Kurt Weill percebeu que a Broadway era o coração do teatro
americano e adaptou o seu compromisso político para o idioma americano. Suas
principais obras dos anos 30, Johnny Johnson (1936), uma discurso contra a
guerra, escrito com Paul Green e produzido pelo Group Theatre; The Eternal
Road (1937), uma retrospectiva da história judaica, escrito com Franz Werfel e
147

dirigido por Max Reinhardt: e Knickerbocker Holiday (1938), no qual, juntamente


com Maxwell Anderson, tentou expor os males do fascismo - apresentando um
forte contraste com o trabalho de Irving Berlin, Cole Porter and Jerome Kern.
Harold Rome escreveu a revista Pins and Needles (1937) para uma cooperativa de
mulheres operárias, e The Cradle Will Rock, de Marc Blitzstein e direção teatral
de Orson Welles (1937), alcançou notoriedade com a sua postura abertamente
anti-capitalista. Porgy and Bess, de George Gershwin, produzido pela primeira
vez em 1935, com inspiração na vida rural e nas raízes do povo americano,
representou ainda uma nova forma para o teatro musical americano. A canção
Brother, Can You Spare a Dime? de Yip Harburg, foi também uma reflexão
pertinente da América nos anos trinta, tornando-se um clássico da Era da
Depressão:
(…)
They used to tell me I was building a dream,
And so I followed the mob,
When there was earth to plow, or guns to bear,
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I was always there right on the job.


They used to tell me I was building a dream,
With peace and glory ahead,
Why should I be standing in line,
Just waiting for bread?

Once I built a railroad, made it run


Made it race against time
Once I built a railroad, now it's done
Brother, can you spare a dime?
Once I built a tower to the sun
Brick and rivet and lime
Once I built a tower, now it's done
Brother, can you spare a dime?
(…)114

Na verdade, quase todas essas obras foram essencialmente elementos


marginais, nunca penetraram realmente na consciência musical da Broadway.
Ou seja, os voos rasos, a falta de ambição artística não são inerentes ao
musical; podem, quando muito, ser o defeito de nascença de alguns dos textos e
espetáculos dessa espécie. Voltemos à comédia musical de Dias Gomes.
Evocando a estrutura e a nomenclatura das revistas, Dias Gomes divide O
rei de Ramos em quadros; são 18, de extensão variada. O primeiro deles utiliza o

114
http://www.library.csi.cuny.edu/dept/history/lavender/cherries.html acesso em 18/06/2010.
148

recurso de lançar o restante da história no passado, fazendo com que as demais


cenas sejam apresentadas em flashback. No quadro de abertura, assistimos à
morte de Mirandão Coração-de-Mãe, o dono do jogo em Ramos e arredores. Há,
no entanto, malícia extrema no uso desse expediente épico: a morte de Mirandão,
como só iremos saber muito depois, ao final da história, foi mero fingimento, não
passou de mentira armada por ele e seus acólitos para ludibriar a imprensa e a
polícia.
Ouvimos, nessa abertura, o samba que serve como uma moldura para o
enredo. A rubrica informa: “Palco totalmente iluminado, todas as personagens em
cena”. Ironicamente, o “palco totalmente iluminado” que, noutros contextos,
indicaria desnudamento, ação às claras, corresponde aqui a um artifício visando
esconder o golpe de teatro que o autor, mestre no manejo do drama, nos prepara e
que só vamos deslindar mais tarde. Recorrendo a termo proveniente da teoria
musical, diríamos que toda a ação se faz sob a égide de uma grande “cadência de
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engano” (quando é sugerido um caminho harmônico, mas a música segue noutro


sentido). “Viva o rei de Ramos/Que nós veneramos/Que nós não cansamos de
cantar”, entoam as personagens, todas convocadas a homenagear o falso defunto.
Pedroca, que faz as vezes de rapsodo, se alterna ao coro no número de abertura e
apresenta Mirandão ao público.
O próximo quadro inicia-se com a fala em versos de Pedroca, braço-direito
de Mirandão. O brutamontes Pedroca abre várias cenas, sumarizando o que
passou ou anunciando o que virá. A essa altura, ele recorda a própria trajetória,
através de uma I am song:

Comecei humildemente
como engolidor de lista,
uma função que requer
perfeito golpe de vista,
além de um bom estômago
e um certo pendor de artista.115

Os versos, ao mesmo tempo em que criticam os poderosos em geral,


comparando-os de maneira desabonadora a contraventores, reforçam o equívoco
em torno da morte do déspota:

115
GOMES,1979, p 23.
149

Subindo assim por bravura


e também merecimento
de patente em patente
até chegar no momento
a uma espécie de ministro
chefe do planejamento,
por força das circunstâncias
acumulando também a função
de chefe de estado-maior,
bispo de uma religião –
que Deus perdoe a heresia –
em que o papa é Mirandão.
Agora que ele morreu
e a cidade está em pranto,
uma coisa vou dizer
que pode causar espanto,
a verdade verdadeira:
Mirandão era um santo116

O diálogo que se segue, envolvendo Pedroca e Mirandão, decorre tempos


antes da suposta morte, em flashback. O chefe surge “todo de branco, charuto,
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sentado a uma grande mesa cheia de telefones de todas as cores”. As falas


trocadas com o auxiliar apresentam os métodos violentos usados pelo bicheiro no
controle de seus pontos de jogo. Ele manda quebrarem a loja aberta em seu
território pelo rival, Nicolino Pagano, o Nico Brilhantina. Conforme acordo
firmado entre os grandes banqueiros 20 anos atrás, a Nicolino caberiam apenas os
bairros de Copacabana e Leme, na Zona Sul da cidade.
Mirandão ordena a Pedroca: “Vai lá e quebra tudo. Como católico
apostólico romano não posso permitir esse heresismo”, diz na linguagem peculiar
que Dias já havia explorado em novela de televisão, Bandeira 2, na qual
pontificava o bicheiro Tucão, figura que serviu de molde ao rei de Ramos, tendo
sido interpretada pelo mesmo Paulo Gracindo. O “heresismo” devia-se ao fato de
o ponto ter sido instalado por Brilhantina e seus homens numa loja de umbanda,
desrespeitando a religião.
No terceiro quadro, “A moral e a lei”, a rubrica se refere ao ataque ao
ponto novo de Brilhantina:

Balé. Na loja de pai Joaquim, entre imagens de orixás africanos, entre búzios,
velas e patuás, o Boca-de-Alpercata instalou seu ponto. (...) Os homens de
Pedroca entram, cautelosos, um após outro, evoluem em torno do bicheiro

116
GOMES,1979, p 23.
150

carregando enormes imagens de orixás. A música e a coreografia criam o clima:


preparação para o assalto. (...)
Os homens de Pedroca evoluem pelo cenário e começam e destruir a loja. (...)
Os bailarinos prosseguem na coreografia que traduz a destruição da loja e do
ponto. Os jogadores, em pânico, fogem. (GOMES: 1979; 28)

O ataque é uma dança coreografada, que avança a cena para o momento


seguinte e culmina com a morte de Boca-de-Alpercata, conforme acontece nas
coreografias de luta entre gangues em West Side Story.
O segundo eixo da trama é o do romance entre Taís, filha de Mirandão, e
Marco, filho de Brilhantina. Os jovens tendem a ter atitudes independentes,
rebeldes à autoridade dos respectivos pais, o que resultará em conflitos,
emprestando movimento à história (que remete a tema clássico nas comédias, o
amor proibido, com a oposição entre velhos e moços). Vemos Taís pela primeira
vez no quarto quadro. Após uma conversa com Pedroca, sempre com diálogos
curtos e muito ágeis, Taís canta a sua I am song, na forma AABA:
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Qualquer amor
Me satisfaz
Qualquer calor
Qualquer rapaz
Qualquer favor
É só chamar

