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IMAGENS DOS MOVIMENTOS POPULARES: APONTAMENTOS PARA UMA

METODOLOGIA DE ANÁLISE DO AUDIOVISUAL COMO FONTE HISTÓRICA

Henrique Luiz Pereira Oliveira*

Resumo: O artigo analisa as características que especificam o vídeo popular, um


importante documento para a história recente dos movimentos sociais no Brasil. Propõe
uma abordagem teórico-metodológica para a utilização de documentos históricos
audiovisuais, destacando o tipo de relação que cada modalidade de audiovisual busca
estabelecer com o espectador.
Abstract: This article analyzes the characteristics that specify the popular video, an
important document for the recent history of the social movements in Brazil. The text
intends to develop a theoretical-methodological focus for the use of the audiovisual as
historical document, emphasizing the type of relationship that each modality of
audiovisual aims to establish with the spectator.

Palavras Chave: vídeo popular – documento histórico – análise metodológica


keywords: popular video – historical document - methodological analysis

Denúncia. Situações de urgência. Alerta. Ação policial. Violência. Injustiça.


Câmera instável. Repórter com voz ofegante. Produção precária. Estas características
estão presentes em uma linha de programação que, desde os anos 90, tem conquistado um
considerável espaço na televisão brasileira. Programas que, ao expor na tela, em tempo
real, cenas de um cotidiano popular em ação (especialmente as situações de conflito nas
periferias urbanas), propõem-se também a deixar visível para o espectador os sinais de
uma produção realizada às pressas, formato que se tornou uma espécie de marca registrada
do programa Aqui Agora, veiculado pelo SBT, e também adotado por outros canais de
televisão.
Entretanto esta forma audiovisual de narrar o real de maneira "realista" não é nova.
Situações semelhantes haviam sido enfocadas, desde meados dos anos 80, pelos vídeos

*
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.
populares, produzidos por grupos dispersos pelo país, em sua maioria vinculados à
entidades sindicais, religiosas e à diversas organizações não-governamentais. Uma parte
significativa desta produção formou o acervo da Associação Brasileira de Vídeo Popular
(ABVP), fundada em 1984. Os vídeos tratam de temas como movimento sindical, questão
da terra, menores de rua, moradia, questão indígena, preconceito racial, meio ambiente,
relações de gênero, saúde, entre outros, propiciando um amplo panorama dos problemas
do país e das lutas dos movimentos sociais nas décadas de 1980 e 1990. Os produtores de
vídeo popular, puderam compartilhar experiências e concepções sobre o modo como o
vídeo poderia construir uma imagem da realidade social e da população brasileira com a
intenção de contribuir para o fortalecimento dos movimentos sociais. Concepções sobre
educação, comunicação, movimentos sociais e cultura condicionaram a realização dos
vídeos populares naquela época, determinando a escolha dos conteúdos, a definição dos
objetivos cognitivos, o processo de produção, as estratégias narrativas, e a configuração
estética.1
Mas se algumas opções na escolha dos conteúdos, na captação das imagens e na
edição de determinadas seqüências de programas como Aqui Agora, Programa do Ratinho
(SBT), Cidade Alerta (Rede Globo) e Linha Direta (Rede Record) apresentam traços em
comum com o vídeo popular, o que diferencia estes dois tipos de produção audiovisual?
Somente as suas diferentes formas de difusão? Para responder esta questão é preciso
apontar alguns traços que caracterizaram o vídeo popular. Tal caracterização é importante
para que se possa refletir sobre estes vídeos enquanto documentos para os estudos
históricos, especialmente para a história recente dos movimentos sociais no Brasil, nas
últimas décadas do século XX. Parte integrante do vasto universo das produções
audiovisuais contemporâneas, os vídeos populares devem ser objeto de uma especial
atenção dirigida ao seu regime de funcionamento.
É sabido que não basta ao historiador restituir o sentido daquilo que a câmera
captou, reinserindo o acontecimento registrado na época e no lugar onde ocorreu. O que
está em volta do quadro que uma imagem recorta – aquilo que fica fora do campo visível
na tela – não é apenas a extensão do tempo e do espaço no qual se insere o acontecimento
recortado no vídeo. Fora do campo da tela havia uma câmera e, mediado por ela, ocorreu
um outro acontecimento que foi o ato de registrar um acontecimento, e ainda, igualmente
fora da tela ficaram os gestos que selecionaram o que foi registrado e estabeleceram uma
1
Estas análises foram mais amplamente desenvolvidas em OLIVEIRA, Henrique Luiz Pereira. Tecnologias
audiovisuais e transformação social: o movimento de vídeo popular no Brasil (1984-1995). Tese de
Doutorado. São Paulo, PUC, 2001.

