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Rio de Janeiro
Junho de 2009
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DEDICATÓRIA
Christina Ramalho.
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NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis:
estética e ideologia no Romantismo brasileiro. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da
UFRJ. 106 fl. 2009. Dissertação de Mestrado em Literatura brasileira.
Resumo
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NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. The novel Úrsula by Maria Firmina dos Reis:
esthetic end ideology in the Romanticism Brazilian. Rio de Janeiro: Faculty’s Letter UFRJ
106 pages, 2009. Dissertation of master in Brazilian literature.
Abstract
This dissertation develop a critical on the narrative construction of the novel Úrsula
(1859),demonstring that the woman and the black, how character, disorganize the
patriarchal end slavocrat mandonism in vigour in the Brazilians culture end literature of the
century XIX. The contribution by Maria Firmina dos Reis to female visibility end the
elaboration of the african identity of the black slave be connected on the discourse warping
of the romantic esthetics. The investigation to fix one attention on manner that the novel
constructions, on distribution of voices that weave the narrative enchainment. The
strategy’s displaced by power effectuate of narrator, through of your stylistic recourse,
breed the effect esthetic that harmonize on ideology conception localizing the woman end
the black how character no amiable in the relation on the proprietor’s earth.
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Sumário
1 Introdução ..........................................................................................................................1
6 Conclusão ........................................................................................................................100
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1 Introdução:
Durante o século XIX, foram produzidos no Brasil vários romances que certamente
invisibilidade, seja pela ignorância do não conhecimento daqueles que constroem o cânone,
seja (pior ainda) pela perspectiva autoritária da ideologia tradicionalista que limita a visão
brasileira acerca dos estudos literários, a professora e pesquisadora Elódia Xavier fez a
Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, para constatar a construção ideológica e
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Dessa maneira, o romance Úrsula aparece como o único romance romântico
brasileiro do século XIX que se solidariza criticamente com a originalidade literária por
unir estética e ideologia na elaboração de suas personagens, fato que distorce a afirmação
original, é porque não possuímos tradições nem organização étnica e sociológica que nos
O romance Úrsula pode ser considerado uma construção irônica perspectivada nos
valores culturais do Brasil colonial, por três motivos: 1º - devido à consciência da autora
(manifesta no prólogo do livro) de ser sua obra recebida como menor pelos homens letrados
do século XIX, e, mesmo assim trazê-lo a lume; 2º - por construir de maneira excepcional a
dos papéis femininos (ROCHA-COUTINHO: 1994, p. 39) para torná-los visíveis enquanto
movimentação narrativa e características das personagens mulheres; 3º - por fazer com que
o negro seja humanizado e sujeito do seu próprio pensar, sendo parte fundamental da trama
dos proprietários da terra, pois além de eles serem personagens secundários, são punidos
consolida a ironia em sua construção narrativa, não apenas como um tropo retórico, mas
como construção de significado, pois os senhores da terra (os poderosos) passam a ser maus
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conciliação, do jeito e da cordialidade, formas do poder dominante para manter sua
elementos determinantes da forma da obra ( EIKENBAUM: 1973, p. 157) que dão força à
passa a ser pouco significativo, cedendo lugar à trama que reduz o tom panfletário
solidarizar com as vozes oprimidas da configuração cultural do Brasil colônia e por esse
princípio ser a fonte do individualismo romântico que se fragmenta nas dimensões de cada
identidade cultural manifesta nas personagens do romance, opta-se por usar o termo
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narradora e não narrador quando a análise da obra exigir atenção à instância de enunciação
narrativa.
epistemológicas. Para fixar a revolução literária e cultural de Maria Firmina dos Reis,
torna-se necessário o conceito de narradora, mesmo pela época em que o romance fora
romance, para que dela surjam as identidades culturais como caracterização das
baseada em elementos que se projetam para o campo cultural e histórico, que passam a ser
matéria literária do enredo da narrativa, pois Úrsula aparece como uma narrativa literária
Literária Brasileira, por ser um romance que destoa das considerações canônicas do século
XIX e conter enunciações que sustentam a crítica feminina e do negro acerca de suas
As citações do romance de Maria Firmina dos Reis foram tiradas da edição fac-
similar vinda a lume em 1975 pelos esforços de Horácio de Almeida. Por que não usar
edições mais recentes e atualizadas como a de 1988 organizada por Luiza Lobo ou a de
2004 organizada por Eduardo de Assis Duarte? Responde a essa pergunta Fausto Cunha:
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A retórica do Romantismo brasileiro necessita de consulta direta ao
texto primitivo, onde por vezes um travessão marca a cesura, assinala a
proximidade da metáfora, impede a sinalefa, indica a alusão a versos de
outrem, ou a citação não especificada, ou o emprego incomum do vocábulo
que se lhe segue. (1971: 89).
O romance Úrsula possui uma pequena fortuna crítica que vem se consolidando ao
longo do tempo, sua receptividade crítica abusa dos elementos inovadores e originais do
plano construtivo da narrativa. O romance parece ser concebido mais pela sua função
histórica e ideológica que por suas qualidades estéticas, assim se formula a receptividade de
questões de ser Maria Firmina dos Reis a primeira mulher a publicar romance no Brasil, ou
literária.
personagens históricas ou literárias, nem a reivindicação de que Maria Firmina dos Reis
tenha sido excluída das Histórias da Literatura Brasileira. Este trabalho visa a apenas
tanto dos estudos literários quanto culturais, uma vez que a literariedade estabelecida pelo
cânone não passa de uma construção elaborada por razões de ordem histórico-cultural.
escravos são condições sui generis para a realização do romance Úrsula e foco da
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investigação deste trabalho. A diferença do investimento crítico, em relação aos estudos
estrutura narrativa, as tensões entre as personagens e o modo com o qual a narradora realiza
Maranhão, identificar a influência de Sotero dos Reis sobre a escrita de Maria Firmina,
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2 A receptividade crítica da obra de Maria Firmina dos Reis: repetição e relatividade
canônica
dos Reis, as diretrizes que se impõem ainda hoje continuam sendo vinculá-la à produção de
autoria feminina e à tematização do negro. Pouco ou nada foi feito que se proponha a
examinar sua obra sob o ponto de vista interno da sua urdidura criativa, pois os trabalhos e
ensaios ainda pagam tributo a circunstâncias levantadas pela produzida pelos jornais,
Muito pouco foi feito para compreender os recursos poéticos utilizados pela autora
negro na Literatura Brasileira e de situar o romance Úrsula como uma das obras que
figuram nos primórdios do romance no Brasil e como obra fundadora da autoria feminina.
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enquanto personagens de ficção com características específicas da prática literária. Ou seja:
o romance Úrsula possui uma poética interna digna de obra literária por sua urdidura
elementos próprios da arte literária que ultrapassam a mera representação para alcançarem a
em princípio levantado pelos jornais da época, o que talvez lhe tenha custado a
invisibilidade Histórica e Literária, mas que ao mesmo tempo deu-lhe certa notoriedade na
imprensa, por uma mulher ter publicado romance e o romance possuir como tema o negro .
Vale rastear se houve ou não, de fato, um aprofundamento nas questões impostas pela
autora, se a crítica modificou a postura primária dos jornais apenas ideologizando a mulher
dias atuais). Fora desses dois circuitos, não há um estudo que enobreça a obra da autora por
seus méritos propriamente literários, mas pura e simplesmente por suas forças ideológicas,
fato que, para o estudo de Literatura como arte, consiste em um vazio muitas vezes
Não se pode afirmar, para a época, em termos de recepção crítica, que o romance
Úrsula tenha estupefação no imaginário da população brasileira, ou que ele tenha sido lido
por boa parte dos leitores da época, pois ao que parece, o livro nasceu com sua publicação
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em 1859 e morreu na crítica dos jornais, em meados da década de sessenta, tendo
Contudo, ao decorrer do tempo não se pode afirmar sem cautela que o romance de
Maria Firmina dos Reis e sua obra tenham passadas na mais completa invisibilidade crítica,
uma vez que aqui e acolá encontram-se, ainda que de passagem, referências à autora.
literária e principalmente com a obra da autora, não se pode concluir que as passagens, ou
menções, ou citações fossem de fato capazes de perpetuar o nome da autora e de sua obra.
A total invisibilidade crítica acerca da obra da autora (a meu ver inexistente) deve-se mais à
crítica que mal soube apreciá-la que propriamente às qualidades poéticas manifestas em
mesmo a citação da citação vulgar de um Silvio Romero (1980, p. 1115. v. VI), que deu
apenas o nome da autora entre outros nomes propostos no Panteon Maranhense, poemas e
autores coligidos por Antônio Leal Henriques; como também se perdeu tempo em
afirmações e negações se Maria Firmina foi a primeira mulher a publicar no Brasil. O fato
romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma
A produção literária de Maria Firmina dos Reis recebeu atenção por parte da crítica
No entanto, o fato de ter merecido certa receptividade à época não fortificou o nome da
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autora e, principalmente, a realização poética de sua obra, ao longo da evolução da crítica
anunciaram que um livro escrito por uma mulher estava em circulação. Do elogio sincero à
patriarcal, como num jogo intermitente entre a aceitação e o espanto daqueles que
camuflado por um “machismo galante”, ora o elogio espontâneo e incentivador, que por
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Em um apuro crítico à sociedade masculina e letrada brasileira consiste a
reportagem de 13/05/1861 do jornal A verdadeira marmota, entretanto não sem estar livre à
corriqueiras à época evidenciam o tratamento “machista” a ela dado, como : “ente delicado,
na qual percebe-se o primórdio da aceitação da literatura produzida por mulheres entre nós
publicado por uma mulher, cedeu lugar por parte da história literária a um profundo
século XXI viriam a ser fundamentados, inclusive, pela produção da pesquisa acadêmica: a
Tal dualidade, que ainda perdura, no campo da crítica literária em face do romance
Úrsula originou-se de afirmações tais como: “Raro é ver o belo sexo entregar-se a trabalhos
do espírito e deixando os prazeres fáceis do salão propor-se aos afãs das lides literárias” “A
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Verdadeira Marmota” (Op. cit.). E: “É pena que o acanhamento mui desculpável da novela
escravidão, que pecam pelo modo abreviado a que são escritas”. “Jornal do Comércio”
(Op. cit)..