Pousar a mão
Qualquer lugar
Qualquer verão
É só chamar

É tudo, é do primeiro
Qualquer hora, qualquer cheiro
Qualquer boca, qualquer peito
Qualquer jeito de prazer
Qualquer prazer é pouco
Qualquer éter, qualquer louco
Que o meu corpo de criança
Não se cansa de querer

Qualquer amor
Eu corro atrás
Qualquer calor
Eu quero mais
Qualquer amor
Qual nada117

117
Chico Buarque in GOMES, 1979, p. 36.
151

No quinto quadro, Mirandão, falando da festa de aniversário da menina, a


ser realizada no pátio da escola de samba, lança mais uma de suas pérolas
cômicas. De acordo com ele, a grande festa ficará “nos anais e menstruais da
História” (Ibid., p.39).
Na cerimônia, situada no quinto quadro, os dois jovens se conhecem:
atraem-se pelo olhar, dançam a valsa e se apaixonam à primeira vista, como na
tragédia de Shakespeare. Tal cena é descrita assim: “A luz vai baixando, com
exceção de um foco de luz em Taís e Marco. As demais personagens se
imobilizam na penumbra. Somente eles se movimentam, acompanhados pelo foco
de luz.” (Ibid., p.43) Os dois trocam poucas palavras, certos de que o destino os
uniu: “TAÍS: E parece que isso tinha que acontecer. Estava escrito.”(Ibid., p.44)
Taís não sabe que Marco é filho do maior adversário de Mirandão. O
rapaz, por seu turno, chegou há pouco da Europa, doutor em Economia; ainda
está, portanto, alheio às rixas. Os sentimentos que o diálogo mal poderia exprimir
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formulam-se, expressos com lírica precisão, na música que cantam juntos, a Valsa
de Marco e Taís. A canção foi gravada por Nara Leão e Chico Buarque, sob o
nome de Dueto, no disco da cantora intitulado Com açúcar, com afeto, de 1980:

TAÍS
Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz

MARCO
Consta nos autos
Nas bulas Nos mapas
Está nas pesquisas
Eu li num tratado
Está confirmado
Já deu até nos jornais
Serás o meu amor
Serás a minha paz118

118
Ibid., p. 44.
152

Essa disposição doce pode se converter noutra, bem distinta, caso algo se
interponha à realização do romance, seja “a ciência”, “o calendário” ou “o
destino”; nesse caso,

Danem-se
Os astros
Os autos
Os signos
As bulas
Os búzios
Os mapas
Anúncios
Pesquisas
Ciganas
Tratados
Profetas
Ciências
Espelhos
Conselhos
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Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz119

A atmosfera habitualmente idílica (ou melancólica) das canções de amor


ganha estrutura dual, dialética, temperada pelos sentimentos ferozes que devem
nascer quando se é obrigado a lutar pelo grande amor. Vencidos os combates
hipotéticos, as personagens e suas palavras repousam voltando ao estribilho, como
se lê acima: “Serás o meu amor/Serás, amor, a minha paz”.
Vale registrar também o contraste frente aos episódios cômicos, que por
alguns minutos cedem espaço ao lirismo dessa e de outras músicas. 120
Assim se estabelecem as duas linhas básicas do enredo – a disputa entre os
bicheiros pelos pontos de jogo, de um lado, e o amor escandaloso de Marco e
Taís, que subverte a lógica da rivalidade entre os mais velhos, de outro.

119
Ibid., pp. 44-45.
120
Ao final do quadro, o humor tópico, satirizando figurões do momento político, surge na fala de
Mirandão que parafraseia o estilo truculento do general João Batista Figueiredo. O bicheiro é
informado de que “Brilhantina tá pra abrir uma fortaleza em nossa zona”, e responde: “Me
descobre aonde fica e mando arrebentar. Invado e arrebento!” (1992: 307). A réplica parodia a
famosa declaração de Figueiredo ao assumir o governo, segundo a qual, se alguém tentasse
impedi-lo de “fazer deste país uma democracia”, como havia jurado, ele reagiria à altura: “Prendo
e arrebento”, disse o ex-chefe do SNI.
153

O litígio em torno dos pontos de bicho tinha-se agravado, conforme versos


ditos por Pedroca à entrada do sétimo quadro, e os rivais compreenderam “que era
da conveniência/de ambos levar um papo,/espécie de conferência/entre as partes
em conflito,/as duas superpotências” (1979; 54). A evolução dos bailarinos e a
música destinam-se agora a figurar o clima hostil estabelecido entre as quadrilhas.
O encontro redunda em troca de tiros; Nico Brilhantina comparecera
armado à pretensa conferência de paz e tentara matar o adversário. Nicolino acerta
o disparo, mas, ao fugir, é alvejado pelos homens de Mirandão. Os capitães
baixam ao hospital, onde o doutor Vidigal cuidará de ambos:

Sutil artista da faca


me chamam de Pitangui
e se a polícia me achaca
faço boca de siri

Me procurou to aqui (BIS)


121
Pronto com meu bisturi
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A personagem do médico comporta-se de modo semelhante a de Pedroca,


isto é, canta ou declama dirigindo-se ao público, fazendo as vezes de compère.122
Para ele, não deixa de ser “um ofício divertido”, esse “de ser doutor de bandido”.
Falando como se tratasse de ações passadas, reforçando o caráter épico de sua
intervenção, diz:

Mirandão jorrando sangue


de um buraco na barriga
– era sensacional! –
parecia um chafariz
em feriado nacional.
E o corpo de Brilhantina
era um ralador de coco
com vários furos a mais,
sem contar os naturais...”
(idem, 62).

A história parece alcançar uma espécie de ponto sem retorno, complica-se.


Vem a informação de que o governo pretende lançar a zooteca, isto é, o bicho

121
Chico Buarque in GOMES, 1979, p. 61.
122
Compère é o apresentador, comentarista , cantor que costurava os diversos quadros de uma
revista. (cf. VENEZIANO, 1991; 117)
154

legal, que deverá operar sob as bênçãos, mas também sob o controle do Estado.
Os lucros dos velhos banqueiros se acham ameaçados. O coro, que, em pleno
hospital, inclui enfermeiras, enfermeiros e “tipos populares do Rio”, atraídos pela
boataria em torno da legalização do bicho, canta, entremeando as intervenções dos
solistas (que são os banqueiros e seus respectivos adeptos):

CORO
A zooteca
A zooteca
De boca em boca só se fala em zooteca
A zooteca
A zooteca
Essa fofoca inda vai dar muita meleca
A zooteca
A zooteca
Inda vou ver muito banqueiro de cueca
A zooteca
A zooteca
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Daqui pra frente vai ser ferro na boneca!123

Como se não bastassem as dores de cabeça trazidas pela ameaça de


legalização do jogo, Mirandão e Brilhantina, já descontentes com o namoro de
Taís e Marco, têm de enfrentar situação ainda mais difícil: os dois jovens fugiram
juntos. Nota-se a admirável a habilidade de Dias Gomes em trazer à cena
problemas novos, acirrando a tensão dramática quando se poderia acreditar que
esta houvesse atingido seu ponto mais alto.
Uma reunião dos cinco maiores bicheiros do Rio, para tratar do dilema da
zooteca, culminará com a apresentação de outro elemento para esta bola de neve:
Nico Brilhantina, atingido pelos tiros disparados pelos comparsas de Mirandão
(logo depois de Nico haver tentado matá-lo), ficara com uma bala na cabeça, que
o doutor Vidigal, prudente, preferiu não extirpar logo.
Nicolino passara dificuldades sérias na infância, tendo disputado restos de
comida, no lixo, com urubus. Ao final da reunião dos contraventores, que corria o
risco de terminar em novo confronto entre os dois rivais, o feroz Nico tem
alucinações, enxergando os urubus vistos quando menino na sala em que se dá a
conferência. Aquela bala no crânio lhe tirara o juízo.

