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RESUMO: Desde os primeiros filósofos gregos, a preocupação com a vida move pensamentos, conceitos e
ações. Como a vida não tem sentido, não pode ser aprisionada numa definição, o que podemos fazer é levantar
questões sobre ela. Emanuele Coccia nos dá uma maneira satisfatória de pensar a vida, o que pretendemos
mostrar neste ensaio. Para ele, a vida animal é uma faculdade particular de se relacionar como as imagens,
pois o sensível é a própria imagem e define formas, realidades e limites da vida animal. Coccia traz uma
questão fundamental: a sensação como requisito indispensável à sobrevivência. Essa sensação não é politizada
e polida, mas aquilo que nos transforma em animais e é a matéria de toda e qualquer manifestação de vida, de
toda produção humana, como a arte. A vida na arte traz a sensação de vida quando a semelhança promove
aproximação entre o que está na arte e fora dela.
Nietzsche
Entre o espectador e o objeto de arte não há uma passividade inconteste nem uma
relação direta, mas um mundo, um mundo sensível, um mundo de imagens, como afirma o
filósofo italiano Emanuele Coccia em A vida sensível (2010). Num primeiro momento, essa
leitura de Coccia nos dá a impressão de que ele volta ao esquema metafísico, este que se
baseia na impossibilidade de contato direto com o “real”. Até aí se pode assim entender seu
texto, mas o que diferencia Coccia de Platão, por exemplo, é que, enquanto este entende que
os sentidos são enganadores e, por isso, o acesso direto com o mundo é ilusório, uma vez que
é no mundo das ideias que podemos confiar, Coccia vê que esse “real” é percebido pelas
sensações, estas que estão entre nós e o mundo. Esse mundo, essa vida sensível se constitui
pelos nossos habitus, nossa participação nos mais diversos campos, mas, a partir e além disso,
há entre nós e as coisas a sensação; através dela nos apropriamos do sensível. É ela que não
nos deixa passivos diante daquilo que nos olha, e nossa potência de sentir nos faz agitar
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Ensaio apresentado no VI Simpósio sobre Formação de Professores (SIMFOP) na Universidade do Sul de
Santa Catarina – UNISUL – campus Tubarão, 2014.
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Graduada em Letras, mestre e doutoranda em Ciências da Linguagem pela UNISUL. E-mail:
alexandra.espindol@unisul.br.
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Este ensaio é parte de minha tese de doutoramento, em que analiso a vida na arte no realismo/naturalismo e no
modernismo. Para a análise desses dois períodos, criei duas ferramentas: semelhança de primeiro e segundo
graus com o intuito de compreender a arte do final do século XIX e a do início do século XX, respectivamente.
Como semelhança de primeiro grau, entendo a arte que se assemelha com o “real” ou mais próxima do “real”. Já
na semelhança de segundo grau, a arte está mais distante daquilo que estamos programados a ver no mundo das
coisas. Isso não quer dizer que a vida na arte não esteja presente na semelhança de segundo grau, pois toda a
produção humana está pautada na vida, nas condições culturais. A grande diferença entre estas vidas na arte é
que, enquanto a arte realista coloca em primeiro plano a semelhança de primeiro grau, a arte modernista coloca a
vida em segundo plano, pois no primeiro se encontra uma reflexão, uma ideia sobre a vida e/ou sobre a arte.
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aquilo que vemos. Nessa agitação, para alcançar uma pintura, há de se reconhecer que existe
um meio – um mundo de imagens outras que se interpõe entre o que vemos e o que nos olha,
já que as imagens são ambivalentes e, por isso, causam inquietações, de acordo com Didi-
Huberman.
O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de
evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a
pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer
unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu
sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida,
inquieta, agitada, aberta (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).
que não param de alimentar nossa experiência diurna ou onírica – que definem a
realidade e o sentido de todo nosso movimento (Ibidem, 2010, p. 38).
ele poderia ser em outro lugar e em outro tempo. Não fazemos senão apropriar-nos e
libertar-nos das imagens (Ibidem, 69-70).
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A inter-relação de texto e imagem foi potencializada no século XX. Lembremos, por exemplo, nas artes, as
colagens cubistas de Pablo Picasso.
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Gonzaga Duque (1963-1911) foi um importante crítico de artes plásticas e de literatura. No romance Mocidade
Morta faz duras críticas ao academicismo do final do século XIX. Vera Lins, professora da UFRJ e pesquisadora
da Fundação Casa de Rui Barbosa, é sua maior estudiosa e foi quem recuperou a maioria de seus escritos.
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Nesse livro, Gonzaga Duque dividiu a arte brasileira em três fases: a primeira, Manifestação, refere-se à arte
que era “produto da fé religiosa”; a chegada da Colônia de Lebreton no Brasil em 1816 marca outro momento,
Movimento, quando a arte da Colônia Francesa se estabelece e aqui faz academia, impondo suas maneiras de
fazer; e, por último, Progresso, segunda metade do século XIX, em que atuavam pintores como Rodolfo
Amoedo, Almeida Júnior, Belmiro de Almeida, este que, segundo Gonzaga Duque, fez uma verdadeira
revolução estética na arte brasileira.
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passagens em que ele clama por vida. Um texto nos foi decisivo, pois nele começamos a
compreender que vida na arte, em Gonzaga Duque, não era um chavão, mas uma condição
para a arte ser arte. Nesse texto compilado no livro Contemporâneos, intitulado “Salão de
1907”, o autor analisa trabalhos expostos na Escola Nacional de Belas Artes e, ao apreciar o
quadro Cabeça de Italiana, de Georgina de Albuquerque, aponta questões importantes para
entendermos o que é essa vida na arte:
Fonte e descrição: Óleo sobre tela, 61 x 50 cm. Acervo da Pinacoteca, São Paulo. Disponível em
<http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=G&cd=2389>. Acesso em
14 de maio de 2014.
