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Ruy Vasconcelos

Entre o jornalismo e a literatura

Em nossa recém-democracia de uma década, uma palavra gastou-se com velocidade:


cidadania. De tanto ser usada em sofisma nas campanhas políticas, na publicidade
institucional, seu peso foi tão retirado, que hoje ela paira no espaço da mídia como uma folha-
seca desferida por um bom cobrador de faltas. Sua densidade, antes plúmbea, hoje está mais
para bola de pingue-pongue. E, desferida sem propriedade, vai e volta sobre o balcão barato
do marketing.
Nesse meio tempo, a história, este forte esteio de ética e cidadania, não vem sendo capaz de
nos oferecer ou resgatar muitos modelos de participação verdadeiramente cívicos. Pode-se
pensar em muito poucos nesse sentido: Anita Garibaldi? Castro Alves? José do Patrocínio?
Euclides da Cunha? Mário de Andrade?
O tom geral com que é tratada a figura pública no Brasil — nos livros, no teatro, no
cinema — também não ajuda muito. D. João VI vivia a traçar frangos. D. Pedro II, um
valetudinário, quase um autista diante da realidade. Santos Dumont, um dândi efeminado
cheio de achaques. Que fazer se o que nos chega dessas personagens é raramente uma
representação mais complexa e menos caricatural? Há muito pouco por onde colher imagem.
Nossos espelhos foram trincados em sete vezes sete anos de azar.
Neste contexto, o livro O Poder e a Peste, A Vida de Rodolfo Teófilo, do jornalista e
escritor Lira Neto, surpreende. Por nos colocar diante dos olhos a figura singular do sanitarista
e escritor cearense Rodolfo Teófilo (1853-1932).
As condições sanitárias das cidades brasileiras no final do século passado eram
terríveis. Tifo, cólera, febre-amarela, varíola. Em 1862, a cólera vitimou quase um terço dos
seis mil habitantes de Maranguape, cidade nas cercanias de Fortaleza. Em 1878, a varíola
mataria um quinto da população da capital cearense.
Rodolfo Teófilo, filho de médico, conviveu desde o berço com essa realidade pouco
auspiciosa. Cedo ficou órfão. Teve de trabalhar como caixeiro e suportar humilhações.
Driblou-as. Mais tarde, diplomou-se em Farmácia, em Salvador. Ao regressar a Fortaleza,
sintetizou uma vacina contra a varíola e, praticamente sozinho, sem qualquer respaldo
governamental, muito ao contrário lançou-se à tarefa de imunizar toda a cidade.
O Poder e a Peste traça o perfil desse Dom Quixote cearense. A biografia não se furta à
tarefa de nos apresentar também um personagem complexo, marcado pela contradição.
Teófilo era adepto das teses positivistas e das concepções raciais de Nina Rodrigues.
Acreditava mesmo que as mazelas sociais brasileiras e o atraso do país se devia ao
caldeamento das raças. E, ainda assim, lutou diuturnamente para salvar a vida da "sub-raça
bárbara" que entendia encontrar ao redor.
Esse homem obstinado ainda encontrou tempo para escrever 28 livros; aderir à causa
abolicionista; militar na Padaria Espiritual - ; espécie de agremiação literária que, mais pelo
comportamento irreverente de seus membros e menos pelo teor do que escreveram - ; antecipa
o modernismo no Brasil; e, como se não bastasse, foi inventor da cajuína - ; não só do
produto, como também do nome.
Narrada de forma anedótica, mas inscrevendo as anedotas dentro do contexto da
macro-história da época, o livro esboça um vigoroso painel da sociedade brasileira do início
do século. Um percurso que inclui a abolição dos escravos – que, no Ceará, deu-se
quatro anos antes de no restante do Brasil –; a queda da monarquia; o apogeu e
decadência da oligarquia Accioly; a instigante mobilização popular em torno da figura de
Marcos Franco Rabelo; o curioso episódio da Sedição de Juazeiro, envolvendo o legendário