Mais de cem anos depois foi que a obra da autora maranhense começou a ganhar
relevo por parte de pesquisas acadêmicas. José Nascimento Morais Filho deve ser
considerado o estudioso que merece mais importância quando se trata da visibilidade que a
obra de Maria Firmina dos Reis encontrou nas últimas décadas do século XX. A sua
publicação Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, de 1975, de fato, tenta
reconstituir por mosaicos históricos e literários tanto a vida quanto a obra da autora
maranhense, inclusive revelando seus enigmas (formas de charadas), seu livro de poesia
Cantos à beira-mar (1871), fragmentos de um diário produzido pela autora entre o período
de 9 de janeiro de 1853 e 1º de abril de 1903, o conto A escrava (1887) e artigos dos jornais
mencionados acima que versavam sobre a autora. Morais Filho não elabora nenhum juízo
Reis, atitude que, por si mesma, o leva e o levará a ser sempre lembrado e apreciado.
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tempo, foi como que por amnésia coletiva totalmente esquecida: o nome e a
obra. ( MORAES FILHO: 1975, s/p)
Os anos de 1975 e 1976 foram muito importantes para a obra da autora maranhense
dos Fragmentos de uma vida, José Nascimento Morais Filho publica Cantos à beira-mar
tempo. Pois no mesmo ano (1975) de sua edição fac-similar, aos 25 de dezembro, o
jornalista Marcílio Farias escreve um artigo intitulado Primeira Crítica e um subtítulo com
o título do livro. O valor de tal escrito consiste na consciência de seu autor de que o dito
romance seja o primeiro entre brasileiros a levar o cunho de abolicionista. Talvez, Marcílio
Freitas tenha sido o primeiro a observar as relações do negro no romance como de caráter
ideológico, porém entra na inevitável discussão (levada ao extremo pelos estudiosos) sobre
romance. Cita-se a passagem em que está, quem sabe, a primeira afirmação de que Maria
biografia de brasileiros e sobre Literatura Brasileira, Maria Firmina dos Reis aparece em
três. No primeiro deles e cuja autoria pertence a Sacramento Blake, há um dos primeiros
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registros sobre a autora, que fundamentou a pesquisa bibliográfica feita por Horácio de
autora:
feito por Sacramento Blake em relação à vida e à obra de Maria Firmina dos Reis. Deve-se
sua autoria a Raimundo de Menezes, que não relevou o importante livro de José
Nascimento Moraes Filho e deu prioridade a Horácio de Almeida, tanto quanto ao esforço
de tornar Maria Firmina dos Reis conhecida do grande público. Embora longo, torna-se
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como em versos, escreveu algumas obras. É considerada em seu Estado a
primeira mulher a escrever romances no Brasil. Seu romance Úrsula foi
descoberto em 1962 por Horácio de Almeida numa casa de livros usados do
Rio de Janeiro. Chamou a atenção do pesquisador porque, no lugar do nome
do autor, estava assinado Uma maranhense. Depois de muitos estudos,
Horácio de Almeida, que nasceu na Paraíba, descobriu a identidade da
autora: Maria Firmina dos Reis escreveu também o poema Cantos à beira-
mar e os romances Escrava e Gupeva, onde, além de casos de incesto,
aborda as relações entre os brancos e os índios em seu Estado. A paulista
Teresa Margarida da Silva e Orta é considerada a primeira brasileira a
escrever romances, mas, segundo os maranhenses, sua obra Aventuras de
Diófanes, escrita em 1752, foi publicada em Portugal e trata da mitologia
grega, um tema que nada tem a ver com o Brasil. Por isso, entendem, não ser
considerada a primeira. É uma tese que encontra apoio em vários círculos
intelectuais de outros Estados. Assim foi homenageada pelo governo do
Maranhão, que deu seu nome a uma rua de São Luís e mandou colocar uma
placa na antiga tipografia Progresso, onde em 1958 foi impresso Úrsula. F.,
em data ignorada, com certeza na terra natal.
Bibliografia: Cantos à beira-mar (poesias), A Escrava (romance), S.
Luis, ed. fac-similar de Úrsula, pelo governo maranhense, em 1975. Fontes:
Sacramento Blake, Dic. Bibliog. Bras. 6º vol. p. 232. Arquivo de O Estado
de São Paulo. Arqivo da Academia Maranhense de Letras, MA.
(MENEZES: 1978, p. 570-571)
obra e a autora no âmbito da literatura nacional, porém sua tentativa de pensar o livro
Úrsula como obra literária apresenta alguns equívocos, como por exemplo, as afirmativas
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de que falta ao romance “o colorido das descrições” e de que “ as cenas acontecem sem
personagens e estas possuem o efeito psicológico nelas próprias (seja por via de traições,
vingança, até mesmo pela via cultural da diáspora), e tal efeito se estende ao leitor que se
choca com os relatos de Tancredo, Luiza B., Preta Suzana e com as reações enfurecidas de
que Preta Suzana faz de África no IX capítulo e a primeira parte do romance, em que a
capítulo da obra.
por uma mulher funda a discussão de que Maria Firmina dos Reis teria sido a primeira
mulher brasileira a escrever e publicar um romance no país com suas cores locais. Essa
discussão foi retomada por inúmeros estudiosos, cada qual impondo sua perspectiva acerca
Horácio, que são a mãe das discussões no Brasil acerca do pioneirismo de Maria Firmina
dos Reis e embora longas, vale a pena lê-las, pelo seu caráter histórico e bibliográfico,
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As investigações feitas me levavam ao romance Úrsula, de Maria
Firmina dos Reis, dado a estampa em 1859. Antes, ninguém apontara outro.
O que vale, no caso, é romance e não tradução de romance, como fez Nísia
Floresta, em 1850, na relação que nos dá Sacramento Blake.
Também não entra aqui, em linha de cogitação, o romance de Tereza
Margarida da Silva e Orta — Aventuras de Diófanes — publicado em 1752,
porque esse romance, em verdade, não é brasileiro. Teresa nasceu em São
Paulo, de onde se retirou aos cinco anos de idade, levada por seus pais para
Portugal. Nunca mais voltou ao Brasil. O romance que lá escreveu e
publicou, enredado na fábula, foi, com efeito, o primeiro de mulher
brasileira, mas o que se quer é romance escrito no Brasil, com tema e cor
locais, saído da pena de uma mulher.
Neste caso está Úrsula. É o primeiro de autoria feminina, surgido no
Brasil, como o primeiro de autoria masculina, é O filho do pescador, de
Teixeira e Souza, publicado em 1843. (Ibdem)
enciclopédico afirma outras possibilidades de outras autoras terem publicado antes que a
Nísia Floresta, e nem cita qualquer valor da produção de Tereza Margarida da Silva e Orta,
Temístocles Linhares nega a proposição de que Maria Firmina dos Reis tenha sido a
Almeida, e seguindo a esteira de Wilson Martins. Seus argumentos são repetitivos, porque
como Martins, Temístocles nega a autora do Maranhão como primeira romancista brasileira
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e, diferentemente dele, legitima Teresa Margarida da Silva e Orta como primeira brasileira
Dando continuidade à discussão sobre ser ou não ser Maria Firmina dos Reis a
primeira mulher a publicar romance no Brasil, que de fato possui por tema a realidade
Brasileña:
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especifica en cuanto a su autor se refiere, y outra parte, como bien señala
Antonio de Oliveira, no es un libro de temas brasileños.
Todo lo que se sabía de Maria Firmina dos Reis antes de los estudios
de estos dos investigadores marañenses se limitaba a una breve nota en el
sexto volumen del Diccionario Bibliogáfico Brasileño, de Sacramento
Blake. (La primera novelista brasileña: In Revista de Cultura Brasileña,
Madri, n. 41, jun. 1976)
surgiu certamente da possibilidade de esse romance ter sido o primeiro saído das mãos de
uma mulher brasileira, em terra brasileira e sobre a cultura brasileira. Muito se disse e se
desdisse sobre tal possibilidade aberta à obra, porém esses estudos travaram a recepção
propriamente do romance, uma vez que se cogitou primeiro o registro canônico da obra, o
seu lugar de autoria dentro da Literatura Brasileira. Essa discussão estabelecida por aqueles
que bem ou mal se debruçaram sobre o romance Úrsula torna-se produtiva apenas para um
determinado princípio crítico postulado pela fixação do texto enquanto produção exótica,
inaugural, mas não desenrola os emaranhados do romance e não se debruça sobre o feito
quais: o negro e a mulher, sem situá-los como rigorosamente vigentes no âmbito estético-
literário.
que o autor situa os romances e poemas brasileiros que tratam da situação do negro no
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autoria de uma professora nascida na cidade de São Luís em onze de outubro
de 1825, Dona Maria Firmina dos Reis. (Op. cit.)
