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CENA 1
Pausa.
MULHER JOVEM Claro que temos algo pra dizer um pro outro.
Pausa.
MULHER JOVEM Mas, de quê? Vamos ver: de quê? Diz! De que porra eu
tenho que me dar conta, se é que eu posso saber?
MULHER JOVEM Não, por favor. Se você vai repetir o que acabou de dizer é
melhor que se cale.
Pausa.
MULHER JOVEM A gente tem muito pra dizer m pro outro, ainda, e você
sabe disso muito bem. Eu sei que tem coisas que você
pensa e se cala, porque não quer falar sobre elas, ou não
quer falar pra mim, sim, falar pra mim, pra mim, por
algum problema seu que eu ignoro, que até você mesmo
ignora, e isso me ofende, sabe? Me ofende, me angustia,
dói, me dói ver você assim, me ver assim, nos ver assim,
enchendo com palavras vãs todos estes vãos momentos de
silêncio, e depois os insultos, seus insultos, porque é uma
ofensa o que você acabou de me dizer, me insulta, me
ofende quando diz que não tem mais nada pra me dizer.
HOMEM JOVEM Eu não disse que eu já não tenho mais nada pra te dizer.
Ouviu?
HOMEM JOVEM Eu disse que já não temos nada que nos dizer. Não eu. Não
você. Eu disse: nós.
Silêncio.
MULHER JOVEM É melhor mesmo porque você fica com mau hálito
insuportável e deixa um fedor na cama que não tem quem
aguente.
HOMEM JOVEM Podemos pôr também pedacinhos de maçã e abacaxi, se
tiver, claro.
MULHER JOVEM Bom, então tá, mãos à obra. Ih! Não sei se ainda tem
alguma coisa de sobremesa.
MULHER JOVEM Claro, como eu ando desligada. Hoje mesmo comprei dois
de manhã. Ah! E também tem iogurte!
MULHER JOVEM Tudo bem, você come o seu pudim e eu como o meu
iogurte, não tem problema.
MULHER JOVEM Claro, assim acabamos mais rápido. Vamos pra cozinha?
Ela lhe dá um murro no estômago e um golpe de joelho nos testículos. Ele cai no chão.
MULHER JOVEM O nosso acabou! Você vai ter que pedir um pouco à
vizinha.
Mais um chute.
MULHER JOVEM Vai pedir o azeite pra vizinha ou não vai pedir o azeite pra
vizinha?!!!!!?
MULHER JOVEM Quer uma salada tropical ou não quer uma salada
tropical???!!!!
Silêncio.
CENA 2
Personagens: Mulher Jovem e Senhora.
SENHORA O quê?
MULHER JOVEM Cala a porra dessa boca! Que saco! Afinal que merda você
tá tentando me dizer? Se é que você tá querendo me dizer
alguma coisa! Porque eu não tô acreditando que você me
fez vir de tão longe e tão tarde pra me encher o saco com
essas suas babaquices, com essa sua mania de palavras
melosas, frases sem pé nem cabeça e pensamentos
profundos escritos por imbecis para ignorantes anormais!
Olha, quer saber? Chega desse seu papo furado e vai logo
dizendo o que você quer, sem fazer rodeios estúpidos,
porque eu tenho mais o que fazer, tão me esperando pra
jantar e não posso perder tempo com uma velha chata!
SENHORA Vai!
MULHER JOVEM E foi pra isso que me chamou? Marca comigo com tanta
urgência, tem a coragem de me incomodar, me implora
pra que eu te escute para dizer o que já sei? Que você tá
completamente louca.
SENHORA Não. Para falar, de uma vez por todas, o que nunca te
disse. Sei que chegou o momento.
SENHORA O momento.
SENHORA Em te contar.
MULHER JOVEM ...o asilo é ideal. É o lugar ideal pra você. Vai para um
asilo.
Silêncio.
SENHORA Filha.
SENHORA Pensei que o parque era o lugar ideal para dizer que afinal
tomei uma decisão a respeito dessa sua mania de afastar-
me de você, de deixar de ser uma carga para você e para o
mundo. Sei que eu sou jovem ainda, mas também sou
consciente da minha doença e também sou consciente de
tudo que me afoga e de que minto, minto para mim, minto
para você, para matar o tempo ou recuperá-lo, por isso
imploro...
