You are on page 1of 13

História da filosofia antiga

DÉCIMA-TERCEIRA LIÇÃO

Aristóteles
(Primeira parte)

Introdução
A designação que muitas vezes se encontra de «o Estagirita» deve-se
ao facto de Aristóteles ter nascido na cidade de Estagira. Este
acontecimento data de 384 a. C. Sócrates morrera há cerca de quinze anos e
Platão, seu mestre directo, está na fase da sua pujança adulta. Estamos
numa época em que Atenas já não domina o mundo helénico, pertencendo
a hegemonia ao reino macedónio.
O pai de Aristóteles era o médico pessoal do rei Amintas II da
Macedónia, pai de Filipe e avô de Alexandre, de quem Aristóteles será
educador. Aristóteles, tendo perdido os pais muito cedo, foi inicialmente
educado por um preceptor, tendo ingressado na Academia de Platão com
cerca de 17 anos, em 366 a. C. Aqui permaneceu até à morte do Mestre,
ocorrida quando Aristóteles tinha 37 anos. Apesar de, na imensa filosofia e
ciência que construiu, Aristóteles ter assumido uma autonomia
incontestável, nunca deixou, mesmo quando é profundamente crítico, de
ser discípulo de Platão, aliás, de entre todos o maior.
Após a morte de Platão, não lhe tendo sucedido na chefia da
Academia, viajou e ensinou, até que, em 343 a. C., Filipe o chamou a Pella
para que sirvisse de tutor a Alexandre, então com 13 anos. Em 336, quando
Filipe é assassinado e Alexandre assume o trono e parte na sua odisseia de
conquistas, que irá transformar radicalmente o mundo até aos nossos dias,

1
Aristóteles não o acompanha, indo para Atenas, onde funda a escola do
Liceu, perto do templo de Apolo Lício. Sobre a influência que os muitos
anos de tutoria a Alexandre teve neste, mais não se pode do que especular,
mas certamente que o convívio com o génio universal de Aristóteles não
foi inócuo sobre Alexandre, o primeiro a precisamente procurar uma
«oikoumene» universal, primeiro ensaio de uma polis universal.
Alexandre morre muito novo em 323 a. C., abrindo o caminho para
que todos os poderes reprimidos se manifestassem. Os anti-macedónicos
acusaram Aristóteles de impiedade. Conhecendo o trágico destino de
Sócrates, Aristóteles resolveu, ao contrário do Mestre de Atenas, fugir
desta cidade, refugiando-se na terra de sua mãe, a cidade de Cálcis, na
Eubeia, onde veio a falecer, em 322, com apenas 63 anos.
Nesta relativamente curta estadia entre os vivos, Aristóteles foi capaz
de desenvolver uma actividade teórica e prática que alia a uma extrema
profundidade uma vastidão imensa. Trabalhou praticamente todo o espectro
possível das ciências e da filosofia, tendo deixado obra sólida, que se
espraia da retórica à lógica, da biologia à física geral, da psicologia à ética,
da política ao direito e à economia, da astronomia, geologia e paleontologia
à metafísica, etc. Em cada um destes âmbitos, foi prolixo e profundo,
tentando mesmo a exaustividade, tendo, no percurso, fundado algumas
ciências, que, pese embora todo um percurso de sofisticação, ainda hoje
florescem.
Do ponto de vista epistemológico, Aristóteles é a maior figura de
sempre da história da humanidade. Mesmo onde se revelou inexacto não
deixou de manifestar grandeza. Com Aristóteles, o desígnio muito antigo
de salvação dos fenómenos, da sua integração num «logos» universal
conferidor de sentido atingiu o ponto mais elevado em termos sintéticos,
pois Aristóteles procurou precisamente uma teoria geral que fosse capaz de
enquadrar todos os fenómenos constituintes do mundo exactamente num

2
mundo, isto é, num todo coerente e com sentido. Se há alguém que merece
o título de campeão na luta contra o ameaçador Caos da sem-razão esse
alguém é Aristóteles. Note-se que o intento que se manifesta em sua obra
não é um intento tirânico de domínio idiota do mundo, mas o intento de
uma inteligência universal de uma realidade que se manifesta diversa, mas
que o filósofo intui que é basicamente una e que é unificada não pela
comum origem num turbilhão de potência ilógica – o Caos –, mas num acto
infinito de infinita perfeição, que serve de motor universal e eterno a tudo o
mais e de que tudo o mais tem a sua possibilidade, na forma de uma
finalidade concomitantemente transcendente e imanente, resposta
ontológica fundamental que Aristóteles dá ao modo platónico de
entendimento da relação entre o diverso do mundo e o uno «divino».

