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Confira o artigo.
A forma-de-vida
1. A filosofia pode ser, além de conhecimento conceitual, uma
prática que ajuda a construir um modo de existir, uma forma-de-
vida. Como vimos em textos anteriores, a construção de uma forma-
de-vida foi o principal objetivo da filosofia durante seu primeiro
milênio, desde Sócrates (século V a.C.) até Agostinho de
Hipona (século V d.C.). Este esforço originário da filosofia por
construir um modo de existência foi sendo deixado de lado na
medida em que a verdade foi identificada com o conhecimento
teórico das coisas, e não com vivência prática dos acontecimentos.
Na filosofia contemporânea, diversos pensadores orientaram suas
pesquisas com o intuito de resgatar a pertinência da filosofia como
forma de vida. Entre eles, como já indicamos em textos anteriores,
P. Hadot, M. Foucault e G. Agamben.
A problemática da filosofia como forma de vida foi amadurecendo
na obra de Agamben, que a desenvolveu de modo mais sistemático
em três obras principais: Altíssima pobreza; Opus Dei - Arqueologia
do ofício; Uso dos corpos. Na obra Altíssima pobreza, Agamben
desenvolve uma pesquisa arqueogenealógica sobre a forma-de-vida
criada pela relação entre regra e vida pelo monasticismo cristão e as
ordens religiosas chamadas regulares (por seguirem uma regra de
vida).
Como já desenvolvemos num texto anterior, a regula vitae criada
pelo monasticismo cristão tinha por objetivo conseguir que a vida
criasse uma regra para melhor viver o estilo de vida escolhido. Na
regula vitae é a vida que cria a regra, e não a regra que determina o
modo de vida. A regra serve como referente externo para que a
pessoa consiga orientar seu estilo de viver. O decisivo da regula vitae
é não cumprir a regra pela prescrição normativa que indica, já que
nesse caso a vida estaria normatizada pela regra e seria incapaz de
criar um estilo de vida por si mesma, mas transformar a regra em
vida adaptando a regra à vida. A regra tem que ser observada
enquanto ajuda a criar a forma-de-vida almejada. Na regula vitae a
regra está submetida à forma de vida, caso contrário a vida perde o
sentido de ser vivida nessa forma escolhida, pois estaria submetida
normativamente a uma regra que impõe um modo de viver com o
qual o sujeito não se identifica.
O ideal da regula vitae é atingir uma vivência da regra que anule sua
normatividade transformando a regra em vida. De alguma forma, o
ideal da regula vitae é desativar a normatividade da regra criando
uma forma de vida além dela, pois a vida que escolheu viver uma
determinada regra usa a regra como meio para criar essa forma de
vida. Nesta perspectiva, a vida internaliza a regra como meio para
seu fim, que é viver além da regra. Para tanto modifica a regra
quando necessário for, para melhorar a vida. A regra da regula vitae
não é um a priori transcendental que deve se obedecer, como
ocorrerá com o imperativo da lei em Kant, mas um meio relativo
que deve modificar-se em função da vida. A regra da regula vitae é
sempre relativa, pois está em relação com a vida que deseja
constituir-se. A regula vitae aspira a criar um limiar de
indiscernimento entre a regra e a vida transformando toda a regra
em vida e toda a vida em uma forma regrada de existir.
O ideal da forma de vida da regula vitae no monasticismo era
transformar a vida numa existência contemplativa do viver. Viver os
atos cotidianos e extraordinários da existência numa vivência
“mística” do seu sentido, o que os filósofos clássicos denominavam
bios theoretikos. Para o monasticismo cristão, a vivência
contemplativa da existência deveria ter a forma de uma liturgia
permanente. A vida deveria ser uma liturgia que celebra e agradece
a Deus em todos os atos de vida, tornando a vida uma celebração
constante no viver. O termo latino utilizado para traduzir o conceito
grego de liturgia era o de officium. A vida deveria ser um officium
permanente. Por isso a denominada liturgia das horas era uma das
principais regras de vida do monasticismo. Sintomaticamente, a
liturgia das horas é denominada também de ofício das horas. Rezar
o ofício é praticar a liturgia.
A transformação da vida em liturgia e ofício pelo monasticismo
implicava que todos os monges, sem distinção, eram sujeitos da
liturgia e do ofício, pois através deles se constituía sua forma de
vida. O ofício litúrgico era comum a todos sem distinguir entre os
sacerdotes e não sacerdotes, e sua prática constituía uma forma de
vida. A liturgia do ofício monástico não levava em conta as
hierarquias eclesiásticas, senão que visava o comum objetivo de
criar um estilo de existência.
Arqueologia do officium
2. Agamben desenvolveu uma outra pesquisa sobre a genealogia que
separou o officium da vida na liturgia cristã e sua influência na
concepção moderna do dever. Essa pesquisa está basicamente
recolhida na obra Opus Dei. Arqueologia do ofício.