2
continuidade através da montagem, conferindo, consequentemente, uma forma àquilo que
foi captado pela câmera. Fora do campo da tela estão também o espaço em que o
audiovisual é exibido e as relações que os espectadores estabelecem com aquilo que
assistem. Estes elementos fora da tela, mas que condicionam o sentido daquilo que é
enquadrado, variam conforme a instituição que rege o funcionamento de cada uma das
formas de produção audiovisual.
Se insistimos em apontar algumas semelhanças nos conteúdos e no tratamento das
imagens de programas que adotaram o formato do Aqui Agora e dos vídeos populares é no
intuito de enfatizar a importância, ao se utilizar audiovisuais como fontes de pesquisa, de
se adotar um procedimento metodológico que ultrapasse a análise dos conteúdos. Na
abordagem que propomos os conteúdos devem ser compreendidos no interior do regime
de funcionamento que especifica cada tipo de produção audiovisual que se toma como
fonte de pesquisa. Nesse sentido, os objetivos, as concepções e os procedimentos que
nortearam a produção e a exibição dos vídeos populares torna-os um objeto privilegiado
para pensar o regime de funcionamento que especifica cada modalidade de audiovisual. O
estudo do vídeo popular também permite verificar como cada modalidade de audiovisual
tem por correlato uma forma particular de invocar no espectador um modo de se constituir
como sujeito frente a um plano de realidade que se constrói nesta relação. Para evidenciar
as características que particularizam o vídeo popular, no decorrer do texto,
estabeleceremos algumas comparações com outras produções audiovisuais, dentre elas o
filme de ficção, o documentário, a reportagem jornalística, a videoarte e o filme de
família.

A noção de realismo é histórica

O vídeo popular constitui uma modalidade singular de produção audiovisual. Ele


não pode ser caracterizado pela escolha de um gênero específico, como o documentário ou
a ficção, por exemplo. Porém podemos conhecer algumas características do seu regime de
funcionamento através de uma reflexão que tem por ponto de partida o documentário.
Na história do cinema o documentário foi um gênero particularmente associado a
noção de realismo. A distinção entre documentário e ficção, regra geral, toma por base a
natureza do referente: se o que vemos na tela é uma parte de acontecimentos no fluxo do
mundo real, trata-se de documentário, mas se o que vemos na tela é uma simulação

3
(teatralização), trata-se de ficção. Caberia ao documentarista o compromisso de captar da
forma mais fiel possível a realidade que se oferece diante da câmera.
Se no gênero ficção as inovações na estrutura narrativa fazem parte daquela história
do cinema difundida para o grande público, estas inovações não recebem o mesmo
destaque no documentário. Por que? Porque enquanto a mão do diretor, suas estratégias de
condução, tornaram-se parte integrante de um “bom filme”, de um “clássico”, esta mão
condutora, esta presença que manipula as informações e lhes dá uma forma, é justamente
aquilo que se espera que esteja invisível (e no limite simplesmente inexistente) no
documentário. O que torna o documentário um documento objetivo do real é a aparente
ausência de um diretor.
O cinema (e o vídeo), explorando o caráter analógico que foi fortemente associado à
imagem no Ocidente Moderno, acrescentando-lhe a sugestão de movimento e o estímulo
auditivo, suscita uma sensação muito convincente de espelhamento da realidade. Desde a
Renascença os produtores de imagens, através de uma exploração crescente das suas
possibilidades miméticas, tem almejado obter resultados cada vez mais realistas. E. H.
Gombrich estabeleceu uma distinção entre analogia e realismo. 2 A analogia estaria ligada
ao efeito de espelhamento (mimesis), o realismo seria relativo à quantidade de
informações que a imagem oferece sobre a realidade. Enquanto a analogia refere-se ao
visual, às aparências, o realismo refere-se às informações contidas na imagem, portanto
remete à compreensão, ao intelecto. A sensação de realismo depende sempre de um
repertório de códigos, previamente assimilados pelo público, para que a imagem
apresentada seja considerada como semelhante em relação a uma percepção do real. 3 Estes
códigos e convenções são históricos, mudam de época para época, e mudam segundo as
culturas. Na história das formas de expressão, notadamente as visuais, a noção de “mais
realismo”, esteve sempre implicada à denúncia das convenções de figuração então
vigentes, e sempre acabou por acarretar o estabelecimento de novas convenções. “No
fundo, é a própria noção do real que é ideológica, e o fato de esse conceito existir há
séculos não deve mascarar sua falta de universalidade. Só pode, portanto, haver realismo
nas culturas que possuem a noção de real e que lhe atribuem importância.”4 Não é,
portanto, exagerado afirmar que a noção de “real” constituiu-se em grande parte vinculada
à produção de imagens “realistas”.

2
. GOMBRICH, Ernst H. Mirror and map, 1974. Gombrich relacionou o realismo ao mapa e a analogia ao
espelho. Cf. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 207.
3
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: SP, Papirus, 1995, p. 135.
4
AUMONT, Jacques. A imagem, op. cit., p. 210