Metafísica
É partir da meditação sobre esta relação que se pode entender a
grandeza da filosofia do Estagirita e do esforço tremendo que implicou,
bem como do legado que deixou, em termos de inteligibilidade possível do
manifesto.
Se «todos os homens desejam naturalmente saber», Metafísica, A, 1,
980 a 21, é precisamente porque há algo que não sabem. Na senda da sábia
ignorância socrática, Aristóteles percebe que há uma forma de saber
fundamental que é o saber que sabe que não sabe todo um infinito possível
saber. O papel da filosofia e das ciências consiste precisamente em avançar
no sentido de preencher esse infinito espaço de não-saber com saber.
Mas a naturalidade deste desejo de saber não é óbvia. Porquê
naturalmente? Aqui, deparamo-nos com a grande descoberta de Aristóteles,
a de um par fundamental na constituição, precisamente natural, de tudo o
que é natureza, de tudo o que muda, isto é, tem movimento, de tudo o que
surge e desaparece, de todo o mutável. O par é: (carência-plenitude

3
possível). Se o homem deseja saber é porque é carente de saber. Mas só
pode desejar saber se puder saber. Há, pois, uma possível plenitude do
saber, relativamente à qual todo o desejo de saber é possível e, assim, faz
sentido. Mas também só faz sentido assim a própria carência do saber: não
fora aquela plenitude possível, como definir a carência?
Ora, é esta estrutura dialéctica que é natural. Mais: ela é constitutiva
de toda a natureza, que só pode ser movimento porque é precisamente o
trânsito infinito de carência a possível plenitude correlata, com virtuais
infinitos passos de aproximação, cada um deles constituindo um estádio
provisório de aproximação a essa mesma possível plenitude, uma
«perfeição» não absoluta, mas real no que é, mas que é, porque não é
absoluta perfeição, plenitude, ainda algo de imperfeito, logo, de carente
relativamente à perfeição absoluta da plenitude possível.
Assim, o desenvolvimento quer da inteligência humana, no tal desejo
natural de saber, de ver, de intuir, quer de isso que é o seu correlato
próprio, o ser, é sempre dialéctico, num constante progresso ontológico
movido por uma possível perfeição própria inalienável a atingir. Aristóteles
é um filósofo da evolução dialéctica e progressiva do ser, dos seres, num
horizonte de perfectibilidade ontológica (e da inteligência) possível, sem
fim. Cai, assim, a crítica infundada a Aristóteles de ser um filósofo
imobilista. A sua filosofia só se pode compreender como uma filosofia que
procura a razão última para o movimento, para a natureza que este
constitui. Desta procura incessante nasceram todas as actividades
epistemológicas a que fizemos referência no início desta lição.
Assim, podemos dizer que em Aristóteles há uma filosofia, expressa
de muitos modos, pois há, de facto, muitos modos de dizer o ser, que se
pode dizer de muitos modos, que funciona como tentativa de exposição e
de compreensão da mediação entre a carência que define o ente finito e a
sua plenificação, num processo infindo. Aristóteles é, por excelência, o

