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A SENHORA LENS

ou Flores Tão Corriqueiras e Raras

Ricardo de Almeida Rocha


Ricardo de Almeida Rocha
A senhora Lens ou Flores tão corriqueiras e raras

© 2017, Ricardo de Almeida Rocha


Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução total ou parcial, em qualquer formato
Rocha, Ricardo de Almeida
1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. 3. Título.
A senhora Lens fechou os olhos. Arfava. A respiração a enchia da vida exterior. As cigarras dividiam a
madrugada em finas fatias de desespero. O mar ao longe parece aqui. Dentro do quarto. Nos pensamentos relativos ao
momento imediato imprimiu-se um colorido digressivo. No pio da ave noturna há um desenho aos pés de uma freira e o
raio em que nasce o cântico das contrações retroage à madrugada em que uma menina saiu à luz. Ouviu os morcegos,
céleres; lágrimas ambíguas em seus olhos. As reminiscências levaram o corpo quieto na cama para as praias da
adolescência povoadas de gaivotas. O pulsar do colchão de molas ateara um rubor vivíssimo às partículas de pó. Um
arrepio na parte de dentro das coxas. O que se leva do mundo? Nada, pensou ao levar os dedos. O gatinho sobe na
cama e se aconchega ao corpo quente para atravessar a passagem escura como a madrugada perto do amanhecer e,
mesmo antes do sol, pelo sol redimida.
Houve um momento em que o mundo se desligou da noite. O primeiro efeito foi a perda do contraste das
estrelas em relação ao céu, preguiçosamente amanhecendo. Logo a azáfama dos passarinhos e o espaço entre os galos
se alarga. Uma e outra revoada. E outra mais. Fez-se uma daquelas ocasiões especiais em que o minuto que passou
pouco apresenta em comum com o atual e o seguinte terá igualmente atributos peculiares, distando uns dos outros não o
período de tempo que os separa mas todos os séculos culminantes no Juízo. O gato se agita e ergue os olhos para o teto
como se visse os pássaros de um súbito bando. Ela ensaia um sorriso traduzido pelas primeiras luzes do dia a
tangenciar o monte diante do qual o mar bramia seu misterioso refrão de louvores metálicos.
Por um instante o sol emprestou à varanda do prédio em frente um amarelo vivo no crescendo do canto dos
pardais salpicado de curruíras. Altivez barulhenta de um adejo. Letras num vento passam pela casa. A mulher escuta o
motor e a mudança da marcha. A janelinha enquadrou um homem, de um homem jovem, primeiro de perfil – nariz
ligeiramente arrebitado e lábios bem definidos; a testa larga à luz da lampadinha sob o bagageiro – e depois maxilar e
queixo alongados no rosto estreito. Voltando-se para reter o hibisco no jardim, o perfil do outro lado realçou os óculos
de armação curvada. A silhueta da janela oposta com voz feminina fez a pergunta e após os segundos de praxe, quando
ao olharmos um estranho decidimos se nos é simpático ou desagradável em sua extroversão, responderam. “ Talvez
vinte minutos, não mais” . O rapaz no ônibus passa os dedos das duas mãos pelos cabelos. A mulher na cama sente um
arrepio no alto da cabeça. O silêncio intensifica os sons do vizinho —pessoas, portas e vozes. O gatinho entra nas
cobertas e ronrona.

O ângulo da luz matinal concedeu um brilho azulejado à sacada do prédio em frente. Onde refletia o sol,
surgiu a intensidade da paleta da senhora Lens Lens. Tanta luz não podia mais ser apenas registrada. Decidiu dar-se o
dia. Descansaria. Descansaria na praia.
Erguendo a cabeça ela contemplou a circunferência incandescente, um gesto orgulhoso da manhã, em
contraste com uma mulher mais e mais humilhada e doente, melancólica. Vive com o peito oprimido e uma sonolência
mórbida. Os intestinos trancam a emoção num desconforto que parece a estar inchando. Os lados da cabeça se revezam
em aura na disputa do lugar em que sofrerá sua crise diária de enxaqueca. A natureza ao redor em sua eflorescência se
mostra indiferente aos males humanos. Lá fora as pessoas caminham indolentes por causa do calor.
Seu porte em casa é como se estivesse num salão de festas. A solenidade que empresta sentar-se ou apanhar
alguma coisa no chão ou no alto do armário, só de camiseta. A maneira de segurar o pincel e monologar. Seminua
diante de seus rascunhos, a poucos vê e para tantos vive.
Uma cidade muito pequena aa beira-mar cultuada por artistas. Ruas onde andara com a menina agora notada,
nao há de ser um sinal que Rose envelheceu.
- Bom dia, senhora Lens ! - alto e magro e com uma expressão bondosa e sexual, o homem hipnotizou as
pontas prateadas pela soma de tecido e sol. - Quantos? - perguntou.
- Um só - disse ela. - A Michele ja foi.
Passado e futuro estão para se encontrar no presente e o acorde de pão quente que chega no ar no ar chegará ainda e o
amargo da boca desfeito pelo dentifrício se converterá em si mesmo quando ela acordar trêmula e molhada com a
imagem do estranho no dia do aniversário de Michele.

Pôs o pó na cafeteira. O cheiro forte de perfume no banheiro indicava que a filha tinha ido para a escola. E
essa blusa jogada na porta do quarto. Sobrepõe a peça na blusa que ela própria vestia. O mesmo número. Mas a menina
tem postura e nunca reclamou de dor nas costas; suas pernas são firmes e ela não herdou o arco; porém as pernas de
Rose são também bem torneadas pelos agachamentos constantes no ateliê.
A idéia ocorreu quando ela estava colocando a roupa na máquina. Os vizinhos da frente tinham acabado de
mudar. Não tinham filhos e saíam toda noite. Estavam justamente chegando trajados a rigor. Fazia aquele silêncio
insuportável quando o que se contempla está perto e longe demais. Ela imaginou que do outro lado havia um bosque
muito verde e que ao crepúsculo o casal sentava debaixo de uma canafistula. Dentro do bosque um lago refletia o fogo
no horizonte.
Num de seus arroubos sexuais George tinha dito que lhe daria o céu se ela quisesse. Ela pensou que o céu não
adiantaria muito ao lado de um homem sempre embriagado mas um lugarzinho onde pudesse trabalhar em paz com
certeza cairia muito bem.
- Sim, sim, vou providenciar o estúdio para a minha gatinha - disse ele. - Só porque ela tem essas pernas
gostosas —completou apalpando-a, quase babando.
Ela caminha em torno da mesa azul de fórmica, nessas pernas. Há um volume escuro na grossura das coxas,
da parte externa do joelho até quase a virilha. A água ferve. Sentou-se com um ranger de cadeira nova. No caderno de
receitas ao lado do forninho escreveu algo que agora cobre e recobre.
Num canto do terreno havia o fícus, baixo, da altura da cerca. Na temporada quando não estava chovendo
suas folhas eram alaranjadas de poeira pois parte da rua de terra se transportava para elas até a próxima chuva antes da
qual seus pais vieram fazer a única visita depois que a filha casou. Além da má impressão que esse pó grosso causara,
havia as poças e os buracos em que se formavam e que os dois ou três dias entre uma e outra chuva não eram
suficientes para secar.
Quando o taxi parou e o motorista perguntou se a casa era aquela, o velho demorou a responder e precisou
reouvir com a memória de retrospecto, curta e precisa. Junto à voz da pergunta ouviu-se a do trovão. A mãe de Rose
olhou o marido com um misto de piedade e vergonha e se antecipou dizendo que sim era aquela a casa. O cãozinho
como sempre ouviu primeiro buzina e palmas e com os latidos as luzes da sala e da varanda se acenderam quase
simultaneamente. Depois o cachorro pulou a muretinha para o jardim onde começava a trilha até a porteira correndo
com saltos horizontais parecendo por fração de segundo uma espécie de cobra voadora.
O senhor e a senhora Lens Lens tinham acabado de jantar e enquanto arrastavam as cadeiras para receber os
visitantes outro relâmpago rasgou a escuridão e Rose pensou que assim que o pai entrasse ela precisaria confortá-lo
como quando era menina; mas mal ele entrou com o blusão de couro escorrendo pelo assoalho, levou a filha para um
canto e sequer precisaria; ela sabia que ele ia falar sobre poeira e poças e barro e distância da capital e quedas de
energia e —o que não ia falar, só pensaria —era um lugar descampado e sem para-raios. Então todos se tornaram
sombras de lá para cá rumorejando no súbito silêncio negro do século passado.
—Não tem sequer uma igreja por perto —disse a mãe ao substituir o marido junto à filha. —Nós não vamos
à igreja, mãe.
A mulherzinha arregalou os olhos como se tivesse sido ofendida e Rose jamais teria oportunidade de
perguntar se ficou mesmo ou talvez se desculpar por ter sido tão franca pois os pais faleceram na mesma semana, um
mês após a visita. Como resposta à reação da mãe, Rose disse, com um singelo desafio no olhar: —Ele ainda bate em
você? —e enfatizou: —Não parou, mesmo doente? —porque a mãe justificara a ferida no lábio com uma queda na
cozinha. Sabe-se lá. Pode ter sido mesmo. Ou uma mordida do amante.
Dia após dia a senhora Lens Lens se afastava do tempo de resgate que foi seu namoro com George — a
página em branco que então preenchia, como todo novo amor —e entrava mais e mais nessa vida tediosa que decorre
da maturidade. Não almoçavam mais juntos e não faziam mais nada juntos exceto dormir. Se ele tinha outras mulheres
isso era relevado no mundo dos homens — morador que não gosta da casa mas é proprietário e sente-se no dever de
zelar pelo imóvel. Ela esmaga a casquinha de pão quando pensa que certas preferências do marido tinham mais a ver
com uma vontade real de machucar. Mas se fosse diferente, gentil como - como era mesmo o nome dele? —enfim —
como aquele rapaz - Reinaldo? —decerto não teria lhe dado a mínima.
Na noite anterior ouviram-se gritos no quarto e tinir de copos à cabeceira. “ Cale a boca!” Pulsos
arroxeando. Uma janela se abriu lá fora e os corpos se estenderam nos lençóis amarrotados.
Precisa sair logo antes que a vizinha apareça para ficar de conversa mole, sondando. Ameaçada projeta em
George sentimentos como os da mulher estuprada que ao se tornar roteirista violentará as moças de seus filmes. Notou
com um olhar transversal que eram nove horas - horário nobre da manhã quando o sol ainda não está quente demais
mas queima o bastante para eliminar a palidez. Depois da caminhada ela entrará no estúdio para continuar os trabalhos
pendentes. O croqui das artesãs andando na praia ou o esboço essencial da mulher esperando sentada junto às ondas ou
o quadro que fixou um olhar definitivo sobre a névoa matinal das praias em novembro.
Está de shorts e blusinha, descalça. Os cabelos presos para cima. Acima de seu ombro direito na parede o
telefone azul de cuja mudez depende o bem-estar do resto da manhã, eventualmente do resto do dia. O sorriso no rosto
não diz nada sobre nada —se é de fato um sorriso. Entra no banheiro e dá de cara consigo mesma no espelho do
armarinho. Mal se olha, como a gente faz com estranhos ou com aqueles que de quem não se gosta.
Sua irmã é quem estava certa, insistiu com ela até o fim para que desistisse do casamento. Quando vinha
visitá-la, costumava sair para a praia depois das nove e antes das nove e meia com essa luz triangular crescendo pela
porta entreaberta a dourar seus cabelos ruivos. Rose achava uma cena tão bonita que chegava a se encostar na pia para
contemplá-la. como agora.
A senhora Lens chorou.

A viagem durou mais de nove horas de oito esperadas conduzidas por um motorista educado e cuidadoso que
fazia com que possivelmente mais de um dos passageiros em algum momento tivesse a sensação de que o ônibus
avançava por meio de alguma dessas tecnologias malucas de hoje em dia por meio das quais algo assim logo será
decerto possível. Os vilarejos do amanhecer pareciam em fogo primeiro e depois apaziguado(s) pelo sol de um dia
normal para esse homem cordato e plano a poucos meses de se aposentar. O dele eh Márcio mas na chegada Gerard
quando ia sorrir e menciona-lo simplesmente havia esquecido e de algum modo isso o preocupou mais do que se
tivesse sido um simples branco. Marcio percebeu eh claro mas não se importou e na verdade não se importava com o
fato de que estava chegando e logo ia ver de longe embora mas real a sua amada senhora.

Por quanto tempo vivera assim? Porque casou praticamente por isso. De onde tirou preferir a continência?
Passava dias e dias e perdia a noção de cor e não se concentrava na música que antes era o que a inspirava. Tudo agora
é dispersão. Estímulos físicos sem outro objetivo e fantasias e sensações e espelhos.
Quando no fim da rua paralela à principal ao virar à direita o rio é audível e o rumor do comércio e o motor
da patrulhinha a dez quilômetros por hora, um dia ela pegou a travessa que liga as duas vias e no sentido inverso à
praia dá nos últimos casebres além dos quais só havia sacos de cimento tornados pedra e telhas quebradas e tijolos
servindo de vasos para ervas daninhas. Ocultos por toda parte frutinhos de tangará se agarrando em sua roupa. Passos
no esqueleto do que deveria ser uma escola. Sentindo-se ridícula sobre o selim abandonou nesse dia a bicicleta e
facilitou as coisas para o pescador ou talvez marido de uma apanhadora de conchas ou um forasteiro de butuca.
Quando entrar por aquela porta cerca de onze e meia, meio-dia, correrá perigosamente nas escadas para o
ateliê e sairá aliviada para fazer o almoço. Há quanto tempo teve uma sequencia decente de criação? Nos lápis nem
pega mais, tampouco no buril, envolvida pelos tons sombrios, e deixou-se arrastar por uma crise de nervos que a jogou
na cama em frangalhos. Flor cujo viço está prestes a morrer, dela o marido cuidou com zelo de jardineiro. Embora
gozasse com as floradas novas, ele não deixara de dispensar gratidão à planta que definhava para dar lugar àquelas
geradas da eflorescência anterior. Esteve à sua cabeceira com gentilezas de comerciante que lesa os clientes ou médico
que assedia a paciente. A senhora Lens tinha pavor desses rasgos de bondade.
Era ainda bela a sua mulherzinha, servirá ainda por bom tempo. Quanto às outras, está no homem ter muitas
mulheres como está presa no ramo da planta atual a que germinará no futuro. Assim pensa George entre Rose e a Zona
Vermelha; entre as jovens frescas da noite e a mulher de quarenta e cinco anos e ao cuidar das novas plantas não
perceberá o arbusto seco reflorescendo no aniversário de Michele.
Durante a primeira parte da manhã talvez uns quarenta minutos ela permaneceu diante do espelho. Sentada
ereta, as mãos na região lombar. Olha para as mesmas mãos no reflexo. Resíduos de tinta como uma roupa encardida.
Produzira-se em seus quadros um amadurecimento semelhante a partir da mudança da metrópole para a vila
de pescadores, do qual agora duvida. Era a mesma época do ano. Impressionou-a o tamanho da árvore à beira da
estrada e a sombra que fazia, a grossura de seu tronco. Prove —disse George. É ácido... —disse Rose.
—Dizem que espíritos maus habitam o tamarindeiro.
A advertência só fez aumentar o fascínio da mulher e ao longo dos dias vira e mexe estava por ali sobretudo
bem cedinho olhando o nascer do sol no mar raso e límpido sob a copa, a bicicleta entre as coxas. Um pé descalço
sente a raiz na sola e o outro se apóia no pedal esquerdo. O menino a observava e a mãe estava feliz porque ele nunca
mais perdeu a hora da escola.
Estica-se para trás e alonga e geme. Olha para o ombro esquerdo nítido e cheio. Abre as palmas diante dos
olhos. Leu as manchas por onde correm as veias azuis. Passará essa compreensão para uma tela em simbiose a que
alguns chamarão estilo.
O terral varre o vilarejo para desespero das donas-de-casa obrigadas a levar uma segunda e terceira vez a
última vassourada pela porta, tarefa que pode esperar, decide a senhora Lens. Pedirá uma ou duas quentinhas.
Possivelmente Michele nem vem para o almoço.
Quando tinha onze ou doze anos na passagem evidente da infância para a adolescência, Michele cozinhava e,
quando não, ia ela mesma à mercearia ou ao restaurante pegar marmita. Isso passou. Quase teve uma data para passar:
o dia da menarca. Nunca mais quis saber de trabalho doméstico; aliás a partir daí não parava mais em casa.
Certa tarde ela chegou com os olhos vermelhos e cheirando a cigarro. Não dissera à mãe sobre a menstruação.
Uma coisa Rose atribuiu a choro e outra imaginou ser do cigarro de George pois pai e filha tinham almoçado juntos. A
menina estava falante e de bom humor, o que nunca foi característica sua. Depois Rose entrou no quarto com o pretexto
de pegar alguma coisa no armário. A filha estava deitada de lado olhando para uma foto do casamento dos pais na
cabeceira e a mãe balançou a cabeça quando viu que tinha virado para ver alguma coisa justo no momento em que
clicaram. Tentou lembrar o que mas se perdeu pensando no casamento e saiu sem que a menina tivesse percebido que
ela entrara. A senhora Lens desviando dos fios dos fones passou no rosto o creme hidratante já usado no pescoço.
Procurou a região entre os seios e depois massageou em torno dos mamilos. Separou as roupas sobre a cama. A
bermuda floral a deixa à vontade sem constrangimentos. A blusa verde sem mangas.
O ônibus passa. Passam tantos ônibus interestaduais nesse horário. O porte e outra coisa que ele não saberá
dizer chamou a atenção de Gerard quando ela atravessava para a rua da praia ao despontar na paisagem que mudava no
motor da curva. Ela deu uma corridinha e as cores da bermuda balançaram vivas sob a gutural buzina de cumprimento
ou tortura. Um primeiro momento e ele percebeu os seios pequenos e o quadril largo e a cintura fina. Poderia ter um
filho dele se algum dia ele quisesse um. Os cabelos eram escuros e lisos, de comprimento médio; e usava óculos.
A grama devia estar mais verde onde Rose alongou um pouco antes de onde a areia começava. Não tem
dinheiro para mudar as lentes e não vai pedir a George. Encostou o queixo no peito e olhou dentro do decote. É melhor
mesmo não ver direito. Nos vinte segundos assim teve a certeza de não dever fidelidade ao marido infiel mas pensou
talvez George fosse necessário para ela ser plenamente com as melhores virtudes do sofrimento e grandes alegrias por
contraste. O cheiro de mato em torno era o cheiro dum paraíso adulterado.
Ficou reta e girou os ombros. Deslizou uma das mãos e depois a outra ao lado do corpo que invadira Gerard.
Levantou o ombro direito e abaixou o outro e depois inverteu segundo a lógica do renascimento e das associações.
Eram onze horas. Esticou os braços para frente com as mãos entrelaçadas e assim os esticou também para cima, as
palmas viradas como um São Sebastião cujas flechas são olhos negros e tristes semelhantes a gotas impregnando
Gerard de todas as mulheres que a senhora Lens será.

Deve ter acordado e dormido de novo pelo menos umas sete vezes cada uma mais dolorida que a outra sem
contar a boca com gosto de ônibus no despertar definitivo. Numa dessas o ônibus deixava estrada e mais estrada para
trás e um sol tímido se arriscava em finos feixes e espíritos do ar depositavam nas mentes conjecturas de que os
passageiros não saberão a origem.
—Agora estamos mesmo chegando! —disse a silhueta transformada em moça muito morena ao lado do
namorado cujas mãos não sossegavam.
O ônibus encostou sob a marquise da loja de venda de passagens que servia também de terminal. Ponto após
ponto de referência segundos antes, Gerard se exaltava em arroubos de lugares novos e a cidade subia por nervos e
músculos. Levantou-se e agarrado à guarnição do bagageiro deu impulso com que ficou diante da mochila emborcada.
Com os braços levantados puxou-a para si e antes que o peso se fizesse inteiro deixou cair na poltrona vazia.
O cheiro de roupa e desodorante e sabonete recém-aberto e pasta de dentes o envolveu. Esticou as mangas da
blusa de lã que decerto embora fininha não irá precisar numa cidade litorânea, pelo menos não tão cedo. O calor do
tecido nas mãos é quase o de uma mulher e pensa em como era linda, não, isso não era, mas havia alguma coisa. A
música que ainda tocava superpunha uma nova alma. Encheu o peito. O mar lhe faz bem. Amanhã bem cedo dará um
mergulho e nadará um pouco. Quem sabe ainda hoje. Fechou os olhos. Melodia lisérgica de não-usualidade. Fraqueza
de profetas. Não se atém à música ou ao céu ou o mar entrevisto mas passeia pelo medo das coisas muito desejadas.
Pensa na mulher e pensa que sentiu algo muito parecido quando se espreguiçou ao acordar na poltrona. Mancha de luz
se pelos telhados, o sol impossibilitava a fixação no descanso verde de uma árvore ou na sensualidade de tijolos
vermelhos ou na liberdade do azul no céu ou mar. Tirou os fones e lembrou que minutos antes talvez uma hora até
mais passando por uma casa ouvira vozes. Aproximaram-se e se afastaram em seguida.
—Estou indo! —dissera a voz de menina. —Onde você estava?
—Como assim vai à praia, mamãe?
—Você prometeu dar um jeito na minha calça para a festa!
—O aniversário é sábado, sabia?
A adolescente deu de ombros. A mãe estava mesmo ficando estranha, deve ser a idade. Na idade dela, pensou
Rose, teria dado eu mesma um jeito na calça. Ou poderia usar uma calça velha, o que naturalmente Michele não faria.
A filha não dissimulou o olhar que percebeu as estrias na senhora Lens, discreta ao notar os seios e culote
descontrolados na menina.
—Tudo bem, mãe. Boa praia —só faltou dizer “ Papai não vai gostar quando souber” . — Obrigado, querida.
Boas aulas.
Solenes sons de um concerto marcaram no ônibus a distância da casa. —Eca, mãe, que música horrível. —
Quando você tiver a própria casa ouvirá músicas lindas em todos os aposentos.
Quando tivesse a própria casa, seria mesmo sua; não dependeria de um homem. Porque era filha e porque era
fase. Porque o pai tinha algo que ela.
As vozes ecoam como se Gerard tivesse passado a pé. Então lembrou. De seu sonho? Não. Acontecera.

—Com licença —disse a jovem. E de fato aquela mão. Estará sonhando?


Não. Ali, de seu descuido; de seu sono ou o quê. São os tempos. É a noite. O aconchego de um ônibus-leito.
Dedos se insinuam enquanto vigora a lei dos olhos fechados.
Ela entrara na segunda parada e, como não estava ali quando o ônibus chegou, saiu antes da ultima. Há um
rio correndo por dentro da cidade e ela o atravessa pela ponte. Segunda parada. O motorista ticando os bilhetes. O
passageiro com aspecto sonhador se contrapondo aos caras grosseiros da rua. Dar-lhe-á algum conforto. Parece triste e
tenso.
Sim. De novo a incerteza do amanhã. Na vez anterior, casou-se. Tinha 17 anos. O plano era envelhecerem
juntos num sítio. Cachorro e gato e verde manchado de flor. Com vinte e poucos estava separado. Um homem jovem e
simpático, bonito. Decidiram civilizadamente. Os avós cuidariam dos netos para a filha estudar. Ele mandaria dinheiro
tão logo pudesse. Pegou o ônibus à meia-noite. Partiu da roça para a capital.
Pelas janelas os campos escuros e os fantasmas quietos à espera de que alguém hesite e faça o que não deve.
Pelo menos não teve filhos. Não tem a quem ajudar ou recorrer. Ninguém sabe seu nome enquanto percorre as lavouras
de agrotóxicos e nematóides, nem mesmo a moça da casinha vermelha que chorou quando ele partiu.
Perto da estrada uma faixa de areia está cheia de pedras da ressaca. O mar derrubou a encosta num trecho do
calçadão desprotegido, mas ele ainda não sabe. O roçar de braços o despertou. Ouviu dizer que há uma verba de um
milhão para recuperação das infraestruturas de interesse turístico. Ouviu dizer que artistas adoram o lugar e alguns
interferem com spray dourado e artesanato no casario. Ouviu dizer que as mulheres desde muito cedo são dadas e
sensuais. Mas e depois, caso se reencontrassem? Eram cidadezinhas próximas.
Não se reconheceriam, concluiu, enquanto um crepúsculo distante queimava as últimas defesas. O ônibus é
alto e a estrada sinuosa. A manhã se aproxima. Sua roupa cuidadosamente escolhida para o conforto da viagem. Os
documentos seguros em bolsos laterais abotoados. Os olhos ardem de sono como se tivesse fumado e a resposta do
corpo legitima o mundo que deixará de existir em alguns minutos ali mesmo na poltrona macia e inclinada.

O sol nasce no céu avermelhado ao longo do horizonte no mar e traz de volta a emoção de primos
adolescentes em férias na casa de praia dos avós. Não havia sedução, mas momento; não vergonha, mas encanto. Os
avós eram as pessoas a quem ele mais amava e também o amavam de modo especial e isso gerava em seus primos
homens grande inveja e criava dificuldades para Gerard no dia-a-dia. Entre as primas, só uma se unia a esse sentimento
e exatamente ela se recusava a participar das brincadeiras menos infantis. As outras se tornaram jovens mais bonitas,
gentis e educadas e de algum modo participavam também dos benefícios do amor dos avós. Mas eram idosos e tinham
severos princípios. Há um amor lícito e um ilícito que - dizia um dos tios, também o pai — de tão impuro nem devia
ser mencionado.
Tinham nadado e voltavam para casa. Ventava. Quando ele acordou da sesta, um sol tímido se arriscava em
finos feixes. No quarto ao lado, as meninas. Uma delas na porta entre os quartos. O dedo indicador direito nos lábios
que emitem sopro inequívoco. A malha cúmplice da camiseta. O sombreado em alguma parte da calcinha. A porta se
fecha e ela se aproxima. La fora gotas nas poças e nas latas vazias e escorrendo pelo vidro. O céu se abrira e as
primaveras estavam mais vivas quando se deram conta do redor. Homem e mulher não. Menino e menina. Coisas que
acontecem nas praias da adolescência e após a segunda parada de um ônibus-leito.
Gerard deixa o olhar em uma réstia de luz entre as cortinas do lado esquerdo de quem entra pelo corredor
pousar no perfil da jovem, sim, adormecida. Todavia, de quem são esses dedos? Há algo a fazer no entorno de um gozo
que não se consumará nem na verdade deve se consumar?
O vento pela fresta da janelinha. Cores ensombrecidas do mato à beira da estrada. Caules que acompanham a
circunferência terrestre. Ouviam o motor e o sopro do freio e os murmúrios da noite. O som sonolento do tráfego da
estrada agora reta. Depois um acento. Um resquício de voz, fragmento de fragmentos. Um pronúncia incomum. Um
jeito de falar. —Bom dia — disse ela assim que pisou a terra que ladeia o asfalto.
—Bom dia, senhorita.
Visto pelo velho sob o pé de tamarindo, o ser que desceu do ônibus parecia um anjo, as vestes molhadas de
azul.

A senhora Lens passava os dedos pelos cabelos. Tinha saído do mar e caminhava de volta para a toalha
estendida na areia quente. Silício agarrado aos pés nas crateras personalizadas, pegadas de um animal à procura de seu
lugar no mundo. Fios castanhos fora do rabo-de-cavalo preso no elastiquinho rosa. A mão desceu à flanela fina na caixa
dos óculos na toalha e Rose se entreteve a limpar as lentes. De longe o viu e teve um ligeiro tremor.
Ele conversava com um homem que ela julgou conhecer, um senhor mulato de uns sessenta anos, forte, lábios
grossos; costumava fazer pequenos serviços para George, como trazer resmas da gráfica e capinar a frente da casa. —
Senhor Gerard? Muito prazer. Sou Cronelin, o jardineiro da pousada. Seja bem vindo.
Gerard sorriu e agradeceu e respondeu ao vê-la por cima do ombro do jardineiro. Continuou vendo. Veria
sempre.
Devolveu o sorriso que ela pensou em dar. Caminhou ereto e apontou plantas e flores com o queixo,
indagando. A respiração movia o peito largo. Deve nadar muito. As mãos de Gerard ao longo do corpo. Um gesto ou
outro, não mais. Lentos.
Naquela noite houve uma tempestade localizada com granito, passou logo; não foi necessário o estado de
atenção da Defesa Civil.
Aproximava-se o Natal.
Ele não demorou nada para arrumar as coisas no quarto, como se estivesse atrasado para um encontro. Saiu
em direção ao lugar em que havia visto a mulher. Teve dificuldade para se orientar. O sol vermelho buscava seu reflexo
na linha do horizonte. Logo logo sóis se uniriam no oceano. Chegou ao lugar marcado pelo imenso pé de tamarindo
quando o sol encontrou seu duplo e a noite começou a cair.
Não havia ninguém.
PRIMEIRA PARTE