No seu typo vulgar, sem belleza, ha o quer que seja de flagrante, que o faz viver, que
nos recorda tel-a visto onde quer que fosse. (...) Ahi está a figura. É commum mas é
bem feita, é real, vive. Fazer viver em Arte é uma Victoria. E ainda que seja em um
simples busto, desde que esteja vivo, a obra se nos communicará, falará da sua
expressão: dor, alegrias, indifferença ... (DUQUE, 1929, p. 159)5.
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Nas citações retiradas do livro Contemporâneos foi conservada a grafia da edição de 1929.
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mecânicas, como a fotografia, puderam ser vistas como arte porque o realismo já consagrara o
homem comum na literatura.
Essa insistência por vida na arte nos levou à sensação, pois é esta que faz com que
o espectador atribua vida à arte. Nessa perspectiva, essa vida na arte se aproxima daquilo que
Deleuze e Guattari (1997) chamam de afectos e perceptos, pois, segundo esses filósofos, os
afectos são devires não humanos do homem, e os perceptos são paisagens não humanas da
natureza. O sorriso de uma tela é o sorriso do óleo, e é a sensação que transforma em vida e
faz com que a arte se sustente, ou nas palavras de Deleuze e Guattari, que a arte fique em pé.
Segundo Zola (1995, p. 24-25), o romance naturalista cria ainda mais, inventa histórias que a
vida oferece, porque “o negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos
leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível [...]. É fazer mover personagens
reais num meio real, dar ao leitor um fragmento da vida humana”. Quanto mais geral e banal a
história for, mais ela se tornará distinta e a sensação de vida se intensifica.
Dessa maneira, a sensação de movimento possibilita o fluxo no estático. Gonzaga
Duque entende o movimento como um sentir-vida, isso é, a sensação de vida na arte faz com
que o movimento seja sentido e, consequentemente, percebido. Podemos ilustrar esse
pensamento com A vaga, de Courbet, em que Gonzaga Duque registra o que sente diante
dessa tela:
Figura 1 - A Vaga (1869), Gustave Courbet.
Fonte e descrição: Óleo sobre tela, 117.1 x 160.5 cm. Museu d’Orsay. Disponível em:
<http://www.histoire-image.org/site/etude_comp/etude_comp_detail.php?i=32&oe_zoom=81&id_sel=81>.
Acesso em 7 de novembro de 2013.
Já uma tela sem vida, de acordo com Gonzaga Duque, é aquela que não apresenta
elementos fundamentais da própria vida, como movimento, carne, sangue, músculos, nervos,
ou seja, não tem sensação de criatura viva, como na tela de Jean-Baptiste Debret, intitulada
Retrato de Dom João VI.
Fonte e descrição: Óleo sobre tela, 60 x 42 cm. Museu Nacional de Belas Artes. Disponível em
<http://www.mnba.gov.br/6_programacao/texto_domjoao.htm>. Acesso em 25 de janeiro de 2009.
O meio teorizado por Coccia é a imagem, esta que torna possível a nossa relação
com o mundo e também a nossa identificação da vida na arte. É através dos meios que o
mundo da arte pode participar do mundo “real”, ou como explica Coccia (2010, p. 49):
é somente graças aos meios que uma série de corpos inanimados podem ser
influenciados, acionados, estruturados pelos viventes, podem tornar-se capaz de
carregar traços da existência de vida ao seu redor, ou seja, transformar-se em mundo
de vida.
Um modelo exemplar disso que Gonzaga Duque chama de vida na arte, teorizada
por nós como sensação conquistada pela semelhança, está nas palavras dele no texto
“Rodolpho Amoêdo, o mestre, deveríamos accrescentar”, em que destaca a habilidade desse
pintor de criar criaturas vivas. Gonzaga Duque observa:
Fonte e descrição: Óleo sobre tela, 150 x 200 cm. Museu de Belas Artes – Rio de Janeiro.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_ra_arquivos/ra_1884_estudo.jpg >. Acesso em 5 de
novembro de 2013.
Esse Estudo de Mulher apresenta uma figura feminina “real e perfeita”, segundo
Gonzaga Duque, que coloca em palavras o que entendemos por vida na arte realista, como a
democracia da arte, pois essa figura pode ser entendida como “representante” do “qualquer
um”, já que não mostra a face, podendo ser qualquer rosto neste corpo e não um rosto
específico, uma identidade singular e privilegiada. A musa do realismo pode ser “qualquer
uma” que tem história e que a sensação nos deixe identificar como uma mulher fora da arte.
Em A Arte Brasileira (1995, p. 187), Gonzaga Duque indica o que é vida na arte
através do comentário de uma espectadora em frente à tela:
sente-se através dessa carne, carne que é carne, carne que tem sangue, a disposição
dos músculos. E para qualificar o poder de realidade que tem este quadro, a estranha
vida que anima esta obra-prima, apenas encontro como forma clara e única a frase
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dita por uma senhora diante dessa figura: – Que mulher sem vergonha! (DUQUE,
1995a, p. 187).
Com tudo isso, podemos afirmar, mais uma vez, que é a sensação, a imagem, a
vida sensível que faz com que reconheçamos na arte a vida, pois o que os nossos olhos estão
culturalmente programados a ver no “real” nos faz atribuir vida na arte quando essa arte
trabalha com a técnica da semelhança. Como todo objeto de arte têm uma história não
separada do aspecto social que o possibilitou existir, a vida na arte e a vida fora da arte se
implicam necessariamente na cultura.
Referências