4
filósofo das mediações, mesmo quando estuda os extremos entre os quais a
mediação actua: o acto puro e a simples matéria, que nunca é pura.
Uma evidência indiscutível impõe-se a Aristóteles: apenas isso que se
opõe absolutamente ao nada é perfeito, não carente. Esta lição é haurida em
Platão, embora a sua formulação metafísica seja, como veremos,
aparentemente muito diferente da platónica. O que aqui está em causa, já o
podemos perceber, é o que está em causa com a ideia de bem em Platão,
como paradigmatizada na imagem do sol omni-irradiante, a partir de sua
infinita grandeza pontual.
Tudo o mais, mesmo o urânico, o que habita o céu para além da nossa
esfera natural, é imperfeito, pelo menos em comparação com o acto puro
(motor imóvel). Sendo assim, tudo é portador de carência. Mas esta
carência só o é relativamente a uma qualquer plenitude. Esta plenitude, na
sua realidade última é o acto puro. Assim sendo, toda a realidade que não é
o acto puro é carente relativamente a este. É este que guarda em si toda a
perfeição possível, pelo que toda a carência se lhe refere como todo o
imperfeito ao todo perfeito.
Assim, o que gera a natureza é o movimento, cuja origem última é a
perfeição do acto puro, como possível para cada outro acto, de tendência
infinita para a perfeição do acto puro. É esta a razão pela qual ele é motor:
é a sua perfeição como possível para tudo o mais que move este. Mas este
apenas se move porque é imperfeito, isto é, porque necessita de maior
perfeição. Essa maior perfeição só pode ser na forma de uma presença de
algo já no dinamismo da própria carência. Assim, a carência só é carência
porque tem em si a nota de que não é perfeita, numa forma de inteligência
natural que permeia toda a realidade, sem a qual não era possível qualquer
movimento de aperfeiçoamento: como perfeiçoar-se se não há um sentido
qualquer de possibilidade do melhor, ainda que relativo?

5
Esta presença é a resposta de Aristóteles à teoria da participação de
Platão, na forma de uma outra forma, a presença em cada «coisa» de um
acto de inteligibilidade ontológica, a sua mesma finalidade própria, que
funciona como a presença em cada coisa do sentido de uma perfeição
própria possível, balizada liminarmente pelo sentido de uma perfeição e
aperfeiçoamente infinito. A finalidade e a causalidade que implica é a
presença liminar da perfeição do acto puro em cada coisa, como absoluto
da possibilidade de aperfeiçoamento próprio para cada coisa. Tal presença,
naturalmente diferenciada no que constitui a individuação própria de cada
coisa – a que se chama a sua matéria – é a marca transcendental em cada
coisa, por meio da qual cada coisa faz parte de um mesmo «cosmos»
ontológico. É esta a resposta metafísica fundamental de Aristóteles à
questão do Caos e do seu perigo.
A questão da carência e da sua plenificação possível pode, então, ser
perspectivada segundo dois novos pares: (matéria e forma) e (potência e
acto). Antes de mais, deve ser dito que a matéria não é entendível em
sentido de algo «físico e tocável, “material”, por oposto, a “não-material”».
A matéria é isso que, no mundo do movimento, no mundo da natureza,
corresponde à possibilidade, precisamente à possibilidade de um acto, de
um acto determinável e determinado. Uma matéria para um acto
indetermindao seria uma matéria totalmente indeterminada, uma pura
matéria, indiscernível do nada.
Esta possibilidade é, assim, potencialidade – será o que surgirá na vez
da matéria no par (matéria-acto). A matéria na natureza nunca anda só: a
acompanhá-la está sempre uma forma. A forma determina a possibilidade
da matéria num conjunto único e individual que é cada ente, em
determinado momento da sua realidade. Mas esta mesma conjunção de
matéria e forma nunca é algo de permanente, não na natureza, pois esta é,
por definição, movimento. E é movimento porque há uma necessária e