SENHORA Obrigada.
Pausa.
SENHORA Quê?
MULHER JOVEM Tchau. E para de ler essas coisas. Vão te deixar ainda mais
louca.
SENHORA Me liga.
CENA 3
SENHORA E eu o rock’n’roll.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa. A senhora olha fixamente para a mulher velha, pega a sua mão e se aproxima.
Se beijam na boca, por um tempo. De repente, toca uma música doce, cafona, antiga.
Som ligeiramente defeituoso.
SENHORA Insuportável.
Param de dançar.
A música para.
MULHER VELHA Nada. Nada. Música de asilo, música de asilo, para velhos
brochas, essas feiras de merda gostam de música de asilo,
adoram, focam loucas e não entra na cabeça delas que eu
detesto e que não sou a única! Tudo bem. Tudo bem. Vou
me queixar outra vez.
MULHER VELHA Sim, as duas juntas, melhor nós duas juntas, unidas
venceremos.
SENHORA Isso! Até que ponham uma música que a gente goste!
Pausa.
SENHORA Não!
Pausa.
Silêncio.
SENHORA Ainda bem que você está aqui!
SENHORA O quê?
A Senhora chora.
CENA 4
MULHER VELHA Já faz mais de dez anos que não nos vemos.
Pausa. O Homem Velho mete metade do corpo no latão e afunda nos sacos de lixo.
O Homem Velho tira do latão um saco que acabou de rasgar. Se senta no chão e tira do
saco umas latas de sardinha abertas.
HOMEM VELHO Vagabunda vagabundaça sei quem você é sei quem você é.
HOMEM VELHO Minha bundinha não quer frio merda cocô quer cocô.
MULHER VELHA Por que você não vem comigo para o asilo?
Pausa.
HOMEM VELHO Puaf asco porcaria tenho sede que salgada que salgada!
MULHER VELHA E se for a última vez que a gente se vê? Você é forte, está
louco, os loucos são fortes, fortes demais para morrer
antes do tempo. Eu estou doente e sou mais velha que
você. Não muito, mas sou, só três anos, mas são anos.
Agora são, mas antes... o que eram três anos para nós?
Nada, A gente se entendia. Sempre nos entendemos, nos
entendíamos... antes... principalmente antes... Quando
apagavam a luz do nosso quarto, nós falávamos em voz
baixa, cochichávamos e morríamos de rir, nos
entendíamos. Não tínhamos medo, confessávamos tudo
um ao outro.
Pega outro saco de lixo já rasgado. Tira dele um osso de galinha. Se senta no chão. Em
volta dele, restos.
HOMEM VELHO Franguinho frito um peito e uma asinha. Não vou te dar
puta velha caminhoneira.
MULHER VELHA Não quero comer, não tenho fome.
Ele come. Ela o observa, se agacha e senta-se do seu lado. Ele a olha surpreendido.
MULHER VELHA É.
Silêncio.
Ele dá a ela um osso de galinha. Comem. Olhares perdidos. Pausa. Ela se levanta com
dificuldade.
MULHER VELHA Quinze. Quinze para as nove. O asilo fecha às nove. Você
não quer vir comigo. Eu vou.
CENA 5
Personagens: Homem Velho e Menino.
HOMEM VELHO Que horas são? Não é muito tarde não é muito tarde? Não
são três horas não são quatro?
HOMEM VELHO Ah filho da puta filho da puta tua mãe é uma puta.
Pausa.
MENINO Eii. Por que é que tu tá olhando pra mim velho escroto?
Tô com cara de palhaço?
HOMEM VELHO Não digo nada não não não digo nada.
MENINO Que isso cara? Meu pai não fuma, idiota, eu roubei de um
cara brother que eu até que ia com a cara dele e ele ia com
a minha, aí ele não vai pensar nunca que fui eu que roubei.
Aí, quer que eu te conte um lance?