Padre Cícero e seu sinistro braço político, o deputado Floro Bartolomeu – que, no Rio,
urdiu com o todo-poderoso caudilho gaúcho Pinheiro Machado o rearranjo do jogo
oligárquico no Ceará; o flagelo das secas; a migração dos cearenses para a Amazônia; e, claro,
as terríveis epidemias.
O livro está escrito num registro leve, didático – mas longe de vulgar. Salta à
vista o sistemático emprego de termos e expressões com um certo travo arcaico-regional.
Estas expressões assomam como um recurso muito efetivo. Coisas como "bodejado",
"papangu", "visagem", verbos como "brechar", emprestam o condimento necessário para que
a biografia drible tanto a chatice da tese
acadêmica como a eventual planura da reportagem jornalística. O fato de ser fartamente
ilustrada com fotos de época parece clamar também pela leitura dos mais jovens.
Alguns episódios são narrados com perícia artesanal. É o caso do lúgubre trecho em
que, durante uma epidemia de cólera, Teófilo leva o corpo de uma irmã mais nova para o
cemitério dentro de uma caixa de costura; ou do que propositalmente estoura uma garrafa de
champanhe sobre os convidados de seu patrão, o Barão de Aratanha; ou mesmo como quando
ao assumir a direção da Padaria Espiritual, um reduto de boêmios inveterados, não só muda o
local das reuniões de um café para sua própria residência, como substitui a cerveja pela
cajuína.
Mas, sem dúvida, os trechos mais significativos são os que tratam da verdadeira
cruzada que Rodolfo Teófilo empreendeu contra a varíola. Sua devoção à causa é tocante. Ele
chega a montar um posto de vacinação (ou vacinogênio) em sua própria residência. E, vai
além, percorre à cavalo os cortiços da periferia de Fortaleza, e atinge o cúmulo de inventar
histórias de santos, autoproclamar-se agente do
governo ameaçando com multas, ou, em última instância "comprar com o dinheiro do próprio
bolso o consentimento dos mais renitentes" à vacina.
Rodolfo Teófilo tomou sobre os próprios ombros uma responsabilidade do Estado. E
não fraquejou. Mesmo quando o próprio Estado, por conta de mesquinharias da política local,
tratou de descreditar seu esforço junto à população. Seus livros não conhecem reedições há
muito e seu nome é muito pouco conhecido para além das fronteiras do Ceará. Numa época
em que cidadania provavelmente sequer era um termo da moda, este homem tinha a exata
noção do que isto significava. E não a vendeu barato. À exemplo de Odele, a pequena porta-
bandeira da Liga Feminista Franco Rabelo, que, em janeiro de 1912, na chamada Passeata das
Crianças, sitiada pela cavalaria e sob a ameaça de balas perdidas, restou impassível no centro
da praça até o final da carga. Seu retrato, a mais bela foto do livro, parece estranhamente
atual.
Desde o equilíbrio invulgar do texto que viabiliza sua acessibilidade, passando pela
coleta de expressões regionais, o suporte da iconografia e o registro romanceado do livro, Lira
Neto faz com que tudo conspire para um atrevimento maior: o de tomar um tema da província
e inscrevê-lo numa perspectiva mais ampla. Talvez dela esteja um tanto ausente a própria
palavra de Rodolfo Teófilo – muito pouco citada ao longo da obra. E se em parte isto é
suprido pelo tom romanceado da narrativa, como quer o autor na introdução, este ainda não é
recurso o bastante que justifique a omissão.
De qualquer modo, o mérito maior de O Poder e a Peste está em desprovincianizar o
Brasil. Em abolir a fronteira do local. E habilmente. Afinal, como diz Robert Creeley, "o local
não é um lugar mas um lugar em um certo homem – a parte desse lugar para a qual ele
tem sido impelido ou trazido pelo amor, para dele dar testemunho".

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