4
Embora a questão do realismo tenha se estabelecido como uma exigência para o tipo
de produção cinematográfica que se tornou hegemônica, podemos, através da história do
cinema, constatar diferentes convenções de realismo em diversas épocas. Que elementos
necessitam ser apresentados para que uma cena seja aceita como realista? Que cuidados
são necessários? O que pode ser omitido sem comprometer o “efeito de realidade”? No
decorrer da história do cinema estas exigências mudaram tanto em função do saber
acumulado pelos realizadores, das suas intenções, dos equipamentos e técnicas
disponíveis, quanto do repertório e das expectativas do público. O fato de presentificar
alguma coisa para o espectador, seja uma parte reconhecível do mundo ou uma sensação
que não necessariamente remete a objetos reconhecíveis (como por exemplo a ansiedade
ou a vertigem), só é possível ao audiovisual porque um feixe de códigos é posto em
funcionamento.
O desenvolvimento do cinema enquanto uma forma específica de narrativa é
inseparável da sua difusão como indústria cultural. O processo de formação de uma
linguagem própria ao cinema de entretenimento se efetivou ao mesmo tempo que se
constituíam os mitos do cinema. Desde muito cedo, paralelo à incitação ao interesse pela
vida das estrelas do cinema, propiciou-se ao público conhecimentos sobre os processos
implicados na produção dos filmes. Muitos filmes (Cantando na chuva é exemplar) têm
por tema os bastidores da produção cinematográfica, com seus dramas e intrigas, mas
também com a demonstração dos seus recursos e conquistas na criação do “efeito de
realidade”.
Embora o culto retrospectivo que a indústria do cinema de entretenimento promoveu
sobre sua própria história e o acúmulo de estudos sobre os filmes possibilitem constatar as
mudanças nas formas de criação do “efeito de realidade”, o mesmo não é tão evidente
quando se observa o gênero documentário. A crítica à concepção de documentário como
cópia fiel do real não é recente mas é ainda francamente minoritária. Se o cinema de
ficção ensinou o público a percebê-lo e a admirá-lo como artifício de narração, ainda que
estes artifícios devam permanecer ocultos no processo de fruição, a mesma cultura, a
mesma educação do público não teve uma difusão proporcional no caso do documentário.
Esta tendência foi reforçada inclusive pela própria forma de apropriação do documentário
pela militância de esquerda, com sua ênfase no conteúdo social e no desvendamento da

5
verdadeira realidade.5 O público que assiste um documentário é convocado à mesma
crença na objetividade que aquele que assiste ao jornalismo televisivo.
A ocultação dos procedimentos necessários à produção de um efeito de verdade, a
opção pela transparência, foi um traço que marcou muito fortemente o vídeo popular. 6
Uma das características da transparência é que as estratégias narrativas do cinema (e do
vídeo) devem ficar ocultas, para que aquilo que a câmera captou seja fiel e sustente o
“efeito de anterioridade”, ou seja, a sensação de que aquilo que foi filmado já existia
independente da câmera. Está implicado na noção de transparência que o filme (ou o
vídeo) mimetiza o real, seja em relação à aparência (imagens e sons o mais fiéis possíveis
ao mundo percebido) seja em relação à essência (captar o real sentido histórico de um
acontecimento). Este desejo de transparência é, de certa forma, uma outra face da
pretensão do jornal televisivo à verdade. O sujeito que produz a informação deve ser
subsumido, para que o real assuma o primeiro plano da cena. É significativo que alguns
dos primeiros vídeos populares não incluíam os nomes (ficha técnica) da equipe que os
realizou, como se fosse o próprio movimento ou a comunidade enfocada que teria
realizado o vídeo, ou melhor, como se o vídeo fosse apenas um decalque do
acontecimento.
No decorrer dos anos 60 a distinção entre documentário e ficção passou a ser
insistentemente questionada. Sob a influência da abordagem semiológica, os códigos da
linguagem e os procedimentos de narração, que antes deveriam permanecer invisíveis,
ganharam o primeiro plano. Uma nova geração de documentaristas passou a assumir que
tudo o que vemos na tela é necessariamente codificado e que, portanto, no limite, todo
filme (e vídeo) é ficcional.
O documentário, para Arthur Omar, é um subproduto da ficção narrativa. Enquanto
que o filme de ficção, através de diversos dispositivos estéticos, opera para fazer parecer
real aquilo que é fictício; o documentário por sua vez, tendo absorvido estes mesmos
dispositivos, “apresenta a sua realidade documental como se fosse ficção”. Ou seja, aquilo
“que o cinema da ficção trabalhava como sendo o real (mesmo que fosse um real fictício)
é o mesmo que o documentário reapresenta como sendo ficção (mesmo que seja uma
ficção real)”.7 O documentário estaria condicionado pela função do filme na sociedade: a
5
NICHOLS, Bill. Ideology and the image : social representation in the cinema and other media. Indiana:
University Press, 1981, p. 170-171.
6
A noção de transparência e as diversas concepções de realismo que ela abarca foram estudadas por
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
7
OMAR, Arthur. “O antidocumentário, provisoriamente”. In: Revista de Cultura Vozes, 1978, nº 6, p. 6.