das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priori, onde há um ensaio intitulado
“Escritoras, escritas, escrituras” de autoria de Norma Telles (Op. cit. 2007, p. 401-442) que
situa a autora do romance Úrsula no conjunto das escritoras brasileiras do século XIX,
considerando o seu público leitor e o seu enredo, e claro, o fato de o livro ter sido escrito
como manifestação da mulher, seja como manifestação do negro leva-me à crença de que a
obra em questão nunca foi analisada por ela mesma, o olhar crítico apenas em momentos
fugazes se deteve a observar e analisar sua conjuntura narrativa, sua urdidura construtiva,
mesmo que sim, os aspectos poéticos do romance e sua literariedade foram subordinados
aos temas que ele aborda. Parece-me que se estudou muito o negro e a mulher, e a autoria
feminina, a partir do romance Úrsula, fazendo com que a narrativa fosse apenas um espaço
Aos poucos o romance de Maria Firmina dos Reis vêm sendo analisado em seus
aspectos literários, ainda que o negro, a mulher e a autoria feminina determinem o enfoque
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universidades brasileiras da área de Letras vem introduzindo estudos estéticos ao aspecto
acadêmica, pois há uma conciliação entre estética e ideologia, e não puramente o uso do
romance Úrsula para se pensar a condição da mulher e do negro no Brasil, e exaltá-lo como
titulo consiste em A escrita vanguarda de Maria Firmina dos Reis: Inscrição de uma
diferença na Literatura do Século XIX (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.
vanguardismo de Maria Firmina dos Reis consiste exatamente na relação do negro com as
Embora ainda ligada a conceitos estabelecidos pela crítica dos jornais do século
XIX e pelas ideias rasas (para o estudo específico de literatura) que sobrepõem ao texto
literário a história do negro no Maranhão, por exemplo, Cristiane Maria Costa Oliveira
avança a crítica acerca do romance de Maria Firmina dos Reis, ao menos por constatar as
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família. E na quarta narrativa, a da velha africana Preta Susana, conta como
era sua vida na África e sua triste transformação em escrava. (Ibidem: p. 79)
Outra dissertação de mestrado sobre o romance Úrsula foi concluída em 2007, cujo
título se dá: Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis
Adriana Barbosa de Oliveira. Em seu trabalho há a atualização das idéias propostas pelo
romance de Maria Firmina dos Reis e tão perseguidos pela crítica. Os temas de gênero e de
etnia são localizados no âmbito da narrativa, que ao ser meio de comunicação, estabelece as
Algemira Macêdo Mendes investiga a exclusão de Maria Firmina dos Reis das
Histórias da Literatura Brasileira. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na História
Rio Grande do Sul: departamento de Teoria da Literatura, Tese de Doutorado, 2007) além
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de refletir sobre os conceitos canônicos examina os aspectos formais do romance Úrsula,
fazendo com que pela primeira vez as questões do negro e da mulher sejam examinados
Introdução intitulada: Uma rara visão de liberdade, cuja autoria pertence a Charles Martin
âmbito do romance, assumem a perspectiva inovadora de Maria Firmina dos Reis ao tratar
Tomás (1853), uma vez que no romance de Maria Firmina dos Reis os negros não
aparecem como inferiores aos brancos e servem, inclusive, para eles, de parâmetro moral,
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que conduz a realização do enredo da narrativa forjando a identidade africana do negro sem
que este passe pelo processo do branqueamento, sem deixar de ressaltar também a
Maria Firmina dos Reis, situa o romance Úrsula na chamada literatura afro-brasileira e seus
integrada a um ponto de vista interno no plano da narrativa, interno tanto quanto diegese
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O Romantismo literário brasileiro surgiu a partir dos modelos europeus de se
produzir literatura, a forma do romance veio importada dos ingleses, franceses e dos
alemães, o espírito sentimental e constituinte dos ideais nacionais derivara muito pouco da
relação a Portugal fez com que os ficcionistas brasileiros buscassem modelos literários fora
da esfera lusitana, embora a cultura portuguesa prevalecesse ainda sobre as demais culturas
nacionalidade brasileira, em sua realização ideológica via estética literária, o português fez-
se presente na literatura brasileira apenas como personagem, pois a forma dessa literatura
do romance, o escritor brasileiro pode, por meio de sua forma, se aproximar desde a
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primeiro tempo, arraigado aos valores da estética romântica, desvelou a imaginação e os
relacionamentos humanos do Brasil, servindo como forma literária cujo bojo cultural se
do século XIX (que antecede o Dom Casmurro de Machado) apenas o sabor adocicado das
construções narrativas calcadas em enredos que apenas falam do ideal amoroso acaba
deixando de perceber que o tema amoroso aparece apenas como motivo para se encaminhar
questões próprias da realidade cultural brasileira, embora existam estudos eminentes como
O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, de Flora Süssekind (1990), que propõe
uma investigação sobre o nascimento do romance neste país abordando suas origens
ficcionais calcadas na realidade daquilo que de fato aparece como amostragem da formação
contribui para o entendimento do romance como forma artística que se constitui como
das classes sociais e raciais, sua localização e diferença como movimento próprio da
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possibilita a análise do romance romântico brasileiro através da tríade: raça / costumes /
paisagem, que a leva a pensar aquela produção literária sob a égide da razão racial, que
segundo a autora consiste em uma categoria analítica que sustentou a forma de pensar a
literária altamente violenta, mesmo que ao fim de sua narrativa geralmente se resolvam os
ambição, da luta pelo poder. Vale ressaltar que tais elementos funcionam envoltos por uma
impossível, que se mostra como o grande motivo da criação romanesca romântica, mas que
traz temas, no mínimo, relacionados a uma certa violência simbólica, ou seja: os dominados
literária dialogar com o momento histórico, com o desalinho real das cores, dos lugares, das
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núcleos da trama e do enredo, o romance do século XIX apontou tanto para a realidade
que vão do passado indígena até a “nascente formação” das estruturas sociais brasileiras
construiu também uma série de estereótipos e categorias culturais de exclusão, uma vez que
o negro como elemento constituinte da identidade cultural brasileira apareceu apenas como
elemento corriqueiro, mais que secundário, inevitavelmente excluído das relações humanas
negro ser apenas escravo e mercadoria. A mulher, assim como o negro, mesmo que seja ela
serventia, que se torna abrandada pelo enredo que põe em foco a estória de amor.
negro, no entanto os dois primeiros possuem a aura guardada seja pelo nacionalismo
literário seja pela expressão sentimental a que são vinculados. Mesmo que o romance do
identidade cultural brasileira foi dilacerada pelo próprio romance, sendo este, meio de
histórico que recebe tratamento estético ou mesmo mera obra literária de terceira categoria.
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Para um entendimento razoavelmente aprofundado do romance Úrsula, não basta
apenas considerar a sua estrutura em si mesma, a fim de estabelecer sua classificação como
romance tipo folhetim ultraromântico (LOBO: 1993, p. 228), devido aos emaranhados que
torna-se necessário levantar aspectos que estão fora da narrativa, uma vez que a
nacionalismo através das histórias das personagens que formam na narrativa o “instinto de
nacionalidade”.
que são tecidas conforme o olhar crítico da narradora, cuja exposição discursiva da
criação literária.
para que as personagens falem e construam a sua própria perspectiva do que seja a Nação
Brasil, a partir de seus próprios discursos que trazem sua vida íntima.
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Assim a narradora constrói as identidades culturais dos sujeitos, revoluciona ao criar
nacionalidade brasileira através das vivências das mulheres e dos negros, em confronto com
patriarcais e escravocratas.
A sua formação narrativa não corrobora com os aspectos dos romances tradicionais
brasileiros produzidos durante o século XIX, pois Maria Firmina dos Reis (como autora)
representa a constituição da mulher como agente histórico por ser agente da escrita, e a
produtora de texto literário sofreu um processo de emudecimento, seja por não ser
privilegiada nas principais Histórias da Literatura Brasileira, seja por suas obras serem
O problema consiste em que a própria Maria Firmina dos Reis tinha consciência do
lugar inferior a que a mulher era destinada, no século XIX, e magistralmente pensou o seu
lugar (de mulher em uma sociedade patriarcal), o lugar da personagem feminina, e do negro
são deslocados para um papel secundário, no romance Úrsula, uma vez que representam a
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censura da liberdade tanto de negros quanto de mulheres e definem a moralidade
Para Rita Schmidt (1995, p. 187): “A literatura feita por mulheres envolve dupla
processos literários sofisticados, como, por exemplo: imprimir no corpo da própria obra
No caso de Maria Firmina dos Reis, em pleno século XIX, momento em que o
romance ainda estava se definindo enquanto forma literária, além das duas conquistas, há a
africana, que são verdadeiros exemplos de humanidade, fato que destoa de toda construção
perjorativa acerca do negro escravo, sendo que africano fica além de escravo, por se
possui sua própria voz, constrói sua própria identidade, tornando-se livre por sua própria
imaginação, que elabora a imagem da África sem cair no colonialismo, porque o seu
As conquistas de Maria Firmina dos Reis vão mais além daquelas duas, muito bem
apresentadas pela pesquisadora, pois as suas personagens femininas, ainda que envoltas
não são forjadas pelo outro, mas pelo olhar da própria mulher, lançado, criticamente, sobre
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o feminino. E tais personagens entram em conflito com a autoridade patenteada
pelas vivências dos homens e das mulheres e seus respectivos papéis sociais, literariezados
no plano da obra.