MENINO Mas aí a gente saiu da casa dos caras e foi pra um buraco
que uma galera tava morando e que uns malucos deram o
endereço e abriram a porta e a gente disse “Podemos
dormir aí?” E disseram “tá limpo, tá limpo, mas só uma
noite, hein”; ali tavam os cantores do Merda Social, a
mulher do Lençóis Manchados e o baterista do Fudendo
minha mãe, era foda e a gente pensou “Porra, ainda
sobram sessenta e sete paus e esses caras com certeza
podem vender uma parada pra gente, porra maneiro”, e
compramos e matamos ali mesmo, puta que pariu cara
porra muito maneiro que viagem alucinei, tudo cheio de
cores e voamos e a gente tava no céu como um anjo e eu
não pensava em nada e me mijava de rir.
Pausa.
HOMEM VELHO Cala a boca cala a boca filho da puta dorme dorme cala a
boca.
Silêncio.
HOMEM VELHO Ai. Ai. Ai. Filho da puta filho da puta filho da puta de
anjinho!
CENA 6
HOMEM Tá quase.
MENINO Quem me dera.
HOMEM E você?
HOMEM Não.
MENINO E a mamãe?
HOMEM Dormindo.
HOMEM Não.
HOMEM Quem?
HOMEM Ah.
MENINO Na mamãe.
HOMEM Tá boa?
MENINO Tu não enxerga? Não vê por aí? Não olha quando elas
passam na rua?
HOMEM Às vezes.
MENINO Mentira.
HOMEM E você?
MENINO Eu sempre.
HOMEM Não.
MENINO Não.
MENINO Quê?
HOMEM Amanhã...
MENINO Qual?
HOMEM Não. Não vou contar.
HOMEM Não.
MENINO Que é?
MENINO E você?
MENINO Eu to.
HOMEM Eu também.
MENINO Uaaauuu!!!
MENINO Vamos.
MENINO É.
HOMEM Não.
HOMEM Não deve fazer bem ficar tanto tempo dentro d’água.
MENINO Você.
MENINO Que eu tenho que sair, que com certeza não é bom, que eu
vou pegar uma pneumonia, bah.
HOMEM Tenho.
O Homem se despe.
HOMEM É.
MENINO Maneiro.
HOMEM Tá.
HOMEM Quê?
MENINO O teu.
HOMEM O meu?
MENINO A mamãe?
HOMEM A água.
MENINO Papai.
HOMEM Que?
MENINO Olha.
HOMEM Quê?
MENINO Toca.
Silêncio.
CENA 7
HOMEM Nada.
GAROTA Nada.
HOMEM Não.
HOMEM Nada.
GAROTA De quê?
HOMEM De pegar.
HOMEM O trem.
GAROTA Ah.
HOMEM Não.
HOMEM Adeus.
HOMEM Adeus.
Silêncio.
CENA 8
Cozinha de um apartamento.
GAROTA E já tá pronta?
SENHOR Não.
SENHOR Não.
SENHOR De quê?
GAROTA De cozinhar.
GAROTA A quê?
SENHOR A aprender.
SENHOR É verdade.
SENHOR Linguado.
GAROTA Quê?
SENHOR Paf!
GAROTA Bem, muito bem, estou muito feliz com meu novo
trabalho, felicíssima e adoro viajar e poder estar longe
dessa cidade de merda e esta viagem me fez muito bem.
GAROTA Peixe mais insosso. Faz um mês que não venho e você
decide fazer o peixe mais insosso que existe e uma salada
triste, uma salada triste cheia de vermes e um peixe sem
gosto; eu telefono a mil quilômetros de distância, mil
quilômetros e digo: “chegarei amanhã e irei vê-los, irei
jantar com vocês, porque depois de amanhã volto a viajar”
e você prepara de propósito os pratos mais inadequados, é
verdade, já estou até vendo, vejo perfeitamente: filha
chata, visita de passagem, reunião familiar forçada,
encontro sem graça, menu sem graça: salada e linguado!
GAROTA De quê?
SENHOR Do linguado.
GAROTA Quê?
GAROTA Sei. E vai demorar muito pra ficar pronto? É porque... sabe
o que acontece?... é que... eu to com muita pressa. E
falando nisso, e a mamãe? Já não devia ter chegado? Ou
também vai fechar a loja mais tarde do que o costume
sabendo que estou aqui... quanto menos tempo me vendo
melhor? O que você acha?
SENHOR É um dom.
CENA 9
SENHOR Um presente.
RAPAZ Que é?
SENHOR Adivinha.