Para entendermos o alcance das práticas litúrgicas e do ofício na
cultura ocidental, temos que rastrear minimamente sua genealogia.
O termo grego leitourgia deriva de laos (povo) e ergon (obra), seu
sentido originário era o de “prestação pública ou serviço para o
povo”. Denominavam-se leitourgia as ações públicas voluntárias
realizadas em favor da pólis. O sentido do termo leitourgia está
vinculado originariamente ao campo da política e do serviço; mais
especificamente denominavam-se leitourgia aquelas prestações
voluntárias que cidadãos da pólis decidiam fazer em favor da cidade
assumindo os ônus das mesmas. As leitourgias deviam ser
aprovadas publicamente na Ágora, por isso eram ações políticas. As
leitourgias eram serviços prestados ao povo de forma gratuita por
pessoas particulares. O fato é que a dimensão de ação pública nunca
deixou de estar presente no termo liturgia, inclusive nas liturgias
cristãs da atualidade.
Foram os rabinos de Alexandria que, ao traduzir a Bíblia do
hebraico para o grego (a chamada tradução dos 70), decidiram
utilizar o termo leitourgia para traduzir a palavra hebraica sheret,
que significa servir. Sheret é utilizado habitualmente na Bíblia para
designar os serviços ou deveres cultuais. Eles poderiam ter utilizado
outros termos gregos como diakonia, latria, porém optaram pelo
termo leitourgia. Essa opção não foi casual, nem aleatória, e
certamente levava em conta a dimensão pública e política da ação
leitourgica também na tradição bíblica. Esta dupla acepção, serviço
e dever, estará presente na tradução posterior para o termo latino
officium.
Na tradução que Jerônimo (347-420) fez da Bíblia do grego para o
latim no final do século IV, denominada de Vulgata, pareceria que o
mais correto para traduzir o termo leitourgia teria sido o termo
latino ministerium (serviço), porém foi traduzido pelo termo
officium (dever). Ambrósio de Milão (337-397), por sua vez, utilizou
conexamente os dois termos ministerium e officium para designar:
“per officium sacerdotis sacrumque ministerium”. Esta conexão
semântica entre ministerium e officium (serviço e dever)
consolidou-se na tradição teológica como elementos centrais da
prática sacerdotal.
O sentido de officium
3. O sentido de officium como dever está presente nos pensadores
clássicos. Cícero (107 a.C.-79 a.C.), excelente conhecedor do grego,
traduziu por officium o termo grego Kathekon. Sua obra De officiis,
traduzida habitualmente com o título: Sobre os deveres, remete à
obra de Panécio (185-110 a.C.) Peri tou kathekontos (Sobre o
dever).
O termo officium traduz um dever, mas não qualquer dever, é o
dever próprio da função. O dever do officium corresponde ao cargo
que desempenha, um dever que é exigido pela função que
desenvolve. Por isso o dever de officium é imposto à pessoa pela
função que assume. Pode-se dizer que o dever de officium é externo
à pessoa, é um dever que advém do officium que desempenha,
independente da pessoa que o realiza. Temos aqui assinalado um
início de separação entre a vida e sua ação, já que no officium o
dever é exigido pelo cargo que ocupa ou do status que desempenha
independente da pessoa.
A acepção de officium como dever inerente ao cargo é procurada por
Ambrósio de Milão quando escreve a obra De officiis ministrorum
(Sobre o ofício dos ministros), que analisa as virtudes e deveres dos
sacerdotes. Nesta obra, Ambrósio segue literalmente o tratado de
Cícero, De officiis, utilizando o termo dever num duplo sentido,
como dever moral e como dever de ofício, neste caso de ofício
sacerdotal. A obra de Ambrósio teve influência decisiva na teologia
cristã e ajudou a consolidar a transição do termo officium como
dever inerente à função do ministério sacerdotal.
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Confira os outros artigos da série “O cuidado de si e a forma de vida.
As práticas éticas e a constituição do sujeito. Entrecruzamentos de
P. Hadot, M. Foucalt e G. Agamben”:
- A Filosofia como forma de vida (I). Pierre Hadot, a filosofia antiga
e os exercícios (askesis) do espírito, revista IHU On-Line, nº 461, de
23-03-2015;
- A Filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de
si e o governo de si (enkrateia), revista IHU On-Line, nº 466, de 01-
06-2015;
- A filosofia como forma de vida (III). Do cuidado de si ao
deciframento de si, revista IHU On-Line, nº 467, de 15-06-2015;
- A filosofia como forma de vida (IV). A regra da vida (regula vitae),
fuga e resistência ao controle social, revista IHU On-Line, nº 468 ,
de 29-06-2015;