escritura e a conquista das identidades buscadas pelas personagens femininas, que efetuam
Por outro lado, há uma quarta conquista: o negro manifesto como ser humano, o
negro em sua plena dignidade, o negro construído africanamente, como crítico do sistema
escravocrata, seja por sua caracterização, por seus atos, pensamentos e voz, que o definem
também como sujeito, passando ele de ser representado apenas como a vítima de um
precisou (no duplo sentido do verbo) articular a linguagem em uma escrita que camuflasse
as suas conquistas e as conquistas por ela dada, em geral, às mulheres e aos negros. A
estética romântica, com todos os seus floreios, como forma de expressão artística européia,
serviu para a autora maranhense como veículo, e ambiguamente, como camuflagem para as
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possível nesses casos: dar a sua voz aos que não poderiam nem saberiam
falar em tais níveis de expressão. ( CANDIDO: 2003, 178)
A narrativa do romance Úrsula propõe uma leitura que deve ser realizada nas
significado da obra, escondido por trás do amor romântico entre Tancredo e a personagem
humanidade, como protesto à coisificação imposta a eles pelos proprietários da terra, que
Firmina dos Reis destoa da tradição narrativa literária brasileira, antes mesmo de ela se
consolidar, funda aspectos de literariedade que produzem pressupostos ideológicos, que não
discursivas (BASTOS: 2007, p. 83), pois diversas classificações que caracterizam a forma
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que o negro expressa a sua voz africana, como persuasora do sistema escravocrata
romance psicológico, pelo mergulho no universo íntimo das personagens e analises dos
escravidão dos negros e o fim da escravatura dos brancos; assume, ora conectada aos
senhores patriarcais.
mecanismos de poder vigentes. Úrsula figura como uma narrativa que pensa os tempos
estrutura do poder colonial, regulada e mantida pelos senhores patriarcais; todo o romance
estabelece uma perspectiva crítica sobre a realidade histórica, sem deixar de se preocupar
com a amarração estética, que serve de veículo às indagações impressas nos caracteres de
valor literário, como, por exemplo: a forte participação do espaço e as movimentações das
sua manifestação maior e mais contundente consiste nas identidades presentificadas pela
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memória das personagens e a memória da narradora. Tais memórias não se circunscrevem
intervenções da narradora.
revolucionária, porque são presentificadas em uma memória poética que traz a mulher e o
negro como sujeitos ativos por suas mentalidades no âmbito do processo histórico e da
história cultural brasileira, porém não reitera ou reproduz a ideologia vigente, naqueles
literária, por não ser um elogio aos senhores patriarcais, e nem fazer com que seus dramas
sejam propostos como topos principal do romance; não continua, pelo viés literário, a
40
opressão dos colonos recaída sobre os marginalizados, e denuncia o processo colonizador
ao registrar as suas marcas deixadas na mentalidade e nos corpos das mulheres e dos
negros.
mulheres e negros, que mesmo sob o julgo dos senhores patriarcais são capazes de
construírem suas identidades por suas próprias palavras e ações, reconstituídas por suas
dando um caráter analítico à narrativa, ao mesmo tempo, cria a literariedade, que produzida
tecendo o papel social a que as personagens são destinadas, nos acontecimentos surgem os
patriarcal, pois as ações das personagens estão ligadas à construção de suas respectivas
âmbito da narrativa.
para que as identidades se manifestem com toda a riqueza de detalhes: seja no plano
psicológico, em que a natureza está em sintonia com os sofrimentos das personagens; seja
41
no plano da descrição física em que a natureza aparece localizada como espaço geográfico;
seja a natureza como criação de Deus; seja também a cultura dentro da natureza, cultura
esta que se identifica com os padrões coloniais, e que transpõe a atmosfera medieval com
brasileira.
acontecimentos, por coagirem com as personagens, servindo a elas como abrigo, como
espaço de meditação, como espaço de prisão, torneados por um clima de ruína conforme
uma atmosfera macabra, que ao mesmo tempo convive com o ambiente colorido proposto
pela natura brasileira, fazendo com que esta comporte a construção do mistério, do terror,
que o convento, entre outras funções dentro daquele tipo de narrativa, “fornece refúgio
contra a violência masculina, garantindo assim relativa independência para as mulheres” (p.
descrição do convento, e por ele ser um dos elementos que oferecem à narrativa do
romance Úrsula característica que se coadune com uma tradição romanesca ocidental
marginalizada, como o caso do romance cortês e gótico, Maria Firmina dos Reis/narradora
usou de recursos para dramatizar a condição feminina, dentro de uma cultura colonial que
42
Meia legua fora da cidade erguiam-se denegridas pelo tempo as
velhas paredes de antigo convento, com suas gelogias também esfumaçadas
pelo tempo, e que escondiam zellosas às vistas indiscretas as puras virgens
dedicadas ao senhor.
Era um edificio antigo na sua fundação, grave e melancholico no seo
aspecto: era a casa do Senhor sem ostentação. (REIS: 1975, p. 142)
A construção do espaço natural serve como pano de fundo para a localização das
identidades inferiorizadas pelo proprietário da terra, que, por outro lado, possui sua
também como criação de Deus, pondo em cheque o valor de propriedade, que gera as
para efetivar a crítica à cultura colonial, que constrói sua moralidade materializada em
Deus, para que haja a desapropriação econômica da natureza, e para que a humanidade, em
comunhão com ela, (se viva e a viva) em total plenitude, sem que valorize o dogmatismo
religioso:
Quem haverá ahi que se não sinta transportado ao lançar a vista por
esses vastos paramos ao alvorecer do dia, ou ao arrebol da tarde, e não se
deixe levar por um deleitoso scimar, como o que escuta o gemer da onda
sobre areiaes de prata, ou o canto matutino de uma ave melodiosa!!... A
vista expande-se e deleita-se, e o coração volve-se a Deos, e curva-se em
respeitosa veneração; porque ahi está Elle.
O campo, o mar, a aboboda celeste ensinam a adorar o supremo
Auctor da naturesa, e a bemdizer-lhe a mão; porque é generosa, sabia e
previdente.
Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor ahi impera; porque ahi
despe-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o
apodrece, e livre d’essa vergonhosa cadeia, volve a Deos e o busca — e o
encontra; porque com o dom da ubiquidade Elle ahi está! (REIS: 1975, p. 9)
43
Entretanto, para Fernando P. representante, dos proprietários da terra, a natureza
nunca assume o vigor de ser criação sagrada. A cor local perde todo o seu sentido de
brasilidade e manifestação divina, toda a sua descrição pormenorizada feita pela narradora
aparece como um espaço deslocado da caracterização de Fernando P., como se ele não
comungá-la, ele e a natureza são separados pela narradora, para demonstrar que Fernando
elementos naturais, ele parece estar fora de lugar. Por estar preso em seus próprios
interesses, não há sintonia entre a natureza e ele, ela não reforça a sua caracterização,
porque ele se define como seu dono, seu proprietário. Acima de Deus e da própria natureza,
Fernando P. se reduz à sua própria existência, deixando entrever a narradora que entre a
A cor local busca dar autenticidade à forma literária que se instaura na tradição,
como obra especificamente dotada de brasilidade, pela apreensão do meio que serve à
44
narrativa como espaço dos acontecimentos, lugar onde se põe a representação dos dramas
humanos, articulados com o tempo histórico manifesto. A cor local em Úrsula não se reduz
apenas aos espaços narrados, mas se amplia à extensão das personagens, à maneira com que
não se prende tão-somente nas descrições do tempo meteorológico, da fauna e flora, da cor
verde das matas, mas na extensão ampla do humano submetido a leis culturais em convívio
com a natureza.
grandiosidade das terras brasileiras, o templo das personagens ali inseridas, surge
aves que emitindo seus sons reforçam a enfermidade de Tancredo, velado por seu amigo
Túlio, e a noite dando um tom melancólico à voz da narradora para reforçar o sofrimento
do mancebo:
torna não representável pela arte pictórica renascentista, ao mesmo tempo em que nas
45
Saint-Pierre aparece como modelo superior à narradora, pois a natureza recriada por ele, em
sua narrativa Paulo e Virgínia, torna-se inigualável, porque pintada com as penas da
imaginação romântica que a narradora de Úrsula tanto exalta, tomando-a como estratagema
rural. Em meio à descrição da natureza, a narradora insere sua digressão, a respeito de sua
46
As mulheres como representação das variadas posições culturais de uma cultura
colonial, os negros representados conforme sua própria mentalidade africana, e não a que
foi construída pelo sistema escravocrata de ser ele o mero objeto; a figura de um padre,
como homem santo, que não pode interferir nas crueldades do antagonista Fernando P., e
este como representação dos proprietários de terra, mas sendo, no romance Úrsula a
encarnação do mal, o déspota, sobre o qual recai todo o sentimento de culpa, toda
moralidade da época, pois construir uma personagem que represente o máximo do poder
crime, do descontrole, elevando-a apenas pelo seu porte senhorial, pelo seu poder
concentrado, nas propriedades de terra do Brasil colonial. Sua valorização consiste apenas
Esse homem não estava no verdor dos anos; mas sua physionomia,
supposto que severa e pouco sympatica, n’essa hora crespucular, que dá
certa sombra a toda natureza, não senunciava a sua edade. A pelle sem
rugas, os olhos negros e scintilantes, tinham um que de bello; mas que não
attrahia. Era de estatura acima da mediocre, esbelto, e bem conformado; e as
feições finas davam-lhe um ar aristocratico, que, quando não attrahe, sempre
agrada. (REIS: 1975, p. 1001)
sua caracterização física denegrida, os sofrimentos recaem sobre ele como pendor
moralizante que a narradora a ele imprime. Sua aparência jovial, seu ar aristocrático
estatelam na amargura, no cansaço, na metáfora do despoder, na fraqueza que não pode ser
47
superada apenas porque se põe como o todo poderoso da terra. Sua fisionomia representa o
recebe o desvanecer produzido pela culpa, pelo desgosto, pelo sentimento de ser menor,
século XIX, quando articulados para comporem o livro, sua estrutura narrativa obedece ao
epílogo, que amarram os seus XX capítulos, sendo que o epílogo funciona como balanço
prólogo como reflexão da autora acerca de sua condição de produtora de texto literário, em
acobertada por uma exagerada apreensão da estética romântica, que assume a função de
48
estratagema para a transgressão da autoria feminina, em denunciar os preconceitos morais
desses temas faz com que a narrativa do romance Úrsula seja importante dentro da
literatura brasileira, uma vez que a mulher e o negro são trabalhados como temas
situação dos oprimidos, cujas angústias são reveladas, cujos posicionamentos de resistência
à dominação são desenvolvidos; quando por outro lado: secundários são os homens que
condição subumana das mulheres e dos negros, não aparecem como modelos para a
sociedade, mas como aqueles que impedem a humanidade de ser moralmente elevada.