A orla marítima de Celba lembra a escrita cursiva no diário de uma adolescente. O terral sopra à tarde
balançando as buganvílias sem amenizar o calor ou dispersar os marimbondos. Quando descem do ônibus os que
chegam com a rodovia entram numa aura preguiça e lascívia. Da estudante à vendedora de balcão, da filhinha de papai
à fugitiva, da turista adolescente à radicada madura, as mulheres dali tem essa essência que as resume. Os homens
olham uns aos outros com um sorriso quando as vêem passar.
A produção cafeeira enchia um pavimento do trapiche iluminado por dínamo a vapor e depois era escoada em
pequenas embarcações para a capital pelo rio Ikonya. Nesse mesmo ancoradouro chegavam os navios negreiros. Os
filhos e netos dos traficantes são senhores no povoado. A principal fonte de recursos no final do século vinte era não a
pesca nem o artesanato de conchas mas o turismo.
A maioria dos habitantes vive em função da temporada mas uns poucos detestam esses verões. Era o caso da
senhora Lens. Inspirada pelos cenários da vila, ela produzia bem mais a partir do outono. A crítica achava seus quadros
brilhantes. O brilho literal vira Gerard do ônibus quando chegava. Qualquer pessoa veria. Aos olhos da distância há um
lirismo que se perde no dia-a-dia, não de todo: porque Celba não depende da pesca ou do turismo mas da luz.
Essa vizinhança de nativos em seus casebres e donos de mansões para aluguel acrescentou à atmosfera
maledicente da cidade pequena a perversa liberalidade da metrópole. Celba na época contava com menos de dez mil
habitantes, mas há na comunidade algo que a faz parecer maior. O mundo em que se constitui cada pessoa interfere nos
outros mundos, como transmissão de rádio. As pessoas ficam muito parecidas.
Quando os turistas chegam à praia muito cedo, passam barquinhos com dois homens a pouca distância dos
recifes. Verificando a rede se junto ao espelho. À direita de quem chega, ergue-se o monte Ājiā. Uma falésia surge na
proximidade do verão. É onde a praia começa ao sul suavizando a rocha escura. Para onde quer que se olhe há
montanhas e mar. A chuva amaldiçoada costuma sumir por longos períodos e as grandes tempestades anunciadas são
muitas vezes só barulho e eletricidade e passada a ameaça as pessoas voltam para as ruas e para a praia, para o
comércio. Acrescente à névoa turquesa uma sensibilidade nervosa e aí está o efeito da vila em Gerard, semelhante ao
que habitou Rose há oito anos.
Veio a convite do amigo com quem se casará, de nome Georges. Quer uma dieta de peixe nas férias e acaba
fazendo do peixe a base de seu cardápio para o resto da vida; e as ruas da vila passaram a fazer parte dela
especialmente as trilhas do bosque e o caminho alternativo para o lago.
Não raro ela passava com um sorriso como se houvesse pessoas ao redor e ela precisasse manifestar o que
sentia. Olhe para esses recantos e solte a imaginação. Anátema incorporado à pintura.
Pintou seu primeiro estudo de paisagem marinha “en plein air” num dia em que Georges disse que ia
demorar. A subida do Ājiā. A vegetação rasteira em meio aos pastos e o azul profundo dos abismos. Um sentimento
possível desenahdo na percepção visual. Precisava fazer alguma coisa. Passou na loja recém-inaugurada e comprou o
kit com pincéis, paleta e diluentes. Usou a caixa como cavalete. O motorista esperou-a sentado na escora do arbusto, de
frente para a praia escondida entre as pedras. Dali dá para ver o restaurante que é a última parada do ônibus que vem de
Haktnak.
Nuances instáveis na escuridão de sua sombra, Gerard está parado cabisbaixo diante do restaurante, alheio
aos motores e marchas e canos de descarga. O olhar e a sombra unidos bem além das pessoas ao redor e do céu acima.
Deixara para trás na capital o banco e o emprego de caixa e a concupiscência testemunhada pelo apartamento oferecido
aos funcionários no prédio da agência central. Decidira não se casar de novo ou ter outro relacionamento estável.
Minutos depois com o embrulho no colo as mãos estavam crispadas no telefone. O olhar no laço do presente
era seu jeito trágico de olhar. Fica ouvindo a voz do marido —“ Alô! Alô! O que é?” —sem responder ou desligar,
mas poderia colocar a vida de mãe e filha em perigo e desligou segundos antes do homem lançar o celular da mulher
pela janela do carro. A reação da esposa é uma confissão. Os olhos arregalados e a voz aprisionada. Fora isso, tudo
normal: o marido deu seta com prudência e a menina lambeu o sorvete que derretia.
O homem do guichê puxou a manga comprida da camisa muito branca e bem passada para ver o mostrador
do relógio no pulso. O ônibus encostou e eram dez horas da manhã. Gerard de passagem perguntou onde ficava a
pousada e o outro respondeu apontando. Caminhou uns cinco minutos. Perdeu a visão anterior do mar substituída por
casas rústicas de madeira escura com detalhes verde-água e amarelo nas janelas e portas e nas calhas.
Indo na frente uma mulher se balança ao caminhar e se abaixa uma ou duas vezes e bate a areia dos
tornozelos. A mão esquerda rege uma orquestra invisível e os dedos se contraíram e relaxaram antes que ela apanhasse
uma sandália e depois a outra. O letreiro antecede o prédio da pousada. É cedo. Sente-se bem na cidadezinha. O ar
salino não é pegajoso como em lugares semelhantes. As ruas estreitas parecem guardar a cada curva uma revelação.
O sobrado se aproximou no tempo como zoom em uma foto, como num filme. Gerard entrou e subiu um dois
degraus. A porta bateu. Ele se virou na direção do som, as mãos pousadas na madeira do corrimão. Pisca num quase
sorriso e entra. O computador está do lado esquerdo na parede oposta à janela onde terminam os raios coloridos que
atravessaram o jorro do chafariz. A impressora e o fax em uma mesa menor de fórmica. Um fantasma passou pela
janela da cozinha onde há dois vasos de ikebana. São três passos da mesa até o raque. Puxou a cadeira com a mão
esquerda e sentou, a mão direto no mouse com o frêmito lateral devidamente correspondido pelo cursor. Sombras
oscilavam nas paredes como notas do mais triste violino.
Como se tivesse surgido do nada (isso sempre o impressiona), Silvia disse que era só uma opinião. Uma
mulher sofrida não há dúvida. Ninguém abandona a medicina assim da noite para o dia. Precisou reler as mensagens
anteriores para entender. O monitor é negro, brilhante, os cantos arredondados. É a primeira vez que ele usa mouse e
teclado sem fio. Analisa o avatar vestido de branco como se quisesse criar uma legenda para a foto. Ela é linda. Ele
desenhou as palavras com os lábios. Mas tem um ar, não sei, melancólico, pesado. Há pouco, no banho após nadar,
pensava na beleza de Silvia em seu jaleco encorpado, suave ao toque, azul no cinto das costas e na gola.
Do outro lado da tela, distante cem quilômetros de Celba e mais perto do que a telefonista, a mulher soltou os
cabelos negros que caíram à altura dos ombros. Médica, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do
Centro Médico de Hatknak. Morava na época com os pais e levava cerca de uma hora e quarenta ou um pouco mais de
casa até o hospital. Muitas vezes escutava o ônibus assim que fechava o portão e corria pela rua vazia da madrugada
para alcançá-lo na parada seguinte. Invariavelmente dormia na viagem acalentada pelo motor e balanço interrompido
apenas quando o freio pneumático inspirava algum evento em seus sonhos, o bocejo de um dragão ou um grito de
socorro; então despertava para a paisagem na janela —um cavalo, um menino atrás de uma bola, as vendinhas de beira
de estrada.
Se alguém perguntasse, os colegas diriam que era uma moça tranqüila e profissional competente e dedicada.
Em certo momento, Gerard achou que ela sofria por causa do estresse para cumprir o que dela se esperava. Talvez
colegas invejosos ou chefes vorazes. A verdade é largou tudo, não, porque passou num concurso público e esperava a
qualquer momento ser chamada. Os pais não estavam de todo frustrados porque havia essa perspectiva da estabilidade
de um cargo no Estado e decidiram lhe dar uma mesada.
A senhora Lens dizia conhecer as pessoas certas. Poderiam transferi-la para Celba e as amigas estariam perto
pelo resto da vida. Trabalharia quem sabe no hospital municipal. Conviver com tamanha incidência de contágio levaria
ao esquecimento de si mesma. Sempre pensava nisso apesar da ressalva de Rose: o lugar era perverso e as pessoas,
traiçoeiras. Ela é infeliz no casamento, claro que isso reflete na sua avaliação da cidade do marido.
“ Vou ter de dar um telefonema” —leu Gerard na tela. “ Mais tarde nos falamos” .

A senhora Lens passou por ali no caminho de volta. Há oito anos, a pousada funcionava num prédio menor.
Exalava vapores das cidades de onde chegavam os turistas. Na época nem eram se chamavam assim. Vinham a
trabalho. Contadores, fotógrafos e caixeiros viajantes. Havia uma cortina branca na recepção, atrás do gerente, um
homem muito querido pelos visitantes. O senhor Omar, lembrou Rose. Um homem bonitão.
Ela era muito boba. Não compreendia que cedo ou tarde teria de avaliar um homem não só pela aparência
física ou pela capacidade de se tornar bom provedor. Levar em conta as afinidades. Em último caso a garantia de que o
relacionamento não se desvirtuará. George também era bonito. Ainda é. Os traços pouco mudaram e tudo mudou.
Lembra-se da noite anterior e não sabe mais o que fazer para evitar a aspereza diária. Os beijos ao menos são
cada vez mais raros. Nem a preliminares ele se dá mais, apenas a rasga com sildenafila. A cartela estava na gaveta da
comoda. Foi ela quem fez o crochê sob o vaso ou acha que sim. Não. Nunca aprendeu esse trançado, justamente a
especialidade da mãe. Quando Geoges adormeceu, ela levantou-se e apanhou o artesanato, derrubando o vaso, e jogou-
o no cesto de papéis onde pairou sobre a cartela vazia e ali ficou, feito um véu.

Há pedaços verdes de uma velha rede no chão. Maços de cigarro amassados, latinhas de cerveja; guimbas,
seringas. A praça de alimentação do recém-inaugurado shopping não tem lugar livre. A parede lateral da igreja está
rachada e cheirando a urina. As sombras de prédios e pessoas se esticam longe. Aqui um homem foi morto por nada.
Uma embarcação semelhante àquele foi apreendida um dia antes com quase uma tonelada de peixe irregular. Jovens
turistas enaltecem Celba nos telefones públicos em frente ao posto.
—Se cuida, meu filho. Dizem que aí rola muita droga.
O rapaz sorriu fazendo sinais para a namorada. Beijam-se. Mal podem esperar a noite e quem sabe não
esperem mesmo. Fios de cobre sobre suas cabeças transmitem confissões. Gerard entra de novo na pousada. Dois
carros passaram após ele atravessar a rua.
Uma estrela desponta e depois outra e a lembrança da moça. A inspiração não tão firme. Era um homem
jovem; talvez resquício das drogas. Outra estrela. A pracinha do cemitério. Gerard lembrará um dia, quando sua
memória num insight voltar. Dava para ver jazigos de sua janela.
Desde que acordou de manhã, esteve andando de um lado para outro e em cada canto encontrava alguma
coisa com que estivera lidando —um caderno, um mouse, um pente de memória —e deixara em lugares estapafúrdios.
Um tipo de esquecimento normal de quem faz muitas coisas ao mesmo tempo. Preocupava-se sim com a ereção
matinal. Se é boa, precisará de uma boa mulher; se não for, caso uma boa mulher apareça, acontecerá o pior. Ao abrir a
porta da geladeira para guardar o leite, deu com a carteira. Sorria e dizia: “ Achou” ...
A mulher da praia aparecerá na sequencia com quadris macios deduzidos da sutil penumbra ocultando a
cicatriz. Deslocou-a do desejo para a memória e depois para a saudade, ao norte de seu amor.

Rose sentira a dor pela primeira vez caminhando pela sala. Estava mexendo em uma caixa com contas de luz
e de água e gás. Ficou preocupada. A náusea, os vômitos, e agora isso. Evitava médico. Não se sentia confortável em
roupas íntimas nem com George. Silvia a encaminhou a uma colega.
- Quando sentiu a dor, o que a senhora Lens estava fazendo?
- Era uma dor incapacitante?
- A senhora fuma?
- É sedentária?
Afinal a médica optou pela cirurgia. Deu tudo certo. Cicatrização rápida. Mas tinha muita dor de cabeça no
pós-operatório e faltava confiança quando ia se abaixar. O ateliê foi de novo uma terapia, ensinou-a a conviver com
desconfortos.
No dia em que o ônibus chegou, Sarita, a empregada da senhora Lens, ao descer para fazer o almoço,
manchando de sua presença os pequenos quadros alinhados com a escada, registrou o momento em que a patroa tirava
os óculos que penderam em seu peito quando a voz grave atendeu o telefone. As paredes da sala mantém tonalidade
íntima entre o amarelo e o vermelho. Lâmpadas alógenas focalizam canvas de cinquenta e cem centímetros por setenta.
O tecido das telas envolve o chassi de madeira. Na parede oposta, implacável no nicho sobre a lareira onde foi colocado
no transcurso da vaidade juvenil e inconsciência da passagem do tempo, o autorretrato da senhora Lens. As almofadas
de cetim espalhadas pelo carpete à espera. Deve ter dormido. É, está dormindo. Chega a ressonar. Seus dentes brilham.
O rabo de cavalo no tapete.
Estava deitada quando o telefone tocou. O short azul de seda mista ondulou sobre o tapete que seus pés
pequenos marcavam.

—Quero te ver —disse Silvia. A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito prazer. —O
George não vai achar ruim?
—O George não vai achar nada. Quando você pretende vir?
—Quando você vai para os Estados Unidos? Podemos ir juntas.
—Sim, vamos.
—E como estão as coisas?
—Iguais.
—Você precisa tomar uma decisão.
—Não é nada trágico.
—Ele a maltrata?
Maltratá-la seria estar consciente de que ela existia.
Silvia se pergunta como Rose pôde casar.
A senhora Lens pensava que o noivo era um homem rude. E pensou que poderia ensiná-lo.
—As pessoas não mudam.
—Quem dera ele fosse um homem rude.
—E a menina?
— Sabe como são adolescentes. Fui ter uma conversa ela, achei que estava exagerando na maneira de se
vestir, com biquínis minúsculos, shorts enfiados e — A senhora fala como se eu fosse uma predadora —dissera
Michele. — É exatamente o que está parecendo! — Fale pela senhora, mamãe! Silvia lembrou que elas também
haviam sido adolescentes.
—Faz tempo...
—Nem tanto.
A senhora Lens estava feliz. Para quando devia esperar Silvia? —Segunda à tarde? Tudo bem.
—Será bom rever você —disse Silvia. —Tenho novidades.
—Alguém?
—De certa forma.
—Como assim?
Quando chegasse, conversariam. —Mas você sabe, tenho um computador em casa.
—Vadia... Ainda ontem eu vi que está havendo no Palácio das Convenções ...
—um congresso sobre internet, eu sei, eu fui...
—Mentira! que legal!
—Um cara falou sobre venda pela internet. Pode acreditar?
—É, eu vi na matéria. Navegador em português vai ser uma boa.
—Internet via cabo! Poderemos estar no telefone e no computador ao mesmo tempo.
A senhora Lens não entendeu a vantagem de estarem juntas de duas formas e em nenhuma se tocarem. Nas
pausas podia ouvir o refrão do mar, sempiterno.
Também o escutava Gerard ao desligar o computador.

O gerente da agência tentou de tudo para que ele não se demitisse. Disse que tirasse uns dias de folga para
refletir. Era um homem de uns cinquenta anos e vendendo saúde mas alguns funcionários sabem que nem sempre foi
assim. Quando foi nomeado, vivia de licença. A volta por cima que ele deu.
Seu tom de voz com Gerard era paternal. —Aqui você tem uma carreira, ótimo salário, plano de saúde,
chance de crescer.
Um dia olhou para a mesa de Gerard e o viu, o braço apoiado numa planilha. Seu olhar estava longe. Uma
estátua que o escultor interrompeu para descansar um pouco antes do toque final e nesse intervalo morreu e a estátua
ficou lá, sem expressão, abortada. Nesse dia desistiu de tentar e providenciou a generosidade do DP e permitiu que o
Aviso-Prévio fosse cumprido —pelo dinheiro e pelo tempo que ele precisava para antecipar as providencias na tal
praia.
No vigésimo nono dia Gerard colocou na mochila a última camiseta, dobrada e cheirando a amaciante e
depois de duas ou três tentativas o zíper passou pelo defeito e fechou. Segurou para sentir o peso e era o peso do
mundo. Foi deitar com uns sons estranhos nos intestinos. Acordou às vinte e duas horas. O ônibus da meia-noite saiu
dois minutos atrasado.

A senhora Lens passou a mão direita no quadril. A dor se tornava crônica. O vento erguia as cortinas que no
fim da lufada voltavam a se aquietar. Olhava lombada por lombada por cima dos óculos a imaginar se num ou outro
livro estava o segredo de não sentir mais dor. Descalça no tapete, dois dedos grenás do esmalte que não deu certo. O
feixe luminoso de raspão no móvel do telefone qual varinha de condão. O falatório dos adolescentes à janela. Respirou
fundo e ouviu a voz de Silvia novamente.
—E o Jeferson?
—Jeferson?
—Aquele que você falou uma vez, o da festa.
—Ah. Não sei.
—Você está muito desanimada. Por que não se separa?
—Michele o adora.
—E Michele te adora?
—Claro que não. Mal me suporta. E só suporta porque precisa —o silêncio que se fez era para Rose imaginar
a cara que Silvia fazia. —É minha filha. Não pediu para vir ao mundo.
—Droga, Rose! nem você!
Precisavam mesmo conversar. Os filhos crescem e será tarde. A senhora Lens sabe. A gratidão dos filhos não
deve encher a vida dos pais. Rose era jovem e atraente.
Silvia devia estar brincando.
—Não estou brincando, ora! trinta e quantos?
—Quarenta e dois.
Silvia nessa faixa se sente desejável.
—Você tem tempo.
O mal das mulheres casadas é não se permitirem tempo.
—George é bom comigo, na verdade.
—Na verdade é um canalha.
—É bom comigo. O que faz fora não muda isso.
—Nem tudo é fora.
—A menina o adora.
—Às vezes te invejo.
Realmente estava brincando.
—Verdade. Mulheres dependentes e mães que se sacrificam.
Estão excitadas. Perdem o pudor. Uma como a outra, uma nos olhos da outra, tão diferentes. —Sim, invejo a
normalidade —disse Silvia pensando para ela as portas estão sempre abertas. Nunca fila de banco. O que sabe do
sistema de Saúde ou Educação é só informação. Nunca procurou emprego. Vida separada da vida. Michele chegava da
escola. — Vou ter de desligar —disse a senhora Lens. Esperará a amiga.

Gerard desde que se levantou da frente do computador buscava coisas no engano que se tornara sua memória
mas os fatos não estavam mais ali embora os sentimentos estivessem. Descendo as escadas, passou por um homem
grande a quem ameaçou dizer “ bom dia” porém sufocou o cumprimento em sua voz murmurada. Era barrigudo e no
calção havia indecentes bolas vermelhas. Gerard saiu do prédio e surgiu o mar e parecia outro mar sob a nova
perspectiva. As primeiras banhistas. Uma emprestou seu corpo para a Silvia da imaginação.
Surgiu uma amiga e de biquíni azul se juntou a ela, quem sabe aquela que Silvia costuma apresentar como
vítima do marido. A água escorre dos cabelos escurecidos. Levando-os para um lado e inclinando a cabeça, ela os
torce. Ele deixou-as se afastar. Pegou o canhoto da passagem no bolso e desamassou. Ficou olhando, absorto.
Adormeceu.
Acordou onde a formação rochosa começava, entre as praias do Diabo e São Martinho. Um bando de
adolescentes na rua da praia o arrancou do sono e o devolveu ao mundo. A empregada lavava uma janela e comentou
algo para dentro do apartamento ao ver o grupo. A resposta é sussurrada embora ninguém pudesse ouvir. A mulher de
dentro varre a sala enquanto o frango assa. Foi madrinha de Michele. É amiga de Sarita.
—Os filhos são tiranos hoje em dia —disse com a voz modulada e firme de quem sabe o que está falando.
—Os pais têm medo de impor limites e perder o amor.
—Amor que nada. Só amam a si mesmos.

Os Lens não perceberam mas filha se tornara mulher. O pai antes da mãe. Esperava um filho homem. Ignoriu
a criança pequena e da maior sentiu raiva. Na jovenzinha prestou atenção e ela demonstrou alegria com o súbito pai.
Um silêncio pairou de uma hora para outra.

No bar onde toma cafe e de noite uísque Georg ficou cismado com um colega que disse alguma coisa sobre as
“ filhas da temporada” .
— Eu disse que precisava do carro.
—Papai vai à zona de novo?
A cara de George se fecha. Se Michele falar assim de novo ele a rebenta. Mas ela fala a verdade, como eles
ensinaram. —Pode bater! me bate! me mata!
A senhora Lens interfere. O peso daquela mão. George manda a mulher não se meter. —Não ouviu o que ela
falou?
—Nada justifica a violência. Lembra de seu pai.
Ele lembra e odeia a mulher. Para isso desabafava! —E logo quem vem falar em família...
Michele sai sem que percebam. Meneia a cabeça e se afasta.

Na rua, algazarra. Na direção da turma o professor eatremeceu. Um riso contido na saudação. Evitou o olhar
de Michele e seguiu para a casa da diretora.
- Há uma forma de escapar do castigo.
No depósito dos produtos de limpeza, ela sabe o que fazer embora o professor continue dando ordens. Melhor
assim. Abrevia o desfecho e ele não tem mais o que dizer. Ela sempre ganha das amigas; o primo de Keshia uma cobaia
feliz.

Nos dias seguintes, ela sonhou. A lousa cresce e ele a segura quente enquanto lança de si e ela, estremecendo,
boceja.
Michele não se envergonhava. Dava graças por ter um lar e não ser maltratada como tantas meninas sem
chance de brincarem de médico, nas ruas atendendo a anúncios, trocadas por droga quando não por comida.
Violentadas por autoridades e caminhoneiros, viciadas em crack, grávidas, mortas. Michele sabia se defender.
Liana escorria pela toalha, os vira de longe. Tinha orgulho de Michele, a menina que fora um dia. Tinha
saudades. E agora.
Gerard viu as meninas arquejando no falar ininterrupto. A primeira tem os cabelos presos e enormes brincos.
A blusa tom sobre tom em pouquíssimo tecido. Nuvens continuam a passar. Quando o luar incide sobre a pele da
segunda, uma tonalidade escura e leitosa surge do meio do decote. Longos cabelos negros e a terceira. Vestido preto de
alças largas. As pernas próximas quando caminham se juntam. Destacando-se, reinou a presença de Michele captada no
limite do pudor sob a lua.
Está cansada dessa vidinha. Está ainda cansada, trêmula e fraca pela falta de sono na noite anterior.

Uma noite por mês fora da temporada Ikonya ficava em festa. Barraquinhas como uma quermesse. Música e
bandeirinhas. Georges convidou Rose mas ela estava com enxaqueca. As meninas iam na frente. Colares de lâmpadas
no pescoço da noite, cores do vento. Baticum tradicional das músicas de festas ao ar livre. Cabelos loiros se tornam
brancos. Um branco jovem e lunar, dramático. Fábio se aproximou de uma das barraquinhas e com voz adocicada fez
um elogio à mulher dos churros, tentando ignorar a vastidão do decote. Ela respondeu, dizendo que se chamava Sonia.
Ele sublinhava as palavras com sinais correspondentes. Foram dançar e Michele chegou. Ficou um bom tempo parada.
Depois se virou e saiu quase correndo pela noite estrelada azul, bebendo o refrigerante no gargalho após jogar fora num
rasgo o copo de papel com propaganda. Não passou um minuto e do outro lado sentado, na mesinha defronte da igreja,
estava o pai com uma mulher. Michele soltou um grito e tomou uma terceira direção. Droga, droga, droga. —Ah sabe
do que? eu vou é dançar.
—Melhor mesmo — disse Keshia. —Vamos?
No galpão onde dançavam há uma forte luz branca sobre elas e quando erguem as mãos dá a impressão de
estarem submersas nas cores noturnas. De repente Michele gritou que ia embora. —Deixa disso —disse Keshia. —
Vou sim não quero mais ficar.
Com suor pelo decote amolecido ela tomou a direção do estacionamento. Empurrou pessoas dançando mas
súbito desviou e continuou no sentido de Fábio. A mulher se espantou com a repentina intrusa pegando no braço que
julgava seu pelo resto da noite.
No caminho de casa, as cruzes sobrepostas se enraizavam no asfalto vindas dos postes segundo a velocidade
dos veículos. Tornará a esse caminho no dia seguinte.

Gerard se aproximou. Pergunta se pode passar no cigarro partilhado. Eles disseram que tudo bem, chegasse
mais.
Michele estava sentada nos calcanhares. As ondas nos joelhos. Pelinhos oxigenados reluzentes ornavam as
pernas amarronzadas. Ele segura a fumaça. Tem de subir e esperar Silvia. Keshia pergunta seu nome. Ele responde e
devolve a pergunta. Ela responde. Sorriram. Conversam.

Naquele momento, Georges procura Rose pela casa. —Viu onde deixei as chaves? —pergunta. Estão
sozinhos; ele a empurra para o quarto. Pede desculpas. Jura que a ama.
Seria diferente com outro?

Keshia quer ser arquiteta mas não sabe que tipo de arquiteto existirá quando for adulta. O relacionamento
entre homem e tecnologia é conturbado.
Ou pode-se chamar a isso conspiração. Basta olhar a pele rosada e o sangue espalhando-se discreto. Ele
escuta o ar após a palavra. “ Gerard” . —Tecnologia de ponta supõe pessoas de ponta; e não existem, Keshia, jamais
existirão.
Uma menina doce e intensa demais para sua idade. Intensa demais para qualquer idade.
Aos poucos se afastam do resto do grupo. Ela pinga colírio e oferece. Ele agradece e devolve o frasco. Os
dedos se tocam.
Viram primeiro luzes azuis. Giravam em torno de um eixo azul mais claro e das bolas luminosas surgem
notas de piano e depois um violino que vinha nas ondas. Ouviam as próprias vozes como se não fossem as próprias
vozes, como se estivessem fora de seus corpos. E, todavia, eram os corpos. Seus corpos, com absoluta certeza.
—Você então chegou ontem?
Ele começou a rir. —Não lembro —disse. O riso, ora crescendo ora diminuindo, mas sempre ali, fixo nos
lábios casados com os olhos vermelhos.
—Ontem foi quinta. Nas quintas-feiras acontecem as melhores coisas de minha vida.
—É um tipo de superstição?
Ela tinha estendido a toalha fina com que costumava se secar quando caía. Pôs ali a bolsinha de crochê. As
bolinhas prateadas devolviam um luar sangrento. O celular escorregou pela abertura. Depois a gambiarra de tocar as
teclinhas.
Tinham fumado havia uns cinco minutos e cada mudança de posição transformava o mundo. Ele se ajeita de
novo, com as pernas cruzadas, as panturrilhas na areia fria. Keshia tem trancinhas por toda a cabeça. Culminavam com
elásticos coloridos nas pontas combinando com o esmalte. Estava bastante maquiada mas só dava para ver isso bem de
perto. Quando falava franzia o cenho como se estivesse cantando.

Quando saía para encontrar Michele na praia, Keshia abaixou-se para beijar o avô que via televisão, viu um
par de sandálias debaixo do sofá e tirou as que calçava e colocou essas, continuando até a porta numa perna só.
- Você não para mais em casa, menina —disse o avô.
Mas as saídas da neta eram sempre para encontrar Michele, que, mesmo assim, quando ia a certos lugares,
preferia que a amiga não fosse. Para Keshia, estava tudo bem. Gostava de ficar em casa. Mas estava feliz por ter saído
nas últimas noites e por estar conversando com o rapaz.
Num passe de mágica, segurou um porta-fotos com divisões de plástico. As imagens desfilavam diante dela,
aureolada pela lua, e falava com desembaraço tal que Gerard não se surpreenderia se aparecesse alguém e dissesse
“ Corta” . Mas de repente se calou e ele não sabia se tinha sido realmente ela ou ele é quem se calara. Fez um esforço
e se alegrou por se lembrar.
- De um jeito ou de outro, você vai dar uma bela arquiteta.
- Mas sabe - disse ela, com o deleite do ventre revelado pelos olhos ardidos. —Às vezes me pego pensando
na escolha da Michele.
A amiga ganhava um dinheirinho, uma boa grana na verdade. Não dependia dos pais, que nem sabem que ela
faz isso, e está realizada.
Gerard perguntou o que Michele fazia.
Keshia disse que Michele fazia umas coisas na máquina da empregada.
- É uma máquina industrial, que o pai deu para Dona Sarita. E todo mundo sempre tem algum servicinho.
Colocar botão, zíper, fazer bainha. E ela é boa com isso.
Quando o sino bateu dez horas, Keshia e Gerard estavam diante do mar. Ela o olha com um olhar extensivo
como o das pombas.
- Sabe quem eu encontrei num ônibus municipal em Haktnak? - sem esperar resposta, Keshia completou: - A
própria princesa. De ônibus, imagine. Indo trabalhar.
Fez-se silêncio e depois, sorrindo, olhando-a nos olhinhos apertados, Gerard disse que ela era uma menina
muito madura.
- Imagina... So leio os jornais de domingo.
Gostava do que qualquer jovenzinha costuma. De dançar e paquerar; estudar e chocolate; de pensar em sexo e
projetar o futuro; festinhas e messenger. O site no GeoCities nada era senão um tipo de atualização diária como a que
Anne Frank consagrou. Fitas VHS ainda eram cinema.
E havia a inquietação. O desejo de se apaixonar e o medo de ter filhos. De não saber combinar as roupas. De
espinhas. Do peso. A vergonha de ser diferente e a ignorância quanto às doenças sexualmente transmissíveis. O velho
conflito de gerações.
Gerard a olhou mais demoradamente quando ela se distraiu com uma mariposa.
Mas do que realmente ela gostava?
- Adoro música e pintura. Minha mãe é pianista e estou começando. A mãe de Michele é pintora, faz quadros
lindíssimos. E você?
Gerard era muito ligado em tecnologia, amava computadores, trabalhava com computadores, inclusive em
casa.
Keshia perguntou quantos anos ele tinha.
Ele disse 28. Tinha 34.
E ela? - Dezenove.
Keshia tinha 16.

A equipe de reportagem saiu da cidade. Georges estará no noticiário da noite e no suplemento de domingo.
Estava muito feliz com sua mudança da metrópole para a cidade pequena, dirá na entrevista. Foi bom para fortalecer a
família. Criara uma menina com liberdade e senso de responsabilidade, o que seria impossível numa cidade grande.
- O pai de minha melhor amiga arranjou para ela estudar em Haktnak —diz Keshia, a voz abafada pelo
motor do carro da TV, que quicou por causa de um buraco no asfalto.
George não vai gostar nada quando souber que Michele se hospedou com Silvia. Puta que o pariu! Na casa
daquela vadia? Que tipo de mãe era a senhora Lens afinal?
- Silvia é uma mulher de bem, responsável, temente a Deus.
- As mulheres da Zona também.

Keshia conta a Gerard como o pai de sua amiga pregava a beleza da caridade tanto nas suas obras como nas
que aceitava bancar como editor. Mas ela própria não gosta de ler, confessa.
Gerard comprará o jornal na quente manhã de domingo. Diante do jornaleiro, levou a mão ao bolso de trás
para pegar a carteira enquanto analisava a foto que mostrava um homem moreno e entroncado de jeans e camiseta. Não
há garrafa visível. Estava com o braço apoiado na mureta da varandinha. Ali, depois de estender a rede, a senhora Lens
se acomodava no linhão como em uma placenta.
- Um dia te levo lá, Gerard —disse Keshia em meio a um sorriso de lábios e trancinhas.
O monte domina a paisagem. A praia noturna.

Quase madrugada. O tempo se firmara sem abrir. O casal —é o que parece para um carro que passava na
rodovia - procura em vão uma estrela na fumaça. - Seria bom a gente ser assim toda hora, sem efeito.
- A Michele está de olho em você - Gerard a encara espantado. - Ela se interessa por rapazes mais velhos.
- Ah, obrigado —riu ele.
- As meninas querem se provar, saber seus limites —disse Keshia. - Se elas podem seduzir um homem. Ou é
pela estabilidade financeira, pelo carro, para não terem de depender da mesada dos pais.
Ela suspirou. Seus seios adultos.
A imagem de Gerard não deixará que ela concilie o sono naquela noite. Tal qual um grilo para quem está
insone.
Michele se reaproximando diz “ Gerald” .
- Gerard —corrigiram Gerard e Keshia ao mesmo tempo.
- Gerard. Venha na festinha de meu aniversário.
Mas não esperasse muita coisa. Era apenas uma reunião para os amigos mais íntimos.
Ele se sentia honrado.
Elas riram por dentro mas até acharam bonito aquele jeito solene.
- Nos vemos amanhã então.
O sorriso meigo de Keshia se afastou com Michele.
—Ah! —lembrou Michele. - É a casa em frente ao parque de diversões, a das buganvílias vermelhas. Não
tem como errar. De uns cinco, seis metros, as sandálias no cascalho, Michele quase gritava. - É só perguntar pela casa
do editor. Todos conhecem.
George era muito conhecido. Todos gostavam de dizer que era um velho amigo.
Joana dizia a mesma coisa sinceramente, com orgulho.
- Sempre o amarei —repetia para as outras. —Sempre.
Sentada na beira da cama, ela olhava o nada além do retângulo da janela aberta para a noite quente. Tinha 28
anos que pareciam 40 e poucos. Estava magérrima, as olheiras enegreciam a cada hora, envelhecia um ou dois anos
cada mês. Talvez olhasse para o calendário à esquerda da janela, pensara o homem de terno cinza ao sair do quarto.
Uma data estava marcada com um círculo hesitante.
Em seu corpo nu respingou o mergulho espalhafatoso do filho da patroa de sua mãe e ela deu um grito.
- Vou falar para tua mãe!
- E você acha que minha mãe vai fazer o quê?
Ela ficou choramingando cheia de tristeza porque sabia que a mãe não podia mesmo fazer nada, mas quando
eu crescer...
Quando cresceu um pouco, na adolescência, leu o primeiro livro de Georges e depois todos, incluindo os de
outros autores que ele editava. Conhecia os projetos da editora e tudo.
Antes da peixada em que a mulher chamada Rose apareceu, andava fazendo roupinhas de crochê. Contava
histórias para as amigas, cheias de rosa e azul como as roupinhas.
Quando Gerard a olhar pensará como é franzina, como suport?
Era uma moça forte. Achava que podia superar qualquer coisa. Pelo menos até Georges sumir. Em menos de
dois meses, não tinha dinheiro para o apartamento e as amigas lhe disseram que aproveitasse, era um ponto ótimo, logo
se pagaria e ainda teria muito lucro, embora talvez não desse mais tempo de fazer tricô, nem na verdade ia querer fazer,
garantiram.
Mas no dia em que reviu Georges se arrependeu da decisão...
Ele chegara da capital com a tal Rose lá pelas oito e meia da manhã. Passaram antes no supermercado, que
era do mesmo dono da antiga mercearia, o único comércio de Celba quando o povoado se separou de Ikonya. Ele
colocou frutas e pães e frios na cestinha e antes de entrar na água chamou um caranguejinho de “ brother” . Disse que o
mar ali era sempre assim, raso e cristalino. Ficaram um tempão mexendo nas conchas e deixando os caranguejinhos e
lagartas cerdosas passearem nas mãos. Rose achava sexy mas perigoso, sempre ouviu falar de graves urticárias
causadas por essas espécies.
- São outras —disse George. - Megalopigídeos.
Depois ficou mais no fundo e disse para Rose ir ter com ele, assim aprenderia rápido a nadar. Ela
simplesmente foi, embora nunca tivesse antes entrado no mar. Depois saiu ajeitando a parte de cima do biquíni como se
nunca tivesse feito outra coisa na vida além de nadar e sair do mar.
Joana, que fazia isso o tempo todo desde menina, achou que ela levava jeito.
- Parece uma sereia —disse, chegando por trás de Georges.
- Sai daqui.
- Não saio. Gostei dela.
- Sai. Depois eu passo lá
Dois meses e três dias depois do casamento, Georges apareceu outra vez. Disse que voltaria a pagar o
aluguel, não queria que ela se expusesse. Ela disse não precisava, estava se virando. Ele não insistiu. - Mesmo assim
quero que você esteja disponível, não é sempre que eu posso avisar.
Um dia ela resistiu a fazer uma vontade dele, ou fez sem o entusiasmo costumeiro. Ele pensou quie era uma
espécie de desprezo; mas não. Só que ela perdera o ânimo para tudo. Sentia-se mal, fraca.
Quando a cidade estiver chocada com um pacto de morte, ela terá inveja. Se Georges propusesse, ela teria
topado. De certa forma, ele propôs.
Ele detestava essa nova Joana, choramingas. Como todas, gosta é de ser fodida e apanhar de seu homem;
depois fingem que são santas desviadas.
Um dia, ela entrou no quarto e deu consigo mesma sem blusa no espelho. Ficou olhando um tempo a sutil
elevação na barriga. Seu grito foi seco, surdo, escuro. Entre o esterno e as costelas, a inclinação não parece adequada.
Segurou a barra da saia e a levantou para se certificar. Meu Deus. O choro entrecortado lembra um cãozinho com medo
de trovões. Arrancou meias e calcinha com mais brutalidade do que George naquele dia (sabe porque foi quando não
estava precavida). As duas curvas de luz na parede atrás do abajur se afastam uma da outra e no caminho encontram os
cotovelos e o alto dos cabelos negros. Os seios tremem. A circunferência branca no teto bege se desloca num
movimento brusco de um braço. O corpo de moça se movimenta agitado e se curva e, no instante seguinte, o espelho
está vazio e ouve-se a cortina plástica do chuveiro.