123
GOMES,1979, pp. 79-80.
155

A metamorfose vivida por ele altera comicamente os seus sentimentos.


Nico torna-se um homem bom, agarrado à Bíblia, professando agora valores de
paz e concórdia, inclusive no que toca a Mirandão, seu maior inimigo. Em O rei
de Ramos, contudo, a metamorfose parece definitiva. Ainda é, no entanto,
desabonadora, já que procede de circunstância exterior à personalidade de Nico.
Seja como for, a conversão concorre para que Brilhantina ouça, favoravelmente
predisposto, as ponderações do filho. Marco andara estudando a estrutura
comercial do bicho e formulara um plano para modernizá-la e para enfrentar com
êxito o iminente perigo da zooteca (que poderá até acarretar a prisão de Miranda
e, imagina-se, também a de seus colegas).
Em paralelo, prepara-se uma passeata de protesto contra a zooteca,
valendo-se Mirandão de seu prestígio para arregimentar o povo dos bairros onde
era conhecido e respeitado. Em cena, uma sátira: trata-se da “Marcha com Deus e
a família pela liberdade do bicho”, caricatura das passeatas conservadoras
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ocorridas 15 anos antes. A marcha dá ensejo a nova cena cantada, quando os


populares se manifestam contra o bicho legal.124
Depois de alguma resistência, Mirandão resolve ouvir o que Marco tem a
dizer. Marco propõe que os bicheiros se reúnam em cartel, manipulando preços e
inviabilizando a ação da concorrência:

MIRANDÃO (Impressionado.) – Mas isso não dá cadeia?


MARCO – Parece que não, porque esses cartéis dominam hoje quase todos os
setores do comércio e da indústria, em todo o mundo capitalista. Se você e
Brilhantina, em vez de viverem se digladiando, se unissem formando um cartel, o
jogo do bicho não só seria invencível nacionalmente, como acabaria transpondo
as fronteiras do país e dominando o mundo (1979:125).

124
No texto, a “Marcha com Deus e a família pela liberdade do bicho” é o título do 15° quadro;
todos os quadros trazem títulos, em geral irônicos, que não sabemos se foram conservados no
espetáculo. Recurso épico (usado por Brecht, por exemplo), os títulos configuram comentários às
ações que se vêem a seguir (ou seja, comentários prévios, que induzem à recepção crítica). No
caso do 15° quadro, há o expediente adicional dos cartazes. A rubrica pede: “Balé. Com máscaras
dos 25 bichos, os bailarinos marcham, portando cartazes que dizem: estou com o cavalo e não abro
– liberdade para a borboleta – abertura para o veado – bicho amplo e irrestrito – viva a iniciativa
privada – abaixo os bichocratas – „animals lib‟ – o bicho é do povo como o céu é do avestruz –
arena livre para o touro – o macaco tá certo – etc.” (1979: 118). Os cartazes integram a tradição
das revistas brasileiras, além de participarem do repertório das técnicas brechtianas. Nesse
momento, referem diversos temas da atualidade em 1979, políticos ou de costumes: cavalos
associados a Figueiredo (que praticava a equitação), a abertura política, os tecnocratas no governo,
a campanha pela anistia, os movimentos de liberação das mulheres e dos homossexuais, a Arena
(partido de situação) etc.
156

Os métodos? “Duas ou três grandes empresas concorrentes se unem,


firmam um acordo para explorar determinado negócio. Ficam assim super fortes e
podem eliminar todas as outras empresas concorrentes que não façam parte do
acordo”, diz Marco.
Eliminar de que jeito? “Pela intimidação, pelo suborno, pela política de
baixos preços, pela sabotagem e até mesmo... pelos meios mais violentos”,
explica o rapaz, diligentemente (1979: 125).
Faz-se “a divisão do mundo” entre os cinco bicheiros cariocas. Marco,
Taís e Mirandão, no penúltimo quadro, falam de fenômeno que, em nossos dias,
se confirmou amplamente: a globalização (termo inexistente, na acepção atual, em
1979) dos capitais. Eles cantam, eufóricos:

MARCO, TAÍS E MIRANDÃO


Do Caribe ao Rio da Prata
Desde o Congo a Hong-Kong
Mão-de-obra mais barata
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Para o bicho prosperar.


Monto banca em Sri-Lanka
Fundo loja no Camboja
Abro um ponto em cada esquina
Lá da China Popular125

Canta-se o samba em homenagem a Mirandão quando ainda se pensa que


ele foi, de fato, assassinado. Simples golpe de teatro. No funeral, pouco antes de
se conduzir o “pijama de madeira” a seu pouso derradeiro, na hora em que já não
há policiais e jornalistas por perto, o homem ressuscita. Os personagens mais
próximos tinham sido devidamente avisadas do milagre; o público, até então, não
sabe do acerto. A falsa morte evitará a sua prisão e ele poderá ir para “Nova
Iorque”, presidir a International Animal Game Corporation.
A música final fala em “zonear o planeta”, encerrando-se com estes
versos:

TODOS
Viva o „holding‟!
Viva o „dumping‟!
Viva o truste!
Viva o lucro!

125
Ibid.,1979, pp. 79-80.
157

Viva o luxo!
Viva o bicho!
Multinacional!
Viva o bucho!
Viva o lixo!
Multinacional!
(1979: 140).

O rei de Ramos apresenta uma estrutura bem integrada mas híbrida, com
elementos de musical modelo Broadway e algumas convenções revisteiras. As
personagens são simples, caracterizam-se pela linguagem e pelas ações. A
comicidade da personagem Vidigal imprime leveza à comédia. As canções são
bem distribuídas, e bem variadas de acordo com a tipologia, apresentando número
de abertura, canções padrões e cenas musicais. O coro ora comenta a ação, ora
representa uma comunidade. As ações coreografadas que avançam as cenas são o
elemento surpresa dessa comédia. A divisão em quadros e não em atos e a
presença de um narrador ao estilo compére denotam o conceito que sustenta O rei
de Ramos, como queria Dias Gomes, cuja intenção era usar “a dinâmica e a forma
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de comunicação direta que fizeram da revista, por várias décadas, o nosso teatro
popular.” (1979; 12)
As soluções estéticas mobilizadas nessas peças (e em outras produzidas
nesses anos de ditadura) reeditaram as práticas nacionais da farsa e da revista,
assimilaram influências estrangeiras (os alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht,
o musical norte-americano) e, sobretudo, afirmaram caminhos artísticos originais,
capazes de envolver o público.126 A geração de dramaturgos, diretores, atores,
cenógrafos e músicos que atuou nos anos 60 e 70 manteve a continuidade da
tradição do teatro musical no Brasil, fixando tendências que transcenderam aquele
instante. Aqueles artistas talharam as pontes que atam século e meio de
realizações literárias, sonoras e cênicas, projetando-as para o futuro. A arte de
misturar as fontes populares às formas cultas – o samba, a bossa, a valsa, a farsa, a
ária, o coro, a redondilha, o decassílabo –, as estruturas épicas e dramáticas se
enriquecendo mutuamente, a poesia na música popular, é uma prática herdada dos
modernistas no seu afã antropofágico, onde tudo se encaixa, se soma e se
incorpora.

