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AS VÉSPERAS DE FAUSTO

DE ADOLFO BIOY CASARES. Tradução de Antônio Xerxenesky.

Do livro História prodigiosa, em Obras completas de Bioy Casares: volume I, ed. Globo, 2012.

Nessa noite de junho de 1540, na câmara da torre, o doutor Fausto percorria as estantes de
sua numerosa biblioteca. Detinha-se aqui e ali; pegava um volume, folheava-o nervosamente,
tornava a deixá-lo. Enfim, escolheu os Memorabilia de Xenofonte. Colocou o livro no atril e
se dispôs a ler. Olhou para a janela. Alguma coisa se estremecera lá fora. Fausto disse em voz
baixa: “Uma rajada de vento no bosque”. Levantou-se, afastou bruscamente a cortina. Viu a
noite, aumentada pelas árvores.

Embaixo da mesa, Senhor dormia. A respiração inocente do cão arfava, tranquila e


persuasiva como um amanhecer, a realidade do mundo. Fausto pensou no Inferno.

Vinte e quatro anos antes, em troca de um invencível poder mágico, tinha vendido a alma ao
Diabo. Os anos se passaram com celeridade. O prazo expirava à meia noite. Não eram,
ainda, onze horas.

Fausto escutou passos na escada; depois, três batidas na porta. Perguntou: “Quem é?”. “Eu”,
respondeu uma voz que o monossílabo não revelava, “eu”. O doutor a reconhecera, mas
sentiu certa irritação e repetiu a pergunta. Em tom de assombro e de reprovação, seu criado
respondeu: “Eu, Wagner”. Fausto abriu a porta. O criado entrou com a bandeja, a taça de
vinho do Reno e as fatias de pão e comentou com aprovação risonha como seu amo
apreciava essa refeição. Enquanto Wagner explicava, como fizera inúmeras vezes, que o
lugar era muito solitário e que aquelas breves conversas o ajudavam a suportar a noite,
Fausto pensou no complacente costume que adoça e apressa a vida, tomou uns goles de
vinho, comeu uns bocados de pão e, por um instante, sentiu-se seguro. Refletiu: se eu não
me afastar de Wagner e do cão, não corro perigo.

Pensou em confiar seus terrores a Wagner. Em seguida, reconsiderou: quem sabe os


comentários que ele faria. Era uma pessoa supersticiosa (acreditava em magia), com um
interesse plebeu pelo macabro, pelo truculento e pelo sentimental. O instinto lhe permitiria
ser vívido; a necessidade, atroz. Fausto concluiu que não deveria se expor a nada que
pudesse turvar seu ânimo ou sua inteligência.

O relógio deu as onze e meia. Fausto pensou: não poderão me defender. Nada me salvará.
Depois houve uma espécie de mudança de tom em seu pensamento; Fausto ergueu a vista e
continuou: mais vale eu estar sozinho quando Mefistófeles chegar. Sem testemunhas, me
defenderei melhor. Além disso, o incidente poderia causar, na imaginação de Wagner (e
talvez também na indefesa irracionalidade do cão), uma impressão por demais terrível.

Fausto disse:

– Já é tarde, Wagner. Vá dormir.

Quando o criado ia chamar Senhor, Fausto interrompeu e, com muita ternura, acordou seu
cão. Wagner colocou o prato de pão e a taça na bandeja e se dirigiu à porta. O cão olhou
para o dono com olhos em que parecia arder, como uma fraca e escura chama, todo o amor,
toda a esperança e toda a tristeza do mundo. Fausto fez um gesto a Wagner, e o criado e o
cachorro saíram. Fechou a porta e olhou ao redor. Viu o cômodo, a mesa de trabalho, os
íntimos volumes. Disse a si mesmo que não estava tão sozinho assim. O relógio deu quinze
para meia-noite. Com certa vivacidade, Fausto se aproximou da janela e entreabriu a cortina.
No caminho para Finsterwalde vacilava, longínqua, a luz de um coche.

Fugir nesse coche!, murmurou Fausto e pareceu agonizar de esperança. Afastar-se, eis o
impossível. Não havia corcel rápido o bastante nem um caminho bastante longo. Então,
como se em vez da noite encontrasse o dia na janela, concebeu uma fuga rumo ao passado;
refugiar-se em 1440, ou antes até; postergar por duzentos anos a inelutável meia-noite.
Imaginou-se chegando ao passado como a uma tenebrosa região desconhecida; porém,
perguntou-se, se eu não estivesse lá antes, como posso chegar agora? Como poderia introduzir no
passado um fato novo? Lembrou-se vagamente de um verso de Agatão, citado por
Aristóteles: “Nem mesmo Zeus pode alterar o que já aconteceu”. Se nada poderia alterar o
passado, aquela planície infinita que se estendia do outro lado de seu nascimento era para ele
inatingível. Restava, ainda, uma escapatória: voltar a nascer, chegar de novo à hora terrível
em que vendeu sua alma a Mefistófeles, vendê-la outra vez e, quando chegasse, enfim, a esta
noite, escapar mais uma vez para o dia do seu nascimento.

Olhou o relógio. Faltava pouco para a meia-noite. Quem sabe desde quando, pensou,
representava sua vida de soberba, de perdição e de terrores; quem sabe desde quando
enganava Mefistófeles. Enganava-o? Essa repetição interminável de vidas cegas não seria seu
inferno?

Fausto se sentiu muito velho e muito cansado. Sua última reflexão foi, no entanto, de
fidelidade em relação à vida; pensou que nela, e não na morte, deslizava-se, como uma água
oculta, o descanso. Com valorosa indiferença, postergou até o último instante a resolução de
fugir ou ficar. O sino do relógio soou…

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