George bebe a terceira dose enquanto faz contas e pesquisa na internet para atualizar as citações de seu nome.
Ouve uma cópia da entrevista. E esse pessoal nem sabe o grande amante que ele é. Rose sucumbira depressa e não é
para qualquer um fazer com que uma prostituta se apaixone. Eles nem sabem que as mulheres sempre pedem mais,
tudo, ou piedade.
De repente, olha para o teto. Grita. —Michele! Preciso trabalhar!
As meninas arrumavam as camas, rindo a cada frase, numa das quais se torna evidente o que a amiga estava
imaginando —era questão de oportunidade Michele avançar no motorista da editora.
- Isso não vai dar certo - adverte Keshia.
- As coisas sempre podem ou não dar certo; mas não dá pra não fazer o que se tem vontade por causa disso.
- É uma filosofia de vida muito perigosa - disse a amiga ao colocar com dificuldade a fronha no travesseiro.
Essa mordidinha no próprio lábio inferior é típica de Michele. Keshia empurra a cama de solteiro que veio do
outro quarto, trazida pelo tal homem, para junto da cama oficiala e fica imitando a voz do homem:
- Olhem como sou forte!... Olhem como sou forte...
Keshia levanta o travesseiro pelas duas pontas da fronha e desce na cara da outra. Elas gargalham e assim
ficam gargalhando um bom tempo.
- Pára, pára, cala essa boca.
E riam.

No mesmo dia, em Ikonya, olhos grandes acompanham grandes botões. Uma lógica nem tão passiva, densa,
úmida, feminina, escura, subterrânea. Rubra imobilidade de uma silhueta unida à outra, lenta. Cati sabe mas é como se
não soubesse que os pés descalços de um homem vistos de cima incluem calor de mata em relevo acidentado. Victor
está quieto. Poderia ser um filme. Sombras. Música de fundo calma, não triste. Logo Cati não está mais ali. Reaparece
por segundos e depois resta apenas a vermelhidão da sala vazia exceto pela blusa grossa sobre o fino hijabe.
Quando Victor tornou a vê-la ela estava deitada no sofá vermelho largada como um poodle e a cabeça caída e
e ao lado, um nível abaixo, ele estava estendido na parte de baixo de uma bicama. A poeira do aposento leva a crer que
não passou muito tempo depois que —as marcas no chão denunciam — foi arrastada até ali. Na parede oposta, um
pouco mais ao alto, uma estante sobre a qual falara o porteiro, dizendo que, se Victor quisesse podia ficar, caso viesse
realmente a alugar a quitinete. Era um pouco mais larga e um pouco mais alta do que a da sala e estava com mais
poeira porque o quarto não estava taqueado.
Ela está acordando. Talvez nem tenha chegado a dormir.
Victor puxou a caixa de papelão que estava à frente. Dentro, o controle remoto, de um tipo bem antigo,
branco; dois rolos de papel higiênico, um pano que podia ser de prato ou um guardanapo, e as latas de conserva e de
refrigerante, uma das quais ele pegou e puxou o anel de abertura fazendo com que o líquido transbordasse.
- Já acordou? —perguntou Cati.
- Não dormi. Hoje é aniversário da filha do patrão. Não quer vir comigo?
- Não posso - disse Cati. -Tenho de me apresentar na imigração.
Ela estava com um pouco de fome, ele também. - Acho que por isso também não dormi.
- Eu trouxe pão e queijo.
Olham-se direto de repente. Podem ver os olhos um do outro com clareza igual a do lado visível da lua, que
sobe e cresce.

A luminosidade das tardes havia sido resgatada, ou nasceu. A mulher aceitou cada sugestão do empregado
do marido. Ele era tão infantil e adorável. Tinha otanta idéia. Nos primeiros dias, ela evitou qualquer tipo de assunto
em que ele pudesse de súbito disparar a pergunta “ Quantos anos você tem” . Depois, não teria mais ligado, porém ele
nunca perguntou.
Nem mesmo quando os braços de Gerard estavam abertos num ângulo de noventa graus, uma das mãos
segurando o pescoço da mulher. O sulco medial continuava na linha alba, formando um animal novo, uno.
Ela fala pouco. Às vezes não fala. Então, quando quis falar com tanta solenidade, ele pensou o pior, mas era
apenas para dizer que ele consultasse um médico conhecido dela. Fazia anos e anos que Gerard não ia.
Com que então ela se preocupava. Mas no fundo ele acreditava que passados os meses entre a marcação e a
consulta, ela teria se esquecido. Mas não. E teve mesmo que ir.
Chamam-se “ pacientes” porque olha, pensou, é preciso muita. Antes de entrar no consultório, passou por
umas tantas atendentes que, se dependesse delas, estaria curado (pensava em exacerbação sexual, não em bobagens
como esquecimentos). Uma judiou tanto mais tanto que ele pensou “ Eu mereço” . E murmurou entredentes quando ela
saiu da sala: - Estou pagando...
Esses exames preliminares nada acusaram.
Dentre as queixas, como chamavam —o entrelaçamento mórbido dos nervos, a rigidez das faces, os tremores
que incapacitavam para o trabalho - e, Ah doutora, ia esquecendo, agora a abstinência provocou algo diferente: não
consigo levar um raciocínio até o fim, começo a frase e no meio já esqueci sobre o que era.
- Mas lembra de que desde a adolescência sofre a síndrome de abstinência.
- Não dá pra esquecer isso —respondeu Gerard. —E as coisas remotas são mais vívidas.
- Por exemplo?
- Desculpe... De que mesmo estamos falando?

Não perguntará pela casa de ninguém. Sairá cedo e descobrirá sozinho onde fica a casa. Aproveita e assim
conhece a vila. A cadência do mar envolvia a todos no abraço da noite. Voltou para a pousada. Deitou-se. Ainda rolava
de um lado para outro quando amanheceu.
O pátio interno da pousada retém a noite, impressão seguramente provocada pelo jantar. Comida abundante a
que não estava acostumado, pois nunca jantava, só lanchava bobagens que não davam o sono que cortaria o barato de
sair à noite.
Rose estava inquieta e perdera a última coisa que havia restado, o sono. Ficou andando a esmo no terraço,
pisando o tapete amarelo de flores de acácia como se fosse ginkgobiloba. Desde que Georges nunca está em casa, que
anda com outras sem fingir inocência —ultimamente com essa talzinha —a senhora Lens não tinha desejo senão de
definhar como de fato definhava.
Gerard apertou os olhos enquanto se encolhia debaixo das cobertas. Conforme despertava, o universo ia se
renovando na consciência da hora em que estaria na casa de Michele. Uma menina atraente. Simpática, mas nem tanto.
A simpatia de Keshia decerto os faria irmãos, como costuma acontecer. Ela não teria desejado isso. Mas Michele
sempre leva a melhor com os rapazes e ela estava mesmo engordando, não sabia mais o que fazer a respeito. A senhora
Lens costumava dizer “ Não Keshia, imagine, você está linda” —mas a senhora Lens é muito gentil. Não dá pra
acreditar em tudo o que diz com um belo sorriso nos lábios.
Gerard pensa que o sorriso de Michele sem dúvida lembra alguém.
Para Rose, para quem será um motivo, não importará que idade tenha o rapaz da pousada agora ou daqui a
quinze anos. Sublimação: por isso começou a pintar. Não imaginara chegar tão longe com a pintura ou com o amor.
Imaginou o desdém com que Silvia trataria esse tipo de relacionamento. Amava Silvia. Admirava-a. Seu
coração sentiu-se feliz quando ela ligou. Alegrou-se por sua disposição de ir a Celba. Era bom conversar com ela. Mas
cumpria guardar segredo. Aliás, não estava certa se já não tocara no assunto ao telefone. Depois pensou nao havia
sequer um assunto.
-Leite! Olha o leiteiro!
A imagem imediata é a de uma jovem de cabelos cacheados. Usou bobe para conseguir esse efeito. Leva
pendurada ao pescoço, por meio de fita grossa vermelha de cetim, uma caixa retangular de madeira cujos lados têm
cerca de seis centímetros de altura. Rose sabe porque falou com ela quando o efeito da bebida começou. Era réveillon.
Uma festa temática. Foi convidada por um uma espécie de assessor do embaixador, se bem se lembra. Um cara de todo
desagradável. Então começou a beber e logo ficou claro que não estava acostumada.
Nos anos quarenta a mocinha teria feito sucesso. Fez sucesso ali, na última década do século, com sua
fantasia. Além dos cigarros, vendia chocolates e venderia o que mais colocasse na caixa. A fita era vermelha, brilhante,
e a saia de tule rodada e cheia, combinando com seu rostinho. Quanto mais se lembra, mais Rose fica confusa, porque é
uma noite esquecida. Lembranças se encaixam como peças de um puzzle que sombras de sonho, chegando do nada,
apagaram.
Para a senhora Lens não era importante decifrar o mistério pois as coisas que se mantém num plano
indefinido não exigem atitude. O que não se define não exige que mexa esses pés que entram em casa, que tudo o que
fazem é entrarem e saírem de casa por essa porta segura. Fez um último esforço desleixado para ligar a mocinha ao
grito do leiteiro. Vendedoras de cigarro, até onde sabe, não gritavam nos cabarés.
O homem que aparecerá depois na festa continuará, graças a Deus, sem nome e envolto em sombras. Foi não
mais que uma troca de olhares, pensou, quando na verdade nem isso, pois ela tampouco se lembra do olhar.
- Obrigado, Sr. Matias! Bom dia!
As luzes amarelas pelo basculante do prédio ao lado da embaixada e o cheiro do rapaz surgido do nada e sua
gentileza como quem não estivesse fazendo o que estava fazendo. Cheiro de homem sem a quebra de tensão dos
desodorantes. Misturando-se às luzes do caminhão da empresa de energia cujo motor foi substituído pelas vozes dos
eletricistas. Reconstituíam a rede. O estranho levou a mão ao seio. Não o esperava tao acolhedor. O caminhão religou o
motor e ela teve uma vaga noção do frio do granito e das escadas para baixo - e se alguém subir? Agora é mais fácil
torcer para que não aconteça do que parar.
Quando ela colocou o leite na mureta da varanda, estava chuviscando e Gerard caminhava na luminosidade
baça da manhã.
- Bom dia - disse Cronelin.
A bruma o envolverá quando sair por essa porta e entrar na luz do dia com direção à casa de Michele. Os
homens estarão em seus postos na obra da pousada. O mestre de obras e os pedreiros e serventes e também os
carpinteiros, bombeiros e ladrilheiros e, claro, os pintores. Vai ficar bonito quando acabarem. Será um bom lugar para
se viver. Keshia e Michele virão visita-lo; gostarão do lugar; virão ser aconselhar e sentirão a paz que não sentem em
suas casas.
Batida pelo sol campestre dramática a casa parecia maior. Numa casa assim se encontrou pela primeira vez com
Veronica. A mulher do banqueiro disse que não era sem-vergonhice, ela não devia ter casado e restou esse arranjo.
Num único instante, caminhando para a casa do aniversário, ele entendeu o quanto a vida tinha de mudar com sua
mudança de cidade, o mundo devia continuar crescendo e ele junto. Quis não pensar na mulher e tentou lembrar-se do
rosto de um dos rapazes da noite anterior na praia com Keshia e Michele. Pelo menos o que os apresentou. Precisava de
um parceiro de xadrez. Caminha integrado à paisagem. Os reflexos do mar na manhã. Era como se sempre tivesse
vivido ali, como as árvores.
Na véspera da viagem para Celba, a mulher o esperava na casa de campo. O rosto muito pálido mais pela
maquiagem de alto contraste. Os olhos negros de sombra pesada nas pálpebras e abissal rímel nos cílios puxados pelo
lápis gotejavam. Cara de boneca triste desenhada por uma criança. Em torno do pescoço uma echarpe de seda
alaranjada. O vestido caia como cairia o lençol de um falso fantasma ainda que o tecido seja escuro e nem tão leve. A
luz no corredor parecia vir dela mesma e misturava-se à palidez como uma nuvem.
- Não podemos continuar assim - disse Gerard. Precisamos de um pouco de paz.
Ela o encarou severa mas não zangada. O branco dos olhos está vermelho. O nariz entupido e ela funga.
Ele a olhou. Ela estava com a cabeça levemente inclinada para a esquerda. Cabelos espessos como um gorro
sobre o olhar que atento escutava. As mãos para trás em sinal de respeito à dor, apertando-se uma à outra pelos dedos
grossos e suados. A janela atrás dele dá para uma escola que o recreio tornou insuportavelmente ruidosa. Ele virou o
rosto como se quisesse entender as vozes infantis. Suspirou e, quase numa extensão de seu suspiro, a voz da menina
entra pela porta que acabou de bater. Ambos se viram em direção a ela, que lhes sorri. O uniforme não estava visível
sob o casacão, sequer a gola, oculta pelo cachecol. Quando o elevador se fecha, a sombra da menina perde a nitidez
embora permaneça bem recortada abaixo dela, como uma cidade duplicada nas águas do rio que a corta.
A corridinha é sentida no andar de baixo. A menina passa pela mãe e estende a caixa a Gerard. “ -É um
presente” , diz ela. Mas as mãos dele continuam para trás, como que presas.
- Um presente?
- Sim - ela responde, e lança um olhar suplicante para sua oferta.
Por cima do ombro da menina, Veronica olhava a caixa com expressão indecifrável. Gerard repete “ um
presente” com voz monótona e impassível. Por fim as mãos se libertam em direção à caixa e a esquerda sobe ato
contínuo ao rosto da menina, num afago. A textura dos cabelos é a mesma da mãe. Ficam assim pelo menos um
minuto.
Então a menina faz sinal de quem quer contar algo. Ele se abaixa e lhe oferece o ouvido. Ela aproxima os
lábios e ele escuta: “ Meu pai voltou” . Os dois olham para o vozerio à janela. Um dia claro como só o sol de inverno.
- Eu sempre soube que esse dia ia chegar - disse a mulher. - Não achei que fosse doer tanto.
- Não sou promíscuo.
Ela não respondeu e esse silêncio se misturou às fachadas altas das casas de tijolos aparentes vítreas e
metálicas, brancas. O bramido do mar se intensificara depois da ressaca. Um dos rapazes, até onde se lembra, era louro
e tinha jeito de surfista. A cabeça da mulher está levemente inclinada para a esquerda. A janela da parte oriental dava
para a rodovia. Ela diz que ele amanhã estará no ônibus passando por ali.
- Talvez eu venha e fique na janela para te acenar —disse ela. E, quase sem interromper a frase: - Acho que
ele sabe... Acho que disse para ela.
O último vizinho que disse a Gerard sobre a localização da casa foi muito preciso e agora não há mais como
errar e Veronica desapareceu quando surgiu o muro vermelho com o número. O portão de madeira com jeito de lar. As
buganvílias nas paredes. Uma atmosfera feérica luzindo nos cachos das flores e nos pardais adejando após se banharem
na areia e os galhos verdes modificavam a cor da parede de segundo em segundo.
Ele suspira e a voz de Sarita soa com pequena diferença em relação às palmas. Ela sorri. - Entre, por favor —
diz.

Michele jogou as sacolas no sofá e tirou a jaqueta. A inclinação do sol riscou a cama numa sombra fina
subitamente sumindo no clarão que se seguiu. A mão delicada e firme num inchar de veias puxou a cortina para
vislumbrar coisa alguma e em seguida fechá-la de novo trazendo de volta a ondulação da cortina rente ao assoalho.
Dali Michele costuma admirar as rosas no meio das primaveras vermelhas.
Gerard viu a janela iluminada no sobrado. George escutou os passos da filha no quarto de cima. - Sobre o que
você queria tanto falar, Michele? —perguntou Keshia.
- About men.
Gerard via os movimentos do pequeno vulto. Primeiro a silhueta e depois o corpo pequenino em tom sobre
tom luzente nos ombros. Michele desligou o telefone e chegou ao parapeito olhando pela abertura o movimento na
praia —um Chevrolet amarelo, o caminhão do gás, um personagem masculino avançando a passos largos e
cronometrados pela estradinha e cabras passando por ele e ele por um momento perde as pernas na mancha
esbranquiçada. Ela nem dormiu pensando naquele rapaz, comparando-o a seus amigos. Ajoelha-se na cama, à janela. O
homem sai pelo outro lado, as pernas definidas de novo, contornadas de ouro contra o sol
Dedilhou a franja com dedos hábeis. O corte curto do cabelo contorna dois círculos, um maior; uma linha os
liga e esboça a orelha. A unha brilha em verde quando coloca o rímel no pincel. Desviou os olhos do espelho para a
escada. O pai passa dizendo alguma coisa que ela não entende. Ela responde com um murmúrio que ele não entende.
Ela ergue o indicador e aponta. A ponta desse dedo toca o meio do lábio inferior e tudo em que toca vira luz.
- Devo ser charmosa na festinha, pai?
- Não - respondeu ele. - Seja apenas você mesma.
Os dois riem juntos. Não sabem exatamente do que.
Ela balançou os ombros e onde estava preso o vestido caiu. Não acredito, ele está olhando para meus seios.
Então ela prendeu o ganchinho sob o coque.
George subiu, os passos pesados ecoando na escada. Ela acompanhava com os olhos e a abertura bem
desenhada dos lábios era pequena. Depois sentou-se na cama, à luz do banheiro. O vidro da janela a refletiu. Abriu o
presente quadrado e ficou balançando a cabeça com um sorriso. Ao lado da assinatura redonda no cartão, desenhada,
havia em caneta verde o desenho de um rosto chorando.

Quando perguntarem Gerard saberá dizer algumas coisas como o tempo que se passou desde o momento ali
parado em frente ao portão. Faz sete anos. O mar quebrava na praia cinzenta. Porém não saberá dizer o que fazia ali.
Tinha tocado a campainha e esperava ansioso, quase nervoso, que viessem abrir (Sarita virá). Um rapaz e
duas moças conversavam completamente vestidos —calça comprida, camiseta e tênis - naquele típico compasso de
espera, com expressão correspondente de quem participará de um momento essencial na historia do mundo de quem
esta para entrar em uma festa. Ergueram a cabeça sem qualquer sutileza e ele devolveu olhar, sem desafio. Não se
lembram dele nem imaginam que tipo de relação ou parentesco pode ter com Michele. As meninas olham mais curiosas
do que interessadas, até porque pode ser um tio.
- Mas, pensando bem —disse Gek —que mal tem olhar, mesmo que seja?
Quando ele vinha da pousada no trecho por dentro da água a barra da calça começou a pesar e ao dobrar o
debrum ele tonteou ao se por de novo ereto. Vinham na sua direção as duas apanhadoras de conchas, muito queimadas
de sol, exuberantes.
- Viu que corpo horrível? Ela se acha muito gostosa, mas está cheia de celulite.
Cerca de dez e meia da manha, quando o celular registrava mais uma ligação de casa, a senhora Lens tirou o
vestidinho pela cabeça e entrou na água. Saindo, deu com o cachorro do vizinho, que começou patear a espuma e a
barriga de Rose. Ela riu e disse “ Não, não” , pisando a areia endurecida. - Mas ele é tão fofinho, eu sou tão fofinho,
Meus Deus - diz, apertando o focinho do animal.
Ela mergulhou e nadou um pouco no sentido do fundo e fez a volta aproveitando a onda num jacaré
Levantou-se da espuma e saiu do mar. Pôs o vestido e recomeçou a caminhar no sentido da pousada. Procurou-o pela
aglomeração formada em torno do telefone. A princípio dissimulou a busca mas logo simplesmente vasculhava, sem
maiores pudores. Na aglomeração de jovens para lá e para cá, falavam alto.

Ao voltar, continuava seu lento caminho ao longo do qual por um tempo suas pegadas estariam; seriam logo
desfiguradas por outras e outras e à noite a espessa areia registraria de seus pés não mais que a vida de sua existência,
um amontoado disforme como sua visão de qualquer coisa.
Era medíocre, nada sabia nada acerca de seu trabalho. Sentiu vergonha de se achar artista e falar em exposições e dos
elogios que recebia. Se havia algo que admirava numa pessoa era a competência. Ficava embasbacada diante de uma
caixa de banco ou de uma atendente no comércio. Essas sim eram artistas.
Se ao menos o tivesse visto. Teria dado decerto outro rumo aos pensamentos. Mas não. Ele usava óculos? As
pernas eram compridas? Os ombros realmente largos? O quão grossas as coxas? Peludas? Tirou de novo o vestidinho e
lançou de qualquer jeito na areia onde aterrissou sem peso. Correu e mergulhou, demorando quinze segundos para sair
mais à frente numa explosão de ar e cabelos que antecedeu uma braçada firme, outra agora. Começa a nadar em direção
ao fundo.
Daqui dá para ver caso ele apareça.

Gerard carregou pelo trajeto os assuntos possíveis para conversas de festa. Era assim nas suas idas ao
playground do prédio de sua infância. Analisava as brincadeiras dos amiguinhos pela janela antes de descer e só descia
quando decorara cada movimento e cada expressão e as frases após cada expressão e movimento. Solitárias tardes de
sua infância.
Primeiro pela terra batida e depois pelas ondas levou um tempo tentando mas não conseguiu se fixar em nada.
O reflexo na montra brincava nas cores da frutaria Deteve o pedal e com um tranco a corrente girou no
vazio. Está ereto e olha para frente de um nível superior. Segura o guidom com autoridade. Chegou a sorrir, o que
indicava que chegou a sonhar. Retoma o sorriso quando Michele o cumprimenta.
—Oi! —exclamou ela. —Já chegou!
Cedo, parecia.
—Não, imagine, tudo bem, assim tem mais tempo pra a gente se conhecer.
Beija-flores nos jardins e bentevis em jequitibas-rosa. Vozes e motores, cães. Toda a palpitação da manhã
subindo para o meio-dia. Mulheres na rua cor de terra.; braços fortes de donas-de-casa com sacolas de compras.
Testemunhos da nova realidade.
Viu meninas de bicicleta e Keshia entre elas. Depois alguns rapazes, espinhas no rosto e corpos sovados.
Surfistas úmidos chegados de outra vida. Aproximou-se da menina que parecia um tipo de líder e se forçou uma
iniciativa.
—Sim —respondeu Sara. —Moro naquela casa —apontou. —Somos amigas desde que cheguei.
—Sim, me enturmei rápido. Você também vai, fica tranquilo.
Tudo se tornava familiar e ele se acalmava e a mulher se aproximava sem que ele a reconhecesse.
Alguém diz que pena que o mar estava tão pequeno.
—E aí, Michele? — disse outra voz masculina. —Vai pegar onda depois do almoço?
Ela estava pensando em ir sim, no monte.
—E aí? —saudou Fabio.
—Grande Michele! —disse outro.
Como ela se sentia com dezesseis?
Mais velha.
Estava linda, disse Keshia.
Michele sorriu e virando-se cumprimentou outro recém-chegado. —Oi, Beefy —disse ela.
- Feliz aniversário, Michele! E aí, muita onda?
Para uma bodyboarder como ela, sempre tem.
Vocês é que são felizes, bodyboarders, disse Fabio. —Felicidade não é uma onda —replicou outra menina.
Fabio relanceia os olhos para seu decote.
—Felicidade é morar em Celba.
Eduardo só podia estar brincando. Todos riram com facilidade que espantava Gerard. Um movimento
redondo move um saiote para os lados e a mão toca o corpo e se recolhe. Era notável a semelhança de um dos rapazes
—o que estava junto às escadas quando houve a queda de energia —com o gerente da pousada.
O homem, na noite anterior, olhando para todos os lados, de passagem recomendou que aquele problema com
o terceiro terminal fosse logo resolvido.
- Não se preocupe —dissera Gerard. - É um erro 210.
- Que me importa o que seja? Conserte.
Não havia teclado de reserva no almoxarifado. Ele acabou de ver alguns numa estante da casa de Michele,
logo acima do inesperado violoncelo. O professor a havia presenteado na época em que a idéia era seduzi-la de formas
convencionais. O babaca.
Quanto ao violoncelo, Keshia explicará que era da mãe de Michele, que começara a aprender antes de se
tornar pintora.
Todo homem é igual. Inclusive o pai dela. Keshia jamais diria isso na cara. Tinha medo de perder a amiga e
as perspectivas das tardes no casarão; e de ser injusta. Sentira o toque da mão do primo. Pode ter sido casual e quem
acreditaria se dissesse — ela, a gorda —e ele o primo bonito e estudioso.
Michele usou um tom de vitória e liberdade para dizer que ia estudar em Hatknak no próximo ano.
Ela ficou muito sofisticada para uma vila de pescadores, argumentou alguém.
Gerard pensou no pai dela. Não deveria ser tão mais velho. Compartilharia vivências. Quem sabe gostasse de
xadrez. Pensava a respeito quando a viu...
A senhora Lens arrebatou mundos ao caminhar pelo pequeno trecho para que servissem de passarela.
Estremeceram. A respiração em suspenso. Suas próprias vidas.
—Oi, senhora Lens !
O cumprimento de Keshia ecoou em Gerard. A sala é escura e fria, acolhedora. Os cabelos lisos e limpos da
mulher. Multiplicava-se nos ombros dela uma energia cheia de remorso. As linhas dos muros muito brancas por causa
da luz do meio-dia. O beija-flor toca e toca seu bebedouro vermelho. Ele lança um olhar extinto. Grossura de lábios
rubra de zínias. Ela vai falar. —Oi, meninas!
Silenciosos os passos mal tocam o passeio sinuoso.
Ele deixa os braços esticados ao longo do corpo. Suas mãos tremem. O sol a pino e a divindade seminua
vinda de um sonho que se confunde com o mar misterioso.
—Ainda nem começou a fazer o almoço —disse Michele não tão baixinho.
Num mesmo olhar Rose examinava o rosto de Gerard, o jeans, os sapatos de camurça, a camiseta de malha, a
mão grande quase tocada pela mão de Michele —então é isso?
Os outros em torno com caras sonsas. Beefy sentou e colocou os braços nos braços da espreguiçadeira de
alumínio. O tecido quadriculado é áspero.
Passado o primeiro impacto, Gerard sentiu o sangue vivo correndo como culpado da cena do crime. Como o
pecado nas veias. A boca seca, a cabeça dolorida. A aura de um derrame deve ser assim. O pai de Michele não é mais o
parceiro de xadrez; se fosse vivo, era o rival. Ela disse a casa do editor, como quem fala de alguém vivo. Talvez fossem
divorciados.
—Meu pai chegou. Está uma fera com você, e com razão.
—Tomo as minhas próprias decisões —disse Rose. A filha teria de se acostumar —Seu problema Michele é
ficar tempo demais sem fazer nada e daí sobra tempo para cuidar da vida dos outros —Gerard ouvia, encantado. As
coxas da mulher são grossas, musculosas, não demais. — Você é minha mãe, não “ os outros” —disse Michele. De
repente, ela se lembrava. Quem dera se lembrasse todo o tempo —disse a senhora Lens. —Quem dera me respeitasse,
sobretudo na frente de seus amigos.
Era ele um amigo dela? Não faz sentido. Parecia tão sóbrio, centrado, respeitador...
Keshia interrompe: —Senhora Lens, esse é o Gerard.
É claro que é. A postura ereta, a serenidade, a certeza dos que sabem sobre o que estão falando; mas ainda
não falou. Um amigo das meninas, então? Um pervertido? Há tantos desse tipo hoje em dia, homens feitos que andam
com adolescentes e aí dizem que amam uma dentre elas quando o inevitável acontece. Ou Michele tão nova é mais
madura que mocinhas de sua idade? Ora, a maturidade que eles querem... Não, ele não. Não com aquele olhar gentil e
tímido, sem subserviência.
O aperto de mão da mulher permanecia na mão de Gerard, sino que continua vibrando. Confessa o que não
deveria ser confessado. As consciências arrebatadas, as musicas lentas que deixariam de dançar, o banho de mar a dois,
as viagens, a emoção erótica, o carinho, a amizade —tudo estava no contato das mãos.
Um trovão se arrasta circunspecto no ar.
Ela estava parada diante dele no segundo do trovão. Uma experiência extrema, um limite, um modo drástico
de sobreviver.
—Não reparem a bagunça, meninos —disse. Mas bagunça é plenitude de intimidade, pensou Gerard.
—Você não devia fumar aqui, Eduardo.
—Eu não devia fumar em lugar algum, tia Rose.
O espelho mostrava Gerard sem que ela precisasse olhá-lo diretamente. George sempre foi eficiente nesse
tipo de coisa. Decorar uma casa. Gerard constrangido havia se levantado como se os pensamentos estivessem ao vivo
para o mundo. Anos depois contará para a médica como se tivesse acontecido com outra pessoa. Descreverá o quadro à
sua frente assim que se levantou sem ter precisado se aproximar para ver os detalhes —a textura da sombra e o olhar
temeroso da menina. Falará da resignação ou medo de quem está à espera. Falará se si mesmo esquecido que a senhora
Lens contara sobre a compra da pintura.
—Foi em Oslo? —perguntara ele. —Não —ela riu. —É uma reprodução muito básica. Veio enrolada em
papel couchê sem moldura. Quase um pôster. O original é de chorar; esse é só decoração mesmo; o que no fundo faz
muito sentido.
A voz da senhora Lens é musica.
—É uma nudez em nada ofensiva, pelo contrário. Traz coisas boas ao coração.
Outro caminhão sacode no asfalto defeituoso diante da casa. Um casal vinha do alpendre e se desamassava entre
as manchas de luz. —Oi, Senhora Lens —disse a menina. — Oi, Gek. —Oi, senhora Lens. —Oi, Larousse. Como vai
sua mãe?
Larousse é um rapazinho adorável do tipo que as mães querem para filho ou genro e as mulheres para marido
—não para amante segundo o novo entendimento de Gek.
Fez dezoito anos havia duas semanas. Era disputado pelas empresas de tecnologia da região. Atravessava as
noites na internet e dormia o dia inteiro. Trabalha agora com processos computacionais que otimizam a informação. —
Não, não tem nada a ver esse cara —disse para Sara, os dois olhando Gerard. —Nada a ver. Tem de ter o diploma ou
no mínimo estar fazendo a faculdade.