126
Lembre-se, contudo, que essas montagens de índole popular quase sempre se viram restritas a
plateias de classe média, o que em parte se pode explicar pelo contexto em que se realizaram.
158

O êxito dessas montagens nos permite supor que eles alcançaram, pelo
menos em parte, seu objetivo. O que não houve, lamentavelmente, foi a necessária
constância de produções para que se pudesse hoje afirmar a existência de uma
prática nacional do espetáculo cantado – assim como há, digamos, uma prática
brasileira da teledramaturgia.

4.3
O modelo Broadway no Brasil

Desde o início da década de 1960, o teatro musical modelo Broadway


marca presença, ainda que episódica, nos palcos brasileiros. Segundo o jornalista
Paulo Salgado, da Revista Querida de abril de 1966, até ver Minha Querida Lady
(My Fair Lady), em 1962,
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o carioca não sabia o que fosse uma comédia musical. Embora estivesse
familiarizado com as versões cinematográficas de vários sucessos da
Broadway, não sabia o que fosse ver, nos limites do palco, uma comédia
musicada onde a partitura, as canções, entrassem naturalmente, os bailados
fossem funcionais, magnificamente bem marcados e melhor ensaiados.127

Aos poucos, o público se familiarizava com esse modelo importado, mas o


preconceito era ainda muito grande. Havia um estranhamento em relação às
convenções do teatro musical; as canções, além de desconhecidas, apresentavam
traduções que feriam a sintaxe da língua como em Vou me casar em matrimônio,
versão de Get Me to Church on Time, de Minha Querida Lady (My Fair Lady), ou
Meu chapéu enfeitarei de fitas (Ribbons Down My Back), de Alô, Dolly! (Hello,
Dolly!), apresentado em 1965. O que realmente atraía o público eram as
performances de Bibi Ferreira, Paulo Autran e do barítono Paulo Fortes.
Os musicais da Broadway, durante os próximos anos, até o final do século
XX, são de presença tímida nos palcos brasileiros, não alcançando a marca de 15
peças importadas. A partir do século XXI se inicia um novo ciclo de produções de
shows musicais, com a chegada no Brasil da multinacional CIE Brasil - Hoje T4F
(Time For Fun) -, que traz os espetáculos prontos, bem próximos da matriz
estrangeira, permitindo somente a versão brasileira das letras das canções. A
127
Pontes apud http://www.bibi-piaf.com/dolly.htm acesso em 20/03/2011.
159

empresa Aventura - antiga Axion - também se propõe a trazer para os palcos


brasileiros produções grandiosas. Embora estejamos falando da produção de
musicais importados, amarrados a uma estrutura que não permite interpretações
criativas, cabe a tais empresas, e a outros produtores de menor porte - como
Miguel Falabella - a responsabilidade de dar continuidade a esse renascimento do
teatro musical no Brasil.
Nestas quase cinco décadas de produções de musicais modelo Broadway,
o público brasileiro foi iniciado em um processo de aceitação e compreensão do
modelo importado, que, atualmente, de acordo com Neyde Veneziano, “é
brasileiro, já passou de americano.”(VENEZIANO: 2010; 9)
Claudio Botelho, um dos mais atuantes artistas do teatro musical no Brasil,
além de atuar e cantar, cria as versões brasileiras das canções de quase todas as
megas produções que chegam ao Brasil, tanto da Time 4 Fun quanto da Aventura.
Sua preocupação maior é criar uma versão que respeite tanto a rima quanto as
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durações do ritmo. Procura também manter a métrica dos versos, de forma que
suas letras não portem uma roupagem de tradução.
Claudio se associou a Charles Möeller e, desde 1997, a dupla tem
reinventado a arte do musical através de adaptações. Uma única criação, em
parceria com o músico Ed Motta, representa o aprendizado das convenções do
teatro musical modelo Broadway: trata-se de 7 - o musical, espetáculo que ganhou
prêmios de melhor autor (Charles Möeller), diretor (Charles Möeller e Claudio
Botelho), figurino, iluminação e categoria especial (Charles Möeller e Claudio
Botelho, pela atividade contínua das diferentes modalidades do teatro musical).

4.4
Do jukebox ao biográfico

Um musical jukebox128 é um filme ou peça musical que usa canções


populares lançadas anteriormente como score. Geralmente, as músicas têm em
comum uma ligação com um músico popular em particular ou um grupo - seja
porque foram escritas por ou para os artistas em questão, ou pelo menos por eles
apresentadas. As canções são contextualizadas em um enredo dramático: muitas

128
http://en.wikipedia.org/wiki/Jukebox_musical acesso em 02/03/2011.
160

vezes é a história biográfica do artista, intérprete ou executante, cuja música é


destaque, embora, em alguns casos, a trama não gire em torno do grupo musical
em questão. Os musicais jukebox vem conquistando o seu espaço há anos, com
sucesso garantido. Buddy - The Buddy Holly Story, o musical sobre a vida de
Buddy Holly, ficou em cartaz por 13 anos no West End, em Londres, no período
de 1989-2003. A recente popularidade desse subgênero foi liderada pelo sucesso
de Mamma Mia!, construído em torno da música do ABBA.
A ideia de usar músicas conhecidas, com ou sem novas letras, em uma
produção teatral nos remete ao Beggar's Opera, (Ópera do Mendigo) de 1728, às
vezes chamado de "o primeiro musical". O termo foi primeiramente cunhado na
década de 1940, em referência aos filmes que utilizavam em suas trilhas um
grande número de gravações de sucesso, como Jam Session (1944), Rock Around
the Clock (1956), Rhythm Juke Box (1959) e A Hard Day's (1964).
O sucesso crítico e comercial de musicais jukebox tem sido desigual.
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Alguns (como Lennon) encerraram depois de uma temporada curta, enquanto


outros - Movin' Out, Mamma Mia! e Jersey Boys tornaram-se um enorme sucesso.
Atualmente, estão em cartaz na Broadway Fela! (2009), com músicas de Fella
Kuti; American Idiot (2010), com score da banda Green Day, entre outros. Em
West End, faz sucesso We Will Rock You (2002), com as memoráveis músicas do
Queen.
A dupla de diretores Charles Möeller e Claudio Botelho, responsável pela
apresentação de 27 peças musicais até 2010, também é adepta do gênero. Em
parceria já realizaram As Malvadas (1997), com repertório musical variado, de
George Gershwin a Roberto Carlos; O Abre Alas (1998), biográfico de Chiquinha
Gonzaga; Cole Porter - Ele Nunca Disse que Me Amava (2000), com canções do
artista; Um Dia de Sol em Shangrilá, (2002) com um medley bem eclético de
canções de Chico Buarque, Stephen Sondheim e da dupla Kander/ Ebb; Cristal
Bacharach (2004), com clássicos de Burt Bacharach; Beatles Num Céu de
Diamantes (2008), este com temporada em Lyon, na França.129
Desde o final da década de 80, em particular no Rio de Janeiro, o jukebox
americano ganha contornos diferenciados e atrai, a princípio, um público