6
constante evolução na díade matéria-forma no sentido de um sempre maior
aperfeiçoamento segundo a sua mais alta possibilidade ontológica que é
dada na sua finalidade própria e exclusiva, finalidade que é própria e
exclusiva porque se refere a este e apenas a este composto de matéria e
forma, no que constitui a singularidade única de cada indivíduo, de cada
ente na natureza (veremos melhor o papel desta finalidade quando
tratarmos da causa final).
Assim sendo, cada momento desta singularidade de matéria e forma é,
relativamente a um possível novo momento, mais próximo da perfeição
final, uma simples possibilidade, pelo que cada grau havido de avanço no
sentido da perfeição final é apenas uma forma de matéria relativamente a
cada possível passo sucessivo eventual, mas necessário. A matéria de um
ente não é, pois, a parte “bruta”, “sensível”, de sua entidade, mas a sua
realidade como passível de renovação, de reformulação, que é, também,
«rematerialização», num processo que, em si mesmo, não tem fim
necessário, a menos que atinja a sua perfeição final. Quanto ao todo da
natureza, este processo não tem fim, pois a sua possível perfeição total é o
mesmo acto puro, motor imóvel, cuja realidade nunca é atingível. A
natureza no seu todo, não o sendo, funciona como um indivíduo
complexíssimo em permanente evolução para uma finalidade sempre
transcendente, mas sempre imanente, pois é a presença na natureza desta
finalidade última que faz com que haja necessidade de aperfeiçoamento,
logo, movimento no sentido de uma maior perfeição, logo, evolução
ontológica geral. Cai o mito néscio de um imobilismo ontológico na
filosofia de Aristóteles. Aristóteles, pelo contrário, é o grande filósofo
sistematizador de uma metafísica da evolução, fazendo o que Heraclito
apenas esboçara.
O estudo do movimento segundo o par (potência-acto) recobre o
âmbito do que ficou dito para o par (matéria-forma). Antes de mais, faça-se

7
notar que uma pura potência é algo de simplesmente lógico, como pura
capacidade de receber acto, mas, já a própria definição marca a presença de
uma actualidade, que não é qualquer, na potência, precisamente isso que
faz dela propriamente potência e não outra coisa qualquer: o poder de
receber acto. Assim, não há pura potência, noção que é contraditória.
Melhor será dizer que a potência é o modo menor de o acto se dar (faz
lembrar a mais ténue das sombras no mito metafísico de Platão). Por outro
lado, e não podendo qualquer acto na natureza dar-se sem qualquer
potência que o receba, pode também dizer-se que a potência encerra em si
toda a potencialidade actual. A potência serve, assim, como possibilidade
de explicar a carência não como algo de negativo, mas como isso que
permite a vinda de nova actualidade. Caminha-se ontologicamente no
sentido do acto puro porque há uma infinitude de potências por que passar,
isto é, há uma infinitude de possíveis actos finitos a ser, todos eles
meramente potenciais uma vez sidos, como forma de possibilidade para
novos actos, virtualmente infinitos.
A natureza, isto é, relembremos, o todo do ser transiente, do sendo, do
que vai sendo, do que não é acto puro, mas acto com potência, funciona
como um todo de sucessivas actualizações de potências, em actos, que mais
não são do que potências para outros actos, e, assim, infinitamente, numa
aproximação assimptótica infinita a uma perfeição motora sempre
inatingível. O motor da sempre imperfeita natureza é a perfeição absoluta
do acto puro, único que não se move porque não tem qualquer potência,
mas que, do ponto de vista da natureza, porque tem toda a perfeição, é a
potência infinita de toda a natureza. Esta potencialidade, nula no acto puro,
é infinita na natureza, presente nesta através da marca do acto puro nela,
que é a causa final. Esta causa final corresponde à participação platónica,
embora seja dela muito diferente. Mas é esta causa final que faz a relação
metafísica entre a natureza e o acto puro. Não é, pois, correcto dizer que