comparação entre o fenômeno amoroso sentido por homens de índoles diferentes. O amor
como sentimento moral revela o caráter desses homens, que se confrontam na disputa do
marcas que separam os homens que escravizam daqueles que libertam. Trata-se do modelo
bipartido, não se manifesta em tom maniqueísta, mas como representação anímica dos
homens:
49
O amor que se nutre no coração do homem generoso, é puro e nobre,
leal e sancto, profundo e immenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode
conhecer, de quanta dedicação se possa conceber. Elle o eleva acima de si
próprio, e as suas acções são o perfume embriagador d’esse sentimento, que
o anima: mas o amor no peito do homem feroz e concupicente é uma paixão
funesta, que conduz ao crime, que lhe mata a alma e a despenha no inferno.
(REIS: 1975, p. 181)
romance romântico, pois a idealização amorosa, no romance de Maria Firmina dos Reis,
serve como desvio de atenção para a censura do século XIX. Em relação a textos literários
produzidos por mulheres, a ditadura patriarcal escravocrata daquela época foi ludibriada
deslocam dentro de uma temporalidade que se distingue apenas pela narração da memória
das personagens e da narradora, fazendo com que a linearidade seja construída pela não
uma grande narrativa que expressa o amor romântico que se origina como veículo e
autora para viabilizar e veicular denúncias acerca da condição cultural que alicerçava
homens e mulheres negros e brancos dentro de uma organização social que restringia o
poder aos proprietários da terra, estes eram também os donos das pessoas sem posses
territoriais.
50
romance Úrsula camufla a sua verdadeira originalidade, a sua relevância para os estudos de
literatura brasileira. Nele aparecem pela primeira vez mulheres e negros articulando a
e mulheres.
que usa elementos da realidade histórica para dar-lhes um tom de denúncia, converte-se em
machistas, mandonistas, opressores de mulheres e negros são postos como tais, e sua
representação não se torna gloriosa, ela passa a representar a maldade a que eles submetem
mas a reação daqueles que sofrem por serem subordinados aos seus costumes morais.
pelos acontecimentos, cuja fabulação foi intencionalmente proposta para que o seu
conteúdo fosse veiculado de maneira não explícita. Como se a narradora quisesse ocultar a
O fato consiste no peso dos preconceitos culturais que cairiam sobre Maria Firmina
dos Reis, caso ela fizesse simplesmente o panfletarismo em prol da mulher e do negro.
51
Todos os exageros e possíveis deslizes contidos, na formação narrativa do romance Úrsula,
são formas de obnubilar o genuíno propósito do romance: romper com os padrões morais
brancos e escravocratas por meio de uma forma de expressão estética do literário que
amenizasse a transgressão: no caso, a forma do romance romântico com seu alto grau de
“sub versão”, “versão menor”, aparece como subversão revolucionária, que revê a própria
época a que está contextualizada, para transformá-la através da literatura, sem deixar de
Maria Firmina dos Reis; ou foi por uma concepção altamente reacionária de mantê-la
muda, que os historiadores da literatura brasileira não deram ao romance Úrsula a devida
atenção que merece. Seja por uma ou outra negligência, a beleza estética e o apuro
ideológico do romance não foram devidamente estudados pela crítica que fundou tradição
narradoras que contam suas histórias a outras personagens, cujas impressões acerca da
personagem que fala surge através da memória que constrói a narrativa, assim tem-se o
relato de sua vida; na conversa de Luísa B. com Tancredo, ela relata a ele sua pesada
52
existência, preta Susana relata sua vida a Túlio, que por sua vez, descreve sua condição de
escravo a Tancredo.
expressa na memória como digressão das personagens e da narradora aos fatos passados
que dão substância ao relato, e fazem mesmo o discurso narrativo se movimentar. Todos os
das personagens, mesmo que aparentemente esteja focalizando apenas os seus aspectos
existem críticas respaldadas por uma consciência ideológica de grande apuro, que persuade
do feminino e da construção do negro como sujeito, seja em Túlio, seja em Preta Susana.
53
As diferenças são postas de maneira a elaborar uma espécie de cosmovisão da
cultura brasileira, ao que tange na esfera do cotidiano das fazendas, das províncias; o
homem negro. O romance Úrsula altera o mero conhecimento histórico e abre caminho
para:
estereótipos ao tratar das mulheres e dos negros, que são vitimados, mas que resistem, e de
certa maneira superam o poder inexorável dos senhores patriarcais, estes sim, são
caricaturalizados, são levados ao ridículo como punição à sua maldade: o fim de Fernando
pai de Tancredo morre em desgosto, como punição ao mal feito à sua esposa e a seu filho, e
Paulo B pai de Úrsula nem consegue redimir-se, plenamente, pela maternidade; enquanto o
fim de Úrsula, Tancredo, Túlio, Luísa B, preta Suzana, representa a morte por redenção e
54
Há uma perspectiva ideológica muito distinta, na estrutura do romance Úrsula, a
voz aos que na sociedade eram tratados com vilipêndio, como se fossem objetos.
O romance de Maria Firmina dos Reis torna-se uma espécie de texto que visa à
fazendeiros e comendadores, legitimando-os como donos da terra e dos seres humanos ali
sitiados.
século XIX, pois através de uma narrativa que aparentemente tematiza o amor romântico e
cria a estrutura tradicional romancesca entre mocinhos e vilões, propõe o desvelar cultural e
donzelas solitárias, crimes por ambição territorial, impotência da igreja diante dos crimes
motivados por paixões materiais e espirituais; uma série de caracteres da vida brasileira são
55
4 A forma do relacionamento entre os gêneros no romance Úrsula
universais, na sociedade maranhense do século XIX, pelo fato de que o tratamento estético
dado ao tema, embora camufle a ideologia proposta pela narradora, faz com que essa
senhor de escravos e escrava. A partir de uma visão particular que elabora a crítica e a
gêneros como tema assumido por Maria Firmina dos Reis aparecem como força motriz do
projeto ficcional da autora em dar visibilidade à mulher, em uma sociedade dominada por
homens.
56
O romance Úrsula abarca em sua estrutura a consciência da mulher acerca do
mulher enquanto matéria e produto ficcionais, pois na aparente submissão a que estão
sujeitas no plano da obra existe uma intenção transgressora, uma grande metáfora-irônica
submissão revela o ato transgressor da resistência, claro que uma resistência fundamentada
construção metafórica e irônica, entendeu-se que elas apenas reproduziam a submissão das
paralisação feminina se dá pelas forças culturais do patriarcado e não por sua vontade, daí a
romance e o seu antagonista por excelência, representa toda a opressão resultante do abuso
do poder, o lado sombrio e perverso dos comendadores da época, suas práticas opressivas
57
são determinantes para a obediência, calcada no engendramento do medo pela prática da
violência.
mulheres disputam o poder, sendo que as mulheres são boazinhas e os homens maus, há o
durante o século XIX. As personagens representam tanto as relações do amor ideal, como
sociais são bem definidos no plano sociológico do romance, como se a narrativa de Úrsula
sociedade na qual estão inseridos e as relações de poder estabelecidas entre eles e elas.
Maria Firmina dos Reis denunciou o aspecto opressivo pelo qual se fundavam as relações
entre os gêneros, levando-as para o espaço romanesco, através da observação do que tenha
Úrsula, ao assumir como um de seus temas a questão dos gêneros, assume também a
homem.
próprios daquela época, abrange um universo que vai desde o amor romântico da
dos pais de Tancredo, que se torna falida pela traição patriarcal ao modelo familiar
58
convencionalmente aceito; passando pelo relacionamento adúltero vivenciado por Adelaide
próprio pai; até o relacionamento entre irmão e irmã protagonizado por Luísa B e Fernando
P.; passando pela integridade moral do genro junto à sogra, manifesta nas conversas entre
Essas tensões propostas pelo romance Úrsula fazem dessa narrativa um exemplo de
brasileira de autoria feminina, desde o século XIX. Tanto que estudos contemporâneos do
final do século XX, que visam às encenações e transgressões de mulheres sendo produtoras
de literatura como Heloísa Maranhão e Zulmira Ribeiro Tavares, servem também para o
romance de Maria Firmina dos Reis. Como a designação da categoria gênero elaborada pela
século XX e XXI. Pois, mesmo presa a amarras que limitavam a prática literária feminina e
que impediam a mulher de pronunciar sua própria opinião sobre qualquer assunto que
59
ultrapassasse os limites domésticos, Maria Firmina dos Reis criticou, resistiu, e criou,
através da prática literária, uma visão individual que ultrapassou as limitações da sociedade
Úrsula, por imporem sua moralidade às demais personagens, moralidade, aliás, calcada na
daquela época, condicionados por uma moralidade rígida, onde a voz feminina supera o
ficção.