6
função espetáculo. Função que supõe um sujeito que contempla, numa posição de
exterioridade e de afastamento máximo, algo que lhe é dado como espetáculo. O
documentário suscita a ilusão de conhecer e gratifica, com a visão do objeto, aquele que se
submete à posição de espectador. Só há a ilusão de conhecer porque o espectador se
reconhece exterior ao objeto, o qual então lhe é dado a ver, e sobre o qual o espectador
passa a ter um domínio.8
O questionamento da noção de realismo tornou possível a formulação de novos
problemas. Bill Nichols procurou identificar quais seriam as diferentes estratégias de
produção de sentido que matizam os gêneros documentário e ficção. Adotando o
pressuposto que toda representação é ficcional (e o que vemos na tela é sempre uma
representação) e o pressuposto que o espectador reconhece empiricamente quando está
diante de um documentário ou de uma ficção, Nichols investigou as distinções entre
documentário e ficção a partir do regime discursivo que caracteriza cada um – e que
permite ao espectador saber se está diante de um ou de outro – e do tipo de engajamento
suscitado no espectador.9 Segundo Nichols, se a ficção pede a “suspensão da
incredulidade”, o documentário requisita uma “ativação da credulidade” e uma espécie de
“epistefilia”: um prazer de conhecer algo sobre uma situação que pressupomos como
verdadeiramente existente.
Ainda que tal distinção também seja aplicável ao vídeo popular, este, entretanto,
apresenta um aspecto peculiar. Peculiaridade que reside no fato de que mesmo quando
foram construídos segundo as convenções da ficção, os vídeos apresentam argumentos que
pretendem ter validade para o mundo real do espectador, ambicionando interferir sobre o
saber que o espectador tem do mundo e sobre a sua prática sobre o mundo. Um bom
exemplo desta particularidade é o vídeo Acorda Raimundo... acorda!!!10, que foi um dos
mais locados pela distribuidora da ABVP.11 O operário Raimundo sonhou que ao acordar
havia ocorrido uma inversão de papéis, ele tornara-se responsável pelos afazeres
domésticos e sua mulher, Marta, ficara com a função de trabalhar fora. Tal inversão
acarretou também em uma mudança nas relações de poder. No sonho era Marta quem
8
Idem, p. 7.
9
NICHOLS, Bill. Representing Reality. Bloomington, Indiana: University Press, 1991. Ver também DA-
RIN, Silvio Pirôpo. Espelho Partido, tradição e transformação do documentário cinematográfico.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995.
10
Acorda Raimundo... acorda!!!, Rio de Janeiro, 1990, 15’, Betacam, direção de Alfredo Alves, produção do
IBASE Vídeo, ISER Vídeo,. Vencedor do Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano de
Cinema, Televisão e Vídeo, realizado em Cuba, em dezembro de 1990; escolhido o melhor vídeo do Júri
Oficial e Popular da Jornada do Maranhão em 1991.
11
SILVA, Marlene. “Nosso maior usuário continua sendo a escola”. In Vídeo Popular. São Paulo, nº 30, p. 6,
1995.

7
controlava o dinheiro, quem chegava tarde embriagada, e quem batia em Raimundo. O
vídeo termina com o despertador tocando. Raimundo acorda e percebe que tudo não
passou de um sonho. Aparentemente o personagem não aprendeu com o sonho e não muda
suas atitudes, no entanto é claro o apelo à reflexão dos espectadores sobre o machismo e
as relações de poder no espaço doméstico.
A invocação ao prazer de conhecer e o apelo ao espectador para que desencadeie
ações sobre o mundo estão presentes nos vídeos populares sejam eles documentários ou
ficção. Até mesmo nos vídeos que poderiam ser considerados de entretenimento,
destinados ao público infantil ou a um momento mais leve na programação das TVs de
Rua, pode-se constatar a intenção de engajar o espectador no conhecimento das tradições
populares, e nos esforços para preservá-las.12

Presentificação e enraizamento (videoarte)

Todo audiovisual, por princípio toda imagem, torna algo presente para quem o vê (e
ouve), mesmo que este algo que se torna presente seja apenas uma sensação, como ocorre,
por exemplo, em experiências de videoarte que trabalham com formas “abstratas” (aquilo
vemos na tela não reproduz objetos que conhecemos no mundo). Algo se presentifica para
alguém e exige algo deste alguém. Esta presentificação supõe a constituição de um tempo,
de um espaço e de um acontecimento que só se atualizam se são compartilhados por
alguém que engaja a sua percepção. Um audiovisual que ninguém está assistindo é,
obviamente, incapaz de tornar algo presente, para que tal presença se realize é necessário
que alguém nele engaje a percepção. Enfraquecer as referências do espaço em que estamos
(e dos nossos limites neste espaço) e apresentar um espaço que se confunde com o que
conhecemos, não é o meio pelo qual o filme de ficção nos envolve, notadamente quando
estamos numa sala de projeção, devidamente escura, devidamente isolada de sons outros
que não os da situação que somos convocados a habitar?
Particularmente nas instalações que utilizam o vídeo (vídeo-instalações), o que se
busca é romper a relação “objeto para ver” e “sujeito vidente”, através de uma fusão do
sujeito e do objeto. O que se experimenta é um estado de realidade que só ocorre porque
12
Algumas experiências de exibição dos vídeos populares ultrapassaram os espaços delimitados dos
sindicatos, associações etc., e atingiram um público mais heterogêneo através da utilização de telões
instalados em praças públicas e em outros espaços abertos. Estes processos de exibição, que muitas vezes
utilizavam uma câmera para colocar a imagem do próprio público na tela, ficaram conhecidos como TVs de
Rua. Uma experiência particularmente bem sucedida foi a TV Viva, que atuava na região metropolitana de
Recife e em Olinda,