129
Sassaricando - e o Rio Inventou a Marchinha (2007) e É com esse que eu vou (2010), ambos de
Sérgio Cabral e Rosa Maria Araújo, não se enquadram nessa categoria, uma vez que não
apresentam enredo dramático alinhavando as composições musicais.
161

específico, pertencente a gerações da primeira metade do século XX,130


interessado em recuperar as melodias nostálgicas de outras épocas, revividas nos
palcos através da história de seus cantores/intérpretes. Essa nova tendência - o
musical biográfico - vem sendo apresentada nos palcos cariocas desde 1989, a
partir de Lamartine para Inglês Ver. Desde então, tem sido constante a presença
desses musicais que trazem à cena a figura de cantores populares de grande
reconhecimento de público.
Em seu artigo “Por um teatro de apropriações: o musical biográfico
carioca”, Ana Maria de Bulhões-Carvalho (2009; 96) aponta duas vertentes desse
subgênero: uma “na trilha da tradição americana, o espetáculo South American
Way: Carmen Miranda, o musical - que, conforme o desejo dos produtores,
buscou „um grande musical nacional, digno dos palcos da Broadway, mas com
tempero e medida brasileira‟ (Programa do espetáculo: s/p)”. A outra vertente,
mais próxima da revista, devido à sua estrutura fragmentada de quadros, tem
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como exemplo o espetáculo As aventuras de Zé Jack e seu pandeiro solto na


buraqueira no país da feira. Tais modelos demonstram que a forma do musical
biográfico “é original e eclético, dando margem a soluções diversas, que
permitam driblar o dèjá vu obrigatório da reprodução do que já é domínio
comum.”
A partir dessa observação, fica claro que o conceito determina a forma a
ser utilizada, ou seja, se o gancho entre o texto e as partes musicadas irá permitir
que essa justaposição se dê de forma orgânica ou não.
“Um nome famoso, desses que fizeram corações suspirar ou pelo menos
sorrir de alegria; um repertório que se conheça de cor e que se aprecie relembrar;
situações de embaraço e constrangimento, dificuldade ou tristeza, regidas por um
espírito elevado e bem-humorado, aliando o sério ao jocoso, o satírico ao lírico, a
homenagem à crítica simpática” concretizam, segundo Bulhões-Carvalho (2009;
98), a fórmula utilizada no musical biográfico.
Duas Irmãs, de Sandra Louzada, espetáculo apresentado no CCBB em
1998, concretiza de maneira bastante eficiente essa conjugação de repertório
musical de sucesso com texto dramático primoroso, tornando-se, de acordo com a

130
Tal comentário não se aplica, obviamente, a Renato Russo (2007) e Começaria Tudo Outra
Vez: A História de Luiz Gonzaga Júnior (1996; 2004), ídolos de gerações cujas faixas etárias são
inferiores à mencionada.
162

crítica, um paradigma do subgênero. O musical funde teatro, canto e dança para


reconstituir, desde o início até o ostracismo, com ênfase na glória, o percurso das
irmãs Linda e Dircinha Batista, estrelas da Era do Rádio no Brasil, declaradas por
Getúlio Vargas, que as incorporou em seu projeto populista, como Patrimônio
Nacional.
O palco, que se divide em dois andares, apresenta o passado glorioso na
parte superior e a decadência das irmãs, enfurnadas em seu apartamento, na parte
inferior. “Tô falando do passado que fica aqui, na cabeça da gente, das imagens
que aparecem quando fecho os olhos”, diz uma Linda visivelmente ébria.131
(Somos Irmãs, VHS, acervo do CCBB) O diálogo espaço-temporal se dá através
das lembranças de ambas, enquanto aguardam, no presente ficcional, a chegada de
uma equipe de televisão que vai tirá-las do ostracismo e, consequentemente, da
penúria em que vivem. As músicas selecionadas comentam e avançam as cenas,
resultantes da criação de um libreto de forma integrada, que utiliza as músicas
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complementado os diálogos apresentados.


De acordo com Bulhões-Carvalho, “esse novo subgênero do teatro
musicado, sob um aspecto, e do teatro histórico, sob outro, ora discute formas, ora
reproduz fórmulas, ora equilibra elementos em composição harmoniosa, ora
aprisiona-se em recursos gastos e ineficientes.” (2009; 98) As tentativas não se
esgotam, procuram uma adequação interessante entre conceito e forma, pois,
afinal, o gênero musical se renova e é necessário que haja novas investidas para
que, em algum momento, uma improvável combinação se torne uma tendência e
dê continuidade à série.

4.5
7 - O Musical

Möeller e Botelho são responsáveis pelo renascimento do teatro musical


no Brasil. Já se vão duas décadas de uma carreira bem sucedida, apresentando
musicais brasileiros de gênero variado e, principalmente, trazendo aos palcos
brasileiros montagens de shows da Broadway de grande aceitação de crítica e de
audiência. Mais do que motivar novas montagens, esses espetáculos modelo

131
Somos Irmãs, VHS, acervo do CCBB, consultado em 03/02/2010.
163

Broadway estão formando um público que, há bem pouco tempo, via espetáculos
musicais com olhos de desconfiança, leigo nas convenções do teatro musical.
A diversidade dos trabalhos feitos em parceria pelos diretores contempla
obras ácidas e intelectualmente brilhantes, como as canções de Cole Porter, ou
shows conceituais como Company, de Stephen Sondheim. É provável que todo
este esforço eclético mais o trabalho sobre diferentes etapas criativas, da tradução
à versão, das audições aos ensaios, seja indispensável para o aprendizado de um
tipo de teatro que solicita, em proporções iguais, criatividade e preparo técnico.
A bagagem permitiu que Möeller e Botelho criassem um espetáculo cuja
marca seria o ineditismo.
A análise do espetáculo 7- o Musical foi feita a partir de uma gravação em
DVD e do libreto não oficiais, cedidos gentimente pelos autores, com o
compromisso de não publicá-los ou divulgá-los. Por esse motivo, o libreto não se
encontra no apêndice. As declarações de Charles Möeller e Claudio Botelho
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foram transcritas a partir de uma série de trocas de mails e mensagens pelo


Facebook.
7 – o Musical estreou em 2007 no Teatro João Caetano, em 2008 seguiu
para o Teatro Carlos Gomes, e viajou em nova temporada para São Paulo em
2009, no Teatro Sergio Cardoso.
No programa do espetáculo, Möeller e Botelho tecem alguns comentários
sobre a brasilidade, temática recorrente no teatro musical brasileiro, que coloca a
mulata no palco, o samba, ou lança mão de um saudosismo alimentado pela
biografia de grandes ídolos da MPB, sobretudo os cantores de rádio. Essa não é a
sua proposta. Partindo do conto maravilhoso dos irmãos Grimm, Branca de Neve,
o grande desafio para essa dupla de criadores era “fazer texto e música e letras
numa construção que torne tudo uma coisa só, sem superposições ou desníveis.”
(Programa do espetáculo: s/p) Partiram, então, do ponto zero. Primeiro vieram as
composições de Ed Motta, que, apresentadas a Claudio Botelho, impulsionaram a
criação das letras, mais um desafio para o versionista. Charles Möeller escreveu a
história e a peça foi tomando forma, durante quatro anos sendo gestada. Desde o
período do teatro musical engajado que não se criava uma peça com todos os seus
elementos inéditos, principalmente os elementos musicais. Chico Buarque, Carlos
Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, todos haviam se afastado da cena teatral.
164