proposto pela imagem literária das personagens femininas que, mesmo submetidas à
poder não apenas dentro do espaço doméstico, porque a extensão espacial do romance
brasileira, expresso por metonímia em: “uma das melhores e mais ricas províncias do
norte” (REIS: 1975, P. 10). Esta localização enunciada pela narradora possibilita a
60
brasileira, porque tal qual um Vidas secas (1938), por exemplo, os dramas da humanidade
homens e mulheres e, como o representar das tensões geradas por essa diferença que se
construiu por meio da ideologia cultural proposta e imposta pelo pensamento dominante
dos homens. A ideologia desse olhar não quer postular que a mulher se diferencia do
caleidoscópico situa a mulher dentro da atmosfera cultural: ora lutando pela sua realização,
mantê-la dentro de um quadro social conveniente. Tal pintura colorava-se tão meramente
61
com as cores do amor, que na época era o único nobre lugar em que o feminino poderia ser
posto.
patriarcais, mesmo que suas personagens femininas sejam punidas por suas ousadias, como
a mãe de Tancredo e o próprio, que, embora seja culturalmente designado como homem,
Tancredo se inscreve como um defensor dos direitos femininos, dada a sua crítica
românticas, contudo sua perspectiva ideológica formula um proto-feminismo, uma vez que
são feitas críticas muito severas aos relacionamentos, que buscam a todo custo manter a
mulheres se constrói, através de acontecimentos que são tecidos para revelarem a maldade,
gêneros condena o mandonismo masculino que se apoia na prática da violência como ato
62
As personagens femininas superam o mandonismo destes personagens, mesmo que
sua relação com eles seja de submissão, pois elas, cada qual a seu modo, assumem, seja
pela representação a elas dada, seja pela própria voz, a consciência de serem oprimidas,
cultural, elas trazem as feridas abertas pelo mandonismo, cada uma representando as várias
principal Úrsula, que como centro do fio narrativo, mobiliza todas as outras personagens
mulheres, e sua condição feminina se impõe por não ceder à vontade de Fernando P.:
condições em que vivia a mulher durante o século XIX, no Brasil. Observa-se que há a
muito séria, e que são postos através de um aprofundamento estético que, embora
levantada. Deve-se a camuflagem a um recurso estratégico de que lançou mão a autora para
que sua crítica aos costumes da época fosse eufemístico, daí o exagero romântico. A
estética romântica esconde, com sutileza, a reflexão a que se propõe o discurso narrativo,
Por trás dos exageros românticos, dos arrufos pormenorizados que buscam disfarçar
63
sócio-cultural e psicológica do feminino, investigadas por uma escritora que está muito
além do seu tempo, porque no romance Úrsula o feminino não aparece cristalizado em
apenas uma dimensão sócio-cultural, como o fez José de Alencar em seus perfis de mulher.
brasileira, não foi solidário com suas personagens femininas, por não tê-las feito transgredir
patriarcalista, “passageiras da voz alheia, Lucíola, Diva, Aurélia ou Amália circulam como
(BRANDÃO: 2004, p. 13). Enquanto, Maria Firmina dos Reis em um único romance
sociais, sua construção não se fixa em apenas um modelo de identidade cultural da mulher,
mas a pluralidade do feminino construída por identidades culturais que abrangem situações
refletem sobre suas condições submissas e tentam ultrapassá-las seja por meio do devaneio,
seja por ações que acabam fracassando, seja pela loucura e até mesmo pela morte. O
64
romance Úrsula representa criticamente o feminino, como também insere, na literatura
convencional da imagem literária e sócio-cultural da mulher, mas mostram várias faces dos
tipos femininos existentes dentro de identidades culturais, começam com a mãe do jovem
O foco narrativo que caracteriza aquela personagem aparece pela voz do próprio
filho. Tancredo descreve a situação cultural de submissão de sua mãe em relação ao seu
pai. Sua perspectiva filial manifesta-se em discordância com a maneira que se forma o
relacionamento entre marido e esposa visto pelo ponto de vista filial tende a ser solidário à
casal provinciano, cujos conflitos são impostos pelo mandonismo do senhor patriarcal. Seu
tudo que está presente nos espaços que pertencem a eles, inclusive entes humanos.
marido/esposa a toda uma época, e não apenas casos isolados em que se evidenciam a
65
A partir dos inícios do século XIX, estaria consolidado o poderio
econômico dos chefes de parentela, podendo a estruturação de dominação da
sociedade brasileira ser caracterizada como tendente para o tipo patrimonial-
patriarcal que, subjacentemente, se vinha formando desde os princípios da
colonização. (SAFFIOTI. 1976: p. 161)
A hipocrisia revela-se no livro Úrsula, uma vez que a moral do “chefe de parentela”
entre marido e mulher que diz respeito a seus pais, a traição adúltera de seu pai, que troca
sua mãe por Adelaide, a idealização desta e o vínculo com a luxúria da mesma personagem.
Considerando a época em que o romance foi escrito e sua autoria feminina, pode-se
à sua esposa, dentro do desenrolar dos acontecimentos que a envolvem e muito mais na
Não sei porque; mas nunca pude dedicar a meu pae amor filial que
rivalisasse com aquelle que sentia por minha mãe, e sabeis por que? E’ que
1 Ver: Sigla e sua significação elaboradas por Jorge Fernandes da Silveira. Nota de rodapé 128 do livro A solidão
tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. De autoria de Lucia Helena.
66
entre elle e sua esposa estava collocado o mais despotico poder: meo pae era
o tyranno de sua mulher; e ella, triste victima, chorava em silencio, e
resignava-se com sublime brandura.
Meo pae era para com ella um homem desapiedado e orgulhoso —
minha mãe era uma santa e humilde mulher.
Quantas vezes na infancia, mao grado meo, testemunhei scenas
dolorosas que magoavam, e de louca prepotencia, que revoltavam! E meo
coração alvoraçava-se n’essas occasiões apesar das prudentes admoestações
de minha pobre mãe.
E’ que as lagrymas da infeliz, e os desgostos, que a minavam,
tocavam o fundo da minha alma. (1975:46-7)
humilhações sofridas por uma personagem que representa a esposa dentro do espaço
de Tancredo serve de objeto para a crítica desenvolvida acerca da situação da mulher dentro
do espaço doméstico, uma vez que a fala de Tancredo claramente se dirige em favor da
narradora que usa um personagem masculino, criado ao molde do herói romântico, para
posto que o filho, natural herdeiro do senhor patriarcal, ao invés de lhe ser fiel até mesmo
67
em suas atrocidades, para eternizar a cultura do patriarca no espaço doméstico, denuncia e
Quando Tancredo vai “para San’ Paulo cursar as aulas de direito” (REIS: 1975, p.
44), suas preocupações são o lugar onde nascera, os amigos de infância e, principalmente,
não abandonar a mãe, deixando-a desprotegida do algoz que vivia dentro de casa. “N’um
dia recebi o grau de bacharel e n’outro segui para minha terra natal” (REIS: 1975, P.45).
Ao retornar, o mancebo encontra sua mãe com uma sobrinha que havia ficado órfã,
apaixona-se, então, por Adelaide. Porém, seu casamento com a bela donzela embarga-se
Adelaide começa a narrativa como uma pobre órfã abandonada, virgem sem pai e
mãe, amada por Tancredo e acolhida por sua tia, a mãe do mancebo, e se torna mulher do
pai do mocinho. A construção dessa personagem sofre uma gradação negativa, pois suas
O aspecto onisciente oscila com a voz do próprio personagem, pois a sua fala resulta do
68
delírio que a narradora descreve, deixando que o próprio delirante expresse o conteúdo de
seu delírio, que organiza as características de Adelaide, como mulher idealizada e como
1975, P. 69) encerra-a digna de boas páginas de uma narrativa que foge ao tema da
idealização amorosa, pois seu corpo, seus gestos estão completamente desligados de
objeto, seu corpo passa a representar a carne sexualizada, os prazeres oferecidos pelo corpo
mulher poderia ser representada como mãe, filha, religiosa, mas nunca como amante.
Até o espaço, onde Adelaide se situa não mais como a virgem idealizada por
maneira provocante de se sentar, a sua distração simulada, os aparatos que a adornam dão-
69
lhe, ao fundo do salão, uma imagem espantosa, cujo efeito contrasta com qualquer
sentimentalidade romântica e ela nem mesmo se inibe por seus seios estarem descobertos:
Mesmo que Adelaide apareça redimida pelo sofrimento e pela morte, ao final do
força da sua caracterização de órfã carente a objeto do afeto de Tancredo e depois esposa
do pai de Tancredo não permite que o leitor ou a leitora se entristeça por ela, uma vez que
resistência feminina aos mandos do senhor patriarcal. Sua diferença em relação às outras
personagens femininas se constrói no fato de ela ser posta pela narradora como mulher
“Ella ludibriara o decrepito velho, que a roubara ao filho; e elle em seos momentos de
com Tancredo, lembra-se da vez em que desacatou a vontade do irmão, para casar-se com
70
Mais tarde, um amor irresistivel levou-me a desposar um homem,
que meo irmão no seo orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela
fortuna.
Chamava-se Paulo B...
