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NÃO ESTÁ NA LEVEDURA texto de Pete Brown

Pergunte a um cervejeiro nos EUA ou na Inglaterra quais as características prncipais da cerveja belga, e
ele provavelmente dirá que tudo se baseia na levedura. Quando os cervejeiros estão cansados de criar
bombas de lúpulo, eles invariavelmente seguem para cervejas “estilo belga”, e começam a explorar o
potencial sabor da levedura.
“Quando penso sobre a minha levedura”, diz Yvan de Baets, cervejeiro na Brasserie de la Senne e
autoridade no papel da levedura nas cervejas belgas. “Eu não considero 'ela' como um ingrediente, eu a
considero uma integrante da equipe. Ela é a minha melhor amiga na cervejaria.” Com esse tipo de
elogio, é fácil para aqueles que procuram simular os estilos belgas, focarem no papel e características
da levedura. Fácil, porém perigoso. Não estamos exatamente errados em distinguir as cervejas belgas
das outros focando nas características da levedura. Mas corremos o risco de não entender o foco
principal.

“O motivo de eu ter concordado com essa entrevista foi para que eu pudesse acabar com essa ideia de
que nas cervejas belgas tudo se baseia na levedura,” diz Guido Aertz, diretor do laboratório de enzimas,
fermentação e tecnologa cervejeira no KAHO Sint-Lievenuniversity college em Ghent. “Ela é parte da
história, mas não a única parte. Se a fermentação criasse apenas álcool e sabores da levedura, a cerveja
não seria tragável.”

Claro, isso não é o que estamos dizendo quando falamos sobre as características induzidas pelo
fermento nas cervejas belgas. Nós entendemos o papel dos outros ingredientes e processos, e como
todos interagem ente si. Mas talvez devêssemos entendê-los um pouco melhor.

Antes de Louis Pasteur publicar suas descobertas sobre o comportamento da levedura em 1876, fazer
cerveja era mais sobre saber como fazer algo funcionar do que entender como aquilo funcionava.
Poucos cervejeiros produziam cervejas com fermentação totalmente espontânea. Era de longe, mais
comum utilizar levedura de alta fermentação, colher a espuma do topo de uma fermentação e despejá-la
na próxima.
Isso dava alguma consistência de lote em lote, mas sempre havia o risco de contaminação. Este risco
era minimizado de diferentes maneiras. Vocês podia estimular leveduras que criassem ácido láctico,
diminuindo o pH da cerveja para criar um ambiente menos amigável para as bactérias. Você podia
adicionar especiarias e outros aditivos para encobrir os off-flavours (e o lúpulo se tornou o mais
popular, por que além de encobrir a presença deles, também matava as bactérias) e você podia fazer
cervejas mais fortes, porque o álcool atua como um conservante.

Cada região da Bélgica desenvolveu seu próprio método para criar cervejas que pudessem ser estocadas
sem estragar: as red ales da região de Flanders, as lambics de Bruxelas e as saisons da Valônia são três
exemplos de como o problema foi resolvido.

A descoberta de Pasteur revolucionou o cenário cervejeiro e criou a cerveja moderna. Mas seu impacto
não atingiu todos os lugares ao mesmo tempo. Primeiro ele compartilhou seus métodos com cervejeiros
ingleses, que criaram cerveja em escala industrial para os operários das grandes cidades. A partir daí, a
descoberta de Pasteur se estendeu para outras cidades – Copanhagen, Munique e Amsterdã, onde as
grandes marcas de cerveja lager do século 20 foram fundadas.

Na Bélgica era diferente. Fazer cerveja era um ofício para as fazendas, pequenas cidades e mosteiros. A
influência de Pasteur demorou para chegar ali. E quando chegou, não foi adotada da mesma forma que
em outros lugares.
No início do século 20, as cervejas belgas estavam ameaçadas pela popularidade das ales inglesas.
Competições eram realizadas para desenvolver cervejas distintas dos estilos belgas. Os mosteiros
trapistas – muitos dos quais estavam voltando a fazer cerveja depois de terem sua antiga tradição
destruída por Bonaparte – construíram modernos equipamentos cervejeiros, abraçando a tecnologia
mas mantendo a tradição rural. As cervejas ficaram mais fortes, principalmente depois da lei de 1919
(Vandervelde Act) que proibia a venda de destilados em bares e outros locais públicos.

