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O-Sensei uma vez disse: “Aikido não é uma técnica para lutar com um inimigo ou derrotá-
lo. É o caminho para reconciliar o mundo e fazer dos seres humanos uma família. O
Aikido necessita de uma mentalidade que ajude na paz de todos os seres humanos do
mundo, e não de uma mentalidade daquele que deseja ser forte e que treina apenas para
derrubar um oponente.”
No Budo, o Reigi Saho tem uma importância fundamental. Para o praticante ocidental,
com tradições culturais diferentes das orientais, a exigência da reverência nas artes
marciais japonesas é um comportamento que lhe é estranho, e que por vezes adquire um
caráter tão somente de obrigação. Todavia, qualquer arte marcial pressupõe a existência
de uma severa disciplina na sua execução e aprendizagem; não se pode conceber uma
arte oriental sem etiqueta. Diz-se que a arte marcial japonesa começa e termina pela
delicadeza e respeito mútuo, indispensáveis à elevação da personalidade.
O dojo deve ser um local onde se desenvolve uma personalidade equilibrada, com
qualidades como a humildade, a lealdade e a cortesia. Onde o caminho a se percorrer
deve ser o de um conhecimento cada vez mais profundo de si mesmo, e onde é
importante ter presente o significado da reverência, da cortesia e da etiqueta. Dessa
forma, o dojo deve representar um lugar “sagrado” para os praticantes, no qual se busca a
unidade Ki-Kon-Tai (Energia-Mente-Corpo), e posteriormente, a unidade com o Universo e
com a obra divina como um todo.
Sempre que entramos num dojo reverenciamos (cumprimentamos) o local como um lugar
especial, demonstrando nosso respeito pelo mesmo e também nossa humildade e
sinceridade. Deixamos pensamentos hostis e negativos que trazemos do mundo exterior
da porta para fora, adentrando o local com nossos corpos e mentes o mais limpos
possíveis. Devemos também realizar a reverência, em direção ao Kamiza, ao entrar e sair
do tatami, demonstrando o nosso respeito à prática que ali se desenvolve.
Susan Perry, uma das responsáveis pela revista Aikido Today Magazine, conta que
quando começou a treinar Aikido na década de 60, havia protestos contra direitos civis,
contra guerras, e rebeliões culturais as quais apoiava. E ela também era contra a severa
etiqueta asiática no dojo de Aikido em que treinava. Até mesmo a revista que começou a
editar, começou como um protesto à visão que então ela julgava como egoísta e
centralizadora no Aikido. Ela queria a abertura e a liberdade que a filosofia da arte
prometia. Seu protesto não foi muito bem aceito pelo seu professor daquela época, e
posteriormente ela deixou sua organização, como é típico dos espíritos mais rebeldes e
resistentes à hierarquia. No editorial que escreveu revendo a sua trajetória no Aikido,
percebeu de forma inteligente e conclusiva depois de amadurecer, como ela era uma
aluna particularmente irrequieta e problemática. Este editorial foi publicado na revista
Aikido Today Magazine, nº 85. Ela conta:
“Certa vez, por exemplo, logo depois de ter sido promovida à Shodan, cortei as tiras do
meu Hakama e usei velcro para tornar a vestimenta mais fácil de tirar e colocar. Os meus
Senpai ficaram horrorizados.
Eu amava o Aikido, mas era resistente em absorver o significado por trás daquela etiqueta
rígida que me era pedido a fazer. Tendo me rebelado contra a etiqueta da minha própria
cultura, eu não queria aceitar seguir cegamente a de uma outra, especialmente se aquilo
significasse ficar fazendo gestos vazios. Eu creio que eu era uma aluna que queria o
treino físico do Aikido e nada mais.
Eu sabia que a forma de pensar de O-Sensei era de que o Aikido nos faria pessoas
melhores. Por isso, durante muitos anos eu perguntei insistentemente aos instrutores: “Os
movimentos do Aikido tornam as pessoas boas?” É verdadeiro que as técnicas físicas do
Aikido certamente podem polir uma pessoa até certo ponto: o Aikido pode treinar uma
pessoa desajeitada para que se torne mais graciosa, as exigências do treinamento podem
disciplinar e clarear uma mente conturbada ou abarrotada e a prática pode fazer surgir o
manso e suavizar o rígido. Portanto, por si só, o treinamento físico do Aikido tem um
poder transformador, e quanto a isto não existem dúvidas. Só que as mudanças descritas
acima não são suficientes para tornar uma pessoa boa. Pessoas ruins também podem ser
graciosas, determinadas, abertas, vigorosas e calmas. Não é difícil encontrar pessoas que
têm estudado Aikido durante décadas e nas quais se pode observar que a prática das
técnicas do Aikido não provocou nenhuma mudança profunda em sua personalidade e
modo de agir. Poderíamos dizer, então, que o Aikido não funciona como instrumento para
tornar a pessoa melhor? Ou então que o O-Sensei não tinha uma noção realista do
potencial do Aikido? Poderíamos diante desta constatação manter a idéia de que o Aikido
é mais do que apenas a sua técnica física? Se for assim, o que existe de fato então para
provar o que o Aikido tem atrelado a ele?