SENHOR Me dá um uísque
RAPAZ É normal.
RAPAZ Eu to nervoso.
RAPAZ Água.
SENHOR Eu a vi anteontem.
RAPAZ A gente tinha que morar mais longe. Todos, mais longe.
Que merda de bairro. Todo mundo acaba se encontrando,
mais cedo ou mais tarde. Já não existe mais intimidade.
SENHOR Cinquenta.
RAPAZ Me olha. Fala pra mim. Para me mostrar que ela sabe.
RAPAZ Não.
SENHOR Me dá água.
SENHOR Já estou.
RAPAZ De intimidade.
RAPAZ Quero.
RAPAZ Que eu faço? Que... que você quer? Que... quer que eu
faça?
RAPAZ E agora o que? Que eu faço? Que... que tenho que fazer?
RAPAZ É um espelho.
Silêncio.
CENA 10
O Rapaz sai. A mulher continua falando como se não tivesse acontecido nada.
Enquanto fala, se levanta e dá uma busca nos bolsos da
jaqueta do Rapaz que está pendurada na cadeira.
Encontra a carteira e conta o dinheiro.
MULHER Mas não. Era uma amiga da minha irmã mais velha, que
vive num lugar desses para pessoas como ela, desses onde
eu não pretendo botar meus pés nessa vida. Mexendo em
uns papéis, sei lá, ela acabou encontrando por acaso meu
telefone e me ligou para que eu fosse visitar a ela, a umas
amigas e... e me animar a... a ir não sei aonde em um
desses carros especiais para pessoas como... como nós.
Que horror! Me disse, como nós! Imagina o programa.
Enfim, me fiz de idiota e comecei a falar de coisas sem
importância e do meu estado de saúde que não podia estar
melhor e que maravilha e da gentileza e simpatia das
pessoas desse bairro e de que eu estou feliz vivendo neste
apartamentinho antigo mas com muito charme e desliguei
o telefone em dois tempos e sem dar tempo para que ela
respirasse e voltasse a me convidar; enfim, mal eu
desliguei fui como uma sonâmbula para o banheiro e me
olhei no espelho. Mas, o que tá pensando aquela mulher,
aquela...velha!! como se atreve a telefonar para mim!!?
Tudo bem, não tem problema; quando eu me olhei no
espelho eu me acalmei em seguida: continuo sem
nenhuma ruga. Posso ficar mais uns dez anos sem ter que
me olhar no espelho.
Tira uma nota da carteira do Rapaz e põe dentro do decote, disfarçadamente. Mas o
Rapaz já tinha entrado sem que ela percebesse.
RAPAZ E o café?
MULHER Ai! Que susto! Você e essa sua mania, não vai mudar
nunca. Você é um sádico, um sádico. Por que você nasceu
desse jeito? Por quê? Eu não posso entender.
MULHER Ao seu pai, com certeza que não, ele era um homem
encantador, galante e educado e que em paz descanse.
RAPAZ Senta.
RAPAZ Se acalma.
MULHER É que não se pode estar assim pela vida, dando sustos
desta maneira, assustando as mulheres como você assusta,
porque se você assusta a mim, com certeza assusta
também as outras mulheres.
MULHER Já te disse mil vezes que da próxima vez que você vier
jantar pode trazer alguma amiguinha, se você quiser. Eu
não me incomodo, pelo contrário. E nós mulheres nos
entendemos. E seria menos chato. Por que você é tão
chato? Ui, o comprimido. Por que você é tão cansativo?
MULHER De quê?
RAPAZ Não.
RAPAZ Não.
RAPAZ Duvido.
MULHER Agora tem uns ótimos. Até fazem companhia para você.
MULHER Cem.
Silêncio.
RAPAZ Tchau.
O Rapaz sai. A Mulher vai até a mesa. Se senta. Tira as notas do decote, as arruma e
tenta alisá-las. Toca a campainha.
EPÍLOGO
HOMEM JOVEM Poderia encher esse copinho de azeite de oliva, por favor?
MULHER Ai. Ai. Sente-se, sente-se, por favor... Foi na escada, não é
verdade? Você caiu na escada? Foi isso? Que horror.
Espera só um segundo, vem aqui comigo, senta aqui, fica
calmo, pode ficar tranquilo, tranquilo.