A silhueta do monte discernível quando Gerard desviou os olhos para a janela. A descida de sua chegada por
um ângulo lateral. Grandiosidade de Deus e pequenez dos homens. Com a frequência das visitas à casa de Rose após as
viagens a Haktnak (trará material —pincéis, trinchas e brunidores) perderá esse espanto. Na páscoa, terá se tornado um
costume semanal. Coincidia sempre a senhora Lens estar sentada na borda da piscina sempre com os braços cruzados
sobre o alto das coxas como a “ Puberdade” de Munch.

—Olá, muito prazer —disse ela estendendo a mão para Gerard como quem diz uma coisa qualquer a qualquer
pessoa. —Você é daqui de Celba?
O assoalho reluzia sob a mulher. Ao longe ronca a tempestade. No trovão as palavras. Muito prazer.
Só agora escuta a música que tocava quando entrou. Está com leve taquicardia. Tocou o vão da garganta com
três dedos de carícia. Dó. Lá menor.
George pergunta onde a senhora Lens esteve, se é que não a incomoda por perguntar. Meu Deus, de onde
saiu esse homem? Ela responde que o melhor lugar para estar num dia lindo assim era naturalmente a praia e não ficar
sentado nesse sofá encardido atrás de jornais que mencionem seu nome. —Você devia ir —disse ela para um homem
que não conheceu quando o conheceu nem estava com ela quando se casou.
O charuto recende por toda a sala. A senhora Lens tossiu.
—E o almoço de Michele?
Rose caminhou até a pia. —Michele não sentirá fome tão cedo, está entretida com as amigas.
—Mas eu também estou com fome!
Ah...
Perturbou-se porque não era a voz de um inimigo. George havia desaparecido e surgiu o jovem e promissor
crítico literário, seu primeiro namorado. A voz se tornou o sussurro na noite da embaixada, quando era noiva, quando
era virgem, quando não era George (a única vez que não).
Apoiada na pia, as mãos na quina úmida. A primeira vez que George teve oportunidade, quando no Natal
ficaram a sós na hora tirar o peru do forno. Não uma carícia enlouquecedora mas Rose permitiu. Aquele rapaz
independente poderia logo levá-la e ela não teria mais de dar satisfações aos pais. Quem sabe se estabelecesse por si
mesma com a música ou a pintura. Se tivessem problemas conjugais, sairia do casamento sem depender de pensão.
Ao toque dos lábios de George, deixa de pensar. Sente-se segura com os pais na sala. Tiveram de parar mas
foi um primeiro contato. A senhora Lens passa as batatas que acabara de descascar para uma tigela e junta duas
colheres de margarina e uma de fermento e um punhado de farinha de trigo. Havia sido despida e era deitada sobre a
cama. Obteve a brandura desejada da massa depois de passar de uma para a outra mão e com as duas para o prato. Não
tem jeito. Não consegue fazer o refogado como a mãe. Com George está não apenas livre mas apaixonada. Há reflexos
nas azeitonas e a cor da salsa está viva. A senhora Lens seca as mãos no pano de prato cujo bordado jamais terminou,
gritando de dor e de prazer. George vira para o canto e dorme.

Nesse mesmo dia do aniversário à noite depois da chuva a lavadeira veio pegar a roupa suja e Gerard
perguntou o nome dela. Ela respondeu e ele perguntou se ela lavava a roupa de toda a cidade (repetirá para si mesmo
depois “ Sônia, você lava a roupa da cidade toda?” , vermelho de vergonha). Como se tivesse sido a pergunta mais
normal e cabível do mundo, a moça deu sem problema a mais simples resposta: Não de toda a cidade, mas de muita
gente.
—As dos hóspedes do hotel, as do hospital, as de famílias maiores, como os Lens?
—Os Lens não são uma família grande, são só os três mesmo. Hospital? Eita! É uma empresa que lava! Mas
as dos Almeida, dos Rocha e do Lens sim sou eu quem lava. Às vezes pego roupas de hóspedes do Grande Hotel.
Quero dizer, nós, porque minha irmã me ajuda. Trabalho lá de arrumadeira nos feriados.
Pensando ainda, ao vê-la de novo, nas construções “ sou eu quem lava” e “ não são uma família grande” ,
ele a beijou na segunda vez que ela veio. —Por favor, vou ser despedida... - Teremos cuidado.
Ela obedeceu e dormiu logo e profundamente enquanto ele abria a trouxa e procurava a blusa que a mãe de
Michele usava quando dançaram. Guardou o cheiro. Depois se aproximou do velho piano e seu toque na guarnição
lateral foi uma carícia. Ao se virar para a janela, outro sino tocou em algum lugar.

Deixando a comida em repouso, a senhora Lens foi para o chuveiro. Quem pode subsistir com esses nervos?
A calcinha sai como se não quisesse mas se rendendo passa pelos mundos fúlgidos de tons e semitons. Gerard engole
em seco. Era mulher casada e mãe de uma amiga.
A luz filtrada pelo basculante. Som de pássaros tão perto, estão tristes. Por que alguém usa uma atiradeira? O
corpo do pardal jazia ontem no chão de terra batida. A mae está mesmo louca. Fazer velório pra bicho. O comentário da
filha sumiu na ducha.

—Olha —disse Michele. —Conhece este?


O rapaz olhou a capa e ouviu os primeiros acordes e os gritos do banheiro.
—Quem, por Deus, pôs “ Yesterday” ? — a voz da senhora Lens ecoa num tom desconhecido dos convidados. —Já
disse que não colocassem esse CD!
Ameaça no banho levar a mão mas recua. Não sabe o que fazer com a lembrança de que os Beatles eram
agentes. Diga que estava bêbada se isso a conforta. Poderia ter ao menos um nome para lembrar, um telefone para
quando se separasse de George. A mão está ali mas para se proteger. Diz não. Por favor pare. Mas não tem volta. Entra
numa região de sombras. As pernas tremem na água. Não acreditava nem no ontem nem no amanhã e o hoje é um
detalhe angustiante.

Ele ficava contente quando tinha lembranças nítidas. Queria logo partilhar com a doutora. —Eu ouvia o
chuveiro mesmo de tão longe —dirá quando a médica repetir pela enésima vez a pergunta.
A água escorre pelas costas, entre as coxas. Ele gostaria de ser a água mas dirá apenas: —Sim, dra. Lara. Eu
me lembro de uma festinha, um almoço de aniversário de minha esposa, quando éramos solteiros. Lembro da roupa que
ela estava. Lembro da música que tocava. Lembro que choveu.
- Está vendo? —disse Lara. —É o poder do amor.
Gotas impetuosas, grossas. Uma ducha excelente. Estar debaixo de uma ducha assim é estar na tempestade.
Descobriu há uns cinco anos que Georges tinha saído com uma mocinha da zona e ficou sob a chuva forte, chorando.
Gotas grandes, maiores, sólidas. O banheiro é verde, suas costas rosadas e fortes.

Cotumava ser arredio a festas. . Estava num quarto de hotel no dia em que completou trinta anos. Um vulto
de mulher contra a janela. Movendo a cabeça, ela muda a luz da tarde. Está nua e a nuca a revela. — Quando casei, eu
tinha trinta anos —disse a mulher. —Era antes do banco. Mas ele tinha algumas empresas.
Ele se aproximou e ficaram juntos apoiados no parapeito. Um homem lá embaixo interrompe seu caminho
para apanhar o embrulho que a moça de azul deixou cair. Inclina-se com a reverência da adoração. Sou eu.
Tarde agradável. Nem fria nem quente. A dimensão onde calor e frio se estabelecem substituída pela ausência
de temperatura dos sonhos. As plantas na varanda têm o verde indizível dos sonhos coloridos que indicam a estada em
outra realidade, não a manifestação natural do subconsciente, em preto e branco.
A mulher sai da janela, procurando alguma coisa. É morena. Asiática. Dir-se-ia bonita. Uns 35 anos. A toalha
branca com o símbolo enrolada sobre um resto de bronzeado adolescente. Tomará uma ducha.
Dizem que quartos de hotel são impessoais. Não é verdade sempre. Não é o caso agora. Nada de que se
orgulhar ou se envergonhar. Ele lava os pratos e apaga as luzes. Vê se a porta está trancada e tenta no final ler, nos
rostos que se inclinam procurando alguma coisa, se afinal ficaram satisfeitas.
Ela sumiu no banheiro. Chove na varanda de seu aniversário.

Um maiô branco estendido ao lado do vestidinho com que ela entrara . —Olá, muito prazer —diz a luz. —
Você é de Celba?
A senhora Lens enxugava o joelho que se ferira na pedra quando subiu, rodeando o arranhão. Gerard
imagina onde. Possivelmente nos mariscos da maré baixa. Deduz que ela esteve não longe da pousada e que é uma
pessoa simples. Ricos não tomam banho por ali. O lugar está sempre cheio de filhos de pescadores, pessoas em geral de
cor, não raro estrangeiros, e às vezes doentes.
Na tarde do que dia em que chegou esteve ele próprio ali. As ondas se derramando pela parte escura da rocha.
É fundo. Mesmo na maré baixa, é fundo. Ela deve nadar bem.
A voz de Keshia assustou-o — Olha as glicínias que a mãe da Michele plantou!

Viu-se em meio a pessoas e o que mesmo são pessoas? Uma vez há muito tempo aconteceu. Quando fazia o
tratamento com insulina. Cinco da manhã o enfermeiro vinha e lhe dava a injeção e lá pelas nove ele podia se fartar de
todo tipo de doces no refeitório (chamavam a isso desintoxicação). “ Floresta de homens e mulheres” , conseguiu
separar essa idéia das demais. Pareceu importante num primeiro momento mas logo não saberia dizer o que significava.
E uma outra lhe ocorreu mas fugiu antes que se apropriasse dela, como um pássaro. Esse rapaz entra na galeria sem
saber o que procura. A escada rolante o leva. A moça olha para ele penalizada. Tão bonito, disse a si mesma. Ele mal
tem tempo para dar o pulinho quando chega o piso. As vozes são baixas e contínuas e estão em toda parte e em lugar
nenhum, como um cachorro agonizando.

Em seu quarto, Michele trocava o vestido de viscose por uma javanesa. Verifica o caimento no espelho.
Keshia amarrava os cadarços do tênis bege com a sintonia veloz dos novos tempos. Diz que tem medo.
- Medo do quê, Keshia?
Não saberia dizer. Medo do mundo. Quando era pequena tinha um amigo invisível. Jamais teve amigo
melhor.
Michele pergunta se nem o Eduardo.
Eduardo eh um idiota.
Mas gostava de Keshia.
—Sei —disse Keshia —do que ele gosta em mim.
—Normal.
Aquele Gerard, ele é um cara de quem Keshia poderia ser amiga e até mais. Não pensava só em sexo.
—Como voce sabe? —perguntou Michele. Elas mal o conheciam, ponderou. —E é muito velho.
—Estamos crescendo, Michele —disse Keshia. Os pais dela já haviam notado?
—O que?
—Que estamos crescendo.
Michele se aproxima da janela e olha o céu. — E pais notam alguma coisa? —uma nuvem passa e tapa o sol.
Michele diz que seu avô notara. Keshia também sentia falta do avô de Michele, ele era uma gracinha.
-Minha mãe não achava.
- É porque era filha.
- Eu gosto de meu pai.
- Olha, Michele. É pra você.
- Ah, não precisava!
Tudo o que Keshia dava para Michele era de coração.
- Para de chorar, vai.
Keshia enxuga as lágrimas.
—Lembra o dia em que a gente se conheceu? Eu te admirei tanto. Você era tão forte.
Michele murmurou. —Às vezes.
Brincavam e se divertiam. — Lembra?
—Era tempo de brincar e se divertir.
—Eu não queria. Os homens são maus.
—Sempre há cavalheiros.
Quanto Michele crescera? Ela já...?
—A Sarah ficou sozinha com os meninos, Keshia —respondeu Michele. Precisamos descer.

Sarah recebeu um telefonema do cantor do trio elétrico no dia anterior. Fez uma cara de enfado quando
atendeu embora o trabalho estivesse indo melhor do que o esperado e esse era o momento perfeito para crescer e fazer
novos clientes. Disse “ Alô” grampeando uns papéis.
—Lembra-se de mim?
—Claro —disse ela com um olhar distante e esquivo. Seus dedos são longos e ela segura o telefone com não
mais que dois. Seu cabelo atual faz o estilo rapazinho ainda que ninguém a ligue com essa expressão. Usa brincos
dourados bem pequenos.
—É que eu quero mudar de casa —disse ele —Sabe como é, me adequar aos novos tempos. Dinheiro não é
problema.
Ela acendeu um cigarro com a cabeça imóvel inclinada na direção da voz. —Sim —disse ela. —Podemos ver
isso.
Ele continuava falando, dizendo como gostaria que a casa fosse, e ela balançava a cabeça como se ele
estivesse na frente dela. Fale duma vez. —Eu te ligo.
—Ah, tá —concordou ele. Encostou o violão no telefone e dedilhou.
Ela revirou os olhos como a morrer. Balançou a cabeça e ainda balançava quando desligou no instante em
que o homem entrou no escritório. Também tinha um monte de papéis nas mãos. —Vamos? —disse o homem, se
aproximando e entregando os papéis. —Olha aqui, a propriedade partilhada que você pediu a Deus.
Ela concordou com um hunhun inaudível. O último botão da blusa não está na respectiva casa. Conjunto de
mulher e roupa lembra foto de capa duma revista de moda. Não mexe um músculo do rosto. Uma boneca.
—Mas não se sobrecarregue. Ninguém ganha com isso.
—Alguém reclamou?
O homem coloca a carteira no bolso interno do paletó e continua olhando sobre a mesa como se procurasse
alguma coisa. Sorri quando a escuta e diz que não, imagina, todos só tem elogios para você. O olhar de Sara ainda é
impassível, um tanto apalermado. Ele agora está sorrindo francamente. O rosto dela contornado pelo sol exige grande
atenção caso insistam em definir como o de um rapazinho, sobretudo quando assim de costas.
—Nunca ninguém reclamou de nada —garantiu o chefe. Ele estava completamente satisfeito com o trabalho
de Sarah. —Você foi bom comigo, não quero te decepcionar.
Ele a olha nos olhos. Caso ela precise, estará na sala de reunião. Sozinho, explica. Se ela sair antes, por favor
desligasse as luzes e os computadores. Ela faz que sim com a cabeça, e continua fazendo mesmo depois que ele tinha
entrado na sala de reunião e fechado a porta atrás de si.
Duas horas e pouco depois, no carro que estacionou em frente ao prédio de fachada em mármore e
porcelanato, o homem se despede com um olhar. Ela aceitou o olhar e depois abaixou o seu para os pés nas sandálias,
sem movimento do rosto, e depois de novo para ele, sem piscar. Seus lábios são grossos e o batom pouco se destaca a
essa luz. O rosto enquadrado na janela, o vidro fechado. O brilho das portas envidraçadas do hall. Uma levíssima ruga
no pescoço é o único sinal de que ela está viva. — Tchau —ela diz. —Tchau —ele repete.

Ao chegar à porta da sala para pedir à filha que arrumasse a mesa, não a viu, meio coberta ela estava junto à
cortina sob o bandeau à esquerda, ao lado de Gerard.
- A senhora quer ajuda?
Se Keshia pudesse achar Michele para pôr a mesa, ficaria grata.
Keshia disse: —Ah, não, senhora Lens: é aniversario de Michele. Deixe-a conversando com o Gerard. Eu
arrumo a mesa pra senhora.
Era muito gentil a Keshia.

A vila impregnada de alvura. A cordilheira limpa das nuvens que ali se haviam agrupado pela manhã.
Caminhando ao lado de Eduardo Gerard praticamente presta uma consultoria. Explica com gestos o que
acontece, como se houvesse um monitor diante deles, como se tivesse aberto a torre. Então (virou de ponta-cabeça o
teclado sem fio invisível) tem de ver se a chavinha está em on, se a porta está comunicando, se a pilha está boa.
Na mesa do jardim, debruçado com Victor sobre uns originais, Georges olhava por cima do ombro do rapaz.
Atrás dele, Sara executava uma coreografia colorida e alucinada contra a parede vítrea da sala como uma desmiolada
marionete ao ritmo repetitivo das estacas no ponto arranhado do vinil. Seus quadris se moviam femininos.
- Essas crianças... —disse Georges.
- Que crianças? — perguntou Victor levantando a cabeça ovalada.
À noitinha o som da chuva terá regredido até não mais que um crepitar das grossas gotas da calha no piso
resinado reluzente,.
Georges sugeriu: —E se déssemos para que dois ou três amigos de Michele leiam? Testar a aceitação.
—Eles sequer lêem livros de bolso.
Georges tamborilava no vidro. —Isso é preconceito, meu jovem.
—Pode ser. Quem, por exemplo?
—Aqueles dois ali, por exemplo.
Fábio havia se aproximado de Sara em mímica grotesca dos passos e gestos da moça. Falavam e riam alto que
dava para ouvir às vozes, mas não entender as palavras.
- Meu Deus... Sara então ela tem péssimo gosto para tudo.
- Está vendo? Preconceito...

Victor tocara a estridente campainha e o grafite o transportou para longe. Que falem. Não preciso deles. Isso
foi antes de entrar. A rachadura do muro da casa terminara na cor de um abandono. Respirou fundo ouvindo latidos
ecoando como se um fio os ligasse e os fizesse vibrar em sua alma. —Olá Victor, dissera a senhora Lens quando ele
entrou.
—Olá —respondeu ele, beijando-lhe a mão direita.
—Como vai a Cati? Ela não vem?
—Não, ela não pôde. Mandou cumprimentos.
Ninguém notou o brilho no olhar de George exceto Gerard.
O olhar de Victor não se alterou quando viu Michele. Desejou felicidades e toda paz. Vinculou sua verdade a
uma frase. Que seus melhores desejos se cumpram, disse.

Quando Fabio pegou o violão movido pelo filé e sávia e pela produção de hormônios, olhou para Sarah,
dedilhando. Ela comera pouco, rainha neutra. Um som dançante, quem a irá tirar? Eduardo está distante. Ela ainda será
minha ruína.

A senhora Lens soube durante a dança que Gerard fará a manutenção dos computadores da pousada.
Acrescenta à graça o exibicionismo. Os cabelos lavados reluzem. Hospedes dirão a Gerard que na época em que ela
chegou eram bem escuros, quase pretos. Segundo uma mulher do segundo andar hoje na casa dos trinta e cinco anos e
que estava na praia no dia em que Rose chegou, o futuro marido se encontrara com a amante, aqui mesmo, disse, neste
hotel.
Tons mais e menos e escuros desenham as metades de seu rosto. As pregas do vestido induzem como notas
musicais que flutuam. Ele a tomará? Sim. Os dedos se tocam, e as palmas. Tão perto e nada de que se envergonhar no
ritmo seguro da transitoriedade.
George é um sujeito atraente, sem sonhos mas cheio de projetos. Mais hoje mais amanhã a levará para a
cama. Em que momento deixara de levá-la para dançar? Gerard tem uma quebra mais suave nos quadris, resolvia o
segundo seguinte em passos imprevistos. Um casal parece foi para o fícus, como ela gostaria.
Então, oficialmente, você é o novo chefe de manutenção da pousada —ela disse —e ele respondeu que agora,
fora da temporada, sou pouco mais que um caseiro. No fundo nem tinha vocação para administrar. —E qual é a sua
vocação?
- Computadores, acho. Desde...
Oh não parecia ter idade para —
De certo modo, tinha participado da primeira conexão comercial dial-up.
- O que quer dizer?
Acesso à internet pela rede pública de telefonia..
- É mesmo! Estava falando com uma amiga! Isso logo logo será passado não é?
O corpo desprezado do qual tinha ela desistido fluiu para dentro da presença de Gerard. Ele a cercava em
vagas. O remoto mar não termina.
Não conseguia desvincular a mulher do mar.
Ao olhar pela janela, a senhora Lens perguntou se Gerard saberia dizer se ela estava nos planos da prefeitura.
Ele pigarreou e começou a responder. Aos poucos ela ia se acostumando com o timbre da sua voz. —Você quer dizer
“ exposições” ?
—Soube que a pousada é parte de uma proposta curatorial, disseminar a idéia de hostels com um viés
artístico, ligada ao Centro Cultural.
Ela estava sabendo mais do que ele. Mas há estudos para viabilizar eventos culturais com recursos próprios e
através de parcerias. Até onde sabe há cautela do prefeito pois quer manter o pagamento do funcionalismo e
fornecedores em dia.
Ele praticamente não respira. Entende agora que seu coração não tem nada. A alteração que o médico do
banco descobriu não era nada. Fundo emocional. O aperto no peito que vem com sufocação, a sensação de desmaio
iminente.
—Ah, sim, deve ter a ver com os projetos das residências.
Ele tinha ouvido falar, mas estava longe de saber do que se tratava.
Ela lera em algum lugar, o artista se apropria da circunstância. Intervem nos espaços da cidade.
Sim, ele agora lembra. —Meu emprego tem a ver com isso —disse ele.

Pouco depois ela se afastou porque precisava preparar o ateliê. Evitando fixar os olhos ele a olhava e
guardava detalhes.Percebe agora que a sala é ampla e em alguns pontos tem quês de dourado embora as paredes sejam
verdes como o mar de novembro. O tempo passa. O ano estava terminando. Um novembro raro, fresco para os padrões
do litoral sul da região sudeste.
Cerca de duas horas da tarde, almoçaram. A sala impregnada da opção pelo sol da manhã. Esperavam que
Keshia trouxesse sorvete e café. Gerard levantou-se e colocou o blusão no espaldar da cadeira em que a senhora Lens
sentara durante o almoço, ato que de todos, inclusive de si mesmo, passou despercebido, não dela.
Com a bandeja, Keshia pensava. Por que os homens de fora acham mais bonitas e cultas as meninas de
Hatknak ? Por que generalizam e quando pensam em nativas de Celba imaginam-nas fazendo sexo com turistas por
dinheiro?
Mas Gerard não a viu. Pergunta à senhora Lens de que tratam suas pinturas. Gosto forte de café no hálito.
Vozes vinham da cozinha e da sala de estar, música de dois ou três pontos da casa. A perspectiva da chuva determinava
a hora da tarde. As mãos de Rose suadas. O pescoço de Gerard teso. Ela diz que os quadros tratam de sua alma.
As meninas rindo muito tomavam sorvete. Esplendor amarelo quebrado por vultos esverdeados. Georges
saíra para uma reunião inadiável. A sombra da senhora Lens está na parede, os dedos na quina do quadro. A palma
direita se apoiou na parte mais alta do sofá. Sombras se interligam pela sala. Em alguns pontos da parede o amarelo
brilhava tanto que era quase branco. Keshia se refugiará no banheiro para chorar por Michele e Gerard. De lá escuta a
onda que quebra e os últimos pássaros do dia.

Ele abriu o portãozinho dos fundos pelo qual se cortava caminho e passou para fora e tornou a fechá-lo com
um ruído enferrujado. A tarde escoava como a luz dum quarto entreaberto que será fechado em seguida. Há um tapete
de cascalho no caminhozinho que dá no asfalto. Caminhava devagar, saboreando os passos. Um viço do cenário
proporcional ao ângulo de descida do sol. A vermelhidão espraiada no casario. Um incêndio no horizonte. A música
atrás permanece mais e mais baixa, em determinados momentos substituída pelos insetos e pássaros vespertinos. As
silhuetas dançantes no janelão da frente o alcançavam e se despediam, mostravam o caminho.
Quando entrava na pousada, no meio da primeira escada, ele escutou a voz da mulher do banqueiro, castigada
em tênue espuma de memória. —Eu te esperarei de novo e de novo você me atará e desabotoará lentamente os botões
da minha blusa branca de florzinha e desafivelará o cinto de minha bermuda e o aproveitará e quem sabe me pergunte
se eu estou sofrendo bastante com a tortura. Não fale assim, dissera Gerard, as lágrimas represadas na borda dos olhos.
Não fale assim, repetiu quando as lágrimas transbordaram.
Estavam no canto da festinha da filha de Verônica. Dezesseis velinhas. Cones coloridos de papel brilhoso são
toda a cor que a sala ebanizada aceita.
—Parabéns, querida —dizem os tios. —Parabéns.
A fumaça subia do bolo. Revelado agora pelas luzes que se acendem, Gerard após o sopro se torna fumaça e
escapa pela grande janela aberta na noite.

Ela chegará e tornará a chegar exuberante ao sol de meio-dia com um vestidinho sobre o maiô branco e as
pernas muito iluminadas abaixo e acima dos joelhos escuros como manchas do teste de Rorschach. Eh relativamente
alta, da altura de Gerard. Ele abaixou-se para tirar-lhe as sandálias e a vendará a seguir. Depois a atará no mesmo lugar
que as capas e blusões estavam pendurados. “ É melhor parar” , pensa. “ Ela não é esse tipo de mulher, isso não vai
acontecer” . Mas era tarde demais e precisou terminar. Depois respirou fundo e soltou os ombros e ncheu o peito e
debruçado no parapeito ficou olhando as primeiras estrelas no céu ainda avermelhado.
Do outro lado da rua, entre dois limoeiros, erguia-se uma casa branca, que o pai de Sara construiu
praticamente sozinho, conforme prometeu à esposa que faria. A casa estava vazia. O telefone toca e toca e toca,
repercutindo a impaciência de quem liga. Ela abriu a porta, entrou. A janela enquadra a intensa luz.
-Alô?
Eduardo chega por trás, a camiseta fina e canelada não lhe proíbe os seios. Não era seu estilo ser tão direto. O
susto de Sara se misturou à aragem que dava vida às cortinas brancas - ondas como as lá de fora, incessantes.
O interlocutor era um homem de mais idade. Eduardo sente a voz no tecido da saia crepe e macia, gostosa nos
dedos.
Sara. A mais velha entre as meninas. Ajoelhada no sofá. O telefone a imobiliza quanto a uma improvável
resistência. Sente o elástico correndo mas era como se nada sentisse.
A voz não ouvida faz recomendações. As coxas se acomodam aos movimentos. A casa está praticamente na
areia. Alguém se aproxima da água e mergulha.
- Sim, papai, estou escutando; pode ficar tranqüilo.
Era algo engraçado de se ouvir, pensa o homem, mas no fundo gosta de ser avô mesmo naquelas condições.
Era antes culpa da temporada, do turismo, da política local, da economia nacional. Era uma boa menina no fundo.
- Não se preocupe, papai - diz sem saber direito sobre que estao falando.
Eduardo se apressa. As pernas são da senhora Lens e a nuca é de Michele. Com Keshia será diferente, não um
momento que se esgote. O bebê dorme tranqüilo no quarto.
Os dois escutam os passos e quando a porta dos fundos se abre estão conversando no sofá. A babá é filha da
vizinha.
- Oi, Brenda —disse Sara quando a menina se aproximou.

A janela onde do outro lado havia uma silhueta agora está vazia. Gerard dormiu direto desde cerca de meia-
noite porque estava com náusea e o remédio tem esse efeito colateral de produzir sono pesado. Porque não era ainda
temporada ainda e tampouco os dias iguais do resto do ano, em que nada acontece. Acharia muito que fazer assim que
levantasse mas sentia os olhos pesados e estava todo lento. Não tinha vontade de terminar de arrumar as coisas e
preparar os dias seguintes e lembrou o quanto detestava, nos outros, a preguiça.
Era a 4ª quinta-feira de novembro e nos grandes centros as lojas estavam cheias. Tipo de coisa que fez querer
largar tudo e sair da capital. Quando se levantou e saiu para o dia, seguindo a trilha dos noticiários das horas cheias, viu
moças arredondadas em trajes sumários dispondo conchas ao lado dos vinis do hippie cuja verdadeira mercadoria
estava sob a toalha ou em alguma árvore próxima.
As primeiras horas da madrugada e não havia indícios de que aquela noite seria diferente. A senhora Lens
tinha medo. Do futuro, de não ter a segurança material a que se afeiçoara. As comodidades (sobretudo em relação à
pintura). Medo do próprio George —era apenas uma mulher. Uma dona-de-casa, fiel e dependente.
A aparição do marido transtornará a disposição dos móveis e o céu à janela e a consciência das coisas. Que
seja rápido. O hálito impregnado dos resquícios da festinha acrescido de aguardente barata da zona vermelha. A mulher
pensa na enxaqueca mas contato das mãos sente o contato de outras. Nada imperceptível mas George estava por demais
bêbado e concentrado em si mesmo. Ela observa os dedos curtos e abertos, escuta a voz repulsiva. George se recusara a
usar óleo e de repente ela gritou. Para ele funcionava como senha. E ela queria levantar cedo, tinha tanto para fazer.
Gerard beijou-a no pescoço com delicadeza. O cálido cumprimento desceu e rodeou-a, voltou. Beijos ora com
leve estalo de lábios e ora com toques de língua. Outra virilidade ela viu diante de si e devia sofrê-la para dar prazer a
quem amava. De repente, na janela aberta, o sol. Gerard estava decerto ainda com as meninas. Ela então pensou na
proposta dos correios para desenhar selos e no projeto de cerâmica das amigas norueguesas e papéis de parede e
luminárias e de repente estava enfim acabado e ela rolou para a beira da cama.

Um fio de música crescendo conforme a paisagem veloz no céu azul de brancas nuvens imóveis exceto por
imperceptíveis mutações refletidas no assento iluminado e aquecido. Dança de sombras na guarnição cinza azulada
quase tão comestível quanto a maçã do adesivo da mochila sobre o assento. O auge da luz torna mais negra a parte
externa do retângulo da janela visto de dentro, de onde surge a linha de um pescoço se movendo no ruído ritmado de
ferro contra ferro e de borracha contra vidro e poliéster deslizando em couro, num crescendo. Música obediente a dedos
invisíveis que buscam os seios sugeridos quando o perfil se recorta nos campos apressados. Juntam-se outros tons de
verde na passagem da praça em que a outra havia sido congelada na pedra mas se movia na névoa por causa do avanço
do trem. Tudo se tornou negro e noutro átimo de novo iluminado, como uma lascívia emprestada. O queixo é uma linha
leve de sombra semelhante às linhas das maçãs do rosto, de curva mais acentuada; os olhos plenamente negros nas
curvaturas riscadas no calor da luz e em outros prazeres do fluido espectro à paisagem da janela, numa contínua rajada.
O pé descalço inquieto sobre o couro azul. O hálux girando em torno de seu eixo. Contraindo e expandindo
proporcional à ousadia imaginada no balé dos dedos visíveis e invisíveis. Ela dissera que Rose não a esperasse, não
queria incomodar.
O sol escureceu quando ela levantou e o brilho da guarnição se definiu como o limite que era realmente. A
bruma a envolverá quando sair do vagão e entrar na luz que molha as poltronas. Cantarolava baixinho tentando impedir
que a felicidade partisse, inutilmente.
Descera do trem às dez horas de um dia claro e quente que se seguiu a denso nevoeiro. A saia rodada fazia
tivesse a idade que nunca deixou de acreditar ainda tinha. Mal descera e perguntava para um velho pescador de olhar
sereno e cabelos brancos como chegar à casa do editor. O senhor explicou com a simpatia que os nativos guardavam
para os turistas. Não havia muitas árvores por ali. Não havia taxi. Ventava. A cidade estava ainda mais feia do que a
última vez que ela veio. O mar não estava visível. Os gritos rimados do vendedor de pamonha fizeram-na chorar. A
tristeza intensificada pela tristeza. Intervalos de esperança vã. É um ciclo.
Quando viam que Silvia chegava as meninas correram para recebê-la devoradas pelo motorista do opala
amarelo. Souberam que era ela quando viram ao longe a placa vermelha. Tia Silvia. Adorada e invejada. Contou-lhes
os últimos anos. As pessoas achavam que ela enlouquecera com a história de largar a medicina. Os pais estavam
desgostosos embora disfarçassem.
—E a senhora não liga?
—Ligar eu ligo. Fico triste por eles. Mas tenho de viver a minha vida —disse num tom professoral que lhe
caía como uma luva.
Michele a observava com dissimulado desdém. Pelo menos era o que parecia a Keshia. — Que linda a
senhora está! —haviam entrado e sentadas na sala as malas ao redor viam as fotos. — Como ela está linda —disse
Rose se aproximando. O motorista permaneceu com a cabeça meio abaixada como se orasse.

—Você está tremendo —disse Silvia.