A tradição de cervejas belgas foi definida. Se colocou conta a ideia de que a ciência era o único mestre.
Eles não rejeitaram o trabalho de Pasteur, mas os monges trapistas, particularmente, acreditavam que
isso havia sido levado longe demais, a criação de cervejas que eram mais puras e cristalinas, mas que
perdiam algumas características desejáveis. Para os trapistas, a ciência está sempre contra-balanceada
por uma relação com Deus e a natureza.

Essa filosofia vai além dos trapistas. “Os americanos isolaram leveduras trapistas encontradas em
algumas garrafas de saison, as cultivaram e as classificaram como leveduras de Saison,” diz Yvan. Mas
se você fosse um fazendeiro do século dezenove fazendo sua cerveja, não podia ligar para o laboratório
e pedir sua levedura de Saison. Você trabalhava com o que existia ao seu redor. Acredito que não exista
isso de 'levedura de Saison'.”

Então a levedura belga tomou caminhos diferentes de outras cepas. Quando pensamos em estilos de
cervejas belgas geralmente pensamos em lambics, e a Brettanomyces, em particular, é digna de
fascinação para muitos cervejeiros modernos. ( Agora pensamos na “Brett” como belga, mas ela foi
descoberta em 1904 em cervejas inglesas por um cientista dinamarquês que lhe deu um nome que
significa “fungo britânico”, sublinha tanto o tempo quanto o grau com que os belgas divergem das
normas cervejeiras globais.)

Mas existe mais na Bélgica do que a Brett. Orval possui uma fermentação mista, primeiro com
Saccharomyces cerevisiae, e depois com Brettanomyces. Rodenbach é lançada com uma mistura de
80% de levedura ale padrão e 20% de um coquetel de bactérias da cervejaria e leveduras selvagens.

Fazer uma cerveja de estilo belga não se trata apenas da levedura; é sobre o que você faz com ela – e
porquê. Em seu livro “Brew Like A Monk” Stan Hieronymous conta detalhes de experimentos
realizados por cervejeiros americanos utilizando leveduras trapistas. Eles variavam tanto a quantidade
de leveduras quanto a temperatura de fermentação, e descobriram que as cervejas resultantes variavam
muito entre si – e nenhuma era tão boa quanto as originais belgas. Ele também assinala que três
cervejarias trapistas – Achel, Westmalle e Westvleteren – utilizam a levedura da Westmalle, e
conseguem resultados muito diferentes com ela.

Muitas pessoas comparam a postura belga de fazer cerveja – e as próprias características da levedura –
à levedura do vinho e a vinicultura. Mas você não ouve com muita frequência sobre vinicultores
obcecados por suas leveduras; eles olham para o todo, a interação entre tudo o que eles fazem.

Raspe a superfície da cena cervejeira belga e vai parar neste mesmo lugar. Em qualquer boa cerveja
belga, o equilíbrio de ésteres e fenólicos provenientes das amadas leveduras não podem ser apreciados
separadamente de sua interação com os ricos sabores complexos do malte e o impacto do alto teor
alcoolico.

A crença geral de que os lúpulos são relativamente sem importância na cerveja belga seria uma
surpresa para a Orval, onde o dry-hopping é parte crucial do caráter da cerveja. Saison Dupont também
recebia dry-hopping até os anos 1960 (e foi recentemente lançada com dry-hopping em uma edição
especial). Em 1922 Westmalle Dubbel começou a receber xarope de açúcar caramelizado para
aumentar o teor alcoolico sem aumentar o corpo da cerveja, e isso continua sendo uma característica
chave dessa reverenciada cerveja. Tripel Karmelliet, uma adição relativamente nova ao ranking das
famosas cervejas belgas tem seu caráter criado a partir de uma excêntrica combinação de grãos que
inclui cevada, trigo e aveia tanto crus quanto maltados. E mesmo Yvan descreve sua cerveja como
lupulada.

Se você está tentando distinguir as cervejas belgas das outras cervejas, o caráter da levedura é uma
sinalização de grande utilidade. Mas as belgas não são diferentes das demais porque sua levedura é
diferente. A levedura é diferente porque toda a abordagem e filosofia de fazer cerveja separou empresas
de tendências mais amplas há mais de um século atrás, e continua a seguir seu próprio caminho.

“A cerveja belga é para ser degustada, não bebida,” diz Guido. “Você presta atenção na sua cerveja.
Você leva tempo apreciando o copo, a cerveja, a espuma. Cheira, experimenta. Aprecia os aromas. Faça
isso, e se tudo o que você sentir for apenas a característica da levedura, o cervejeiro falhou.”

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