8
não há qualquer relação entre o motor-imóvel e isso que move, a natureza,
pois a causa final representa essa mesma relação.
Para que esta relação não seja mágica, há que ser a causa final uma
relação muito especial. A causa final é a própria potência entendida não
como uma mera possibilidade de receber algo, mas como a possibilidade de
infinitamente receber a actualidade motora do acto-puro. Assim, a
finalidade universal total, potencial total, que guarda em si a possibilidade
de toda a actualidade, é a mesma matéria, entendida como possibilidade de
acto, sem mais. A matéria encontra-se marcada pela presença em si da
possibilidade de todo o acto possível. Este é o acto que é puramente actual
no acto puro. A causa final é, assim, na natureza, a possibilidade do acto-
puro, infinitamente motora, infinitamente inatingível. Qualquer outra
solução implica uma forma qualquer de magia, isto é, de ausência total de
mediação.
Embora a natureza seja este perpétuo movimento de aperfeiçoamento,
quer a natureza no seu todo quer cada um de seus elementos não são
propriamente insubstantes, pelo contrário, a natureza, que, de facto, não é
um indivíduo, é composta por indivíduos, sendo cada um deles uma
substância. O indivíduo não tem substância, ele é substância. Esta
substância, que é cada indivíduo em seu mesmo acto em cada momento
considerado, é a chamada substância primeira, que coincide com a
realidade própria de cada ente no que esta tem de propriamente contínuo: é
a estrutura ontológica de cada indivíduo. É o «sujeito». Isso que permanece
no movimento natural quando tudo o mais que nele decorre vai aparecendo
e desaparecendo. Isso que aparece e desaparece, que muda, é o acidente.
Acidental é, assim, tudo o que muda e pode mudar sem que o indivíduo
mude como indivíduo que é, quer dizer, não deixando de ser o indivíduo
que é. A substância é isso que recebe os acidentes, na sua transitoriedade, e
não muda quando eles mudam.

9
Se a substância primeira é o que se diz do que é em si e não em outro,
do indivíduo, que é a sua mesma essência individual, a substância segunda
diz-se do que se predica dessa mesma substância individual, mas de forma
universal: este cão é o Pantufa, não é outro e não há outro que seja o que
ele é em sua mesma singular realidade, mas «cão» diz-se de todos os
indivíduos que, com o Pantufa, são cães. «O pantufa» é um singular,
substância primeira, «cão» é um universal, aplicável quer ao Pantufa quer a
todos os outros cães.
Todo o movimento natural está sujeito a uma causalidade complexa e
sintética, que só se compreende em sua mesma complexidade e síntese
necessária. As quatro causas não são separadas, não se somam, antes
formam, mais do que uma quadratura causal, uma grande causa, isto é, a
estrutura dinâmica e cinética do movimento natural. São essas causas a
causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final.
Tendo em conta tudo o que já foi dito, podemos perceber que cada
substância primeira é movida no sentido de uma aproximação cada vez
maior ao motor-imóvel, acto-puro. Como vimos, para que haja este
movimento, tem de haver uma qualquer mediação que faça que o que há
que mover se mova. Esta mediação é a finalidade. Ora, a finalidade move
sempre algo que ainda não atingiu essa mesma finalidade, sem o que não
faria qualquer sentido.
Assim, há uma ligação fundamental da finalidade como possibilidade
última à possibilidade que é a matéria: aliás, confundem-se e a matéria só é
possibilidade porque é informada como tal pela finalidade. O que mais
próximo há da matéria é a finalidade que faz da matéria matéria e matéria
própria para uma determinável, e já em processo de determinação pela
mesma presença em si da finalidade, substância. Na origem primeira de
qualquer substância está, assim, a finalidade.

10
Deste modo, percebe-se que a principal causa é a causa final, que é a
primeira e a que necessariamente tem de estar no absoluto do início do
trajecto ontológico – do trajecto ontológico de toda a natureza, em cada um
de seus indivíduos, isto é, em cada uma das suas substâncias primeiras.
Mas, não havendo magia, a determinação da matéria dá-se por
intermediação. Esta é feita pela causa eficiente e pela causa formal. À
finalidade determinada de uma tal substância primeira, corresponde uma
necessária forma, forma que é a tradução ontológica modelar dessa mesma
finalidade. O papel que esta forma cumpre é o de possibilidade ontológica
apropriada para o mundo do movimento, para a natureza. É que a
finalidade é a relação com o que se encaminha para o acto-puro, vista ainda
do lado deste. A forma é a tradução natural da finalidade, se se quiser, a
causa formal é a tradução natural da causa final, adequada à causa
eficiente. O que a causa eficiente faz é a tradução junto da potencialidade
da substância – da matéria – de uma forma, que corresponde a uma
finalidade.
É nisto que consiste o jogo complexo e sintético das quatro causas,
que mais não é do que o modo complexo de a substância evoluir no sentido
do acto-puro sem deixar de ser substância, mas sem deixar de se refinalizar.
Repare-se que o que persiste ao longo desta evolução é a mesma
substância, é verdade, mas na forma de uma sempre nova matéria, que é a
sempre mesma finalidade em acto de progresso para o acto-puro. Por isto e
só por isto, é a matéria que individualiza, que substancializa, no sentido de
ser ela que guarda a finalidade potencial própria de cada ente e a nada
redutível. A metafísica de Aristóteles é uma metafísica da individualidade,
mas na sua relação individual com a fonte universal de toda a
individualidade, na forma da finalidade própria de cada ente.
Assim, só o indivíduo é real. Só ele existe. No mundo da natureza, só
ele é. Mas, como é contingente, quer dizer, como não é fixo, pelo contrário,