A abstinência é cruel. Estava tentando largar.
A amiga lhe pede o braço.
Rose murmura. — Que coisa boa...
Um sorriso triste. Silvia e suas soluções para tudo.
Para os outros não para si mesma.
Tudo tão difícil, tão difícil.
Abraçam-se.
A senhora Lens quebra o silencio. —Conheci um rapaz.
Havia um som no fim do silêncio, anterior às palavras. Lá no finzinho, possivelmente uma cigarra.
Uns seis, sete anos mais moço. A expressão é pura, transmite compaixão.
Estavam falando de religião?
—Olha que é quase.
Um casal passa em frente à janela. Vultos na noite quente de Celba.
Silvia também se aproximara de um rapaz, também um homem mais jovem.
- Sim, você começou a falar no telefone. E aí?
- E aí é aquela coisa: pelo computador a gente diz o que pessoalmente não diria e escuta o que quer. Até que
um dia ouve enfim o que não quer: está apaixonado por outra.
A gargalhada de Silvia nao soa irônica. Os dedos ainda massageiam em torno do pulso da amiga. Sobem com
pressão acentuada do polegar ao longo do feixe nervoso.
Quanto a Rose, quase nem fala com seu rapaz. Se o gume está afiado, é preciso menos força. —Mas o vejo
diariamente. Saber que passará por aquele trecho de praia é reconfortante.
—Que maravilha, minha amiga...
- Que nada —respondeu a senhora Lens . —Sinto vergonha.
Silvia disse-lhe que não dissesse bobagens. O que adianta levar uma vida saudável e caminhar e nadar,
alimentação natural, se a pessoa é amarga e vive se diminuindo?
—Sou mulher casada…
Recosta o rosto nas mãos fechadas, os cotovelos na janela. Separar-se? Tinha medo. De apanhar, de morrer,
da pobreza, da velhice.
As coisas estão assim?
Rose se apavora em ter de descobrir.
—Nesse caso, por Deus, a separação é sobrevivência.

No dia em que ela e Silvia viajaram Michele desceu as escadas de pedra antes do jardim leve mal tocando os
degraus até parar no meio das flores amarelas que de um e de outro lado caíam e ela brotasse da saia xadrez pronta a ser
colhida. O volume e a sombra se movimentam de tal modo que o cinza sáxeo se torna creme como um quadro muito
tempo exposto às intempéries —onde as flores não parecem flores e as roupas nos varais se transformam em outra
coisa —vivas e sujeitas a velhice e morte como qualquer roupa ou flor ou menina.

No primeiro dia oficial da temporada chegaram belos primos ricos de primeiro e segundo grau que ensejavam
amizade e o que era cobaia. Um sax tocava na noite quando todos voltavam de uma reunião no clube. Uma festinha de
despedida para Michele.
Silvia falava com Rose na varanda.
—Conheço teu estranho —disse. —Conheço Gerard.

SEGUNDA PARTE

O quarto está imerso numa luz avermelhada que contraria a lógica noturna. Ele abriu a porta e ao sair
esbarrou na vassoura da arrumadeira e se desculpou. Ela piscou o olho esquerdo como se a cabeça doesse. Vozes
passam e se perdem. Carros iniciam o dia. A menina da limpeza põe os cabelos atrás da orelha com dois dedos castos.
Parou diante do oceano. Friozinho. Assinara o aviso-prévio na sala do RH da rede de pousadas na tarde
anterior. Dispensaram os três empregados temporários. Cronelin perguntou se ele estava bem e não esperou a resposta
para tranquilizá-lo e dizer que daria tudo certo. Próximo à casa da costureira havia cheiro de omelete e ele pensou em
passar no bar para tomar um café mas a possibilidade de encontrar George fez com que desistisse da idéia.
Pensou voltar para Hatknak. Não podia dizer que Celba foi uma experiência de todo ruim. Sentiu uma fisgada
no ouvido esquerdo e a dor ciática codificada.
As conversas dos transeuntes se juntaram num amálgama sonoro que dependendo do estado de espírito pode
ser enlouquecedor. Respirou fundo e endireitou-se. Havia novas turistas nesse trecho da praia.
Pergunta a dois homens que vinham em direção contrária se é véspera de feriado. Um deles mascando um
chiclete diz que não sabe; o outro diz que não é, sem convicção. Um volume agitou-se em seu calção enquanto um
caminhão sacudia longas tábuas mal amarradas pela estradinha que ia dar na praia pelo outro lado.
Longe num ângulo lateral se faz perguntas. A areia úmida repete o corpo de bruços na areia. Conforme se
aproxima verifica pelo suor que ela está a cerca de meia hora exposta ao sol. Sorriso de alívio mas não pode se mexer
agora. Pensar em outra coisa. Olhou para o céu e para o reflexo nas águas. Trágico e irônico.

A senhora Lens se espantara sustentando os seios para cima ao ver que Michele saíra de casa logo cedo após
a chegada. A luz batia na parede em que a cama estava encostada e manchava de um desejo prateado a marca do
travesseiro onde cabeça alguma havia se recostado naquela noite.
Estava preocupada. O sol de Celba não será mais o mesmo após o regresso da filha. Ficou ali parada a se
lembrar dos dias em que vinha chama-la para a escola sempre rechaçada com súplicas de mais cinco minutos que se
transformavam em dez e quinze e mais até o dia em que do nada Michele acordou sozinha e saiu bem cedo. A
buganvília batia lamentosa na janela.
Ela passara três anos estudando em Haktnak. Não veio visitar a mãe. Apenas cartas lacônicas. Deixara a casa
de Silvia mas nada pessoal. Queria independência e morar sozinha. Estava trabalhando, merecia privacidade. Sim, a
senhora Lens se espantara. Essa menina não deveria estar cansada da viagem e só acordar lá pelo meio-dia?
Apenas amanhecera.
Saiu como se a pudesse encontrar na varanda. Falou com o vizinho sem alteração na voz. O de sempre. Que
calor. Deve chover mais tarde.
Espelhos brônzeos se separam. Gerard mal respirando hesita entre passar e parar. Não quer mais saber, está
cansado. Não é esse tipo de pessoa. No final das contas a mudança não tinha adiantado. Pelo contrário. E perdera a
renda e o status e todo o resto.
Soube no dia anterior que o banqueiro respondia ações no âmbito cível e criminal pela falência. As obras de
arte sobre as quais chegara a conversar com a senhora Lens tinham sido confiscadas. Valiam em torno de quarenta
milhões. O homem tinha sido preso por lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta. Gerard não entende por que está
pensando nisso agora. Talvez porque Verônica tivesse dito quem sabe passaria uns dias em Celba.
A mãe pensa como a filha viverá com um corpo de mulher numa cidade como Celba. Sentara-se à mesa
envidraçada da sala de jantar para fazer umas contas após apanhar números e máquina de calcular no aparador em
liberdades de musselina e sandálias. Acende-se com o clique da lâmpada. Gerard não podia ajudá-la? trabalhar com
ela? Tinha pensado nisso antes mas não lembra por que deixou de pensar. Morde a maçã que pegara na fruteira.
A presença de Michele e o som que fez romperam o laço que o prendia à sua solidão. Ela porém não falara
mas sonhava. Durante as eternidades que precederam seu despertar habitou soberana a existência do homem e trêmulo
ele postou a sombra sobre o rosto dela. A face esquerda pousada na areia. Sorria de olhos fechados.
Ele percebeu a uma distância razoável o pai de Beefy e virou-se e caminhou na direção do mar. O homem
costumava dar sua corrida mais tarde porém pelo jeito ia ser um dia peculiar. Encontraram-se onde a areia esfriava.
Cumprimentaram-se.
— Olhe, Gerard, acredite, não é nada pessoal. Vai haver mesmo uma contenção de despesas —fez uma pausa
esperando Gerard dissesse qualquer coisa como “ Tudo bem” , mas Gerard não disse nada e ele continuou: —Acredite,
gosto de você —deu nesse momento uma olhada para a mulher deitada e foi o único momento em que recebeu a
atenção plena do outro.
Resmungou alguma coisa que Gerard não ouviu e continuou o discurso até desejar sorte ao ex-funcionário e
voltar à corridinha numa passada típica de patrões.
Gerard esperou que sumisse na distância e voltou como quem não tem qualquer pressa para perto do corpo
estirado. Eram poucos os que aproveitavam o melhor sol da manhã. O céu típico do verão no litoral. Nuvenzinhas
imóveis no azul intenso. Chapisco divino no firmamento.
Uma vez viram Michele chorar durante uma aula. Tão estranho que chamaram o médico. Depois o assunto
morreu como os assuntos que na vila não se desenvolviam para finais trágicos. Gerard não chegou a saber o que
acontecera mas Michele chorar era algo que impressionava.
O sorriso onírico foi substituído por relaxamento dos lábios. A expressão não é interrogação ou vergonha ou
susto. De repente os olhos se abriram. Ele gostaria de fugir do lugar comum mas não pôde. Ia dizer os adjetivos
cabíveis; disse apenas “ Quando você chegou?” ao agachar-se.
—Beije-me —disse ela.
Durante um tempo não houve outras palavras. E mesmo assim e mesmo assim e gaivotas rasantes e carros
algures e o fluxo forte. Eram jovens e sadios, solteiros. Por que não poderiam? A letra queimada do letreiro de néon
readquiriu função com a nuvem que escureceu a manhã. Precisava consertar aquele P.
A idéia que ela teve de dormir na praia. Ele alongado a caminhada além de seu limite. Como se ela estivesse
esperando. Como tia Silvia diz o que tem de acontecer acontece.
Ora Gerard eu não sou virgem. Ora Gerard eu sou maior. Ora Gerard sou dona do meu nariz. Ora Gerard que
bobagem.
Ele dirá que ela só se tornou mulher no corpo e não sabe nada. É uma menina. Nao sabe nada acerca da dor.
A dor que amadurece e faz saber que nao é possivel aguentar mais muito tempo. Aí ela dirá que Gerard além de
estranho é dramático. Assim acabará enlouquecendo.
O comércio estava aberto. Os civic e ômega e blazer e homens a pé com camisas de flanela no final da
primavera todos solenes passando como se tivessem um mesmo e irreversível nobre destino. Eram quase dez horas.
Poderia ser qualquer hora no canto de praia quase mato.
Acabara de completar dezesseis quando chegou a Haktnak. Era menina estudiosa e cheia de planos de
realização pessoal, pouco ligada em companhia masculina. Durante algum tempo chegou a questionar a sexualidade.
Mesmo quando os meninos a levavam para trás da escola ou nadavam com roupas de baixo estavam basicamente
brincando. Mas pouca graça achava nos meninos e quis um homem de verdade. Proteção e dependência. Achar esse
homem e abandoná-lo.
Escorpiana de boa cepa como diriam seus avós, estava com dezoito anos, não, dezenove; ele não conciliava
essa idade com seus ardores. É uma mulher experimentada, quase vulgar. Um carro passou ao longe na estrada de terra
levantando poeira. O ruído do motor registra a distância em que se perde.
Quando se fez silêncio novamente ela se ajoelhara agarrando-o pelos cabelos num impulso. Subiu e
depositou a língua. A mão direita pela camiseta branca, buscou os cabelos do peito e puxou. Ele devia dito que ela se
enganara e se enganara duplamente: ele não a desejava e se desejasse não seria assim. Teria dito se tivesse tido tempo.
Se sua própria mão não a buscasse.
Teve porém de deter-se no barbante.
Conquanto o sol subisse e trouxesse a perspectiva de visitantes mesmo àquela parte da praia, ela arfando disse
“ Vem” . Súplice e autoritária.
Chegara de Haktnak numa calça de gabardine cintura alta grudenta de aperto e suor e a camiseta curta
também molhada e ao abrir a porta deu com Eduardo a quem telefonara para informar a hora de sua chegada —
Eduardo, não o seu mensageiro. O canalha.

Eduardo pede perdão. Não sabe o que deu nele.


—Posso compreender —disse a senhora Lens . —Mas gostaria que isso não se repetisse.
Não, é claro. Ele dá sua palavra. “ Só queria dizer que” —a senhora Lens espera que ele complete “ a
senhora é atraente demais” e ele diz “ a Michele chega por volta de onze e meia” . A senhora Lens agradeceu e o
despediu. Quando ele saiu, antes que Michele entrasse, tornou a pensar na filha. Uma mulher decerto.
Uma mulher com Gerard na praia.
Urrou resfolegando entre o gozo e o pavor. Gerard ia perguntar se estava machucando. Ela ouve a voz e tapa
sua boca. Come areia em seus transportes. Puxa-lhe os cabelos com a outra mão e dita o ritmo. Esse fogo e essa dor no
peito. A respiração entrecortada. Afasta-se bruscamente e lança à nuca de Michele um olhar que era como um olhar que
ela visse. Estremece ainda quando fala. —Sim —responde ela, como se o olhasse. —Sim —repetiu. É claro que ela se
casaria.

Gerard deixou Michele dormindo em casa e foi comprar pão bem cedinho. O trânsito não é caótico, mas
deve-se ter cuidado ao atravessar a rua. Saíra de mansinho pelo corredor nem estreito nem largo oculto pela penumbra
de um prédio nem alto nem baixo e então deu num hall nem luxuoso nem simples.
A tempestade de verão marcava o último dia do mês em meio ao rebentar dos raios. A energia elétrica em
piques mal perceptíveis suficientes para desregular o relógio e reiniciar o computador. Michele andou e apressou o
passo até chegar ao quintal na manhã de sua noite de núpcias. Os músculos do braço de Gerard vibrando a cada golpe
da enxada. —Precisa mesmo fazer isso agora?
Preparava um jardim. Será aqui. Será assim. Ia descrever mas foi interrompido pela língua áspera de tabaco.
Desde quando ela fumava e por que escondida?
Ela seguiu beijando sem se importar com o sabor que emanava ou com o jardim futuro ou com o que o
marido estava pensando. — Tudo bem —disse ele. —Vá na frente.
—Eu espero —disse ela. —Vamos juntos.
Entraram pela pequenina porteira de pinus escuro. Mais escura a ripa enviesada de eucalipto agora não tão
firme fixada na alvenaria triste de tempo. Ele soltou o ganchinho como um ensaio e ela passou —ele teve essa
delicadeza e quem sabe tenha sido o momento em que ela se dispôs para sempre. Sempre dizia que os homens não
cavalheiros e é preciso prestar atenção quando aparece um.
A primeira visão da casa é a de um lugar onde a paz se faz possível —clara, ensolarada, a fileira de choupos
(que nas cartas ela chamará de “ álamos” e ele de “ populus” e isso a partir de dado momento será o único tipo de
coisa em que não combinarão). Dentro, sombras perfeitamente guardadas no pó oculto exceto pela amarga nota
ancestral pairando úmida.
O corpo bronzeado se deslocava imperceptível de um lado para o outro sob a luz amarela do abajur.
Crescendo e diminuindo no ritmo dos lábios entreabertos que inspiram o movimento de Gerard.
O quarto ficou muito bom. Não dá para dizer que é a mesma casa. Ela fechou a janela com um sorrisinho
malicioso. Disse: —Lembra quando viemos ver a casa? Eu pensava: É muita casa para pouco homem. Ele não
respondeu. Devolveu o sorrisinho.
A primeira silhueta é a do pai, como guia numa caverna, por aqui, cuidado, rangidos, madeira vibrando,
estalando, passos, passos, sombras em sombras como uma seleção ampliada em edição de imagens, criaturas da
penumbra.
—Ah! —exclama Gerard e a luz toma o ambiente ao abrir as portas em par, a mão esquerda ligeiramente
mais rápida. Sorriu como quem sonha. As jovens se encheram de sol (Keshia os acompanhara). Ele entrou e fez um
comentário acerca de Deus, da criação, fez-se a luz; Michele quase tocando os fones de ouvido levantou as mãos à
altura dos ombros, as palmas para cima. Georges a olhou estranhando um dos termos que ela usou, como assim, pai,
todo mundo fala assim, mas Georges não entendeu, não conseguia saber a relação entre “ foda” e o Deus criador da
luz.
—Por que não dormimos aqui esta noite? —sugeriu Michele.
—Todos na bicama? —perguntou Georges.
Depois andaram e andaram pela propriedade. Michele encantada. Keshia não parava de dizer que legal, que
bacana, vocês vão ser felizes. George certo de que seria um bom investimento, logo Michele vai querer ir para o
Canadá, como vive dizendo, ou quem sabe o casamento nem dure, o que seria o normal. Acompanhando a tênue
curvatura da cerca, os vizinhos não queriam perder nenhum detalhe. Em algum momento Keshia teve vontade de
chorar, provavelmente chegou a derramar alguma lágrima. Parecia que Gerard tinha chegado ontem. Tanta coisa e
parece que foi ontem.
Para Keshia era comovente Michele e Gerard juntos. Sempre torceu pela amiga.
—Vocês se dão tão bem, até parecem irmãos.
—Sai fora, não temos nada de irmãos, eu hen...
Às seis da manhã as amigas estavam despertas prontas para curtir melhor o dia especial. Foi a hora que o
amigo disse que passaria para levar a encomenda.
Na manhã seguinte, Georges se aproximou de uma lápide coberta de mato. Michele o observava da janela,
pensando na mãe de seu primeiro namorado. O pai sentou-se no gesso junto à pedra e leu a inscrição como se estivesse
no cinema. Michele espera paciente afinal se chegou até ali é o mínimo. O rapazinho aperta o gel do tubo. Com a mão
direita na mesma posição em que seguraria um buquê, Georges arranca o tufo de mato na falha de cimento entre o
túmulo e a pedra Confortável com as mãos espalmadas contra a parede, Michele se inclina e se for preciso pode
descer até o assoalho Ah, querida, murmura George, como eu te amava, gostaria tanto que Michele fica impaciente
porque o rapaz sequer segura seus quadris e quando o faz lembra esse tipo de cumprimento que ela odeia quando
alguém deposita a mão na mão da outra pessoa como se fosse um tipo de hóstia. Com as costas da mão grande e
peluda o pai alisa o nome na lápide como faria se fosse o próprio rosto e suspira e aperta os lábios e balança a cabeça
Definitivamente esse menino é só um rostinho bonito, mas agora Michele tem de ir adiante, por isso prefere homens
experientes a esses imberbes que ostentam seja lá o que for Um feixe atravessou os choupos e passou rente à cabeça
do pai e morreu no matinho ao lado da grande pedra arredondada e a imagem do pai sentado no túmulo foi se afastando
como se o espírito da morta tivesse estado ali e agora precisasse voltar para o nascer do sol O filho da mulher até que
tenta mas até isso acontece, não sei vou aguentar até o fim mas ela sabe que sim aguentará porque é como quando se
olha muito para o sol e ela passa a ajudar embora saiba que nesse caso é praticamente uma masturbação para ele
que não merece mas enfim O espírito da mãe do rapaz subiu e pairou primeiro entre as árvores depois sobre os montes,
a linda paisagem do lugar com que tanto sonhara e o amante conseguiu para ela, Georges a amava de verdade, pese as
brigas eventuais e a falta de jeito costumeira E mesmo assim quando o rapazinho a guia pela lateral das coxas pode se
dizer que aí há um tipo de pegada e, imagine, esse estalo foi mesmo a mão dele em mim?
—Mas afinal —pergunta Keshia da varanda ao lado da janela em que Michele estava debruçada. —Para uma
primeira vez não foi ruim. —Conta mais —pede Keshia.
—Acho que não vai dar, papai está vindo de seu culto —Que culto? —A visita ao túmulo da amante, é claro. —Ah vai
dizer que não é bonito um amor assim. —Que bonito —respondeu Michele lembrando bem estou no controle e isso tem
seu valor, vou ditar o ritmo e pelo menos — Olhe o Gerard! dançando com uma vassoura, pode?, é muito louco!
—Nada, estava mesmo varrendo, só fez isso agora para disfarçar. — Escutei vocês —disse Gerard e o rapazinho
simplesmente parou, inclinado sobre, e só ela mexia, e esse silêncio tao próximo é — Aliás escutei o que você estava
contando antes, ei, imagine, nunca pensei que fosse te ver ruborizar um dia! —Não estou ruborizada! - o rapazinho
estava ali pronto mas longânime e ficou assim um ou dois minutos ela dançando sua dança e ele um cavalheiro que
guia mas permite improvisações da dama porque afinal é uma dança a dois e Georges entrou e foi direto para o
aparelho de som e apertou stop e num ruído seco o aparelho engoliu a música e tudo silenciou e eles pararam (porque
as moças já estava meio que dançando com Gerard e a vassoura) mas Michele continuou, a mão direita por cima e a
esquerda por baixo e o rapazinho, que súbito tinha uma aparência de homem feito, pôs uma das mãos à altura do
latíssimo dorsal, e Michele tornou a espalmar as mãos na parede, e como num acordo nem ela se mexia demais nem
ele permanecia totalmente parado, movendo também a mão direita, cruzando-a para substituir a outra
—Por que o senhor fez isso - perguntou Keshia tímida e choramingas. Michele permanecia calada, longe E a
sombra de um músculo se destacou na coxa mais ereta quando ela sentiu a mão do homem (porque agora era um
homem feito) abarcando seu seio nem rude nem gentilmente e a cada movimento ficava mais baixa em relação ao
corpo dele num prumo improvável —Aqui é roça, Keshia —disse George, mas há vizinhos, aqui também é preciso que
Michele soltou um grito guardado parecia há milênios e se fosse naquela dimensão de tempo teria acordado não só a
vizinhança mas toda a região e premia o homem com um gozo mas do que merecido, até porque recompensava-se
também — Tudo bem —disse Georges vou por a música de novo, mas um pouco mais baixo. —Que música? —
perguntou Michele mais inclinada e o homem reajeita as mãos sobre ela na nuca e as mãos dela também se reajeitam
em seus próprios joelhos sombrios e ela vai se soltando até se deixar e Ela repete para o pai que a olha esquisito: —
Que música?

Há goteiras no casarão. Talvez ela goste do som pois nunca mandou consertar. Os trabalhadores do moinho
passam o tempo todo. Chegam e partem da estação ferroviária que fica a uns dez quinze minutos a pé. - Eu não acho
mais que é muita casa para pouco homem —disse Michele sem tirar do rosto o sorrisinho. —Juro que não acho.
Penumbra matinal na casa incensada. Um bolo fumegante entre céu e mar. Manhã agradável. Dá vontade de
viver e de se perder no peso frio do vento e viajar nas vozes dos vizinhos e esquecer onde estava. Essa mão e esse
dedos, esse dedo e o lugar desejado - o que há de diferente?
Há alguma coisa diferente.
O lugar exato, quem diria; pensava ele fosse um nerd. Essa outra mão não deixa dúvida. Michele chega a
ouvir o vento na superfície da lagoa, como o epílogo de Bell Jarr.

Quatro anos tinham se passado depois disso. Eles são a mesma silhueta trêmula contra a lâmpada da mesa. O
eco que nasce sob os pés dos dois é um só e propaga-se pelo piso.
Tinham acabado de voltar do restaurante minutos antes. Era para ser uma reconciliação mas as coisas foram
tão bem. Quando chegaram ainda na cozinha Gerard foi colocar na geladeira um pedaço do peito do frango. Michele
estava recostada na parede azul da sala e olhava para ele com o misto de raiva e respeito que não podia mais suportar. -
Acho que acabou o nosso tempo —ela dissera. Estava com uma camisa branca de gola alta e os cabelos compridos
agora cacheados caiam sobre os ombros. —Acontece com todo mundo.
A verdade, concluiu, eh que ele tem um tipo de inveja de seu trabalho. Uma mulher realizada e bem resolvida
financeiramente e ele continuava perseguindo sonhos distantes que possivelmente só acalentava pelo fato de serem
distantes. Quando balançava a cabeça, as pontas dos cachos luziam e determinavam a intensidade da energia das
palavras que num crescendo se tornavam definitivas.
—A gente viveu um tempo maravilhoso. Por que não podemos ficar com essa lembrança?
Passou por ele com passos duros ainda mais duros por causa das botinhas. Abaixou-se no lavador de louças e
empurrou o prato e o copo do almoço. A cozinha se alonga numa copa onde a mesa de madeira bege brilha que parece
espelho. Há um vaso com uma rosa não no centro mas um pouco para direita empurrado quando ela foi escrever ou ler
alguma coisa de manhã.
Ela apertou o botão da água com força que se fez ouvir do lado de fora e assustou o gato que olhou
desconfiado como se seus olhos atravessassem a parede. Ele a olha de costas. Uma calça comprida preta que enfatiza o
quanto Michele em nada lembra a menina com alguma tendência a engordar. Ela se virou de súbito. A camisa branca
marcada pela referência dos mamilos. O encarou. Ele abaixou os olhos enrijecendo os músculos da face e cerrando os
dentes. O som da água faz pano de fundo a todos os pequenos ruídos que emitem.
Ele se virou de costas e o olhar dela quedou abandonado. Mexia nuns copos que dera para ela num dia dos
namorados. Ela foi atrás. Ele sentia o hálito quente na nuca quando Michele tornou a falar. Porque ela não podia ficar
solitária e portanto não podia deixar de falar. Ele tinha começado a abrir o notebook sobre a mesa, mas ela disse
“ Não, não, não, imagine que vai começar a fazer alguma coisa aqui na minha cozinha” . —Você teve tempo se sobra
ao longo da vida de ter seu próprio escritório.
—Como seu pai.
O olhar reativo não foi de raiva ou não raiva de Gerard. Estava mais do que na hora de crescer. Estava mais
do que na hora de Gerard crescer também. Porém o único crescimento ali era o da sua exaltação que transbordava pelos
gestos. O telefone azul mal teve tempo de começar a tocar e ela tirou do gancho. “ Alô!” . Ela escutava e respondia
com monossílabos e ele largou o notebook e foi atrás dela.
- Quem é? Algum novo namoradinho?
Começaram a falar quase em simultâneo rápido e alto. O gato se afastou da parede.
- A questão é que...
- Não, não, não...
- É minha colega, trabalha comigo, o que você quer?
- Sua colega...
- Sim!
São quase da mesma altura mas agora ela parece maior. Olha direto nos olhos de Gerard. Fuzila-o com seu
meio-sorriso devastador. Passa por ele como se o atravessasse. Parou na mesa diante do notebook. Não havia mais ele
nem ela mas uma forma sobrenatural de vida que se nutria de desavença. Então ela se virou e os olhos percorreram um
arco completo que abrangeu do piso branco ao teto retornando aos olhos do marido. Os cachos cada vez mais
desgrenhados e reluzentes.
O telefone tornou a tocar. Ele atende. Escutou algo que o retira da atmosfera. Michele percebeu e
materializou em traços suaves o novo momento. Eles se olham em silêncio e ele desliga o telefone. As sombras na
parede se acompanham. Ele torna a mexer nos copos. Abre e fecha de novo o notebook. Um homem e uma mulher não
podem passar de um ponto determinado; depois disso começa a loucura; a loucura começa onde termina a audição.
Os olhos dela estavam vermelhos. Havia soluço em todo seu rosto. Os cachos por um instante de aquietaram
e pararam de brilhar. Ele pegou a mochila que ainda aguardava o final feliz do jantar. Já devia ter largado essa
mochila. Já devia ter comprado um carro e começado a guardar no carro suas coisas. Se tivesse de sair como agora
seria mais elegante e não assim patético. Afinal estava se aproximando dos quarenta anos. Quarenta anos! Ela o
observava quieta não impassível. Os olhos muito vermelhos, caídos.
Num último momento ela se postou diante dele.
- Depois de tudo vai embora de novo? - disse. E estalou a mão direita no rosto de Gerard. Passados alguns
segundos ia repetir o tapa mas ele a conteve. Segurou-lhe o pulso, que começou a tremer. Com a outra mão ele a
segurou pelo pescoço mas era como segurar o vento. Ela agarrou-o pelos ombros, apertou-o. “ Acha que sou mulher de
levar para jantar e ir embora sem resolver a questão?” .
Gerard aliviou o aperto. Ela continuou falando, as palavras embebidas em cuspe. “ É o que você acha? Está
muito enganado!” Ele ergueu os ombros e suas mãos a soltaram e se enraizaram em sua cintura no corpo que agora
sabe que é bem grande para afastá-lo de si o lapso necessário. Virou-a e Michele acotovelou a mesa reluzente com
golpes simultâneos. Ela riu riso típico de espanto e disse para ele parar virando-se e ficando rosto com rosto não para
um beijo e entretanto é o que está acontecendo
“ Pare!”
“ Não!”
E quando os cotovelos caem de novo na mesa o vestido é levantado.
—Não, eu disse não! —garante ela ao virar e ficar novamente de frente —Eu disse não! — e ouviu-se um
novo estalo de sua mão ilustrando inequivocamente o que dissera.
Ficaram sem se ver até o dia que se reencontraram casualmente no hotel. A casa continuou ali. Às vezes
habitada; outras, vazia — mas não com algum tipo de exclusão ou renúncia, mas uma solidão altiva, quase soberba. Em
torno, os vizinhos (enquanto houve vizinhos) sempre viam um curió que pulava pequenininho nas folhas multicores
esparramadas. No começo da primavera, a caesalpinia floria por uma ou duas semanas. A bauínia, quando eles se
mudaram, Sarita mandará recado. Que ele tome muito chá.
A senhora Lens admirou longamente a porta de cerejeira escurecida com losangos, trabalhados em relevo, na
primeira visita que fez na qualidade de sogra.
- Que surpresa boa, entre, vou chamar Michele.
Nesse dia, ela se adiantou no limiar com menos graça que a corriqueira.
- Então, mãe, o que a senhora Lens achou? Nem parece aquela casa né?
- Fiz o cappuccino que a senhora gosta —disse Gerard. —Vamos para a mesa.
Michele apresentará a disposição dos aposentos na casa e dos móveis nos aposentos e das coisas nos móveis.
A senhora Lens se impressionou com a televisão enorme pois nunca vira uma de tela plana. Também olhou com
espanto para o fogão de acendedor elétrico, auto-limpante.
- Tudo bem que não é nenhuma novidade pra você, filha, mas pra mim é como se tivesse sido inventado
ontem.
- É que a senhora Lens sempre teve empregada; e nós, nunca teremos.
Quando Gerard estiver sem emprego e morarem na casa da senhora Lens , Sarita os servirá. Michele só
voltará a mexer com costura após a segunda separação. - Obrigado —dirá um dia Gerard quando a velha senhora passar
a xícara. —Você sempre lembra de tudo.
De resto, quando foram para a sala tomar cafe e Michele fumar na varanda foi impossível não notar a
funcionalidade da sala iluminada por lâmpadas frias. Paredes bege. Estantes, livros, CDs e DVDs.
- Coisas que estão destinadas a um fim próximo, se a senhora não sabe.
Atrás da mesa do computador caía a cortina transparente antes da persiana. Do lado esquerdo, um movelzinho
guardava jornais e revistas. George lê tanto, se mantém por dentro de tudo, adora música, e daí? Noutra parede, a do
sofá branco, há almofadas compradas à mãe de Maria das Dores, que trabalhava para a pousada e continuou fazendo
trabalhinhos para Gerard.
- O rapaz é tão bonito e simpático, acho que vai se dar mal metendo-se com aquela família —disse a
costureira assim que soube do noivado.
A mãe não concordou de todo. Disse: - Nunca se sabe, minha filha. O ser humano sempre surpreende o ser
humano.
Na entrada, um cabideiro ao lado do visitante. Cheiro bom de lar. A filha conseguiu. Um aroma gostoso
vindo do carpete felpudo onde Michele tomaria gosto de se estender para ouvir os Beatles como se fosse uma coisa
hereditária.
O casal passaria a habitar a casa oficialmente em meados de setembro. O marido teria mandado fazer com
prazer uma reforma mas também não questionou quando Michele impediu —memória afetiva — Tudo bem se você
prefere —Sim, está bem desde que você esteja aqui, gata, está tudo bem —Mas é bem grande, é enorme —Eu gosto,
disse ela, adorava quando criança justamente pelo tamanho, ficava horas varrendo —Está bem, disse ele, mas pelo
menos móveis novos —Nao, esses estão ótimos meu pai os adorava, têm cheiro de infância —memória afetiva, repetiu
ela —Entendo, disse o noivo, sem fazer outra ressalva. Nesse momento a silhueta - tão diferente de Gerard - estava
contra a janela da sala, negra, exceto talvez por nuances de marrom avermelhado no contorno, mas estava longe de
parecer um fantasma, tinha argumentos muito sólidos, de gente viva; a janela não transportava nenhum feixe para a sala
exceto quando o vulto dela se aproximou e aí passou a haver um quadrilátero luminescente no assoalho, a sombra das
lâminas da persiana se tornaram nítidas na parede oposta, as cortinas ouro puro —Mas sabe, pense bem, é longe do
centro, vai ficar difícil ir trabalhar, terei de acordar muito cedo, vamos ver outras, talvez um apartamento na cidade,
estou indo, você vem comigo? - Nao, vou fechar as janelas, a gente se fala depois, não dá para acreditar no que você
diz, pensou, uma coisa agora e depois outra, Podemos vir nos finais de semana, gritou o noivo saindo no ponto exato
em que o homem abrira a porta em par, e a luz se fez - Deus é foda - disse ela baixinho não o bastante e o noivo disse
que mau-gosto misturar Deus nessa linguagem —eh que você é muito fino e religioso mas não foi capaz de abrir a
porteirinha e me deixar passar antes. E ela ficou sozinha, uma sombra, um espectro vagando pela luz que inundava a
sala como se levitasse nas emanações do assoalho ecoando, preciso dar um jeito, não posso me casar de novo, não
posso me casar com outro, mas não foi preciso fazer nada ou deixar de fazer, o noivo sequer chegou a ver qualquer das
casas e apartamentos que iria ver e como a gente faz para não sentir culpa quando acontece o que apenas desejamos?