A maior preocupação de Möeller e Botelho era que as canções fossem


integradas às falas, essenciais à cena, sem vida própria fora do palco, música de
teatro. O show seria um musical onde, ao final de cada canção, a história teria
avançado.
7 – O Musical é uma peça em dois atos, com 17 canções, que conta a
história de Amélia, um mulher abandonada pelo marido e que apela à feitiçaria
para trazer o seu homem de volta. Paralela à trama de Amélia, a história de Clara,
uma menina entediada que passa os dias na companhia da Sra. A, ouvindo à
exaustão o conto da Branca de Neve.
Herculano, na verdade, trocou Amélia por Bianca, uma mulher mais
jovem, com quem teve um bebê. Por sua vez, Bianca se sente sufocada por esse
amor, que a mantém dentro de casa sem contato com a vida lá fora. O que só
iremos saber no final é que esse bebê é Clara, anos antes, e que a Sra. A é Amélia,
vítima de sua desmedida, enfeitiçada pelo seu desejo.
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A história se passa em três momentos: em uma cidade pequena, logo após


o abandono de Amélia; em um Rio de Janeiro ficcional, onde ela vem para
executar as 7 tarefas e trazer Herculano de volta; novamente na cidade de origem,
anos depois, quando Clara já é uma adolescente e vive em sua companhia. No
palco, essa mudança temporal ora é alternada, ora é simultânea. O cruzamento da
narrativa de Branca de Neve contada pela Sra. A com a aventura de Amélia no
Rio, que tenta realizar a última e mais difícil tarefa – conseguir “um coração/
ainda moço/ quente e feliz” – vai-nos dando pistas de que existe algo além de
certas coincidências. As peças do quebra-cabeças estão todas no palco, esperando
que o público as encaixe.
7 tem um prólogo no qual a Sra A e Clara iniciam a contação de Branca de
Neve, em um lugar com um imenso relógio sem ponteiros. Após essa introdução,
vemos um cenário ambientado no Rio de Janeiro, em um tempo cronológico
indeterminado, com Amélia sendo pressionada por Carmem dos Baralhos a
concluir o seu trabalho, pois só falta a última tarefa. A partir dessa conversa,
inicia-se um longo e complexo número de abertura, que corre pelo passado e
presente, revelando as personagens, avançando as cenas, dividindo o espaço com
as falas, interligando todos os elementos. São 6 rapazes que “cantam” as tarefas
de Amélia:
165

RAPAZ 1
Um rato branco...
RAPAZ 2
Sementes de romã...
RAPAZ 3
Um dente siso...
RAPAZ 4
Sapato de mulher...
RAPAZ 5
Um livro bento...
RAPAZ 6
E uma aliança...

O sétimo pedido é muito difícil, mas Carmem adverte, “Eu não quero
nada. Você é quem quer o seu homem de volta... A magia tem um preço, minha
filha. Tudo na vida exige sacrifício. Lembre-se que mudar o destino é uma coisa
muito séria...” Amélia não se conforma, “Eu já fui linda. Um dia eu fui...”, mas
parte decidida. É Carmem quem continua a história:
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Noite
Quando tudo em volta é noite
Quando tudo em torno é turvo
Quando tudo em cima é negro
Quando tudo some...

Pardo
Quando todo gato é pardo
Quando todo peso é fardo
Quando todo beco é torto
Quanto tudo some...

RAPAZES
Pela escuridão!

Amélia se encontra com um homem na rua escura e o seduz.


Paralelamente, Vemos a Sra. A contando um episódio de Branca de Neve. O
espelho sentencia:

RAPAZES
Não há no mundo
Não há no mundo, não
Ninguém mais bela do que vós
Não há no mundo...
166

O homem seduzido tenta estrangular Amélia, mas ela apunhala. Carmem


continua:

Ah... noite
De repente foi a noite
De repente foi um grito
De repente foi um corpo
De repente foi o

sangue
E na rua foi o sangue
E no muro foi a sombra
E nas pedras foram passos
E os passos foram

pela escuridão...

Enquanto isso, Branca de Neve já cresceu e o espelho lhe diz:


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CLARA e RAPAZES
Branca de Neve
Branca de Neve, sim
É bem mais bela do que vós...

Amélia relê as instruções de Carmem e executa a sua missão:

(Vê-se apenas a silhueta de Amélia sobre o homem. Música em suspenso)


Amélia (tira o papel do seio e lê as instruções):
“Sétimo pedido: colocar a aliança de casado no anular da mão esquerda e... (olha
a aliança no próprio dedo) com um punhal bem afiado, cravar o peito e arrancar...
o coração!”
(...)
(Amélia levanta a punhal sobre o peito do homem, Carmem aparece cantando e
Amélia some no escuro)

CARMEM
Traga um coração
Ainda moço
Quente e feliz

RAPAZES
Quente e feliz...

(A luz mostra Amélia no mesmo lugar sobre o morto, agora com um saco de
veludo preto nas mãos)
(RAPAZES, ELVIRA, MADALENA e DONA CARMEM arrematam a canção
em várias vozes)

Noite
167

É de noite que se escuta


E de noite se confessa
E de noite fazem juras
E acreditam nelas...

Claro
Quando o dia chega claro
E o rato vai pro ralo
E a porca torce o rabo
E o diabo escorre

Pela escuridão...

A Abertura exposta acima, fragmentada em sete partes, complementa as


falas das personagens e avança a cena. Os fragmentos musicais advindos da
história de Branca de Neve funcionam como reforço para a ação de Amélia, que
parece ouvir em sua mente a voz masculina que, ao mesmo tempo em que a julga
a mais bonita, diz o mesmo a respeito da outra, mais bela e mais jovem.
Agora Amélia tem certeza de que Herculano vai voltar, expressando o seu
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desejo musicalmente em “Ele vai voltar” uma I want song:

(...)
Ele vai voltar
Vai voltar, vai
Certo como o sol
E a lua
Vão voltar no céu
Sempre
Sem nenhum senão
Sem pensar, sem
Ele vai ser meu
Meu dono
Como eu sempre quis
Sempre
(...)

Na cena 2, D. Odete, a cafetina, na companhia de Elvira e Madalena, duas


cortesãs, encontram o defunto na rua. Essa cena insere a comicidade na peça,
através da fala espontânea das personagens, bem coloquial, recheada de
comentários alusivos ao nosso tempo, num tom bem satírico. Odete, ao ser
indagada se conhece o morto, responde: “Minha filha, são 5 da manhã. Eu não
reconheceria nem a voz da minha mãe, se eu tivesse uma... (...)Eu achei que isso
aqui já ia estar cheio de polícia, mas a polícia é a última a chegar sempre...”
168

O trio imediatamente remete o público à lembrança da madrasta e das duas


irmãs de Cinderela, numa versão rodriguiana. Ainda nessa chave cômica, vemos o
morto se levantar e cantar a sua infelicidade de não poder descansar nem quando
morre, ouvindo a conversação das três mulheres. Essa cena ainda é abrilhantada
com a Canção em torno do defunto, executada pelo quarteto em estilo canon:

HOMEM MORTO
Morreu
Fudeu
Ninguém te deixa em paz!

MADALENA (falado)
Viu por que eu tenho medo?

HOMEM MORTO
Azar
O meu
São todos anormais!

ELVIRA (reagindo ao morto)


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Anormais? Olha aqui...

HOMEM MORTO
Por que
Não vão
Atrás

Da mãe
Da vó
E mais...

Se o inferno é ali
Chama um taxi pra mim
Eu prefiro encarar

(os quatro encerram a canção)


169

HOMEM MORTO MADALENA ODETE e ELVIRA


que ficar aqui
com essa gente aqui eu não posso mais que ficar aqui
eu não quero mais com essa gente aqui
mesmo o inferno e o
purgatório é melhor

purgatório até eu não posso mais


é melhor que aqui! eu não quero mais purgatório até
mesmo o inferno e o é melhor que aqui!
purgatório é melhor

eu não posso mais


purgatório até eu não quero mais
purgatório até
é melhor é melhor
é melhor

Mas o coração [trazido por Amélia] é velho, diz Carmem, “Não posso
enganar as forças, minha filha. As forças pedem um coração jovem, de moço...
Entendeu? Ou é isso ou é nada... Você continua me devendo o sétimo pedido.”
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Enquanto isso, no mesmo Rio de Janeiro, Bianca se lamenta com


Herculano que não consegue mais ficar escondida no subúrbio, precisa sair, ver o
mar. Amélia chega à casa de Odette recomendada por Carmem: lá ela encontrará
o coração inda moço. E Branca de Neve acaba de fugir para a casa dos anões. As
três histórias correm por linhas convergentes, cada vez mais próximas da
interseção. Enquanto Carmem se veste para sair, “Amélia canta como quem reza”
Amigas cartas, canção no estilo patter song, que termina em outro canon:

(...)
AMÉLIA
O dente que caiu na frente mais que de repente
Disfarçadamente se escondeu no ralo

CARMEM
No ralo

AMÉLIA
O ralo bem depressamente mastigou o dente
Dentro da corrente e já não volta não
(...)
170

CARMEM AMÉLIA
Peçam, e eu lhes prometo
Peçam, eu me ofereço
Mandem, e eu vou fazer
Juro, eu vou fazer
Quem, quando e por quê?
Não quero entender
É sagrado obedecer! É sagrado obedecer!