8
estamos ali envolvidos (confundidos) com aqueles objetos. Há uma instalação de Gary
Hill que consiste em entrarmos em uma sala totalmente escura. 13 À medida que andamos,
vemos pessoas movimentarem-se em nossa direção até ficarem do tamanho de alguém que
estivesse ao nosso lado. A escuridão, o desconhecimento do espaço em que se está situado,
a surpresa, causam um efeito de desorientação, o que fortalece a percepção de uma real
presença daqueles corpos que se aproximam. Todavia se, na tentativa de exorcizar o
espanto, esticamos um dos braços para um dos lados até encontrar uma das paredes
laterais, imediatamente rompe-se o efeito, saímos do estado de imersão. Voltamos a
dimensionar os limites do nosso corpo e do espaço circundante, acaba-se a confusão
necessária àquele estado de realidade.
Quando, ao tratar de uma guerra, um vídeo didático inclui imagens de guerra, de
bombas explodindo, que efeito se quer com isto produzir? Qual a função destas imagens?
Visam nos informar sobre como foi a guerra? Sobre as estratégias militares? Sobre os
equipamentos utilizados? Para ensinar sobre os tipos de armamentos, por exemplo, seriam
necessárias imagens detalhando, comparando, integradas com outras informações. E
quando o narrador fala sobre uma determinada cidade, no início do século XX, enquanto
uma sucessão de fotos antigas desfilam na tela, qual é a função destas imagens? Para
ensinar sobre a cidade, descrever como eram os espaços, as edificações, o modo de vida,
seria necessário uma montagem que destacasse e analisasse os elementos das fotos. É
pouco freqüentemente nos audiovisuais didático-históricos, a utilização de imagens
enquanto evidências visuais, enquanto recurso para descrever uma situação. Então qual é a
função, no interior da maior parte dos audiovisuais didático-históricos, de imagens de
guerras ou de fotos antigas de cidades? Produzir sensações: sensações da guerra,
sensações da cidade no passado. A informação, nestes casos, é uma sensação. Uma
sensação que tem a função de persuadir, de reforçar a credibilidade daquilo que é
narrado.14 As imagens servem para mostrar, para suscitar a sensação daquilo que se
perdeu, para presentificar o passado.
Poderíamos buscar classificar as modalidades de audiovisuais pela natureza do
vínculo que somos chamados a estabelecer com o mundo que nos é presentificado.

13
A vídeo-instalação de Gary Hill tem o título de Tall Ships (1992) e esteve exposta no Museu de Arte
Moderna de 03 de outubro a 2 de novembro de 1997, na mostra O lugar do outro (Where the other takes
place). Ao caminharmos pela sala são acionados sensores que dão inicio à projeção de imagens poucos
passos adiante de onde estamos. Estas imagens criam a sensação de que as pessoas estão se aproximando até
ficarem ao nosso lado.
14
Ao mesmo tempo, para o pesquisador, estes recursos deveriam ser levados em conta como um índice dos
procedimentos utilizados pelos produtores na mobilização do espectador.

9
Embora o vídeo popular utilize recursos do documentário, da ficção e da reportagem
jornalística, o que o singulariza é a pretensão de que o mundo que se presentifica no ato de
fruição nos enraíze em nosso próprio mundo, ampliando nossa consciência em relação ao
mundo em que existimos e, mais profundamente, nos convocando a agir nele.
Eis ai uma diferença fundamental em relação ao filme de ficção (de entretenimento),
o qual nos transporta a um mundo que não é aquele no qual vivemos cotidianamente, e
que nos engaja (virtualmente) em uma ação que não é sobre o mundo que habitamos de
ordinário. De certa maneira, grande parte dos documentários também mantêm esta
distância em relação ao mundo que ordinariamente habitamos, até porque muitas vezes
estas produções buscam suscitar o desejo de conhecimento abordando situações não
cotidianas, fascinando pelo extraordinário e pelo exótico (a função espetáculo). A volúpia
de saber, que o documentário suscita e que nos engaja na ação de conhecer, não nos
remete, necessariamente, à reflexão e à ação sobre o mundo que nos circunda. No dizer de
Arthur Omar, o documentário mantém, na sua raiz, uma relação com a nostalgia, com o
que está em vias de desaparição: “Lamento e documento, preservação dentro do choro, ou
melhor, prolongar o objeto dentro do choro que chora por esse objeto (sempre o
perdido).”15 O vídeo popular, por sua vez, ao contrário do documentário “lamento”,
quando constrói uma dada realidade, particularmente quando se trata de uma realidade
“lamentável”, visa incitar uma ação enraizada no espaço de existência do espectador.

Vínculo com a existência (reportagem jornalística)

A reportagem jornalística pode, a primeira vista, ser considerada a modalidade que


mais nos enraíza no mundo vivido, nos propondo ações. Mas é justamente pelo diferencial
em relação à reportagem que podemos melhor verificar o que distingue o vídeo popular.
Mesmo que uma reportagem televisiva trate de algo que nos é próximo, seja pela
proximidade geográfica (nossa cidade, nosso bairro) ou por um vínculo de interesse
(profissional, afetivo etc.), ela raramente nos incita a uma ação no sentido de transformar a
situação apresentada, exceto, talvez, quando se trata de uma campanha (economia de
energia elétrica, por exemplo). Na maioria das vezes a ação em nós suscitada é de
reatividade, como a preocupação em reforçar a segurança de nossas casas contra a onda de
criminalidade que assola a cidade, ou delegativa, como a expectativa de que sejam
tomadas as providências cabíveis por parte das autoridades competentes (expectativa que
15
OMAR, A., op. cit., p. 12.