Os moradores da Travessa das Cores não tem outro assunto além de Fabio. Ninguém acreditava sequer que
ele ia manter seu emprego sabe Deus como conseguido. Agora as pessoas têm de lidar com o fato de que ele alcançou o
sonho de muita gente. Andava de lá para cá na vila todo metido, sem camisa, resolvendo uma e outra coisa
ostensivamente. O voo para o Canada está marcado para o dia 10, um sábado. Tentou nesses dias falar com Sarah, em
vão.
—Ela não quer te ver —disse Gek.
Ele ia manifestar a exaltação numa resposta, mas se conteve.
- Diga que quero que ela vá comigo.
Seria inútil.
- Apenas diga.
Gek dirá, mas será inútil.
Ela trabalhava com Fábio no cartório de imóveis e testemunhou todas as reprimendas que ele sofreu por
causa dos games em hora de expediente. Também se candidatou a uma das vagas. A outra foi dada a uma moça de
Ikonya, jovem robusta e maternal, muito morena. Usava roupas largas a partir dos quadris, mas sempre muito
decotadas, dava para ver toda a estrutura óssea de seus ombros quando ela abaixava. Caminhava com passos largos e
lentos.
—Vocês são patéticos —disse Gek, tentando endurecer a voz que choramingava. —Mas essa necessidade de
ter uma menina do lado é pura fraqueza —concluiu, visualizando as nádegas da tal Cristine.
Fábio de novo esteve para dizer que ela não se metesse e apenas desse o recado, fizesse com que Sara
aparecesse, mas de novo se conteve e nada disse, mas apenas: - Estarei amanhã o dia inteiro nesse endereço.
Gek pegou o cartão, que brilhou um segundo ao sol. Aproximando-o dos óculos, ela viu o logo do hotel e
pensou Você realmente não espera que eu faça isso, não é, seu idiota? Ele continuava olhando para ela, com pressa de
sair do cartório, mas sem aparentar, como se tivesse todo o tempo do mundo para examinar cada expressão facial do
ciúme de Gek. Ela colocou o cartão no sutiã e passou em seguida a alisar a parte de trás da saia com mãos inquietas.
Você não acha realmente que eu vou fazer isso...

Em casa, Gek passou desfilando pelo corredor que ia para seu quarto. Dois quadros da senhora Lens de cada
lado.

Gerard nadava no lago quando a praia estava cheia. Estimava que tinha uns quatro a cinco metros de
profundidade. Águas claras e mornas. Ao redor da casa, a cordilheira geralmente enevoada. São oito horas da noite. Foi
o primeiro dia de sol do verão mas não está prevista pancada de chuva sequer localizada.
Ranger de uma porta. O sussurro do vento. O silêncio, o vento e a porta são tua voz. Por quanto tempo
suportaria. A senhora Lens respondeu um sonho é feito da mesma substância de que a realidade se nutre. - Não acorde
—disse ela numa lufada quente; - não acorde...

Certa noite ao voltar para casa escutou as vozes de um adulto que ralhava com uma criança. - Porque aqui
não é Hatknak! - dizia. Gerard não sabia do que se tratava mas era uma frase precisa.
Tinha sido um longo dia. Quando o carteiro passou, ele foi perguntar. Eram de fato pai e filho. —Boa gente
—garantiu. O homem é viúvo. Enterrou a mulher aqui mesmo na propriedade.
- Mas o senhor não se importa isso, não é, senhor Gerard?
- Não me importo.
- Não tem medo, não é?
- Ah, claro.
- É que o pessoal daqui é meio bronco, o senhor entende.
- Sim claro. Está tudo bem.
Depois de nadar, voltava e caminhava pela propriedade e vez por outra parava junto ao túmulo e descansava
na lápide.
Um dia ao telefone disse que sim, já cheguei, estou aqui, estamos em baixo, no quintal. Era a segunda vez
que Keshia vinha passar o final de semana. O caseiro ainda ao telefone confirmou, vendo o que ouvira, que Gerard já
tinha chegado. Abriu a porteirinha e o cão se imiscuiu indo direto para as moças sentadas na mureta, ah que gracinha, e
fizeram festas na cabeça e Michele chegou mesmo a meter a mão entre os dentes do animal balançando e balançando o
imenso focinho à maneira de Gerard um dia com a vassoura. Ele e o caseiro foram ao encontro do mesmo abraço.
As meninas pareciam concentradas brincando com o cachorro. - Quem é? —perguntou Keshia. - O caseiro. —
Charmoso —É mesmo, mas... - Ah, é lindo, másculo. —É mesmo, mas... —Não seja estraga-prazeres. —É impressão
minha ou você está ficando muito assanhada? —É impressão —disse Keshia, rindo. - Não te convido mais, hen?
Elas conversavam com umas das mãos apoiadas no pelo negro, liso, cheiro típico de pet bem cuidado.
Estavam sentadas na muretinha e a muretinha não estava longe do túmulo, daria para ver a cruz se virassem o rosto
para trás. A blusa de Michele é preta, o decote em V fundo, dava para ver o biquíni preto por baixo. O cabelo é natural,
está preso num coque despojado, casual, desses que as mulheres fazem em segundos para conforto no calor. Os cabelos
de Keshia agora são lisos e estão muito bem escovados, o xampu cheira de longe.
-Sinto saudades de tuas trancinhas.
-Mentirosa...
O caseiro viu o quanto eram bonitas e deve ter comentado com Gerard em algum intervalo dos assuntos de
encanamento, horta, capinar a entrada e em torno do túmulo, a vinha, enfim. O homem falava alto, gesticulava, as
amigas começaram a rir e só então o caseiro olhou para Keshia detidamente.
- Ela também eh filha do Senhor George ?
- São amigas.
- É uma bela idade —diz o caseiro, estendendo a mão.
- Prazer —diz Keshia.
- Prazer —diz Michele.
- Vamos - diz o caseiro ao cachorro depois de uma última olhada. O cão imediatamente se aproximou,
balançando. Saem pela porteirinha.
Michele diz para Gerard que ele está ficando igual ao pai dela, dá muita confiança aos empregados. Gerard
responde que ele é mais que isso, é um amigo, e amigo do teu pai antes que você nascesse. Amizade é tudo o que
importa na vida, concluiu, entrando em casa, resmungando.
Michele e Keshia se entreolham, perplexas.

Gerard tirou a camisa e se jogou na cama. Pensa no menino que corria atrás das coleguinhas, mas não é capaz
de compreender o homem que se casou. Porque a compreensão da loucura acaba se tornando a própria loucura.
Fazia quase um ano que tinha reencontrado Michele na praia. De repente inspirou, falou sozinho, descobriu
que, pronto, era isso. Decidiu. Não importava quem dissesse o que. Até porque ninguém precisava saber.
Só quer ter paz, pensa enquanto se aproxima da casa.
Sarita passou por ele em sentido contrário. Quem pensa estar enganando? Cortejar uma mulher casada...
Devia dizer a ele o quanto a senhora Lens é decente e boa. Diria “ Olha, esquece isso, deixe-a em paz” . Mas no fundo
experimentava certa simpatia pelo sentimento de Gerard, embora fosse ser fiel ao senhor George, que a tirou da rua.

No ano 2000, quando as pessoas enfim estavam aliviadas quanto ao bug do milênio, Gerard morava na zona
rural de Haiktanak, num apartamento alugado por quatorze dólares por mês. Depois de tudo, precisava sair de Celba.
Ficou um ano sem internet, por opção. Trabalhava então como cuidador de pets, uma profissão que esteve na moda por
volta dessa época. As pessoas iam sair de noite ou viajar e precisavam deixar seus animaizinhos com alguém então
chamavam o cuidador e ficava com eles e passeava-os no caso dos cães e limpava as caixas de areia no caso dos gatos e
dava comida aos peixes etc. Percebeu um dia que nunca na vida tivera tanta paz; todavia, vivia aflito porque não tinha
vida afetiva ou sexual. E um dia se perguntou se eram coisas excludentes, ter paz e se relacionar.
Essa foi a época das cartas. Nunca escreveu tanto, a ponto de desenvolver uma bela caligrafia. Nunca leu
tanto. Consumou o desejo de viagens reais quanto à estação Kamata no último dia do inverno. Estava certo de que,
após resolver as coisas referentes à estada e se despedir da moça que viajara no mesmo avião (ainda não sabia bem de
que maneira), as cerejeiras representariam um novo começo.

O homem que foi bom com Joana no princípio não haveria de ser indiferente com o que se passa, ela tinha
certeza. Ele achava exagero pois sua aparência não estava tão má assim; mas é melhor pagar esse médico logo. O ruído
sombrio dos passos morreu no tapetinho da entrada, que lá estava desde quando Joana ainda tricotava. Até porque havia
uma questão afetiva, patética naturalmente, mas real, ligada a sentimento, que se intensificava cada vez que ele pisava a
singela mistura de crochê e barbante.
- Aqui está. É o bastante?
Ao sair da casa de Joana, George passou no restaurante do beco e jantou sozinho, bebendo com moderação
exemplar. Olhou um bom tempo a chuva que se formava, talvez estivesse já caindo para os lados da capital. Clientes
entraram e saíram, apontando para ele.
- Vai acabar ficando maluco por causa dessas mulheres —disse um.
- Devia ir para casa e cuidar do que tem lá, daria menos trabalho.
- E seria mais saudável...
Duas apanhadoras que sempre sentam perto dos Lens na missa passaram, rebolando.

As faixas paralelas no pavimento da rua lá embaixo advertem e orientam em branco refletivo sobre fluxos e
faixas de pedestre. Fazem imaginar uma outra via, suspensa e transparente como uma camada. A palavra “ bus” ,
alongada para caber, funcionava como um plano de fundo bloqueado. É uma ilusão mas tem um peso relevante no
olhar de Joana. Parados esperando para atravessar, os passantes parecem bolas amassadas como o globo nos polos;
mas apresentando, proporcionalmente, um achatamento maior. Ossos de corda coloridos quase circulares. Ela
rapidamente sai dali e pega o elevador para descer. Aproveita que está atrasada para o médico e se impõe a pressa. Sua
imagem serena e desesperada entre os caixilhos do espelho. Cansada e envelhecida.
Ela não escutou o tranco do térreo que vibrava em seu corpo. Cumprimentou com a cabeça a senhora que
entrou sem esperar resposta. Por que tinha de mostrar interesse, aceitar a ajuda de Georges, o dinheiro dele para a
viagem, o dinheiro dele para a consulta, mas ela não precisa de médico, com certeza não preciso, pensou, olhando a rua
iluminada. O fim seria a melhor coisa de sua vida.
Procurou não deixar evidente seu estado terminal, mas a gerente deve saber. Todos os que sentam naquela
cadeira. Joana desviou o olhar para o terninho da mulher, elegante e sóbrio, seu tipo de roupa, o tipo que seria o seu
num mundo perfeito. Não faz idéia do que sejam juros de mora e não entende por que não pode fazer um novo
empréstimo.
- Mas e se hipotecar o apartamento?
- Você já hipotecou, senhora.
Joana respira fundo e pede alguns dias. Dá para ver pelo vidro as caixas de papelão empilhadas na sala atrás
da mesa, após os reflexos retos, prateados, agudos, as lâmpadas da sala de espera. O olhar da gerente fez um percurso
redondo para retornar para Joana. Quando ela saiu, a mulher tornou a olhar para a tela, respirou fundo e apertou os
lábios. Nessas horas se lembra por que teve de abandonar escrúpulos para conseguir aquele cargo.
A definição dos dedos que seguram o telefone é magnífica, o médio destacando-se com sua unha sem esmalte
e todavia rosada. Estudante, 28 anos, discreta, alto nível. Não, é só isso. Ou melhor, espere. Inocente. Coloque
“ Inocente” . Viu que o assoalho precisava ser encerado, talvez até colocar sinteco de novo. Na verdade tinha de voltar
a varrer a casa, não dava para usar a doença como desculpa para não cumprir suas obrigações. Então caiu em si que não
podia mais. Estremeceu. Nem isso ela podia mais, pensou com terror.
Caminhou para o lado da janela, evitando-a dois passos antes. Agradeceu à atendente antes de desligar.
Talvez seja o último raio de sol esse que umedece seu lábio inferior.
George tinha coisas novas na cabeça. Enquanto Joana se trata, experimentará parte das fantasias com sua
mulher.
Não estava mais dando certo, pensa a senhora Lens , estirada na cama. Não estava dando certo. Deixara de
ser um período produtivo. À janela, percebe que Gerard se aproxima.
Entre George e Gerard, Joana havia desenvolvido os sintomas. Embora a janela esteja fechada, pode sentir a
vida dos animaizinhos da noite. Vela agora o sono dele. Uma mulher de sorte essa mulher: amada assim por este e
tendo naquele o provedor. E se de George relevava a violência, condenou em Gerard a demasiada ternura.
E o que a mulher dele diz?
- Ela não sabe - disse ele.
Joana olha um o fio que corre da cortina antes de responder.
Ah sabe sim é claro que ela sabe. Meu pobre amigo...

Amanhece e o cheiro de pão é o cheiro de Celba. Joana trouxe três. Gerard não se levanta. Não tem motivos.
- Deixe de bobagem.
- De onde vem essa música?
Passos no quarto. Gerard não sabia que ela tinha irmãos menores. Que ela precisava fugir do mais velho que
não dormia, que raramente dormia. Ela tampouco imagina as agruras de ser filho único e no fim desprezado por essa
única mãe.
Então ofereceu o colo para que Gerard dormisse.

Não havia mais o que acontecer; era o fim da temporada, do verão, do tempo. A treva absorvera a luz e o céu
se diluíra no mar azul desesperado. Ao chegar à janela diante da imensidão que se abria, não viu nada. Desde que
regressou, segundo a opinião de todos, Gerard era outro homem, se é que era homem, que era um ser, se é que era
humano; mas nas profundezas a vida que se retirara repousava uma atividade essencial como a força dos vulcões. —
Eu sei que você não me deixou —Michele dizia. —Eu sei —e o tocava com as mãos calejadas que terão ainda de
dobrar o monte de camisetas com estampas.

A possibilidade de estar infectado inexistia para George apesar de saber o estado de Joana. Passou a encontrar
amantes de nível superior, da capital, mas por outras razões. Porque ela estava ficando feia; porque estava ficando
chata.
Victor não estranhava que a namorada não o acompanhasse quando ele ia a Celba levar manuscritos. – Você
trabalha demais, Victor. – Cati dizia. Podemos pegar uma praia depois. Podemos ver o pôr-do-sol. Não faz muito
tempo, no banheiro do apartamento que ele alugara com a venda de seus primeiros originais para uma editora da
capital, na tarde em que ele viajou para comprar a mesa que Cati tanto pedira, o vapor orvalhava os ladrilhos e o corpo
da mulher se revelou entre os dois blocos de vidro batido que isolavam o som do chuveiro e o calor onde ela se movia.
Dá a impressão que o corpo é a fonte do calor. A água escorria e ela balançava a cabeça e abria a boca. Um filete de
água em sua orelha, um brinco prateado. Cachoeira de espuma desde o ombro direito descendo como linha nigra. Cada
fricção na cabeça um balanço dos seios.
Na sala, Georges fez uma ligação e esperou. O sapato marrom reluzia mexendo sem parar. A porta fez grande
estrondo ao ser destrancada e outro quando aberta.
– Desculpe, querido. Demorei, né?
No dia em que sentiu o cheiro de um amaciante que ela não usava, a senhora Lens disse a si mesma que o
homem de negócios matou a criatividade do marido. Culpou as leis do País e a economia e a burocracia. Ou, como Cati
acreditava, ele precisava de uma nova musa.

Há em Cati um pouco do que havia na chuva da noite anterior e na lama que deixou para os lados dos
pescadores, dos hotéis baratos. As catadoras de conchas bebiam cerveja no bar ao lado do prédio amarelado. Quem esse
rapaz está procurando em meio ao cheiro de peixe que se mistura ao de esgoto sob o tilintar do boteco? O próprio
Gerard não sabe a resposta. Ficou ali parado um tempo enorme perto do mar que quebrava nas pedras. A rodovia
ilumina a salinha a intervalos regulares e ali está ela, sentada e inerte, vencida. Um dia ela o viu chegar.

Às vezes parece que está enfeitiçada. O casamento da filha deveria ter acabado com essa história. Georges
dava o que ela pedia. Amor e prazer, fidelidade, são coisas relativas. O tempo que se perde com uma fantasia...

A moça da limpeza procurava a chave certa da porta onde são guardados os produtos. Colocou-os no carrinho
que empúrra para o apartamento 411. No 410, um notebook está aberto. “ Estou deixando o emprego. Precisamos
conversar a respeito” . Ela vai ao banheiro e tira as toalhas molhadas. Uma senhorinha passa pelo corredor, falando no
celular. O homem está num taxi. Sol por todos os lados. Seu jeito amável é quase feminino. Não sabem do que é capaz
quando se zanga. A mulher da limpeza pensa nele. Foi só aquele segundo mas causou-lhe impressão. Os hospedes não
deviam se expor assim. Ou talvez seja a hospedagem em si. Mesmo na prisão tinha mais privacidade.
O carro à frente do taxi freia e freia de novo. Na via expressa o zumbido de sempre, impessoal, até alguma
coisa acontecer. O homem chega à janela e fica olhando. O carro à beira da avenida é puro ferro retorcido. Esse outro
em direção oposta chegou a capotar. Nasceu uma urgência dentro dele.
O zumbido é mais alto no ônibus. A respiração de Sonia embaça o vidro. Tem de fazer as compras e ainda
voltar ao trabalho antes que dê a hora. As luzes se acendem lá fora. Na bolsa o celular e o irritante barulhinho.
—Daqui a pouco você liga. Não quero saber dele. Não, não tenho ninguém, quem ia querer uma mulher na
minha situação? Não é o fim do mundo. Logo vai ter progressão do regime e estarei em casa. Mãe, preciso trabalhar e
depois tenho aula. Tudo bem, mãe. Tudo bem. Também te amo.
O hortifruti à frente, todo cores. Ela põe o celular na bolsa e entra.
Mais tarde no quarto o homem estava numa posição determinada. Ela caminha um pouco e, desse novo
ângulo, vê que a esposa na tela está na mesma posição. A mão no queixo, o cotovelo na coxa, curvados. Nossa, pensa a
moça, não quero terminar assim.
Ele a acompanhou rua acima. Ela manteve o passo na escada. Quando ele fechou a porta, sons de pano se
juntaram aos gritinhos de crianças e latidos. Ele viu arrepios amarronzados como grãos maiores de areia submersa ao se
levantar dos pés de um banhista.
O carro da polícia chegou na nuvem azul. A sirene chicoteava o ar calmo de uma noite igual. Um policial
acompanha a mulher no fundo da rua vazia levando-a pela algema. A policial à frente confere as coisas de sua mochila.
Ela se vira e seus cabelos tapam a metade esquerda de seu rosto. Todas as cores se tornam azul e depois voltam a ser o
que são. Ela vê o homem na entrada do motelzinho.
— O que aconteceu? —perguntou Sarita à policial como se falasse com uma velha amiga. Depois entrou em
casa gritando. —Dona Rose!...
A senhora Lens está deitada. Portas batem repetidas vezes. George saiu para encontrar a moça doente. Que
relacionamento eles tem. Antes Michele saltitante. Saiu ao pai, melhor para ela. Tenho medo de pensar se Gerard está
em casa. Agradeceu então a Michele por não ser fiel.

Fabio aproximou-se de uma forma diferente. Disse a Michele que havia mais coisas envolvidas do que sexo.
Que ela fazia parte da vida de um modo essencial. Podia ir com ele para o Canadá. Ela riu.

Sara se contorcia para olhar o palco. O cabelo louro curtinho sob as luzes da boate. As manchas que impedem
o cantor de vê-la mais que alguns segundos são as cabeças dos casais. Não parece o mesmo homem do trio. É outro tipo
de música e outra voz, outro tudo. Ela sorriu de novo e abaixou a cabeça, coquete. A sobrancelha arqueada e bem feita.
Batom discreto, vermelho pálido. Pó de arroz. Tão linda. Ele é muito feio. Tem seu encanto mas é muito feio. Essa
gravata lhe caiu bem. Sara nem sabia que ainda se usava black-tie.
Do palco, parece que a rosa está imersa no abajur quadrado da mesa. Parece que está sobre a cabeça dela,
como uma tiara. O cantor canta na direção dela, fala com ela, implora, exige, e ela faz que não sabe. Eduardo se
contorce para o outro lado e fala com o sujeito da outra mesa, quando saírem passam lá e a gente resolve, responde o
outro. —Mas está mais caro, sabe como é, a inflação.
Os olhinhos do cantor são pequenos e ainda menores apertados. Aproveita as manchas para piscar. Sara toda
derretida. Se alguém estivesse prestando atenção, estranharia. Eduardo estranharia. Tinha sido sexualmente perfeito.

Quando Sara acordou lentamente olhou para si mesma nua sob os lençóis e depois para a bandeja sobre a
cômoda. Dois sucos de laranja (o resto oculto mas os hotéis da região servem café, pão, leite, duas ou três frutas da
estação, biscoito e doce). E a rosa semelhante às que havia sobre a mesa da boate. Sentou e esticou o pescoço e viu seus
sapatos de salto junto ao par de botas marrons cano longo. A voz masculina não parava com a cantoria. Nasceu para
isso, pura vocação.
Ela levou a mão esquerda ao rosto e balançou a cabeça. A luz da manhã entrou pela janela e dourou a parte
direita de seu corpo como se ela estivesse nascendo ou renascendo. Ele abriu a porta do banheiro e antes de sair lança o
mesmo olhar do palco. É a sequencia natural para ele; para ela, parece que não. Ficam se olhando e passa uma nuvem.
Ela colocava os sapatos de salto enquanto descia as escadas vermelhas. O eco dos passos é intenso quando chega ao
hall.

Quando tinha dezesseis anos, com um vestido longo e largo, Cati abordava as pessoas na avenida dizendo
como eram bons os filmes da trilogia das cores. As pessoas passavam se dignando no máximo a uma olhadela no DVD
entre seus dedos brancos e carnudos sem escutar nada do que ela dizia, todos com fones de ouvido. Desce as escadas da
estação correndo e segurando na grade para virar à direita com os nós dos dedos acentuados. O jeito blasé a isolava
mais ao se juntar à questão de raça e religião. Ela não ligava. Dispensava amizades. Impunha-se esse limite de contato
humano, a vida de ambulante.

Victor bateu à porta do amigo. É a entrada do prédio mas ninguém atende ao interfone. Ela chegou por trás
com olhar severo e pronta para brigar. —Ah, você mora aqui —disse ele. —É que estou procurando...
O irmão de Cati colocava pregos numa cadeira de ponta cabeça perto da janela da sala. Não pensa “ terminei
assim, eu, um engenheiro” . A irmã sim pensa. Num mundo ideal ele teria sido um homem respeitável.
—Olá —disse em outra língua quando ela gritou seu nome ao entrar.
—O que é? Como assim, um policial? Por que um policial me procuraria?
O quadro mostra a torre Eiffel e pessoinhas andando em torno. Ela entra no quarto e fica ouvindo atrás da
porta. Falam pelo interfone.
—Ah, é você! Sobe.
O sorriso é franco. Sente muita falta de falar com as pessoas. Nunca se adaptou. Ela sim. Sai do quarto. —
Como assim, sobe? Quem é ele? Que tipo de amigo? Você tem amigos policiais? Parece um policial.
Os olhinhos de Cati piscam rapidamente. Sombras e lápis e rímel e tudo. Uma típica estrangeira por quem os
nativos costumam se interessar não a sério mas ela está adaptada e sabe se defender.
Um dia entrou no elevador onde estava um casal. Nunca os viu, que se lembre. Fez-se um silêncio que se
podia pegar —imobilidade perfeita, de foto ou frame. O telefone está tocando. Alô, oi, como vai, sua irmã, o que
houve, claro, ela pode ficar na minha casa o tempo que precisar, fica tranquilo, cuido sim, abraço.
Era pouco mais de meio-dia e ela não entende de imediato as batidas em código. Seus olhos grandes, maiores.
Um reflexo borrado no verniz do armário. Ela abre a porta e dá as costas como quem diz “ você” . – Não vou contigo,
vá embora.
Chegaram na casa de Victor no fim da tarde. Antes estiveram uma hora ou duas no banco à beira do lago. O
vermelho faz todo sentido, aquece tudo. Um belo casal. De noite, deitaram juntos. – Pode dormir na minha cama –
ele dissera. – Você deixou muito claro que não sente nada por mim. De manhã ele saiu bem cedo como sempre. O
relógio do celular tocou umas dez vezes na função soneca antes que ela acordasse.
Agora ela pensa Meu Deus, foi há dois anos, só dois anos.
O marido de Rose, o homem de cujos lucros, para irritação de Cati, a senhora Lens participava, George está
no trabalho, dando duro, e graças a ele a mulher está agora em casa numa tarde de terça.
A campainha tocou duas vezes compridas. Quem pode ser, numa tarde de terça?
Foi nesse dia que passou a esperar. Olhava os dois homens jovens lado a lado emoldurados pela porta.
Encontraram-se por acaso, vindo. Eduardo queria o endereço de Michele. Ganhara um computador do pai para fazer os
trabalhos da escola. Nao era imaginável que se interessasse por algo além de surfe, mas sim. Ah, disse ele, estava
adorando. – Como assim, estava? Não está mais?
Duas apanhadeiras de conchas passam e olham para os rapazes e murmuram entre si. Como é possível? Ela
não se enxerga? Todos imersos pela sombra da nuvem que passou no céu movendo a cena.
Eduardo falou sobre os travamentos e como o disquete apagou. Gestos exaltados como se estivesse
acontecendo ali mesmo. Tinha perdido tudo — os trabalhos de um semestre na faculdade. Em torno as ondas gritavam
ela não está olhando para mim, está olhando para ele...
– Dá para recuperar sim fica tranquilo. O novo sistema operacional tem esse recurso. Vou à sua casa mais
tarde se você não for sair.
Ela podia convidar Gerard para trabalhar com ela, por que não?
Ele entrega uma revista. Tem uma bela reportagem sobre Morandi. Como ele sabe? Oh sim, morrer na casa
em que nascemos, pintar flores, ter uma vida pacífica, reclusa. Oh sim... – Dá uma olhada —disse ele com um meio
sorriso cheio de significados.
Ela agradece, obrigado Gerard, você é um amor, e ambos entenderam. Por isso Gerard desistiu da confissão.
Ela sabia.
Agora há ruídos de passos sobre pedrinhas em torno do tapetinho. – Vamos – disse Gerard para Eduardo. –
Foi uma bela coincidência te encontrar aqui. Vamos... Deixo você onde quiser. – Tchau, Eduardo – disse a senhora
Lens. – Obrigado de novo, Gerard. Uma delicadeza ter se lembrado.
Deitada a sós ela pensa que Gerard era realmente gentil. Por que Michele não usufruía do amor de um marido
assim? Desconfiava de alguma coisa? Não. Teria vindo agredi-la à menor suspeita.

Era o tipo de noite em que a senhora Lens costumava se levantar tateando e buscava o interruptor do abajur
da sala e ligava para ou recebia ligação de Silvia. De que falariam hoje? Silvia e Victor? Em noites assim conseguia
rememorar. As luzes e as pessoas engalanadas, o apagar das luzes. Imagens de um ficar inesperado. Jamais antes ou
depois. Um rapazinho gentil que tratou-a como igual, ela, entrada nos trinta. A escada na penumbra de um mundo
indiscernível. Rose e Jeferson. Sente os dedos másculos e agora a própria masculinidade. O que é isso, sou noiva.

Victor andara perdendo noites e noites de sono numa novela sobre seu relacionamento com Cati. Ninguém
dava a mínima e ela menos que todos. Para a senhora Lens ele era a prova de que o pólo literário de Celba podia ter
sido uma realidade. Se não houvesse falcatruas. Se só dependesse de boa vontade e talento.
Há dias ele se sente cansado. Georges possui uma energia inesgotável. Diuturnamente os dois como criaturas
das trevas pairam sobre vales de vertigens. Cati terá o melhor de cada um. Vasculha as possibilidades. Uma divindade
animal que aceita o sacrifício dos melhores pedaços e queima o resto.

No primeiro encontro com Silvia, Victor se queixa. Por que escolhemos sempre as pessoas erradas? Pelo menos, ao
menos, encontrara em Georges um amigo.
– Embora medíocre ele é uma ameaça —disse George com os seios de Cati nas mãos, troféus e algemas —porque
tem um estúpido estilo que quem sabe vingue.
Cati quer fazê-lo esquecer a miséria de depender das prostitutas. Uma mulher de verdade pode suprir. Braços
abertos cuja sombra na parede lembra águia e abutre na escuridão entre sussurros de gozo planeja o futuro.
A voz se propaga na direção de Georges. Associa a textura da roupa do homem com um movimento de olhos.
Ao olhar para ela, ele capta uma energia perdida. Reconhece a localização do corpo pela voz que trêmulo escuta.
Quando levanta da cama o perfil da moça é recortado por um brilho difuso.

Um dia Cati estava deitada falando ao telefone. A alça da camisola cai do ombro e uma auréola aparece.
Victor dizia “ o nascer de um sol particular” . Georges entrou no quarto falando alto. Cheiro de álcool digerido.
– Não sabia que você vinha hoje —disse ela.
Cati nunca teve ilusões mas mesmo assim não sabe qual é sua fala. Dirá “ tire minha calcinha com mais
força” ou “ por que essa violência para ter o que eu te daria de bom grado?” Ou quem sabe exista outra versão da
cena. Fica calada enquanto ele faz tudo. A última chance de escolher foi quando a cueca ficou presa na perna e ele
demorou para soltar. O luar agora é testemunha de que não há mais nada a fazer além de esperar que, quando termine,
ele não durma nas suas costas.

Réstia da luz do dia por sobre o casario de onde se destaca a morada branca com detalhes em tijolos
vermelhos. Victor é um ponto diante do portal. Confunde-se com a sombra do muro às onze horas. Tinha ido discutir
com George títulos da nova coleção. A vila estava quase oculta na bruma.
Pernas pressionadas num beijo sob o fícus. A treva oculta as partes visíveis do rosto de seu rosto.
—Bebemos muito talvez —disse Silvia. Um só rosto úmido de orvalho e cabelos entrelaçados. – Como vai,
senhora? —cumprimentara ele ao entrar. – Muito bem —respondera Silvia, avaliando o seu sotaque. —Obrigado
—disse ele. —Gentileza.
Não, disse ela, era verdade, Victor era muito talentoso.
Uma nuvem passa e ela pergunta num canto se ele já tinha se relacionado com uma mulher mais velha.
Ele tem namorada.
Ela sabe e sabe outras coisas. — Pergunte a seu patrão.
Estava insinuando?
Afirmando. — Oh não chore.
Silvia não queria que ele se magoasse mas não teve escolha. Um rapaz tão correto. Não podia permitir que
continuassem a enganá-lo assim. Deixe-me consolar você.
Esse perfume.
Não. A morte, somente a morte.
Cálida a mão que o toca, sabe das coisas. —Não fale assim, não pense mais nisso.
Escureceu. A luz do poste quebrada no alto do muro. O que resta se dilui entre as folhagens. Nada de
abstrações. Passos. Centro de um decote. Joelhos na terra fria. Por que ela fazia isso?
Precisava de uma razão? Pois bem. Queria morrer com ele.
- Deixe-me em paz.
Não. Morreriam satisfeitos.
Você quer isso mesmo?
Michele olhava pela fresta da cortina e viu quando Silvia se abaixou.
Victor se rende. – Continue. Não pare – repetiu.
É uma noite limpa, linda. Uma Celba de paz pela janela da pousada, O efeito do corpo de Silvia é devastador.
Enganam as roupas escuras
O inferno espreita quando na bruma o portão rangendo se abre.
Eram dedos finos e hábeis de quem digitava bem. Na madrugada sombria a língua fria como o mar de Celba.
Apenas alguns minutos. Não mais que alguns minutos.