(Ao final da canção, Carmem está transformada em vendedora de perfumes e


toiletes. Aparência simpática, e uma enorme bolsa de vime a tira-colo)

CARMEM
Eu vendo mercadorias!

A vítima de Carmem será Bianca, que se encontra em casa com o bebê,


sentindo-se sozinha. Ela não resiste aos produtos de beleza oferecidos pela
feiticeira e cai em sua armadilha. Carmem corta os seus cabelos, cantando,
enquanto a enfeitiça. Depois a incentiva a sair de casa, dizendo-lhe que o mar quer
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conhecê-la. Se essa rua, a canção que Bianca canta enquanto caminha pela cidade,
é talvez a mais lírica do musical. Claudio Botelho parafraseia a cantiga oral e dá
voz ao lamento dessa mulher, que se perde pelas ruas, sem saber onde é o seu
lugar. Herculano também canta, mas não é um dueto, na verdade, há um
desencontro. Um coro masculino abre a canção, como se fossem vozes da rua que
sugerem a Bianca aquilo que ela precisa fazer:

BIANCA
Se essa rua
Por onde eu vou passar
Fosse minha
Mandava ladrilhar
Com pedrinhas que eu mesma inventei
Pra me salvar
171

Do silêncio HERCULANO
Onde ele me guardou Tudo pra você
Das paredes Meu bem
Onde ele me fechou Meu bem
E das portas que de par em par
Ele trancou

Eis o meu inferno Eis o nosso ninho

Eis o meu castigo Eis o nosso sonho

Fica bem aqui


Eu quero mais Onde é tudo paz
Eu preciso mais
Bem mais...

Faz frio lá dentro Lá fora faz frio

Lá dentro é vazio Lá fora é relento

O tigre em meu peito O lobo lá fora

Eu preciso ir agora É por mim


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Por nós
Por nós Por nós
Por nós
Sim
Se essa rua
Que leva até o mar
Fosse minha Guarda o nosso amor
Mandava ladrilhar Meu bem
Com pedrinhas que eu colecionei Meu bem
Pra me acalmar

Eis o meu navio


Longe da tormenta
Longe dos desastres
Eis o meu destino

Guarda o nosso amor


Eu quero mais Basta o nosso amor
Eu preciso mais
Bem mais

São doces invernos Lá fora são feras

São mil primaveras São gritos eternos

Faz sol no meu peito É noite lá fora

Eu preciso ir agora É por mim


Por nós
Por nós Por nós
Por nós

Rua
Não vai te enfeitiçar

Se essa rua...
172

Na casa de Odete, enquanto Madalena e Elvira fazem Amélia lavar o chão,


cantando em dueto, Amélia interfere na canção das mulheres como um suspiro
musical, buscando forças para resistir à lembrança de Herculano, “seu rosto me
persegue em tudo/meu coração é seu/ dentro das horas/ só penso em você/ e
espero você/ meu amor...”. É então que conhece Álvaro, um rapaz em busca de
seu primeiro amor carnal. O jovem vê Amélia como a personificação da beleza.
Após o primeiro beijo, mesmo que a voz de Carmem “Traga um coração...”
preencha o palco e a mente de Amélia, ela se deixa envolver e fraqueja. Pede que
o rapaz se vá, mas ele insiste, e eles explodem em Agora é para sempre:

AMÉLIA
(...)
Vem que o tempo escapa tão veloz
Vem!

ÁLVARO
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Todos os relógios vão parar, sim


Todos os telhados vão cair, sim
Sim, eu te encontrei
Sim, eu esqueci
Tudo que é difícil esquecer
Sim

JUNTOS
Agora
É sempre

Assim termina o Primeiro Ato. Amélia apaixonada por Álvaro, Bianca


perdida na rua, Herculano encontrando a casa vazia e o espelho dizendo à
madrasta que Branca de Neve ainda vive. A música que encerra o primeiro ato
também se espalha como um sopro, vai fluida por todos os ambientes, recolhe
falas de cada personagem, transformas-as em canção, o feitiço não se cala,
enquanto o elenco canta “Mais uma vez/ É tudo igual”.
O Segundo Ato é mais ligeiro e abre trazendo à memória do público todas
as janelas que ficaram abertas, captando daqui e dali frases musicais já ouvidas,
como pulsações. Amélia confessa a Carmem que não conseguiu concretizar a
sétima tarefa, mas ela precisa agir, pois o feitiço já foi iniciado, elas precisam ir
até o final. Amélia diz que está apaixonada, e que Álvaro também, o que faz
Carmem mostrar-lhe um espelho: “Olha pra você e me responde: Você acha ainda
173

que esse rapaz não está enfeitiçado? Olha! Os deuses já estão te confundindo,
Amélia .Você não sabe mais o que faz, você está fraca. [o feitiço] Vai recair sobre
nós!”
Álvaro propõe que eles fujam e marca de se encontrar com Amélia à meia-
noite na estação. Carmem é categórica:

CARMEM (levanta-se)
O círculo não vai se fechar... O castigo virá. Se o sétimo pedido não for
completado, uma maldição terrível vai recair sobre você.

AMÉLIA
Maldição?

CARMEM (abre o livro preto)


A maldição dos sete anos. (música começa. CARMEM lê solenemente no livro
preto) Aquele que interromper o encanto, viverá sete anos a cada um.

AMÉLIA
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Como?

CARMEM
Cada ano da sua vida a partir de agora será igual a sete. Sete anos em um! Você
vai envelhecer sete anos a cada ano da sua vida... Você entendeu?

Amélia permanece confusa, no meio da rua. O tempo urge, ela não pode
mais esperar e canta Olha pra mim:

(...)
Diz que me viu
Como eu era
Meus azuis
Os verdes meus
Meu mar
Meu mar

E vem
Me buscar num côche
Vem
O meu baile já terminou
Manhã
(...)
174

Em outro plano, Clara pergunta à Sra. A por que não há espelhos na casa
onde moram. Ela lhe responde que o espelho é o pior inimigo de uma mulher,
além do que Clara seria muito feia. Mas Clara não acredita no que ouve e dá a sua
própria versão dos fatos, para ela, não há espelhos para que a senhora A não veja a
sua própria imagem refletida.
No Rio de Janeiro, Bianca está morta, congelada pelo frio avassalador.
Álvaro passa pelo cadáver e não resiste aos encantos daquela beleza adormecida,
uma obra de arte emoldurada pelo gelo, beijando-a. Amélia telefona para a sua
madrinha dizendo que, em vez de Herculano, vai retornar com um príncipe. Clara
insiste em saber que fim levou sua mãe enquanto a história da Branca de Neve
está em seu clímax. Sra. A funde as duas histórias, conta que Branca de Neve
comeu a maçã e dormiu para sempre, e que sua mãe morreu afogada e nenhum
príncipe a salvou, deixando a menina confusa:

CLARA
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A senhora não gosta muito de contar que o Príncipe chegou e salvou a


pobrezinha, não é?