10
raramente ultrapassa um resmungo de indignação, sem sequer gerar nem mesmo uma ação
reivindicativa). Se durante o noticiário de TV devemos estar atentos, porém, passivos,
durante o intervalo comercial somos convidados a agir, não sobre o mundo mostrado nas
notícias, mas sobre nossa situação privada e nossa vida; não nos é exigido esforço mental
ou combate político, apenas a aquisição de mercadorias. Enquanto as notícias que tratam
de nossa existência, são apresentadas de modo distanciado de nossa ação, a mensagem
comercial, que remete ao imaginário, mostra-se como parte integrante de nossa vida, algo
que podemos controlar e mudar.16
Assim, na medida em que a notícia, como produto dos meios de comunicação de
massa, não estatui o espectador como agente, mas o incita a delegar a ação a outro, o vídeo
popular almejou ser anti-notícia, de modo a tornar visíveis os problemas e tirar os
conflitos da sua clausura - evitando que se tornem notícia (fato midiático) e banalidade.
Segundo Jacira Mello, que presidiu a ABVP de 1988 a 1991,

“ao focalizar em primeiro plano e trazer para o centro da tela a


expressão de minorias raciais e sexuais, dos trabalhadores e dos
"vencidos", deixando fora do quadro o repórter que explica os
fatos e o âncora que define os acontecimentos, o vídeo popular
traz também uma outra concepção de notícia, de reportagem e
especialmente da forma de abordagem, apresentando-se como
oposto do modelo televisivo”.17

O espectador compartilha (filme de família)

O que especifica o vídeo popular não é o tratar de um mundo contíguo à existência


cotidiana do espectador, mas o fato de suscitar nele uma ação extensiva a este mundo. Para
melhor elucidar este ponto, consideremos ainda uma outra modalidade de audiovisual: o
filme ou vídeo de família. São audiovisuais produzidos pela família, sobre as suas
vivências e para ser assistido por seus membros. Numa sessão de filme de família, somos
nós que aparecemos na tela, é da nossa existência e daqueles que conosco compartilham
que se trata. Mas a que estes filmes nos convocam? Somos por acaso conclamados a
transformar as nossas vidas? Em verdade, bem ao contrário. Estes filmes, por sua
natureza, são extremamente seletivos, recortam apenas determinadas partes de nossa
existência, e apenas certos modos de (bem) estar nestes territórios da existência. Os filmes
16
Ver NICHOLS, Bill. Representing Reality, op. cit., p. 175-6.
17
MELO, Jacira. “Vídeo Popular - uma alternativa de TV”. In: A. Novaes (org.). Rede Imaginária: televisão
e democracia. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1991, p. 297.

11
de família retêm e reatualizam os nossos momentos de felicidade e reafirmam o lugar de
cada um dos membros dentro da família.18
Mas se, em relação ao tipo de vínculo que nos é proposto para com o mundo no
qual existimos, o filme de família se distingue do vídeo popular, há entre estas duas
modalidades um aspecto comum. Ambos supõem, para que tenham eficácia, um público
específico. Se assisto a um filme de uma família da qual não pertenço, nem por parentesco
nem por amizade, deixo de ser alguém que compartilha um estado vivido para me tornar
um voyeur, um intruso.19 O grupo familiar é quem produz o filme, quem aparece no filme
e também o público a que ele se destina. Vendo o filme as pessoas se reconhecem,
recordam e recriam os acontecimentos vividos. O que ocorre com aqueles que assistem a
projeção passa a integrar o filme, aproximando a experiência de ver o filme de família
muito mais do happening e da festa do que da projeção tradicional.20
O vídeo popular também supõe um público que compartilhe, e que, por
compartilhar, se responsabilize. No limite a situação é muito semelhante ao filme de
família: um grupo produz um vídeo sobre os problemas que afligem sua própria
existência, para ser assistido por aqueles que vivenciam tais problemas. Este aspecto, aliás,
é o que dificulta a transposição do vídeo popular das experiências em circuito fechado (a
transmissão de um vídeo para um grupo delimitado de espectadores) e de TV de Rua (que
é uma espécie de circuito fechado em espaço aberto) para as formas de transmissão
propriamente televisivas. Quando a transmissão ocorre na TV de sinal aberto (captação
por antena) ou no sistema de TV a cabo, o que deixa de estar assegurado é a comunidade
de destino daqueles que assistem. Se aquele que assiste já não compartilha, torna-se
somente voyeur, intruso, curioso. Programas de televisão do gênero Programa do Ratinho
mostram claramente como um problema vivido por determinadas pessoas (e até comum
àquele que assiste) pode se tornar puro entretenimento. No lugar do compartilhar é
instaurado um comprazer-se com a dor e a miséria alheia que, do ponto de vista de uma
ação no mundo daquele que assiste, serve apenas para gerar uma autocomiseração.21

A parte do espectador
18
ODIN, Roger. “Le film de famille dans l’intituition familiale”. In: ODIN, Roger (org). Le film de famille:
usage privé, usage public. Paris: Méridiens Klincksieck, 1995, p. 32-33.
19
Ver SIEREK, Karl. “ ‘C’est beau, ici’, se regarder voir dans la film de famille”. In: ODIN, Roger. Le film
de famille ... , op, cit. p. 63-77; ESQUENAZI, Jean-Pierre. “L’effet ‘film de famille’”. In: ODIN, Roger. Le
film de famille ..., op. cit, p. 207-224.
20
ODIN, Roger. “Le film de famille dans l’instituition familiale”, op. cit., p. 37.
21
Seria necessário uma pesquisa para conhecer o modo como os espectadores se mobilizam frente a esta
modalidade de programa, e como buscam interagir e participar para resolver seus próprios problemas.