Gerard foi receber o Fundo de Garantia e viu quando subiram. Chegou a encostar o dedo na madeira mas não
houve batida.
Michele passa em frente ao hall e segue seu caminho.
Caso prestassem atenção perceberiam que a cidade estava mais quieta do que costume. Caso tivessem
acompanhado os noticiários. Houve enchentes nas províncias vizinhas. A vila estava isolada. Os sons são os sons de
sempre – a música dos cafés e o ruído dos geradores, bombas d’ água, passos nas casas, televisão. Mas não sons de
rua ou pneus sobre a rodovia nem ecos residuais de motores.
Literatura de terceira, pensa Vitor. A vida não acontece sem um monitor na frente de Silvia. Vida de que Cati
transbordava.
Cati e George juntos: a união de seus fracassos, perdedor em todas as áreas.
– Nada impede que você mantenha os planos originais. Eu te darei uma força. Ficar com essa moça não faz
parte do projeto.
Todos irão se lembrar de que era novembro. Poucos saberão que a causadora foi Cati. Ninguém mais ouvirá
falar dela.
Ao longo da noite, por causa dos tempos condenados, Victor pediu que ela sentasse e levantasse, levantou-lhe
os braços e segurou-lhe os pés, mandou-a se mexer e parar de se mexer, e agora por favor deite-se. Então ela lembrou-
se de que não gostava de obedecer. – Pare! – É patológico, doutora?
Ah Cati, como eu a teria feito feliz, pensou ao ouvir a outra voz.
– Está me machucando!
Silvia só queria de novo estar sozinha. Prazeres anteriores, estar em sossego, sem perturbação além do
barulhinho do Messenger; mas é tarde demais, está mesmo machucando. Não é o que ela quer, não mesmo. Pensamento
vulgar. Nada mais a ver com o outro Victor, o idealizado, talvez até verdadeiro um dia.
– Quieta!
Os corpos desenvolverão odores hediondos.
Michele vira o bastante em casa e viu mais ao segui-los mas não o brilho da lâmina, a sombra do braço.
Ouvem o grito mas é melhor fingir que não. Silêncio agora. O ônibus de Haktanak. Silêncio de novo.
– Foi tenebroso, horrendo; bem que papai disse que eram loucos.
Michele saiu da missa de moto no começo do sermão. Gerard deseja saber aonde e encontrar quem.

Estão num café e a janela os enquadra desenhados por um pedaço de giz que se esfarela. A sombra reinante
retira a mesa diante deles como se estivessem em cadeiras frontais num tipo de jogo ou num interrogatório onde, se
fosse o caso, seria difícil dizer quem era o interrogado. – Não temos futuro —disse Michele. – Acabou.
Ele pergunta se alguma vez tiveram futuro e completa dizendo que ter ou não futuro nunca foi problema e
toca com seus dedos o braço dela, assim, sentindo a eletricidade. Contato de habitantes de planetas diferentes. Palavras
apenas acompanham ou não os atos, como latinhas presas no barbante amarrado ao pára-choque de recém-casados. —
Coisas acabam e recomeçam o tempo todo, que diferença faz?
– Quando você chegou? —perguntou ela minimamente interessada na resposta. E completa: – Vou me
casar. Ainda hoje estávamos procurando casa – a voz está estridente como se os articuladores tivessem perdido a
capacidade de filtrar. – Comprei uma máquina industrial que corta e chuleia para trabalhar em casa.
Ela havia levantado. Na verdade apenas separado as nádegas do assento. O amarelo se juntou ao branco e
sumiu no negro em seguida. Dá para ver agora, com o luar, o painel frontal da máquina.
Quando a luz da sala se acendeu, ele percebeu o quanto a casa estava diferente. Uma lâmpada halógena azul
com efeito degradê. Almofadas com cores suaves. Altura ergonômica das mesas. Tem a ver com produtividade, com
certeza.
Apoiada na pia ela passou do bule para a garrafa térmica o café quase da cor da blusa que usava. Os cabelos
soltos do coque escorreram desgrenhados pelo tecido da blusa até os seios. Tantas vezes sonhou com essa aproximação
que recusara um dia, lábios em seus cabelos, um toque de cavalo ou bispo derrubando a dama. Mãos moldando sua
cintura. Afundada em noites e noites insones para entregar o serviço. Ergue o braço e sente a barba por fazer nas costas
de sua mão que não demora estará enfiada nas mechas negras junto a orelha do homem. Um braço na fenda da túnica
que ela usa desde ontem. Cinco dedos alternados regendo os movimentos do rosto e dos olhos.
O monstro voltou, o animal de duas cabeças, rugindo, tomando suas próprias direções margeadas pelo eterno
combate de hálitos e poros e fluidos e fluxos. O ponto brilhante de um brinco. O dedo do anel na pálpebra leve e
nervosa. Agarrados ao tufo os dedos aos poucos de desprendem, primeiro o indicador, sobe e toca os lábios como se ela
pedisse silêncio aos deuses da tempestade que batia portas na vizinhança que restou.
Diante um do outro novamente ajoelhados na cama ele sorriu como quem sonha quando ela girou sob a
abóbada de seu corpo e os dedos caminharam lúdicos pelas costas até a nuca sob os cabelos. As estrias esverdeadas da
colcha dum outro tempo do qual haviam desistido. Dize-me tu, onde —por que razão eu andaria errante?
A lua próxima entre nuvens derramada nos ombros da moça que foi filha um dia. Todas as coisas se apagam
e depois se acendem de novo. Um rio nesse leito e depois o aconchego. Parou de chover e o reflexo da janela se mistura
ao ruído enferrujado da porta aberta.

O sino havia tocado. Joana se levantou da cama e se olhou no espelho. Mais magra e mais pálida, perdera
mais cabelo. A maconha controlava um pouco a quimioterapia mas vontades de vomitar chegaram súbitas. Seu
fornecedor, um jovem de 20 anos, havia sido preso e estuprado na cadeia; se suicidara. A irmã assustou-se e levou um
tiro ao tentar fugir. As lembranças se mesclam no alívio da fumaça.
Desde o final da tarde até o amanhecer manteve-se sentada, jogada na poltrona. Então se levantou e lavou a
boca. Os olhos encharcados e vermelhos. Do líquido lacrimal brotaram lágrimas reais. Leva a mão à gaveta e apanha o
permanganato. Perde-se na contemplação do vidrinho.

Sarah vai deixar a cidade em definitivo. Tinha ganhado muito dinheiro. Teve muitos namorados: homens
como o cantor e os meninos ricos da cidade. Amou alguns nativos. – Vamos – disse ao motorista. – Estou atrasada.
Todos viram o táxi pegar a rodovia.
Sarah pensou se o cantor sentirá saudades ao vê-lo junto à roda gigante onde disse que estaria, mais e mais
pequenino.
Eduardo pensou se ela sentirá saudades.
Que jamais volte, pensou Keshia.
Queria ter sido como ela, pensou a senhora Lens; não, não queria.
Que bunda!, pensou George; que peitinhos!...

A vila estava luminosa depois de dois dias de chuva. A senhora Lens escuta os turistas indo para a praia
separados um grupo do outro por uma posição dos ponteiros e um movimento de luz na janela. As cores nos quadros
retém a novidade. O azul é aromático; o vermelho incendeia. Um novo autorretrato terá um fundo claro e fará dois
estudos do Cristo.
Não podia evitar a visita da filha com o marido. Espera ter sido digna a sua reação ante a notícia do bebê.
Talvez traga, como a própria Michele um dia, um pouco de alegria à sua existência. Quem sabe um neto
ajude também a suportar a tragédia de Silvia, em grande medida sua tragédia também.

Ele estava sentado sozinho à mesa num canto. Os rostos dos que o julgam em torno dele como se cada um de
seus movimentos e expressões contivessem o seu pecado. No tampo da mesa envernizado as ranhuras da madeira cheia
de sombras inquietas. Começou a sentir o cheiro de seu suor quando a professora chegava. Senta a seu lado.
- Você sabia que a mulher do editor está tendo um caso? - a voz é baixa e confiável.
Ele pede licença e se levanta.
Ela o segue pela rua escura. As lâmpadas dos postes se multiplicam nas poças. Casas, oitões desolados e
cornijas conversam com a chuva.
- Por favor, me deixe sozinho, tenho uma entrevista.
- À noite?
- É. Num jornal.
- Os jornais vão acabar.
- Enquanto não acabam.
Aperta o passo e se afasta. Quem dera houvesse mesmo a entrevista. Está ficando sem ter o que comer. E
Michele fazendo pós e depois doutorado.
Andou sem rumo e de repente estava ali. Bateu. Desabafou acerca do desemprego com toda volúpia da
confissão que reprimia.
- Nao se preocupe. Falarei com uns amigos. Enquanto isso por que você não trabalha comigo?
Disse: "Eh exaustivo ser agente de si mesma". Está quase chorando. Ficou resolvido assim.
—Que constrangimento! —exclama Michele ao saber. Gerard não tinha amor próprio? Como ela poderia ficar
excitada junto de alguém que trabalha para a sua mãe?
Talvez sentisse pena deles. Ou inveja.

Havia anoitecido.

Disse a Gerard: "Vou aa casa de Keshia". A alameda sombria parece sacudida pelo terral. Seus cabelos
esvoaçam os cabelos. Eh seu habitat. Aperta os olhos. A cidade está crescendo. Tantos prediozinhos em construção. O
barulho do mar. O mar. Crespo, marrom. Os amigos de George bebem e tocam os copos num brinde à filha que acaba
de passar. Os postes se acendem no som surdo e a luz desenha as anfractuosidades no shortinho. - Ah mas com uma
filha dessas...
Georges sai do bar. Segue Michele de longe por um caminho conhecido. Ela entra na casa. As duas se olham.
- E o que voce esperava? Que ele fosse fiel a uma mulher que ama outro homem?
Michele corre até a janela e vomita, e torna a vomitar.
Sai e vai ao caixa eletrônico. Georges ainda a observa.
Pensa na criança. Em como se sentirah acerca de tudo quando acordar na manhã seguinte.
Esteve sentada catatonica na cadeira do quarto de Joana em absoluto desconforto e agora todo corpo doi.
Então isso. Que amasse sua mãe, os homens são assim mesmo. Mas sua mãe corresponder, era impossível. E
como Joana, uma puta, foi a escolhida para a confissão? Nessas paredes sujas. Nesse lugar infecto. Então derramou a
lágrima.

O mar. As ilhas ao longe. Um barco. Pescadores que voltam. Turistas que partem. Batem fotos. Um tira uma
foto do barco. Outros ficam mais um ou dois dias. Toda vontade se reduz a um banho quente, tirar esse sal, comer
alguma coisa.
Eduardo calçou as sandálias e vestiu uma camisa colorida. Demorou-se no espelho. Se Keshia percebesse a
mudança. Deu por si com semelhante desejo sequer ligado a sexo. Depois de um tempo amante de Sarah um rapaz
precisa de sossego. Uma renda, não depender dos pais, sustentar uma mulher. E que mulherzinha adorável ela daria.
Por ela valeria a pena voltar e ficar.

Uma inclinação do sol ao voltar para casa da loja de roupas em Ikonya, onde estava estagiando, fez com que
Keshia sentisse necessidade de ficar só e pediu à mãe que a deixasse viajar para a casa da avó. Era uma casa muito
simples, a senhora dormia numa esteira, havia a mesa, duas cadeiras, um ventilador, quase nada mas tudo de que ela
precisava. O quarto que mantinha ali para a neta era lugar santo para as duas. Após três ou quatro noites sentiu-se
refeita.
Chegaram praticamente juntos.
- Oi Eduardo. Entre. Mas não diga que esteve aqui na frente de Dona Rose. Ela pensa que Michele vai dormir
hoje aqui.
Que ele por favor esperasse um instantinho que ela ia se trocar.
Ele sorriu, imaginando coisas.

Com súbita piedade Joana encarou Michele. O vento levanta a cortina e surgem as luzes e os efeitos das
sombras. O sino da igreja sela a hora em que Michele pensa Não sou melhor que ela. Os olhares se sustentaram até
Michele se cansar e abaixar o seu. Mal se sustentava nas pernas.
- Ele veio aqui hoje. Eu só queria que ele ficasse com nosso filho.
- E ele recusou.
- Não acreditou que é o pai.
Cheia de ímpetos de decência, Michele se ofereceu para cuidar da criança como um irmãozinho do filho não-
nascido. Poderiam adotá-lo, se Gerard assim quisesse. Por um momento esqueceu...

Ficou na varanda olhando a bauínia e a magnólia na calçada, visíveis a partir de certa altura sobre o muro e
por um interstício na alvenaria. O relógio de pulso dava as horas cheias. Foi presente de Georges. “ Para você não
chegar mais atrasada em nossos encontros” , dissera ele.
Abriu uma das folhas da porta e ouviu os passarinhos de galho em galho piando, como a recebê-la. Retirou a
manta num mesmo momento que chicoteou o pó e um rosto apareceu no cavalete. Olhando direito, o rosto de Gerard
era o rosto da própria senhora Lens
Uma obra-prima de sutileza, conforme Silvia dissera poucos dias antes da tragédia. - Um pecado perfeito —
concluiu com admiração.
“ Acho que estou precisando de um novo marchand” , murmurou de si para si. Os quadros atingiram outro
nível. Não sabia se eram quadros melhores mas, do ponto de vista dos apreciadores de arte, dos verdadeiros diletantes
sem ligação com a questão do mercado, como era ela mesma, sim, melhoraram, melhoraram muito.

A aragem vespertina deslizava pelo tecido leve da blusa. O desconhecido, cheio de braços, mãos e tórax, se
dirigiu a Michele com sussurros obscenos. Ela se deixou apalpar em silêncio. Ele a levou para trás do parque de
diversões e agora vai lhe mostrar porque ela quer que ele mostre.

De tudo que poderia ser atribuído a Michele ninguém pensaria na capacidade do gesto generoso após o qual
saiu pela orla em final de temporada andando contra o sibilante vento vespertino. À perda do amor de Gerard que
julgava uma posse análoga à casa, roupas e carro, seguiu-se despojamento. Faz muito calor. Sofrem as plantas nos
jardins; definham como enfermos terminais. As bicicletas derrapam na areia e os rolamentos sobrecarregados não
resistem. Enchem as oficinas.

Lembrou então Michele de dias semelhantes de sua infância - em especial aquele em que George bateu na
senhora Lens enquanto as flores definhavam sob o sol implacável e deslumbrante. Uma semana depois choveu depois
de meses e Michele presenciava, como voltasse o pai de uns dias fora, escondida, pela fresta da porta, as lágrimas de
Georges ajoelhado diante da senhora Lens , pedindo que ela o perdoasse, que ele jamais faria aquilo novamente.
Chorou tanto que foi consolado por sua vítima.
O monte coberto pelas nuvens reinava absoluto e o curso do rio retomou volume Naquela noite —isso
Michele não sabia mas podia imaginar —Georges possuiu a senhora Lens e lhe disse palavras de amor e prometeu
mudar e ser um bom marido, foi a bebida, a maldita bebida... A senhora Lens fez que acreditou e na verdade gostaria
de acreditar, mas a bebida não modifica a essência das pessoas.

Após um tempo enorme, voltou ouvir o barulho do mar. Quando acordou pela manha, a casa estava em
silêncio. Michele, menina de seus oito anos, saira com seu cão pela praia, esta mesma praia. A roupa nos varais não
tremulava assim, estalando como uma fogueira.

No antepenúltimo dia de seu aviso-prévio, Gerard Lange decidiu que precisava ver a mãe, ajustar essa conta
com o passado. Não tinha recebido nada do acerto com o banco, apenas o salário do mês anterior, do qual restara quase
nada. Era uma viagem relativamente longa e não tinha onde ficar, não seria barato, sobretudo considerando que em
seguida teria de fazer outra, para terra prometida, a tal praia. O departamento de pessoal tinha avisado que haveria
trâmites burocráticos para a liberação do dinheiro e que, portanto, só cairia na conta dia 7, dois dias depois do dia do
pagamento dos demais funcionários. Ainda assim, manteve a decisão. Fez contas e viu que, se fosse e voltasse nas
mesmas vinte e quatro horas, dormindo duas noites dentro do ônibus, e fizesse uma única refeição na cidade do irmão
(com quem a mãe decidira morar), sim, o dinheiro daria.
Entrou no ônibus olhando para os dois lados, deleitando-se com o cheiro imóvel das poltronas na velha
penumbra pronta para deslizar em direção a um novo mundo. Um homem escolhia os passos, pesado, ao subir os três
degraus do veículo e depois uma mulher com uma trouxa, seguidos de uma adolescente. Com eles, a imemorial inveja
da segurança e do conforto nunca experimentado. Em cada luz do terminal, em cada parente esperando para o
adeusinho, seu mundo agonizante morria um pouco mais e fantasiava o toque de carinho do feminino fantasma.
Entrando no cantinho de seu lugar após ter conferido o número da poltrona, pensou que era questão de tempo
ficar como a mãe. A lua seguia o ônibus nas ruas que perdiam movimento e largura conforme apareciam as casinhas
dos subúrbios,

Está sentado num canto do café no terminal rodoviário. Usa uma camisa social listrada azul e preta com uns
quadradinhos, muito bem passada, ele mesmo passa, é muito bom nisso. Um pouco acima de sua cabeça há um vaso
com uma flor vermelha cuja sombra oscila manchando a xícara. O primeiro gole quente se apega à língua e ele só tem
esse momento para pensar o que fazer.

O policial levava Cati e os dvds pelo braço. "Certo moça, venha comigo, fique boazinha e venha comigo” .
Lado a lado, poderiam estar de mãos dadas e talvez tenha sido o que o motorista pensou, Quase atropelei o casal de
namorados.
O policial entre duas ocorrências precisa escolher uma e é no átimo de sua escolha que a moça escapa pelo
meio dos carros, pensando em como chegou a esse ponto. Não quer mais essa vida, simplesmente não quer mais essa
vida.
As experiências drásticas levam para outra dimensão, ilumina lugares antes escuros.
- Hei, volte aqui, quando eu te pegar você vai se arrepender! - as palavras do policial pisam o asfalto como os
passos, ecoam e se perdem, projetam suas sombras abaixo como o corpo que cavalga sonhos despedaçados.
Cati escapa pela avenida, a respiração entrecortada; tacos de botas longas, pelo menos fez bem em comprar
esse modelo, pensa ao dobrar a esquina. Quando o perseguidor dobra depois não há nada a ver exceto a multidão que se
comprime.

O irmão de Cati faz as malas lentamente. - Você não precisa vir comigo. Eu fui deportada, não você. Eu
cuido de mim mesma.
O som do interfone sempre a assusta. - Quem é? - o irmão pergunta; mas já sabe. - Eu falo com ele, vá para o
seu quarto.
No canto esquerdo do quarto há tipo um fuste. Ao som da fechadura corresponde um rosto incompleto.
- Eu falei para você ficar longe dela.
- Vou passar meu último dia com ele - diz Cati, se interpondo.
Ela e Victor descem correndo as escadas. As sombras de um e de outro se cruzam, atravessadas na sombra do
corrimão. Antes de saírem se olham num mesmo pensamento.
“ Para onde ainda não sei. Mas cuidarei dela como você pediu” , diz a última frase da carta sobre a mesa.

Foi numa sexta-feira à tarde. O lamento do vento era quente e mais pungente do que de costume. Após ouvir
da arrumadeira o recado da filha, Rose termina de lavar a louça de uma refeição rápida e enxuga as mãos num pano de
prato que retirou do varalzinho dos fundos e entra de novo na cozinha apenas para cruzá-la em direção à sala. Olha para
cima e para baixo, para os lados; inspeciona tudo com olhos cuidadosos. Sei que vou me arrepender depois; mas nunca
mais terei um pretexto assim. Enfim sai de casa no momento em que o sol colocava uma aura quase sonora nas plantas
da varanda. Aos passos se junta a fechadura e logo a porta bate e ela estava no meio do vento. Mas, quando chegou, o
ar estava parado.
Ao ouvir as batidas na porta, Gerard largou o notebook na mesa da sala e se aproximou. Quase em contato
físico, em notas de olores, desfaleciam. Refeito da surpresa, ele precisará de um repertório de expedientes. Não se
deixou trair exceto pelo brilho em seus olhos, mas a senhora Lens não podia ver, cega pelo brilho dos próprios olhos.
- Então Michele não vem mais hoje?
Gerard imagina que não, ela costuma dormir na casa de Keshia quando vai lá à noite.
- Espero que não seja mesmo nada.
Não era nada. - Talvez o cachorro.
O cachorro?
- Michele comprou um filhote. A senhora quer ver?
Ela diz que está com pressa, deixou tintas expostas.
- Mas se Michele deixou recado, é provável que tenha mudado de idéia, que volte logo. Por que ela não
espera um pouco?
- Realmente estou com pressa - a desculpa morreu quando sentiu o pingo. Entrando, agradeceu as flores que
ele enviara no seu aniversário.
- Foi só uma lembrancinha - disse ele, e ela arrematou sem pensar —Lembra do dia em que você chegou?
Como poderia esquecer? —Eu vi a senhora Lens pela janela do ônibus —confessou. Uma flor, pensou,
olhando os cachos da primavera, que luziam. - Uma flor —deixou escapar, constrangido e realizado.
—As flores estão destinadas ao sacrifício por alguns momentos de beleza —disse a senhora Lens,
enrubescendo. —O que sequer é meu caso.
Chovia mas nem se ouvia. Por trás da senhora Lens, pela janela entrava a noite. Como Sílvia costumava
recomendar na época do ICQ, ele depositara seu segredo num poema. O caderno aberto perante a senhora Lens.
—Quem é a bem-aventurada musa? —perguntou a senhora Lens , rezando.
Por que ele ainda a olhava assim? Não era preciso, ela se entregaria. Ainda bem que escovara os dentes e
fizera bochecho antes de sair. Mas o tapa no genro negou tudo quando, sentados no sofá, ele aproximou os lábios dos
seus.
Ela se levantou, passou por ele e o quarto mergulhou por segundos na treva mística que antecede o êxtase do
sexo e as mortes delirantes. As pernas se liquefaziam . Chegou à escrivaninha. A impressão era a de que ele e não ela
havia entrado num quarto estranho, que ele e não ela entrara por último e, quando ela apertou o interruptor do abajur
como quem tira um riff na guitarra de um músico famoso, gerou um súbito dourado na pele de seu braço direito, o
mesmo da testa e no pescoço.
Viu o assoalho quase vermelho. Três dedos de cada mão apoiados no vidro do tampo da comoda,
ligeiramente dobrados nas pontas, as unhas cortadas rente. O vestido vermelho, o abajur amarelo, a pele dourada e todo
o resto negro. O som do relógio só agora nítido, no exato instante em que ela soltou o ar.
Antes de dizer que não havia jamais na vida feito algo assim, ela tinha se virado e é desse jeito que ele a vê ao
ouvir as palavras.
- Nunca entrei no quarto de outra pessoa, quero dizer.
As curvas da luz no rosto dela dançam conforme vai se virando, somem no triângulo entre os ombros e
pescoço, e ele percebe o quanto ela emagreceu. Ela continua falando enquanto caminha no sentido da estante, nem um
nem outro saberiam dizer falando o que. As costas nuas, coluna e trapézio sombreados. Quando torna a se virar para
ele, estão praticamente encostados. A melodia forte e a postura de modelo tinham desaparecido.
- Sou muito boba - disse ela.
- Por que a senhora Lens está chorando?
- Só você não sabe.
Ela recuou um pouco e encostou na lombada de alguns livros. Ele torna a avançar e diz sim, ele sabe.
Anoitecera. Sabe-se que anoiteceu também por sons, podem ser os do vizinho ou de um sino. O próprio
silêncio da noite tem propriedades diversas, como um bronze surdo, uma vela, o movimento da estrada e o tráfego da
cidade se sobrepondo ao tilintar de talheres e as vozinhas dos bebês. A corridinha para lá e para cá do cachorrinho no
vizinho de porta (porque com certeza seu dono chegou do trabalho). A luz de cima ricocheteia onde em certa época
Gerard deixou crescer costeletas espessas junto ao lóbulo preso direto ao rosto. Ela abre a boca e fica tipo bicando com
a língua e a mão em sua nuca guiando ou pelo menos tentando ou fingindo que está.
Ela não pisca, como quem vai desabar mas ainda desabasse não cairia, que apesar da pressa das pessoas na
rua quase sempre existe ou seria possível existir o refúgio seguro de um quarto como esse, o que faz lembrar que ele é
casado, e com quem é casado, e que decerto não pretende deixar de ser, e que ela é casada, e não sei bem se isso é uma
preocupação ou um alívio ou pura e simplesmente o ir e vir das estações. Um dos dois dirá “ acho que vem alguém” e
afinal percebem que era um gato. Um tremor na estante e outro na mesa, a mão em torno do mamilo e o polegar o
esbofeteando sem parar, tome e tome e tome e depois a língua substituindo o dedo na tortura.
Nesse momento ela pôde olhar para ele. Se conhecem a tanto tempo e é o primeiro momento em que pode
olhar para ele. Como olharia para uma pintura, uma pintura sua. Indefeso diante dela, um bebê, quase dormindo. Retira
o mamilo da aréola como o frio o faria, e suga a segurança oferecida, lábios regulando os batimentos cardíacos e a mão
direita dessa falsa mãe desapareceu nos cabelos de um filho rebelde, fora de controle, descendo, e mais um pouco, e ela
não pode mais olhar para ele, como sempre, e como nunca.
—Pare... Sou mãe de...
—Não fale mais, senhora...
Estah exposta mas não se importa. Submissa porque ainda insatisfeita. A sala ampla amplamente iluminada.
A luz delineia caminhos, as ladeiras que sobem e as que descem, as trilhas de terra batida. Essa subida em especial se
beneficia de tanta luz, depois uma descida íngreme.
Alguém está escutando os sons da noite, os chilreios, as pedras e as folhas? As moças que passam são nativas.
O carro é o carro do dono da padaria. A rua mais escura do que de costume. A casa e as horas. Ondas nas falésias. A
pele mais grossa dos calcanhares.
Os contornos são fugidios, o assoalho de quando em vez estremece —ou não será o assoalho. Sou uma
mulher perdida. Se eram dois pontos e se o rosto que ela via hesitando entre dizer algo e não dizer, e esse último
Gerard nascera do primeiro —o estranho do hotel e o amigo da filha —, então o ciclo perfeito se fechara e o pecado
consumado eh mortal. Não se brinca com essas coisas impunemente.
Eis as mãos da dona-de-casa que jamais deixou de ser. Calosas. Encardidas. Enrugadas de água. As
impressões digitais raspadas por produtos de limpeza. Casa que era, de tão sua, seu prolongamento: sua habitação, seus
sonhos, seu ser, tudo passava pelas paredes de sua casa. Era do lar. Teria sido ainda que não fosse artista. Gostava de
trabalhar, odiava não ter o que fazer. Ninguém poderá dizer que foi por isso, por ócio. Tudo começou por causa do
trabalho. Não saberia viver de outra maneira. Quase estava se apaixonando por si própria quando se apaixonou por
Gerard.
Chega afinal o momento. Não saberia dizer se foi destino ou a vontade que dobra o destino. Fantasiaram a tal
ponto, com a solenidade da terra em sua órbita? Choram. Oh! a ignorancia do sangue!
Ao longo da rua a adequação de tudo. As casas com os vidros batidos e escuros e um recorte de janelas qual o
de igrejas, cada casa tem seu poste e relógio de energia. Um sedã estacionado em frente. Mais ao lado o pedreiro logo
montará em sua bicicleta por todo o dia encostada à mal-acabada alvenaria. Descansará diante da tv. O vidro do
relógio de luz no poste de Gerard gira com a velocidade de uma geladeira esquecida aberta.
- O que será de nós?
O mundo aos olhos deles renasce, desse orgasmo.

Gek fala de uma cabine telefônica. É um beco. Essa nuvem cinza é fumaça misturada com poeira grossa.
Dois carros estacionados no cascalho cobertos de pó. Alguém sai de um deles, duas outras pessoas entram no outro. Ela
fala lentamente, com um sorriso inexpressivo; todavia lembra de fatos comoventes da sua infância
Seu irmão do outro lado interrompeu e perguntou o que ela queria, se estava sem dinheiro de novo, tentando
evitar a parte constrangedora em que ela dirá "o salário de professor é ridículo" e ela precisa fazer isso ou aquilo que
naturalmente sua renda não cobre.
- por que preciso de uma razão para te ligar? Não posso falar com meu único irmão?
A questão é que ela não é a única irmã. A questão é que ele tem uma irmã doce e muito simpática e outra que
finge ser assim por causa do dinheiro.
-Tudo bem, eu devia lembrar que você não se importa mesmo comigo.
Ela largou o telefone sem bater o auscultador, que ficou pendurado como o badalo do relógio que a partir
daquele momento passaria a marcar o tempo que ela iria levar para entrar na casa, brigar com o homem com quem
estava morando e chegar no hall acarpetado de vermelho como o corredor no qual acaba de sumir, com sua camisa
muito branca e engomada contrastando com o verde escuro do champanhe na bandeja, no final visível que é um virar à
esquerda diante da última porta, a frontal, quase no mesmo tom de vermelho que o carpete como as demais, numa das
quais ela entrará, certificando-se primeiro que o garçom efetivamente sumiu e ninguem esteja saindo de outra porta. O
garçom esticará o pescoço a tempo de ver o casaco escuro atravessar a segunda porta à esquerda, contando do elevador.
Nesse momento ela levantará a sobrancelha esquerda quase em circunflexo ao responder quem era, sim, ela
mesma. - A agencia me mandou.
O garçom bate na porta do quarto no final do outro corredor. Michele agradece e pede que ele deixe a água
mineral na mesa. Abre a caixa de remédio e destaca dois da lâmina, coloca na boca e engole com o primeiro copo,
enche outro que bebe num mesmo gole. Sai, fecha a porta e refaz o caminho do garçom até o elevador. Logo está na
rua.
O rumor no escritório de George entrou pelos seus ouvidos. Vozes, uma impressora; pequenos ruídos que
lembram a parte rítmica de uma canção num fone de ouvido sobre uma mesa. Um ventilador, um ventilador de teto.
Um estremecimento escrupuloso a sacudiu e seu coração disparou. Estremeceu novamente e a isso ninguém chamaria
de escrúpulo. Michele, a implacável.
Georges não estava em sua mesa. Ela viu a garrafa de uísque e um copo pela metade atras de dois livros no
alto da estante
- Oi, minha linda filhinha —disse ele, aproximando-se, santificado por uma aura de luz. - O que faz por
aqui?
Ela o encarou. Ele não merecia morte de mártir. Imaginou-se órfã. Difícil imaginar.

É tão fácil para a mãe de Keshia arrancar melodiosos sons das teclas, provocam arrebatamento; e tão fácil
para sua mãe fazer desenhos límpidos, que transmitem emoção genuína. Michele nunca teve qualquer queda para a arte.
Não há arrebatamento ou emoção nos passos dessa filha que se aproxima da mesa de trabalho do pai.
Abriu a gaveta.

O Merkur Bay atracara no dia anterior, soberbo, o casco cinza puxando para o prateado. O vozerio dos
pescadores saindo para o mar se mistura ao dos marinheiros, vindo em botes. Os filamentos amarelados brilham e
rebrilham no bulbo. Há lágrimas nos olhos de Gerard. A senhora Lens pediu licença e foi ao banheiro.
Diante do espelho se recompôs. O sutiã não será necessário. Quisera que dali não se movesse mais,
congelada. Está sentada na beira da cama, só o pé esquerdo sobre o assoalho. Vidros batidos, escuros, recortes de
janelas qual igrejas. Na sala depois não falaram, num silêncio que não pode ser quebrado.