Durante a era dos samurais, as escolas de artes marciais desenvolviam certas virtudes
em seus alunos. Sem as virtudes como a coragem e a lealdade um guerreiro não era de
grande valia para seu senhor. Nos locais de treino era comum encontrar pergaminhos que
descreviam os códigos de conduta. Certa vez, meu professor pintou uma lista de “O que
pode e o que não pode ser feito” na parede do seu dojo, em local onde todos pudessem
ver todas as vezes que entrassem na área do tatami. Alguns dojo entregam uma lista de
“regras do dojo” aos novos alunos, tais como: “não sente com as costas voltadas para o
Shomen” ou “bebidas e comida não são permitidas no tatami”. E, é claro, existem até os
livros que tratam da etiqueta comumente seguida nos dojo de Aikido. Para aqueles que
visitam outros dojo, ou participam de seminários e encontros patrocinados por outros
grupos, um profundo conhecimento da etiqueta das artes marciais é importante. Aqueles
que se mantêm alheios quanto às regras do comportamento aceitável ficam em evidência
de forma reprovativa, como ficariam se não soubessem vestir seus Keikogi.
Aprender o comportamento adequado para participar dos círculos do Aikido é a parte fácil
do treinamento, qualquer um com um pouco de boa vontade pode fazer. Assim como os
movimentos físicos e as técnicas, o tipo de etiqueta que tenho em mente segue certas
formas. Um aluno mais esperto pode facilmente memorizar a etiqueta básica. É preciso
ficar claro e que todos tenham consciência que este tipo de etiqueta, “da boca para fora”,
por si só, não fará deles pessoas melhores. Como diria Aristóteles, podemos imaginar
uma pessoa impecavelmente culta com desejos malignos. Mas, talvez, aprender a
etiqueta seja um primeiro passo necessário, o “ponto de partida”. Assim como para o
aprendizado dos movimentos das mãos e do trabalho de pernas de uma técnica
precisamos nos familiarizar com a forma antes de começar a dominar o sentimento da
técnica, talvez, do mesmo jeito, tenhamos que aprender como nos comportar
adequadamente antes de realmente podermos entender a atitude que naturalmente nos
causaria tal comportamento.
As lições de etiqueta são ensinamentos que visam a adequação, aquilo que é apropriado,
são como as técnicas básicas, que servem para colocar no “coração” os movimentos do
Universo, são um “Kihon” mental e emocional. A placa do estabelecimento de um chaveiro
no Japão tem o caractere “Ai” (harmonia); pois para que a chave funcione, ela precisa
encaixar na (harmonizar com a) fechadura. O mesmo é verdadeiro no Aikido, nossa
energia e forma precisam se unir e se encaixar com a do nosso parceiro, para que
possamos fazer a técnica corretamente. Aiki não é uma forma técnica ou um estado
mental - é a relação de pessoas que estão funcionando juntas, movendo-se
apropriadamente em relação umas às outras.
Portanto, Aiki é uma questão de enxergar através da visão do outro e implica em empatia.
Expandindo nossa consciência de modo a incluir a consciência do nosso parceiro
podemos nos colocar na sua posição, entender o que ele vê e perceber o que ele sente.
Isso requer um certo esforço e imaginação, mas pode ser feito. E imagine só como o
mundo seria se as pessoas fossem um pouquinho mais sintonizadas umas nas outras! Se
houvesse mais compreensão, mais tolerância. O Aikido tem o poder de ajudar as pessoas
a se tornarem obras-primas da humanidade, de fazer com que nos tornemos pessoas
capazes de amar incondicionalmente, de sentir e expressar gratidão, de servir
humildemente aos outros. E, em parte, este poder vem não apenas do treinamento de sua
técnica física, mas esta compreensão acaba chegando também através da prática de sua
etiqueta.
Pode-se perceber que a autora era o tipo de pessoa que chegava em um dojo
perguntando em voz alta e de forma altaneira “Quanto que custa para treinar aqui?”, como
se o dojo fosse uma empresa, e se pudesse comprar as técnicas do Sensei por um certo
preço. A mensalidade, em um dojo de Aikido, não tem o caráter de contra-prestação; ela é
uma das formas de demonstrar a gratidão do aluno para com seu Sensei, auxiliando nos
custos para manter a estrutura física do dojo.
Quando um aluno ensina no dojo de seu professor, jamais deve se sentar exatamente em
frente ao Kamiza, mas buscar uma posição ao lado esquerdo, para manifestar que
respeita a autoridade e o conhecimento do mesmo. Da mesma forma, ao nos sentarmos
no tatami ao lado de nosso Sensei ou de algum mestre de graduação elevada, jamais o
fazemos de modo a ficar lado-a-lado, mas sim um pouco mais atrás.