12
O estudo da recepção dos vídeos populares é um caminho de pesquisa ainda não
empreendido. Pouco sabemos sobre a resposta do público a estes vídeos, e sobre a sua
eficácia em relação a expectativa dos produtores. Se o dispositivo cinematográfico, através
do sistema de salas de projeção, da organização espacial destas salas e do escurecimento,
dilui até certo ponto as variantes contextuais dos espectadores, favorecendo um mergulho
no universo proposto pelo filme, no caso do vídeo popular, em função dos objetivos e da
forma como se realizava a exibição, as particularidades da situação daqueles que assistiam
tinha um peso bastante grande.
O vídeo popular, regra geral, era exibido para um coletivo e em situações
específicas, inserido em atividades de reflexão e debate, nas quais o vídeo era um meio
para sensibilizar e mobilizar os espectadores para algum fim. Excetuando o uso destes
vídeos na educação formal, os espectadores reuniam-se em função de causas em comum,
passando pelas lutas sindicais, lutas por moradia, lutas pela terra, lutas de minorias, entre
outras. O modo como um mesmo vídeo foi recebido por diferentes grupos e como
funcionou na mobilização para que os grupos atingissem os seus objetivos, seguramente
variava segundo as afinidades e interesses presentes em cada situação de exibição. Ao
mesmo tempo, o subjetivismo da interpretação individual tinha um valor relativo, dado o
caráter coletivo da experiência de assistir, muitas vezes associada a um debate e a
objetivos práticos previamente definidos.
As poucas menções existentes nos estudos sobre o vídeo popular em relação à
recepção dos vídeos referem-se às diferenças entre o espectador urbano e o rural. Estas
diferenças se manifestam tanto na aceitação ou rejeição de uma obra quanto na forma de
interpretá-la. Luiz Fernando Santoro, um dos fundadores e o primeiro presidente da
ABVP, relatou que um vídeo que incluía uma fala de oito minutos de um velho cacique da
tribo Pataxó, no sul da Bahia, ao ser exibido em São Paulo, para estudantes, gerou
desinteresse pelo depoimento, sendo criticado pela falta de ritmo. Ao ser apresentado na
zona rural, “onde a cultura oral tem outra importância”, o vídeo atingiu o público com
sucesso.22 Uma situação inversa, ou seja a rejeição de um vídeo por parte de uma
comunidade camponesa, ocorreu em relação ao programa Acorda Raimundo...acorda!!!.
Ao assistir o vídeo os camponeses tiveram uma reação “machista”, reforçando um padrão
de comportamento que o vídeo justamente visava questionar. A metáfora da inversão de

22
. SANTORO, Luiz Fernando. A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989,
p. 106.

13
papéis, que se dá através de um sonho de Raimundo, foi interpretada literalmente. Esta
resposta deveu-se ao fato dos camponeses não decodificarem a linguagem figurada mas a
tomarem por real. A mesma dificuldade de decodificação ocorreu com relação a outros
recursos da linguagem audiovisual, como por exemplo as quebras no fluxo temporal da
ação (flashback, sonho, pensamento etc.) e às seqüências com ações paralelas. Um vídeo
que mostrasse um líder que foi assassinado e depois, através de flashback, o mostrasse em
ação novamente, não seria compreendido. Observou ainda Inesita Araújo que a narração
impessoal, não coloquial, também não é compreendida. As locuções “abstratas”, que dão o
pano de fundo para uma ação (contextualização), não são compreendidas, mas quando a
locução, mesmo em off, está situada numa ação, ela é assimilada.23

Conceito de instituição

Roger Odin faz uma importante observação ao afirmar que, menos do que
estabelecer quais seriam os conteúdos produzidos nos audiovisuais, interessa mais
verificar as “operações de produção de sentido”. 24 O estudo de como o sentido se constrói
no audiovisual, seja no processo de produção ou no de recepção, parte do pressuposto que
não há um sentido em si, mas “um duplo processo de produção de sentido, um dado pelo
emissor e outro dado pelo receptor”. Odin critica os historiadores, assinalando que estes,
após estabelecerem o contexto de uma dada produção (as determinações econômicas,
políticas, culturais etc.), freqüentemente supõem que o seu sentido, uma vez estabelecido,
permaneceria fixo, exigindo apenas os adequados procedimentos necessários para resgatá-
lo. Ou seja, o ato de leitura (de recepção) não é levado em conta como momento produtor
de sentido. Da mesma forma que podemos falar de um contexto de produção, há
igualmente um contexto de recepção, implicando um feixe de determinações,
determinações estas que também são históricas. Desta forma, para entender a
particularidade do processo de produção de sentidos no vídeo popular, precisamos pensar
estes vídeos inseridos na dinâmica do movimento de vídeo popular.