A prefeitura e a câmara municipal de Celba funcionavam na mesma casa antiga com fama de mal-assombrada
adquirida no início do século durante a administração do prefeito Yoran Miranda. A cerimônia fúnebre foi realizada ali.
Atravessou a madrugada. Às nove e meia da manhã, enquanto o corpo de Georges baixava à sepultura, Gek chorava
alto. O mar se esticava em ondas amanteigadas quebrando miudinho na areia.
Michele não voltou para o hotel. Passou o dia inteiro e toda a noite sozinha, sentada na areia, diante do
oceano. O reflexo do sol na maré a surpreende. Caminhou pela subidinha de areia que dava no estacionamento, entrou
no carro e deu a partida. O braço apoiado na janela. A carcela da blusa verde amassada e suja de óleo. Olha sem ver a
mulher que atravessa a estradinha. A poeira sobe com o vento. Silenciosa consciência do corpo, valém da respiração.
Os pneus giram em falso por alguns segundos antes do carro avançar, batendo em galhos.
Na estrada da vila, o letreiro de néon, sem falhas, estava acesso embora já fosse manhã. As pessoas iam de lá
para cá pela extensão da praia.

Os vizinhos viram Keshia chegar. Alguém disse que ela tinha ido ao médico. Pôs pela primeira vez o vestido
azul que comprara no natal. Chegou a rir, nervosa, ao se olhar no espelho. Seu avô descobrirá à noite os medicamentos
para emagrecer e a chamará para uma conversa séria; tentará fazê-la crer que pode ser amada.
- Você não precisa disso.
Ela sabe que sim, não era mais uma menina. Conversaram bastante e ela chorou e ele se compadeceu, mas
não teve coragem de avançar com o assunto. Ela fez um mingau de fubá e o cheiro ficou por mais de uma hora na
cozinha, chegava aos quartos quando um galo precoce cismou de cantar.
Quando ela fez dezessete anos, houve uma reunião só para os amigos mais chegados e nessa noite, uma ou
duas vezes, sentiu-se incomodada com os olhares de Beefy. Da primeira, ela disse que iria pegar mais refrigerante; na
outra, levantou para acender a luz. Se houvesse uma terceira teria que dizer alguma coisa, mas não houve.
No começo foi pura criancice. Ela adormecida na poltrona da frente do trem, ele soltou-lhe um dos seios e
fugiu. Nunca vira um desses tão de perto. Ela só deu pela coisa quando a voz anunciou a estação. Foi rápida ao se
recompor mas estava devastada.
Muitas viagens comuns, referências. Dias, horários. Ele não devia ter contado ao primo de Keshia, pois o
rapaz nunca foi um primor de discrição e boas idéias.
Agora é tarde.
Ela percebeu o roçar na parte de trás do vestido quando o trem saiu da última estação antes da cidadezinha
onde o médico clinicava. Ouvia as aves mesmo em meio ao ribombar ritmado nos trilhos, escuta inclusive o próprio
coração. Com olhos desconfortáveis atrás da máscara de meia, Beefy viu o terror no rosto dela. Uma após outra as
casas passam à janela. O tecido não pára. As dobras se sobrepõem. Quem disse que ela estava tão gorda?
No futuro mal se lembrará de como chegaram ao banheiro do corredor, lembra apenas das outras mãos.
Tampouco sabe se o primeiro saiu ou está num canto observando. Não há espaço para sonho no cubículo, apenas para
sudorese e mal-hálito.
O auge não interfere como deveria, como Michele ensinou.
A tarde cai nos vales. Rocio nas árvores. Sua idiota, quem manda ser romântica num mundo desses? Quem
manda ser gorda? Sua vaca. Atenda seu amo.
Quando o segundo sai do trem, o primeiro enfim fala e, chorando, pede perdão. Ele quer que ela reconheça a
voz, mas ela não reconhece. Durante algum tempo achará que qualquer voz é a voz do tamarindeiro.
O rapaz depois foi à casa dela, pediu para ela passar um terno. Outra vez convidou-a para ir ao cinema.
Repetiu o convite, duas ou três vezes. Uma vez ela aceitou. Ele viu inutilmente a comédia romântica, gênero que
detestava, porque desde aquele dia Keshia nunca mais riu como antes.

Quando colocava o CD, ouvia os pardais. A música se sobrepôs num efeito que causou estranhamento . Estamos em
março. Celba torna a se esvaziar. A mulher está estendida no sofá, muito magra, pálida, dava para ver o caminho das
veias azuis. Abeirando-se da cama, Gerard sentou-se. Ela murmurou o seu nome com o fio de voz que lhe restava. Por
que o amor deve morrer? Como uma mulher pode ser amada assim e morrer?
- Eu não quero morrer.
Pede que ele não a olhe dessa maneira. —Deixe-me numa clínica.
—Ficaremos aqui.
Apertou-lhe as mãos. Onde estavam?
- Em casa.
- As petúnias floriram?
- No Natal. Estavam lindas. Brancas e lilases.
- O açafate também?
- Sim. Lembra estrelas violáceas.
—E os beijinhos?
—No mesmo canteiro em que estão as boas-noites. Parecem uma mesma espécie de flor.
—Seria o “ beijo-de-boa-noite” , a flor favorita de Proust...
Ela fez menção de sentar. Deram as mãos e ele a abraçou, acarinhando um arrepio nas costas lívidas.
Olharam-se.
Porque as flores comuns - pertencentes mais ao tempo do que ao espaço que as guarda - são impressões
humanas sempre perfectíveis ao longo da vida, o feixe luminoso atravessou o quarto, passando entre eles. A cabeça
pesava e a visão estava turva e a respiração falhava em intervalos suaves como pálidas promessas. E, se o amor, a
glória e o prazer são ávidos fulgores necessariamente efêmeros, e se a luz declina e o dourado na margem do limbo das
folhas arrefece, estavam juntos e, por agora, isso bastava.
—E a caliópis?
—É a bordadura amarela do quintal.
—Nossa casa... —disse ela
—Nossa casa.
A mulher fechou os olhos.

A paisagem é de súbito iluminada e de súbito a esverdeada indicação de arestas recorta a pequena encosta ao
lado da casa vizinha. A rodovia traça o prateado contorno da varanda enquanto a porta do carro é aberta, manchada
pelas luzes da lanterna. A mulher desce precedida pelas grossas pernas em sutil equilibro no salto pontiagudo, vistas
num relance em toda exuberância pelos segundos que ficaram expostas. O motorista que ela ultrapassou um minuto
antes se toca de longe ao vê-la caminhando sob os faróis que indicam o caminho para a garagem. Ela desvia e, depois
de três degraus de escada, a luz da porta se acende. A porta da frente se abriu, ela entrou e a porta se fechou de novo.
Sentou-se na sala. Brilho difuso de um perfil de boneca entristecida, o olhar distante entre as notas girando em setenta e
oito rotações de melancólica ebonite.

As goteiras podem ser ouvidas nos intervalos das hélices do cata-vento. Os cereais costumavam ficar num
monte à esquerda, de onde os trabalhadores do moinho viam as casas lá embaixo enquanto seus passos ecoavam no
tablado e sonhavam com as mulheres que estendiam as roupas nos varais. A moça, que um dia foi a filha em férias e
depois a herdeira, era uma dessas. Shorts de tecidos encorpados, blusas cavadas, biquíni visível.
O mato crescera em torno do prédio branco amarelado rachado em todas as direções. Apenas uma casa
permaneceu de pé. A mó e a pedra continuam ofegando sobre o bronze do corpo inclinado sobre a máquina e o ganido
de um cão selvagem. Veias saltadas azuis nas mãos jovens e calosas. Nuvens sem pressa num céu de chumbo. A porta
rangia e rangia como se tivesse toda a eternidade para ranger. A letra treme no papel de seda. “ Lembra aquele dia no
álamo?” Quando ler ele pensará Como esquecer?
As cordas que um dia prenderam sacos nos caminhões balançam nas traves qual pêndulos Lembranças
realçadas pela ruína. A sombra da hélice girante ainda se projeta no alto da parede lateral em que na safra o café era
secado fazendo as vezes de um fantasma impiedoso.
Longe ainda o mesmo horizonte azul no começo e fim dos dias, avermelhado para além da linha dos montes
lembrando o corpo de uma dessas lavadeiras num momento de repouso ou sensualidade.
Com a cabeça enrolada numa toalha, Michele se sentou e colocou o envelope na mesa e outra bala na língua
e chupou. O trem negro metálico atravessa a paisagem desbotada pela neblina precedido pelo apito que antigamente
alertava os passageiros. Ela olha pela janela por olhar, pelo hábito.
Gira o pé sob a mesa e o movimento repercute na curva da coxa quase encostada na parte de baixo do tampo,
em sutil escurecimento na altura do tensor da fáscia, no limite da bainha da perna direita do short. Ouve vozes e palmas
na porteirinha. Logo, Fábio está dentro da sala. Oi, como vai, estou bem, levando, sabe como é, imagina, tudo bem, e
você, como está, com saudades, não paro de pensar em você.
- Sei como é - respondeu ela.
E ele continuou falando sozinho olhando para ela súplice como um cachorrinho sem dono, mas ela não mais
ouvia não mais ouvia porque lembrava...
Acabara de perguntar para o gerente do hotel se havia mensagens e como sempre a resposta foi negativa.
Tinha de assinar um papel e a caneta falhava e ela sacudiu quando outra mão apareceu vinda de trás e outra caneta
surgia do nada. Ela olhou para trás e ele disse “ Olá, como vai?” e, inclinando o rosto com um meio-sorriso, ela o
abraçou em meio a sons de alegria e não deixava de abraçar, com intensidade tal que a mae que esperava para ser
atendida tapou os olhos de sua menininha. Logo Michele puxou-o pela mão que lhe dera a caneta (abandonada agora
sobre o balcão), olhando rindo para trás uma ou duas vezes, os oculozinhos de lentes grossas que ele não conhecia
escondendo os olhos puxados e brilhantes. Então sumiram pelo hall (a bolsa fazendo companhia aos óculos), enquanto
a atendente gritava “ Senhora Lens, senhora Lens” , mas ela se perdeu com ele por uma porta de vidro, e a mãe disse
“ Deixe-a, eu a conheço há muitos anos, o que você precisa saber” , “ o nome completo, a cidade de onde veio” , “ eu
termino” , disse a amiga (que agora também é mãe), até porque ela decerto não vai lembrar agora de onde veio e de
fato ela sabia apenas que (“ ele é bonito” , disse a menininha) estavam ali diante um do outro de novo (“ homens
bonitos não são confiáveis” , disse a amiga com a cara mais séria).
Estavam se beijando como sempre, espere, espere um pouco, escute, ele se solta, vai para um canto da sala,
junto à janela por onde a luz azulada da manhã encontra o tecido estampado do sofá —ela corre atrás e o segura pelo
braço, deu certo uma vez na praia, e a outra no álamo, deu certo uma vez —ela faz força e ele se desequilibra e cai, ela
junto, os dois no tapete, ela rindo, rindo...
- Pare! - ao grito ela pára. Olha para ele como um cachorrinho sem dono. —Desculpe - diz ele
- Tudo bem...
E ela de novo pula no pescoço dele, os dois meio sentados, tudo isso num salão do hotel, mais reservado que
os demais, mas ainda assim um salão de hotel. “ Não, não” , diz ele, quase caindo por cima dela, já deitada, não, ele a
segura pelos dois braços e a vira, agora sim, pensa ela, graças a Deus, ele a aperta contra si e a imobiliza dizendo
“ Escute, estou indo embora, estou partindo, vou deixar o país” .
- Como assim? - ela faz força para se livrar, as respirações entrecortadas se cruzam em algum ponto que no ar
indica destino. —Como assim?
- Vou embora.
- Não.
- Não posso mais morar em Celba, nem em Ikonya, nem em qualquer lugar do País, preciso recomeçar noutro
canto, estou sufocado, vou para o Japão.
Estava muito frio para aquela época do ano, Michele vestia uma blusinha azul agora toda amarfanhada, do
jeito discreto que lã se amarfanha. Nalgum lugar lá fora corre um rio. “ Não, me solta, não, não, me solta” , “ Calma,
se acalme” , “ Você não vai, você não pode me deixar” , “ Mas foi você que não me quis, foi você que não me quis” ...
- Fui eu...
Fabio não entende ou acha que eh bom demais para ser verdade.. - Você o que? - Ela o olhou e percebeu que
estava quase sorrindo e, não mais conseguindo segurar a lágrima, calou-se pensando Fui eu...

Epílogo

A filha de Gerard e Michele nasceu com quase três quilos, de parto normal, nove dias após a morte da avó.
Quando deixou a maternidade, a mãe voltou para a casa onde vivia logo após casar. Como ela não estava convicta
sobre a gravidez, pois era comum que sua regra atrasasse, sua mãe teve a informação primeiro, quando era uma
suspeita, e Gerard, por causa dos acontecimentos, não soube da menina. Soube primeiro, inclusive, da filha de Joana,
que Michele estava criando —Eduardo lhe contou, numa feira de informática. Tinha acabado de voltar do Japão.
O propósito da visita era ajudar a mulher financeiramente, mas Michele se ofendeu, disse que não queria
ajuda, imagina, nunca dependi de homem, nem de meu pai, gritava pela casa, balançando a cabeça e brandindo o
indicador, não quero saber de teu dinheiro, disse e repetiu. Uma vizinha estava amamentando a menina, que estava lá,
na casa da ama de leite, e Gerard foi embora sem saber de sua existência. Melhor assim, pensou Michele. Mas não
tinha certeza.
Ele ficou ali por perto. Trabalhava num albergue em Ikonya e instintivamente decidiu que ficaria. Alugou um
apartamentinho bem jeitoso e passou a pensar numa segunda abordagem.
Ficava muito tempo à janela, pensando em Rose, mas um dia descobriu que pensava como quem passa por
um estágio, sabendo que a fase seguinte seria a de pensar na filha, sua esposa. Balançava a cabeça, dizendo para si
mesmo que tudo seria diferente se não a tivesse tratado daquele jeito no hotel, “ Eu sou mesmo uma besta” , disse,
falando sozinho. —
Trabalhava no Centro de Acolhida há cerca de um ano e entendeu que esquecimentos normais deveriam
receber a devida atenção, no mínimo a mesma da ereção matinal. Mas o vácuo cresce, transborda, e se acontece o pior
sequer a transitoriedade do desejo terá importância, mas se tornará um comportamento inadequado nesse poço de vazio
e terror, será como uma onda em Celba, arrastando-se nos mariscos apenas para depois se arrastar de novo, e de novo,
sem sequer saber o que está acontecendo, sem ter uma consciência de onda, memória de mar ou seja lá o que; então ele
quis, agora por meio da vontade, voltar com Michele, voltar com Michele, por meio da vontade, onde deixei minha
carteira, as chaves estavam aqui, minhas chaves, estavam aqui —Meu Deus, meu Deus...

A vida financeira de Gerard estava caótica. Tinha alguns planos que julgava realistas, porém a vida tratou de
desmentir essa ideia, ponto por ponto. A vida afetiva igualmente destruída pela série de loucuras. E agora, não bastasse,
a doença.
A princípio, sequer lia as cartas. Pensou em queimá-las mas guardou numa caixa de sapatos dentro de uma
gaveta. A caixa encheu mas não chegou a transbordar, como no começo dava impressão.
Quando amanheceu ela já estava esperando o ônibus. Na viagem ela chegou a pensar no pior sem sequer
saber o que pudesse ser o pior. Uma coisa era igual: corria para ele, esvoaçante. Em nenhum momento tomou
conhecimento do que se passava à sua volta até chegar ao hospital. Ele havia falado antes “ delegacia” , o que só a
confundiu mais, mas sem abandonar o caminhar balouçante a que o vestido de organza curto ditava o ritmo. Já tinha
chovido, anoiteceu estrelado e voltou a chover.
De onde as mãos dele sabem aquelas coisas, se está tão mal?
Estava quase irritada quando o viu. Foi o olhar do medico. Tentou antes se acalmar do que entender.
A delegacia estava vazia exceto por ele, o delegado e um auxiliar. Nada que devesse estranhar. Daquela vez
na Argentina, quando pediu para dormir numa cela por causa do frio, quando era mochileiro. Tinha o que, uns quinze
anos? Lembranças mais nítidas conforme mais remotas. Vultos guardam a porta atrás do vidro batido. Na segunda
resposta o homem perguntou o que havia tomado. Se estava de gozação. Gerard endireitou-se na cadeira, não de todo
desconfortável. É só uma questão de postura, sempre pensou que tudo é questão de postura. Tornou a olhar o homem
que o encarava e lhe pareceu que havia uma espécie de compaixão em seu olhar duro. Pensou até em dizer que não
estava querendo se fazer de vítima, mas entendeu que não faria diferença.
- Sim —disse - na capital, em Hattanak. O senhor conhece?

Num dia e horário definidos, que Gerard não será mais capaz de lembrar, ainda que tenha sido um dos
momentos mais importantes de sua vida, nesse momento de dedos e cheiro, nesses corpos, fugindo de toda a clareza em
nome da verdade, nesse horário, em que havia um sol a pino, oprimidos pelo calor e pela chuva espreitando do negror
que ameaçava no horizonte, entraram no hotel.
Porque agora a conhecia o bastante para estar calmo, para acalentar a ideia de presente, pura e simplesmente
entrar no hotel e garantir o quarto apenas como abrigo e, ato contínuo, voltar à rua. Porque se conheciam, ele sabia que
ela passava por esse tempo em que o que se celebra não é a memória mas o ter do que se lembrar.
Ele cumprimentou o atendente do restaurante self-service e agora ela sabe que nesse dia ele comeu arroz e
feijão, filé de frango e fritas (que ela aconselhou que ele trocasse batatas cozidas, mas ele disse "Só desta vez") e um
suflê que soube estranho como as coisas belas da vida costumam ser.
Sentaram-se.
Na rua ainda estava muito calor mas eles sentiam a súbita amenidade de um dia de Maio, o primeiro dia frio
do outono, ainda tímido enquanto prenúncio, por exemplo, da geada nos campos e da neve no Sul e em Celba e Ikonya
será um dia ameno, quase frio, que regressará quase igual no começo de outubro.
- Você precisa caminhar um pouco mais depois que a gente comer - disse ela. -São no mínimo cinquenta
minutos por dia. Claro que eu vou com você. O que eu faria sozinha no hotel? Sim, te esperar. Não, que esperar. Vou
ficar com você o tempo todo.
Ela falava e a fila de clientes aumentava diante da comida, crachás após crachás marcavam o tempo com o
ponteiro do relógio, pelo que ele entendeu que não precisaria consultar o celular no bolso para saber a hora e reteve a
mão que já segurava o telefone quando saíam para a caminhada, já de tarde, horário típico da chuva de verão que
entretanto se mantinha em algum outro lugar em torno, no negror acumulado no horizonte.

Ao longo de toda a noite sucumbiram seguidas vezes, quase uma só, ao desespero que se pode chamar desejo.
Diante dela um atalho sinalizado pela imagem do médico, a quem ela evitava para que ele não se desiludisse. Mas
sempre voltava a noite em que vira Gerard surgir do nada e se aproximar com um sorriso triste e gentil para dar um
tapa no baseado. E estão agora casados, reconciliados - ou como ela costumava pensar, não sem crueldade: ele viúvo
da mãe dela e amante da namorada de seu médico.

Ela tem andado depressa, falando sozinha. Precisa se acalmar. Ajoelha-se no sofá. Uma das mãos sobre o
encosto, a outra numa das almofadas em suas coxas. Essa mão acaricia agora os próprios pés. Respira fundo. Sou ruiva.
Sou cheirosa. Ultrapasso freqüentemente o limite. Leva o dedo aos lábios, de leve. Adoro essa música. Adoro qualquer
música, se é a música que está retardando o destino.

Os lábios de Michele estão abertos e seus olhos transbordam. Nos intervalos do som da veneziana batendo
no parapeito, o bando de pássaros se aproxima e se afasta da janela do quarto, como profecias antigas. Negror
retangular respira na gaze que ampliava o ambiente. Mãos trêmulas. Suor frio. A desordem da mente sem seu habitante
mas num corpo sadio, ainda sadio. O sulco no decote escurecendo e clareando. A sombra na parede se transformou nele
próprio e o espelho mostrou do outro lado do quarto a copa da árvore e o balé da cortina. A inquietação do ventilador
de teto em reflexos no metal do freezer. O segredo das coisas: são, em silêncio. Ela inclusive. Dormindo. O braço
esquerdo dobrado sob o rosto. A mão esquerda sobre os cabelos. Vou esquecer isso também?, pensou. Esse cheiro, vou
esquecer? Desce as escadas pensando onde poderia ir. Atravessou a rua pensando que estar vivo pode ser coisa de uma
fração de segundo.

Um dia chegou a pensar, malgrado todos os acontecimentos, que era uma mulher de sorte. Suas mãos,
atarefadas e calosas, são também responsáveis pela terapia das carícias. Hábeis com fechos-éclair, sabem ficar
espalmadas na parede, em quartos de hotel da cidade acinzentada ou na última casa à esquerda depois do moinho, atrás
da fileira de choupos amarelos - arrepios nos braços e as mãos suadas enquanto o rio corre ao lado da parede escura de
limo.

Ah, menina —disse ele num tom melancólico ao qual se seguiu a risadinha interrompida e dividida em duas
risadas menores de menino. Menina, menina —disse ele —e, todavia, não se lembrará do nome quando pensar nela,
dias depois, e ainda não terá certeza quando tornar a vê-la, identificando-a antes pela luz e pelos dedos. Menina,
menina —ela se recosta e as mãos sentem a cintura fria entre o cós da saia e o início da blusa desprendida. Depois ele
dormiu. E sonhava, murmurando, até que dá por si e o silêncio envolve de novo o aposento. Não importa. Nada mais
importa. São perguntas de uma criança. As coisas são o que são e o passado não pode ser mudado.

Nem se passou uma semana que voltaram e ele inventa de procurar emprego na capital. Significa que tem
outra, uma namorada de verdade, não uma esposa casual e dispersa como eu. Mas não. Telefonou para ela, deu o nome
dela no hospital, apenas ela está ali, e na condição que é sua.
Nesses momentos queria pedir ajuda a mãe. Se tivesse viva, ela saberia o que fazer. Era meio tresloucada mas
saberia. Oh Meu Deus o que importa. Importa é que ele não corre perigo. Transbordando em lágrimas invisíveis,
Michele se inclinou e levou os braços para o abraço. - Querido —diz ela. - Meu eterno menininho.

O prédio é antigo, uma construção de adobe, hoje de novo em moda, por causa da sustentabilidade. Cheiro de
espírito. Quando alguem sai para o gramado, o toldo azul clarinho de um pano mais que grosseiro, velho, desfiando,
retira artificialmente a solenidade do lugar. Uma folha caiu na abaulada e ali ficou, um presságio, caso alguém assim o
quisesse. Como sempre, ao se aproximar a pascoa, ele olhava pela janela e via as meninas chegando para a aula e
pensava para onde deveriam ir para passar o final de semana e que tipo de família tinham e se amavam os pais e
gostavam da companhia deles no domingo santo. Nesses dias doía a ausência da mãe, morta no dia anterior. Doía
porque ele lembrava. Na maior parte do tempo não doía. Ela o mandara para a casa de um tio dizendo que iria alguns
dias depois, pois tinha de trabalhar, mas no sábado à noite avisava que aconteceu uma coisa, não podia ir.
Caso continuasse lembrando, como um adulto, saberia a razão de sua mãe e possivelmente a perdoaria, mas a
lembrança era interrompida e as meninas continuavam chegando para a escola, com os grossos cadernos debaixo do
braço, entre risos e gritinhos, como se do nada houvesse chegado com elas um bando de pássaros invisiveis, e ele,
muito tímido, quase desviava o olhar; mas a timidez não era mais poderosa do que se chamará mais tarde desejo.
Após o abafamento iluminado da tarde, como estivesse escuro e ventasse, pressagiando a tempestade, as
meninas chegavam com capas plásticas e guarda-chuvas coloridos e suas faces vívidas e pálidas ocultavam mundos que
ele desejaria recusar, pensando no quanto o fizeram sofrer com o velho jogo de atração e desdém. Quão eram
impiedosas!
- Poderíamos ter sido felizes...
As palavras tem o mesmo cheiro dos corredores. A voz é pastosa e nítida e apesar da distância ele parece
saber o que está falando.
- Estará falando de mim? —espanta-se Michele. - Mas como, se amava minha mae?
- Poderia ter aprendido a deixar de amar —disse Sarita.
A empregada está mais lenta e pesada, porém mantém a precisão dos movimentos.. - Poderia ter aprendido a
amar você. A gente aprende ou desaprende qualquer coisa.
Ele olhou a mulher como se estivesse olhando o nada, como se olhasse qualquer outra pessoa ou coisa.

Na saída do elevador, há uma sala-de-estar. Um sofá verde-claro acompanha a curvatura da mesa de centro
onde se destacam flores naturais. Ela demorou a encontrar o lugar, que lhe parece ideal para todas as necessidades e
conforto do marido. O médico procura ser discreto ao observar suas reações. O corredor é amplo e longo. Os passos
ecoam e só então ele percebe que ela está de salto. Não imaginou que usasse. Foi uma noite muito agradável. Então é
possível a amizade entre um homem e uma mulher. Ainda assim o médico, gozando de plena saúde, com um ótimo
salário e a aparência decantada entre as mulheres, sente inveja do miserável paciente. E ela sente inveja da moça com
quem um dia o médico acabará casando. Passa a mão no rosto dele antes de abrir a porta. O médico sorriu.
No quarto com Gerard, ela aceitou a primeira investida. “ - Mas você não se cansa nunca?” , disse ou pensou.
Talvez seja vontade de ir banheiro. Talvez seja um tipo de tédio. Na segunda investida, ela foi esperta e fez uma
massagem. Ele ficou calmo e satisfeito; depois moveu-se e sorrindo voltou para seu canto.
Aproximou-se da janela iluminada pela luz súbita e ziguezagueada dos raios. Pode ver o chão de folhas e
esses devem ser os passos da menina. Pega o fragmento de unha e o sente entre os dedos. Michele coloca as mãos nos
ombros dele, e as mãos escorregam até o peito.
O beijo chega ao alto da cabeça no momento em que a manga se espatifa. Os cheiros de manga e éter não se
misturam. Nem o que ela sente nos cabelos dele, do xampu que comprara um dia antes. E pensar que, como seu avô,
Gerard não gostava de trovões e ia para dentro com antecedência paranoica.

Coincidiu que o advogado da mulher do banqueiro era o mesmo que cuidava dos assuntos de George, ainda
que aos poucos todas as questões se extinguissem naturalmente, como uma chama quando não há mais o que queimar.
Às vezes todos saiam e a casa ficava vazia por um dia inteiro, às vezes mais. Às vezes todos voltavam ao
mesmo tempo e a casa renascia. Uma vez a impressão é que estavam dando uma festa. Nessa noite, de um canto do
salão, a mulher olhou para Michele como se a estivesse procurando. Era elegante e simpática e, pelo vestir, muito rica.
Aproximou-se, efusiva.
- Até que enfim a encontrei! - os perfumes se misturam ao aroma adocicado do ponche. - Que bom que você
veio!
Uma menina segue a senhora como um cachorrinho. É jovem, talvez uns dezesseis anos, não mais que
dezessete. Um vestido evasê rosa, delicado, fiel às formas mas discreto. O sorriso permanente de adolescente que
ignora o que está por vir. - Ela está de casamento marcado, imagine, a minha menina.
Só os mais próximos sabiam que a menina não era filha deles, embora costumassem dizer que ela se parecia
com o pai, referindo-se ao advogado.
Em meio a um borrão de cores, calor de velas e desejos de buffet, Sarita se aproximou de Michele
- Como ele está, minha filha?
Na cadeira alta, se estivesse tudo bem, mesmo depois de tudo, ele manteria a postura. Esse jeito descuidado
diz que não está. Olhos perdidos não como quem sonha. Isso sequer é silêncio. Os braços pendidos são imitação de ave
bizarra.

Michele efetuou o pagamento na tesouraria e voltou para o quarto em meio ao branco, cumprimentando a
todos como alguém da casa. Passa pelo janelão da sala de espera e se assegura de que será um lindo dia de sol.

A rodovia continua fora rugindo, realçando cada pensamento com um farol, lápis de cor num texto. A saia
aperta as coxas antes parte do conjunto que se equilibrava nos saltos pontiagudos. Ela tira um e outro pé e os sapatos
caem como obuses na relva do tapete. Sua sombra no sofá se comprime como as coxas.
- Sim, sou eu - diz Keshia. - Vou beber um pouco de água e já vou. Nem precisaria tirar a maquiagem pesada
pois será comida —do vermelhíssimo batom à sombra e o pó compactando a pele de seu passado, falseando o futuro
que em minutos chegará.
- Venha logo - a voz que vez do quarto cavalga essa planície que é o casamento nas noites de sábado nessas
casas em que memórias precisam ser plantadas. —Venha, traga a água.
Da lua projetada na entrada do quarto nascem os dedos rechonchudos dos pés, as unhas vermelhas. Os
tornozelos deslocando-se luminosos e lentos pela seda persa do tapete. O hiragana dos joelhos nunca de todo prontos
para se sujarem junto à cama. Os arrepios grossos das nádegas ensombrecidas tocadas pela malha da camisola desejosa
do sono que não virá logo porque é aí justamente que os olhos do velho estão pousados prefaciando as mãos e, quando
os monossílabos estiverem ecoando pela poeira perceptível nos feixes sobre o umbigo, sua esposa, a moça terna e
idealista e sobretudo bem mais jovem com quem casou, conforme a maquiagem é comida, volta a ser a arquiteta casada
com o homem cujo paradeiro, depois que voltou do Canada, ninguém mais soube, Em torno dos gritos no quarto, os
bosques estão escuros.

O leque de Sarita, deitada na caminha de acompanhante, distribuía pequenas luzes na luz interna maior,
artificial e desencantada. Foi ela quem deu a idéia de ler para ele.
A menina da limpeza, no quarto ao lado, o apartamento do velho polonês, podia ouvir perfeitamente mas não
entende do que falam. O caso desse senhor é diferente. Por exemplo, ele é inofensivo, mas não parece ser o caso do
homem ao lado, o marido da jovem senhora Lens Lange. Pelo contrário, e muito ativo e animado.
- Eu também —diz Gerard.
Uma eternidade depois, Michele diz que sim, você também era uma pessoa muito boa.
Meu Deus... É uma pessoa. É....
- Eu te adoro. Então você é uma pessoa. Um homem maravilhoso.
Outra eternidade e ela entendeu que não haveria mais nada. Que havia sido tudo.
Ele pensou tanto nisso mas é ela quem testemunha. Para ele nem está acontecendo. Sofreu por minha mãe .
Agora nao. Não sofre. Não sabe de nada.

Não devia, mas dormiu com o marido. Quer dizer, com o outro. O que não existe. Olhos e rictos e logo o
deleite que sobe pela barriga e chega ao cérebro mas cujo centro é no purgatório dos pontos de uma acupuntura feita
para a língua que lambe a cria. Esse homem. Ela o fitará e desviará o olhar para um pardalzinho na calçada. Ela, até
então a predadora. Nem teve tempo de colocar a camiseta. Não se sente culpada. Tudo estava destinado àquele dia e
àquela exposição de meia hora. O mamilo apontando para o futuro que sem maiores dramas ela sabe que não haverá.
Então ela percebe que faz muito amanheceu.

A rua está vazia. Uma música ao longe estranho incenso tornou-se de beleza pairando como os hipérbatos. O
ar estava quieto em suspenso mas as ramagens balançavam como ao vento, devido aos passarinhos. Em fração de
segundo se despegam. Adiantando-se a hora, a nova posição do sol no céu subtraiu o fulgor da varanda, ofertando-o ao
resto do mundo.
- Querido - ela vai dizer, mas se interrompe. Ele não tem mais medo dos raios. - Então fique ai, se assim
prefere. Se ao menos pudesse ver o que ele vê.
A menina se abaixa e estica as meias com os longos dedos ágeis e descansados de quem nunca lavou o prato
que comeu. - Pelo menos isso, Michele - costumava dizer Sarita - Pelo menos isso.
- Foi aqui —diz Michele entredentes numa sutil curva dos lábios.
Sarita cochichou com ela em resposta e depois disse: - O que aconteceu em seu primeiro dia na cidade?
Como ele olhasse para Sarita com a expressão alienada de uma criança que nao sabe o que dizer, ela disse: -
Tudo bem. Chega mais. - E, olhando no fundo dos olhos de Gerard: - Meu nome é Eduardo. Essa é Michele —depois,
olhando nos olhos de Keshia, cheios de lembranças: - E essa é a Keshia, sua melhor amiga.

FIM

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