SRA A.
Ela não era pobrezinha...

CLARA
A minha mãe... Ou a Branca?

Herculano recebe a notícia de que Bianca foi encontrada morta, mas,


chegando ao local, não a vê, pois ela já partiu com Álvaro, que a despertou de seu
sono profundo com um beijo. Os dois enfeitiçados vão a caminho do mar,
apaixonados. Nesse momento, Carmem aparece e diz a Herculano que Bianca foi
para a estação e para lá ele vai apressado, com a pequena Clara no colo. Amélia
aguarda ansiosamente por Álvaro na estação e canta uma reprise de Ele vai voltar,
em dueto com Bianca, que parte de mãos dadas com Álvaro. Herculano se
surpreende ao encontrar Amélia na estação. Ele pede que ela segure a pequena
Clara por uns instantes e desaparece novamente. Amélia canta uma canção para a
pequena Clara, a mesma canção que a Sra. A canta na estação enquanto espera por
um amor que não embarcou ao seu encontro, fazendo com que ela lá retorne por
toda a vida. Voltamos ao cenário do início, cujo relógio sem ponteiros indica a
175

evasão do tempo, tempo que, para Clara, representa o desabrochar da beleza


pueril, tempo que, para Amélia, é múltiplo de 7.
A evolução dramática impulsionada pela totalidade das canções onde é
inegável a presença da música como cerne da cena faz de 7 – O Musical um
espetáculo inteiramente dentro das convenções do modelo Broadway. Os diálogos
são integrados com as canções e ambos com a história de maneira complexa e
bem resolvida; há variedade de tipos de canção e de execução - solos, duetos, trio,
quarteto, coro.
A história criada por Charles Möeller merece alguns comentários. O autor
faz alusões a várias personagens; Amélia, que era mulher de verdade; Herculano,
uma clara homenagem a Nelson Rodrigues; Carmem dos Baralhos, a cigana de
Bizet; uma cortesã chamada Madalena. Não temos a história de Branca de Neve,
mas a de sua madrasta, aprisionada em um mundo onde a felicidade é diretamente
proporcional à beleza feminina, valor cultuado desde a mais remota infância,
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quando ouvimos a história de uma mulher que deixa de ser admirada pelo seu par
– a voz masculina do espelho – porque envelheceu e foi substituída por uma mais
nova, consequentemente mais bela. A história de Amélia, um pouco Medeia, por
invocar forças ocultas para tentar mudar o seu destino de mulher abandonada, nos
leva a refletir sobre o papel da mulher, que, longe do desejo masculino, caminha
para a auto-destruição. Bianca representa a insubmissão, quer encontrar a sua rua
para fugir da clausura. Apesar de passar um tempo com Herculano, abandona-o e
também a filha.
Ao final da história, com Clara já uma menina/mulher, finalmente Álvaro
aparece na estação, mas Amélia está irreconhecível. Ele e Clara se olham
fixamente, induzindo o público a acreditar que agora Amélia vai se transformar na
madrasta de Clara. Voltando a Bianca, que cantava Ele vai chegar ao descobrir-se
apaixonada/enfeitiçada por Álvaro, fica a dúvida: ela também não resistiu à
clausura de Álvaro, aquele que a viu como obra de arte?
Inegavelmente, 7 - O Musical é pioneiro em sua forma e já faz parte da
história do musical brasileiro. Só falta ser publicado.
176

5
Considerações Finais

O musical da Broadway influenciou a cultura americana (e mundial) e da


mesma forma também tem sido influenciado por forças históricas, tais como duas
guerras mundiais, o movimento pelos direitos civis, os tempos de prosperidade
econômica e de declínio, e, mais recentemente, os ataques terroristas de 11 de
Setembro 2001. Da mesma forma o teatro musical brasileiro, em sua vigência
irregular, produziu peças que registraram o instante histórico, fixaram tendências
que transcenderam aquele instante e deixaram lições estéticas que ainda são
valorizadas.
Desde a segunda metade do século XIX, o musical da Broadway tem sido
um dos gêneros mais populares de entretenimento. Infelizmente, aqui no Brasil, o
musical passou longo período desprestigiado, e, logo a seguir, foi usado com fins
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didáticos e populistas, teve o seu público segmentado, e esse período culminou na


evasão de seus artistas mais proeminentes para outras mídias.
No início do século XXI, o apelo e estética do teatro musical modelo
Broadway tornaram-se cada vez mais internacionais. Alcançaram não só outros
continentes, como aportaram aqui no Brasil e incrementaram a nossa produção.
Mesmo os musicais biográficos utilizam técnicas de integração. E peças musicais
inéditas já deram sinal de vida. Por tudo isso, o musical tem provado que as
pessoas querem ver a vida com trilha sonora, com personagens que cantam seus
prazeres e frustrações.
Não se pode perder de vista o fato de que o musical da Broadway é tanto
um empreendimento comercial quanto uma forma artística. Mega-produções
demandam investimentos bastante elevados, somente as multinacionais são
capazes de produzir um show/espetáculo de U$ 8 milhões de dólares. Mas, além
do custo, está o plano artístico, que impulsiona o plano comercial.
Os espetáculos importados estão formando um público que passa a
compreender as regras do jogo. Audições para novos espetáculos atraem jovens
atores que procuram se qualificar cada vez mais. O que, ao meu ver, ainda é muito
inexpressiva, é a formação de uma equipe de colaboradores para se criar os
libretos. Essa formação pode ser acadêmica, cursos de criação podem ser
177

oferecidos e, assim, incentivar a escritura de novos enredos, novas letras e novas


composições.
Assimilar a receita do bolo é importante, pois ela vai originar a prática
que, através da experiência, será convertida em estilo e, a partir de então, novos
ingredientes substituirão ou serão adicionados, mantendo a massa básica como
princípio.
Como última observação, é preciso incentivar as publicações, não
podemos abrir mão do registro da memória.
“A forma muda, e é difícil para muitas pessoas aceitarem isso. Elas estão
presas em sua época, e pensam que este é o período importante, mas pode ser
apenas uma fantasia passageira e que ninguém irá sequer levar a sério daqui a
cinquenta anos. As coisas mudam, e você tem que rolar com os golpes.”
(HIRSCHFELD in (PBS: 2004, disco 6, episódio 6, Defying Gravity)
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_____. Sondheim & Co. 2nd ed., updt. New York: Harper & Row, 1989.

Periódicos:
Show Music The Musical Theatre Magazine. East Haddam, CT: Goodspeed
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710514/CA

Opera House Foundation.


The Sondheim Review. Chicago: By the editor, Dept. TW9412, PO Box 11213.

Filmes:
Broadway: The American Musical. Directed by Michael Kantor. 6 DVDs. Public
Broadcasting Service Home Video 88571, 2004.
Broadway: The Golden Age. Directed by Rick McKay. DADA Films/RCA
Victor/BMG 62876 65441 8 (2004).

Internet:
American Theater Web: www.americantheaterweb.com
Broadway Baby: www.broadwaybaby.com
Internet Broadway Database: www.ibdb.com
Möeller e Botellho: www.moellerbotelho.com.br
Musicais Brasil: www.musicaisbrasil.multiply.com
Musical Heaven: www.musicals101.com
New York Musical Theater Festival: www.nymf.org
Playbill: www.playbill.com
SIBMAS, International Association of Libraries and Museums of the Performing
Arts: www.theatrelibrary.org

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