23
Relatório Seminário de Capacitação – ABVP, realizado em São Paulo, nos dias 16, 17 e 18 de maio de
1992, p. 3-4. Inesita Araújo apresentou os resultados de uma pesquisa sobre a percepção por parte dos
camponeses e sobre a metodologia utilizada pelas instituições e realizadores de vídeos ligados ao movimento
popular no meio rural do Nordeste, abrangendo os estados do Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia. Ver
também ARAÚJO, Inesita Soares de. “Comunicação popular rural: o meio, a mensagem e o camponês”. In:
Proposta. Rio de Janeiro, nº 58, p. 41-44, 1993.
24
ODIN, Roger. “Sócio-pragmática e história: sobre o interesse do diálogo”. In: Estudos de Cinema. São
Paulo: EDUC, ano 1, nº1, p. 139, 1998.

14
Roger Odin listou cinco tipos de instituições características do cinema não-
profissional: filme de família, filme de amador, filme experimental, filmes realizados no
domínio escolar e o filme militante. Estas instituições são construções sócio-históricas e,
portanto, somente

“o historiador pode explicar porque o campo do cinema não-


profissional – que é, em princípio, o cinema de todas as liberdades
e que poderia ter-se tornado outra coisa – continua, em geral,
confinado nestes guetos que são a família, a vanguarda, o circuito
fechado dos clubes ou ainda as estruturas militantes e a produção
escolar.” 25

Uma instituição corresponde a “um feixe de determinações que regula a produção


de sentido ao selecionar, hierarquizar e estruturar os modos de produção de sentido que
serão operados”.26 O movimento de vídeo popular, articulando estruturas de produção e
espaços de exibição, pode ser considerado uma instituição similar aquela que Odin
denomina de vídeo militante. O modo como os vídeos populares refletiram sobre a história
e sobre o lugar do povo na história, foi condicionado pela natureza da “instituição” a que
eles estavam vinculados.

Regime de funcionamento e fontes audiovisuais

Na medida em que o movimento de vídeo popular pretendia apoiar o


fortalecimento dos movimentos sociais, contribuindo no processo de informação,
animação, conscientização e mobilização, torna-se necessário analisar como as
modificações na forma e no conteúdo dos vídeos interagiram com as transformações
ocorridas nos movimentos sociais. Para isto é preciso investigar como os produtores dos
vídeos pretenderam intervir nas transformações dos movimentos sociais e como os vídeos
foram afetados por estas transformações. As mudanças que podem ser observadas nos
vídeos correspondem às diferentes problematizações e concepções que circularam no
movimento de vídeo popular.
Ao se abordar os vídeos populares como documentos históricos é fundamental ter
em conta que, entre o objeto técnico utilizado na produção dos vídeos e os movimentos
sociais enfocados na fitas, existem os produtores dos vídeos populares - com suas

25
Idem, p. 144.
26
Odin refere-se a oito modos de produção de sentido: modo espetacularizante, modo ficcionalizante, modo
documentarizante, modo privado, modo argumentativo, modo estético, modo artístico e modo enérgico.

15
concepções e escolhas. Uma fita de vídeo popular é parte de uma ação, é marcada pela
pluralidade de elementos intervenientes na sua feitura e pelas estratégias desenvolvidas
para que ela seja operativa, para que seja um elemento interveniente num dado espaço de
existência.27 Neste sentido importa refletir sobre as estratégias desenvolvidas pelo
movimento de vídeo popular para gerar uma interação com os movimentos sociais, tanto
na produção quanto na exibição dos vídeos.
O que conferiu ao vídeo popular uma especificidade em relação às demais
produções audiovisuais não foi a forma nem o conteúdo dos vídeos, mas o dispositivo que
pautou a sua produção e exibição. Um dispositivo – este que analisamos pode ser
denominado de movimento de vídeo popular – opera em um campo de relações sociais
historicamente datáveis. As concepções, os equipamentos utilizados, os procedimentos e
as expectativas do movimento de vídeo popular tiveram um peso significativo na relação
que os espectadores tiveram com os vídeos naquele momento histórico.
Sem levar em conta o regime de funcionamento que regulou a produção e exibição
dos vídeos populares, o historiador que recorrer a estes vídeos como documentos para a
história dos movimentos sociais perde uma historicidade que já não está mais evidente nas
imagens e nos sons registrados nas fitas. Perde-se o processo pelo qual se quis construir
determinados sentidos através da junção de imagens e sons. Perde-se, enfim, o que
particulariza uma modalidade de produção audiovisual, acarretando o risco de se encontrar
no Programa do Ratinho uma continuidade do conteúdo e da forma do vídeo popular.
Perde-se, portanto, o que é descontínuo entre uma coisa e outra: a história.

27
Este desejo de intervir na realidade resultou em um aspecto paradoxal no movimento de vídeo popular: ele
muitas vezes pretendeu denunciar a manipulação exercida pelos meios de comunicação de massa, mas aos
mesmo tempo, reificava a informação audiovisual que transmitia, conferindo-lhe o estatuto de verdadeira
realidade no intuito de convocar o espectador a solidarizar-se com uma determinada causa.

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