Ah! senhor! — «continuou a infeliz mulher» — este desgraçado
consorcio, que attrahio tão vivamente sobre os dous esposos a colera de um
irmão offendido, fez toda a desgraça de minha vida. (REIS, 1975: p. 80)
galvinismo, fazendo com que exista, na literatura brasileira, uma personagem que
saúde, e nem mesmo a uma personagem tão frágil fisicamente escapa à ruindade do senhor
patriarcal, representado, em relação a essa personagem, pelo seu marido Paulo B e seu
irmão Fernando P.
homem sobre a mulher. Ela encarna o próprio sofrimento, sua imagem toda construída pela
imobilidade, pela prostração em uma cama por motivos de saúde debilitada, sua falência
econômica, seu desamparo, apenas aliviado pela filha são elementos que denunciam os
resultados da opressão masculina e seus efeitos sobre o corpo feminino, o corpo físico,
como também o corpo sócio-cultural e psicológico, que lavam-na a dizer: “eu nada peço
71
O mancebo resentia-se ainda dos efeitos de uma longa enfermidade;
e o seo rosto conservava morbida pallidez, que n’ess’ora sobresahia-lhe,
augmentando a gravidade do seo porte, em presença d’essa mulher, que
semelhava o proprio soffrimento.
E elle entrou; mas ao aproximar-se do leito de Luísa B. uma
commoção de pesar lhe ferio a alma. E’ que n’esse esqueleto vivo, que a
custo meneava os braços, o mancebo não podia descobrir sem grande custo
os resto de uma penosa existencia, que se finava lenta e dolorosamente.
Estremeceo de compaixão ao vel-a; porque em seo rosto estavam
estampados os sofrimentos profundos, pungentes, e inezprimiveis da sua
alma. E os labios lividos e tremulos, e a fronte palida, e descarnada, e os
olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dôr, quanto sofrimento lhe
retalhava o peito. (REIS: 1975, p. 76)
havia os restos de uma beleza que foi se transformando em ruína ao longo da vida, por
beleza e do sofrimento e sua permanência no mundo fora legada a Úrsula, que como a mãe,
outrora bela, padecerá, e terá ao fim do romance sua beleza sacrificada pela loucura e pela
morte.
enunciação narrativa para o tempo em que a mãe de Úrsula era jovem, e compara mãe e
filha. Porém, a imobilidade de Luísa B. volta a ser perspectivada logo em seguida pela
72
Semelhava um cadaver a quem o galvinismo imprestara movimento
limitado as extremidades superiores, myrrhadas e pallidas, e brilho a uns
olhos negros, mas encovados. (Ibdem)
sofrimentos vividos pela mulher em uma sociedade machista. O esgotamento da força leva
a voz de Luísa B. a se arrastar pela narrativa. Os espaços em que a narradora a situa são o
quarto onde Luísa B. está entrevada na cama e o cemitério. Estes espaços em que a
denunciar não só as mazelas de sua condição de abandonada e doente, como também para
Tancredo. No entanto, permeia esse diálogo a digressão da narradora, que constrói a partir
aspectos.
73
O tom moribundo do discurso faz com que a imagem de Luísa B. represente uma
revelarem os desvelos de uma mãe cuja filha se torna indefesa pela falta da presença do pai:
esposa, idosa, a mulher viúva, a mulher com deficiência física, a mãe, a sogra, a irmã. A
uma única personagem em vários papéis sociais e levanta a crítica sobre a situação
demonstrar os diversos papéis sociais a que uma única mulher poderia ser enquadrada no
mesmo de Tancredo, e não legitima passivamente a união dele com Úrsula. A precaução da
personagem em não aceitar de pronto o casamento do par romântico caracteriza-a fora dos
74
escrito. Por sua condição economicamente decadente, por Úrsula não possuir dotes, Luísa
B. se constrange ao saber que um mancebo distinto deseja desposar sua filha, mesmo que
esta esteja apaixonada por ele, e mesmo que o amor entre os dois seja recíproco:
extremo do poder patriarcal sobre o feminino. As palavras que ouvira eram a confissão de
Tancredo, dizendo que cuidaria de Úrsula, porque a amava. Não foi pelo amor de Tancredo
a sua filha, ou pelo tom eloquente com que o mancebo jurou amor à sua amada, em
presença de Luísa B., que esta se afetou, mas pelo fato de ter percebido através da fala de
trauma de uma mulher que passou parte da vida sendo submetida aos mandos e desmandos
Sua doença, sua condição de pobreza, os infortúnios sofridos não impedem que
Luísa B. tenha elevação moral, portanto ela se constrange com a união de sua filha com um
homem melhor situado na sociedade. Essa não aceitação imediata confere à personagem
uma autonomia em relação aos personagens patriarcalizados, pois a sua perspectiva não faz
de Úrsula uma mercadoria, que pode ser comprada com dinheiro, ou com a promessa da
75
Ao sabor do acaso, o romance Úrsula não deixa de pagar tributo ao casamento de
de uma estratégia (bem realizada) para as intrigas que fazem a narrativa ser bem
Úrsula, ao saber-se prima pobre de Tancredo também se abate, e revela, com seu
almeja para sua existência o amor ideal, o amor ao amor, e não o interesse escondido por
detrás de cortesias que visam à subida na escala social, através do casamento com um
homem rico:
Tancredo precisa de esforçar-se para convencer Luísa B. de que suas intenções são
das mais nobres possíveis, de que não faz parte da cultura patriarcal calcada no
mandonismo e na opressão sobre a mulher. Sua atitude passa a ser a de reconquista, pois a
em sua conduta. Tal circunstância do romance revela o poder da mulher sobre o homem, e
reforça o seu caráter ideológico de reconhecer no feminino a sua força, o seu vigor, mesmo
76
— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem
vedes a que estado me vejo redusida... e eu nunca aspirei a mão de um
homem como vós para minha filha. Tancredo de*** quem vos não conhece?
sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor? nós que somos?! Ah!
vós não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre Ursula. Seo pae,
senhor, era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.
O mancebo sorrio-se, e redarguiu-lhe:
— Então recusais-me a mão de vossa filha?
— Oh! senhor — « tornou Luiza» — minha filha é uma pobre
orphan, que só tem a seo favor a innocencia, e a puresa de sua alma.
— Ursula, — «disse o mancebo, voltando-se para a donzella» —
pelo amor do Céo, fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meos
sentimentos. (REIS: 1975, p. 86)
sem crítica, sem ressalvas, pois sua legitimação de mãe vem carregada de forte consciência
sociedade provinciana dos tempos coloniais coloca-se questionado por Luísa B., sua
capacidade reflexiva problematiza o casamento que se constrói como prática das escolhas
Nas passagens do romance Úrsula em que Luísa B. induz Tancredo a revelar sua
segue o seu destino através de escolhas próprias, fazendo-se não mandada, não
subordinada, mas com que valha a sua opinião e não a que se lhe impõe.
Através dessa personagem, o romance Úrsula denuncia não apenas a violência da cultura
colonial praticada sobre a mulher branca, mas inclui em sua defesa a voz da escrava
Luísa B.: “Seo marido era um homem mau, e eu suportei em silencio o peso do seo rigor”
77
Fernando P., ao não conseguir arrancar de Preta Susana o paradeiro de Úrsula e
Nesta passagem da narrativa há a última aparição de Preta Susana viva. Sua última
fala revela que, mesmo sob o jugo escravocrata, indefesa, em meio ao senhor de escravos e
sustenta na ironia. A imagem não se constrói por estereótipos, onde o desespero da escrava
poderia vir ao rasgo, pelo contrário, sua imagem se constrói a revelar a sua serenidade, a
Sua última aparição na narrativa vem com a descrição de seu cadáver, enrolado em
uma mortalha. Mesmo morta, Preta Susana perturba Fernando P., sua força como
personagem de ficção apresenta-se como o abalo que sua voz possui, no âmbito da
narrativa. Seus restos mortais assombram o senhor patriarcal, e sua voz permanece
consciência:
78
Em uma rede velha levavam dous pretos um cadaver involto em
grosseira mortalha; hiam-no sepultar!
Então Fernando P... estremeceo; porque aos ouvidos echoou-lhe uma
voz tremenda e horrivel que o gelou de medo. Era a voz do remorso
pungente e agudo, que sem treguas nem pausa acicalava o seo coração
febera por febera. (REIS: 1975. P. 187)
O par romântico Tancredo e Úrsula não se inclui no rol dos relacionamentos onde
se concretiza o poder do homem sobre a mulher por conta do poder econômico. Embora
este casal não inove no aspecto ideológico, seu envolvimento resulta do motivo encontrado
pela narradora para tirar o véu dos relacionamentos que evidenciam o abuso de poder dos
relacionamento do casal romântico serve como modelo do amor ideal, que foge ao
autoritarismo e se funda no respeito recíproco entre homem e mulher, que buscam juntos a
79
5 A forma estética e ideológica do negro no romance Úrsula
narrativa literária.
dificuldade em dar conta da presença tão incômoda qual fosse o negro, tão pouco propício a
idealizações, tão ameaçadora em seu quase silêncio reservado, como atesta Heloísa Toller
brasileiro.
destacam no plano construtivo do romance Úrsula por suas vozes elaborarem a crítica ao
80
importantes no desenrolar do enredo, papéis que funcionam como dispositivos para a
plano muito relevante no âmbito da narrativa, tanto para a sua organização literária como
Túlio, Preta Susana e Antero agregam caracterizações morais que os diferem dos
estereótipos articulados pelos processos culturais e literários do século XIX, sua função de
personagens impõe à narrativa acontecimentos que não seriam possíveis caso fossem
em face dos acontecimentos do enredo e sua caracterização se dá muito além do que disse
aparecem apenas como vozes de escravos, que aceitam a subordinação ao poder patriarcal e
escravocrata, são os próprios negros que se pensam, que se expressam. Do ponto de vista da
enunciação narrativa, são eles que se manifestam sem que sejam mediados por um narrador
2 Os escravos descritos em Úrsula fazem parte da seguinte regra: Túlio é o escravo bom, mesmo depois de ser
liberto escolhe continuar a servir Tancredo, seu novo senhor; Susana é a boa velha negra, a mãe preta, que se
sacrifica para salvar sua senhorinha. Tradução de Juliano Carrupt do Nascimento.