O Seiza (forma correta de se sentar) é uma posição de retorno a si mesmo. Esta postura,
que abre todo o cerimonial, tem por objetivo uma concentração prévia, onde o indivíduo
torna-se uno com o Universo. Ela é a ruptura temporária do observador, do pensamento,
onde o indivíduo apenas é, sem observar-se. O olhar é centrado e desfocado alguns
metros à frente. A coluna fica ereta e o indivíduo sente seu centro, o Seika no Iten. Não se
deve dobrar a coluna ao se curvar em um cumprimento, de forma a desalinhá-la com o
eixo vertical que passa pela cabeça. O tronco e a cabeça devem estar alinhados
corretamente ao executar o Ritsurei (cumprimento em pé) ou o Zarei (cumprimento
sentado), com o corpo relaxado e, devemos manter um estado de alerta constante para
qualquer movimento brusco daquele que nos cumprimenta. O Rei (cumprimento) nunca
deve ser feito de forma displicente, mas sim com total atenção e concentração,
demonstrando verdadeiro sentimento de gratidão e respeito.
A reverência (Rei) é parte integral da etiqueta oriental, substituindo o aperto de mão das
sociedades ocidentais em quase todas as situações passíveis de comparação. No Japão,
as crianças aprendiam a reverenciar antes mesmo que pudessem ficar de pé. Isso porque
as mães tinham por hábito carregar seus bebês nas costas, fazendo com que eles, ainda
que involuntariamente, reverenciassem todas as vezes que suas mães o faziam. Esta
maneira de carregar um bebê não é mais tão usual no Japão de hoje, mas a reverência
continua sendo o modo mais usado para se cumprimentar um ao outro. Visto que não
moramos no Japão, e reverenciar não faz parte da nossa cultura, seria razoável perguntar
por que devemos reverenciar quando estamos praticando o Aikido no Brasil? A resposta
para esta pergunta é, primeiramente, que o Aikido é uma atividade cultural Japonesa, não
existindo razão para descaracterizá-la. Segundo, a reverência é uma ótima maneira de
demonstrar respeito, tão importante no Aikido quanto na vida. Quanto mais praticamos o
Aikido, naturalmente mais respeito sentimos pelos outros, e reverenciar é uma maneira de
expressar isso mantendo a estética da arte. No seu aspecto marcial, o Aikido demanda
respeito mútuo entre os companheiros como reconhecimento da natureza de “vida ou
morte” das técnicas que estão sendo praticadas, mesmo que a prática seja dentro do
ambiente seguro do dojo. Do ponto de vista mental ou espiritual, mantém-se o respeito
pelos companheiros discípulos do Caminho por seus esforços em realizar todo o seu
potencial como seres humanos. A reverência ajuda a criar um ambiente para este trabalho
interior. O sentimento ao se reverenciar é algo importante, e não há nada de humilhante
ou degradante neste gesto, no qual todo nosso corpo e mente estão envolvidos em
expressar gratidão e respeito. De fato, treinar um pouquinho de reverência é algo do qual
todos nós ocidentais poderíamos nos beneficiar. Os verdadeiros mestres saúdam
profundamente, de forma majestosa, porque toda sua experiência, seu conhecimento, sua
humildade estão presentes em sua reverência.
A maneira de efetuar a reverência, assim como a maioria das coisas no Budo, possui
mais de um significado: o marcial, o energético, e o simbólico.
Ilustremos o que se afirma com a reverência praticada em Seiza, o Zarei. A primeira mão
a ser colocada no chão, em frente ao corpo, é a mão esquerda. No plano marcial, em
caso de ataque do adversário, a mão direita pode sacar a espada, ou executar um
movimento defensivo.
No plano energético, a mão esquerda está associada à energia negativa (Ura) e a mão
direita à energia positiva (Omote). Aquela tem um efeito destrutivo, esta, tem um efeito
construtivo.
Com a colocação das duas mãos no chão, estas formam um triângulo eqüilátero. No
plano marcial, a finalidade é a de evitar um ferimento grave no nariz. Em caso de ataque à
cabeça por parte de um adversário, o nariz está protegido e não será esmagado no chão.
Este gesto simboliza a reunião de três lados: o homem, o céu e a terra. Também
simboliza a junção entre tradição passiva e a tradição ativa, em que o Mestre
desempenha um papel fundamental: é ele que transmite o conhecimento que
anteriormente lhe tinha sido transmitido. É um circuito de transmissão do conhecimento.
Nota: este artigo possui adaptações e citações do livro “Aikido, o Caminho da Sabedoria - A
Teoria” (Wagner Bull, Ed. Pensamento), e do site www.ubuia.com.