11
é sempre móvel, menos na sua essencial substância, mesmo esta sendo uma
finalidade em progresso, dele não pode haver ciência. Esta fica reservada
para tudo o que é universal e necessário, isto é, para os conceitos
universais, que não mudam, mas que também não existem. Quer isto dizer
que não pertencem à natureza, pelo que, verdadeiramente, não é possível
uma ciência da natureza. Então, toda a actividade «científica» de
Aristóteles no estudo da natureza deveu-se a quê? Segundo esta afirmação
axiomática, à descoberta daquilo que, para além da natureza, é imutável e
governa esta. Quaisquer leis universais não serão, assim, «leis da
natureza», mas leis para a natureza, que a transcendem. No entanto, o
esforço e o gosto demonstrado no estudo do pormenor escapam a esta
restrição universalista da ciência, demonstrando que Aristóteles procurava
uma qualquer forma de entendimento racional do indivíduo na natureza,
mesmo que lhe não chamasse ciência. É, ainda, o desejo antigo de «salvar
os fenómenos», salvação que não vem apenas de uma descoberta lógica
trans-natural, mas da inteligência actual da realidade individual própria de
cada um. Se tal não merece o nome de ciência, pode bem merecer o nome
de amor. Há, em Aristóteles, um imenso amor pela natureza, não no sentido
moderno exteriorista de um mero contemplador ainda e sempre
interesseiro, mas no sentido de alguém que ama cada indivíduo natural com
um amor digno da finalidade que o acto puro tem para cada ente. Tal amor
só renasce, em ambiente muito diferente, com São Francisco de Assis.
A metafísica é, no entanto, também, a ciência da substância que não se
move, que é acto-puro e primeiro-motor, motor-imóvel. Eterna, imutável,
sem extensão, sem divisão possível ou real, esta substância escapa a toda a
natureza, mas é, como já vimos, o seu atractor infinito, a fonte de toda a
infinita perfeição possível. Se algo merece o nome de divino ou de Deus, é
esta mesma substância. O ápice da teoria metafísica de Aristóteles é uma
teologia, mas uma teologia que não corresponde a um qualquer «deus ex

12
machina», mas ao culminar necessário de uma intuição que descobre isso
de único que pode afastar absolutamente a possibilidade do nada e que é
exclusivamente isso que corresponde à intuição de algo que é
absolutamente em acto, quer dizer, onde nada há que não seja em acto,
onde o nada nada pode ter.
Isso é Deus. Deus que, sendo o pensamento, isto é, o acto de
inteligência, isso que de melhor há ou pode haver (por analogia no ser
humano e em Deus), é um acto de puro pensamento, de pura inteligência,
isto é, o acto puro é um acto de pura inteligência, de pura contemplação,
mas de pura contemplação do melhor possível e actual, que é o mesmo
Deus. Por isso, e na sequência das belas palavras já proferidas em
Metafísica 7 1072 b 14-30, diz Aristóteles, um pouco mais à frente (9 1074
b 35) que Deus é o acto de inteligência que se intelige a si próprio (noesis
noeseos noesis).
Deste modo, Deus não intelige o que o mundo seja, desconhece a
natureza. Mas, ainda assim, não deixa de ser o seu motor final, como
presença nos entes de uma semente de inteligibilidade fundamental que
leva a que cada ser ame Deus no amor que tem de seu mesmo fim, amor
que o constitui ontologicamente.

A continuar.
Bom trabalho
Américo Pereira

13

You might also like