81
existem diferenças específicas tanto na manifestação das respectivas identidades culturais
assumido por eles no plano da narrativa, fazendo com que Preta Susana e Antero sejam
africanos de origem e Túlio seja africano por descendência. E mesmo entre a Velha
personagens, uma vez que Antero aparece na urdidura do texto como um fracassado,
incapaz de assumir responsabilidade: “Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e
cujo maior deffeito era a affeição que tinha a todas as bebidas alcoholisada.” (REIS: 170)
como serviçal de Fernando P., sua função na peripécia do enredo consiste em tomar conta
de Túlio, que está aprisionado em uma ruína arquitetônica, para que não avise a Tancredo
que o algoz quer matá-lo. O fracasso de Antero se dá pelo seu vício no álcool, pois,
82
Porém, ao encontrar-se só com Túlio se alinha aos sentimentos do jovem escravo,
tenta inclusive consolá-lo: “Antero, que tambem soffria, quis destrahil-o de seos
pensamentos dolorosos, e murmurou: ― Meo filho, não que a noite assim vae tão lenta e
fastidiosa?” (Ibidem:171).
A consternação que Antero sente ao perceber Túlio aflito por estar prisioneiro
quando Tancredo corre perigo, faz com que o Velho africano deixe fluir o outro lado de sua
Antero chega ao ponto de ser consciente do seu vício no álcool, e faz dele um
plano anímico, com a ajuda da cachaça e, no plano cultural, através da memória. Vê-se a
83
Túlio, ao perceber que Antero possui a fraqueza do vício, resolve dar-lhe uma lição
no Brasil e a sua diferença em África. A bebida tomada por um escravo e a bebida tomada
por um homem trabalhador e livre situa-a como “válvula de escape” para a sua condição de
cultural, ao evocar por meio da cachaça a África, sua evasão se justifica ideologicamente
pela dignidade do trabalho e dele vir o sustento para o vício do álcool. Há uma
contraposição de valores em sua fala, onde o Brasil aparece como espaço da escravidão, e a
África como lugar da liberdade humana. Tal armação ideológica se desenvolve através da
84
― Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra ha um dia em
cada semana, que se dedica à festa do fetixe, e n’esse dia, como não se
trabalha, a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! lá então é vinho de palmeira
mil vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira. (Ibidem: 172-3)
negro do século XIX como sujeitos identitários e não como objetos forjados pelos discursos
histórico e literário, ou pelo fato de se instaurar, pelo viés da originalidade, o negro como
como herói no romance brasileiro. Há neles uma reivindicação estética e outra ideológica
expressiva, por eles (os negros) aparecerem ligados à identidade africana e não apenas
obras e autores que inscreveram o negro no âmbito daquele período literário, e que
assumiram ou não a abolição da escravatura. Maria Firmina dos Reis difere de todos eles
pela originalidade da obra e por ser mulher produzindo em um momento histórico em que
85
gerava, e sobre isso produziu uma comédia e um drama: O demônio
familiar (1857) e Mãe (1859). Joaquim Manuel de Macedo escreveu no
mesmo sentido algumas narrativas reunidas no livro As vítimas algozes
(1869), e abertamente abolicionista foi o famoso romance de Bernardo
Guimarães, A escrava Isaura (1875), que é muito ruim mas causou grande
efeito, pois descreve a situação extrema de uma jovem que é branca no
aspecto, mas de condição servil, podendo ser comprada e vendida. (2004:
68-9)
voz tríplice da personagem negra e não apenas o discurso autoritário do senhor patriarcal,
pois apenas o tecer da identidade africana: ora como da mulher escrava, ora do negro como
próprias do discurso literário; ideológico porque se manifesta como a voz que rompe com a
como elemento construtivo, e ela se articula no plano discursivo através de diálogos das
indicar que a personagem tal, em um momento tal, disse ou pensou isso ou aquilo.
elementos estruturais do discurso com as falas das personagens. A escrita de Maria Firmina
dos Reis não obedece a apenas um fio narrativo, ela se faz múltipla, e como parte dessa
em que Preta Susana aparece pela primeira vez no discurso. Uma descrição brevíssima,
86
apenas para que a personagem seja situada no corpo estrutural da narrativa. Tanto que a
descrição física da personagem, contrasta com a sua fala e consciência que a definem mais
riqueza cultural:
diferentes aspectos de caracterização. Isso acontece com Preta Susana, pois fisicamente ela
A consistência dos elementos que dão uma coerente formulação do relato impõe à
trama uma urdidura que faz a narrativa propor as personagens de maneira muito variada,
histórica do negro sendo reelaborada pelo discurso da literatura. O negro não deixa de ser
escravo, mas sua articulação enquanto personagem arma-se dentro de uma estética muito
construtivos da narrativa, forja a inserção do negro através da voz de sua identidade cultural
87
romance Úrsula, apenas se manifesta. Uma espécie de leitmotiv formal, que articula a
construtividade literária da narrativa de Maria Firmina dos Reis, pois ela torna complexa a
intensifica por suas próprias carcterísticas que se constróem a partir da criação narrativa. O
negro passa a ser a voz de sua própria narrativa seja literária, seja histórica.
A memória atua como força propulsora à exortação que Preta Suzana faz a Túlio; só
o fato de uma personagem mais velha aconselhar uma personagem mais nova dá o indício
aconselhamento se dá pela experiência, pela sabedoria daquele que conta estórias, Preta
Suzana encarna o Griott, ao evocar a sua vida em África antes de ser tornada escrava, o
88
A velha africana, ao trazer para a presença de Túlio a sua terra de origem, a
ancestralidade do povo africano, propõe uma outra visão acerca da mulher negra no plano
literário brasileiro do século XIX, porque a atuação da memória manifesta em Preta Suzana
faz emergir a negra africana crítica, dotada de sentimentos e reflexão, e não o estereótipo
cristalizado pela literatura dos oitocentos, onde a mulher negra aparece como mucama,
mãe de leite e mero pasto sexual para os senhores de escravos, ou simplesmente uma
criatura que tem vilipendiadas a sua humanidade e a sua constituição de sujeito sem
África que se quer permanente, autêntica, viva e resistente à opressão escravocrata. Sua
memória a transporta para o seu lugar de origem, recria a vida que fora interrompida pelo
processo colonizador; a memória atua como humanidade para diferenciar a personagem das
concepções puramente objetivas do sistema escravocrata, que tratava a mulher negra como
objeto. A proposição ideológica emerge da forma estética com que a voz de Preta Suzana se
realiza.
Preta Suzana faz de sua própria experiência um ensinamento para o jovem negro
escravo Túlio, que pensa a liberdade como alforria. Em um momento do diálogo entre os
dois, Preta Suzana ironiza a concepção de liberdade de Túlio: “— Tu! tu livre? ah não me
illudas! — exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meo filho, tu és já
livre?...” (p. 91). Em outro momento da fala de Preta Suzana, ela diz claramente que o
jovem negro está trocando um cativeiro (regime político da escravidão) por outro cativeiro
89
(ser fiel escudeiro de Tancredo), por este ter dado dinheiro a Túlio para que o negro
comprasse a liberdade. “Que te adianta trocares um captiveiro por outro!” (p. 90), são as
Liberdade para ela consiste em ser livre em África, estar integrada à própria terra e
não ser alforriada, ter a liberdade segundo as leis do sistema escravocrata não possui o
verdadeiro sentido de liberdade. Preta Suzana descreve para Túlio o sentido africano da
liberdade, discurso que discrepa da alforria ou manumissão, porque estes dois conceitos de
— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Ellas são inuteis,
meo Deos; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a
tudo quanto me foi caro! Liberdade! liberdade... ah! eu a gosei na minha
mocidade! — « continuou Susana com amargura » —. Tulio, meo filho,
ninguem a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que
eu. Tranquilla no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente
do meu paiz, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo ahi respira
amor, eu corria as descarnadas e arenosas praias, e ahi com minhas jovens
companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos labios, a paz no coração,
divagavamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias
d’aquellas vastas praias. Ah! meo filho! mais tarde deram-me em
matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como
penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem
tinha depositado todo o amor da minha alma: — uma filha, que era a minha
vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio sellar a nossa tão
sancta união. E esse paiz de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa
filha tão extremamente amada, ah Tulio! Tudo me obrigaram os bárbaros a
deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade! (p. 91-92)
90
A fala de Preta Suzana funda na literatura brasileira a africanidade elaborada pelo
tempo passado, a idealização de como o mundo deveria ser enquanto crítica à realidade
Preta Susana aparece como uma personagem romântica que busca o exotismo para
fugir de determinada realidade opressora, no entanto, mais que ser uma personagem
caracterizada como romântica, ela usa o procedimento estético do exótico como padrão
cor local da África como elemento da descrição narrada e dizer que o Brasil vigente no
perspectiva do próprio negro sobre a sua situação em terras brasileira. Sendo Preta Suzana
mulher e negra, são duas fronteiras que se tornam ultrapassadas: o dizer da mulher a
respeito de sua construção identitária e o dizer da mulher negra voltado para as suas
que foram tiradas de suas nações, costumes, experiências dilaceradas pelo processo
cultural africana por dentro, constrói o imaginário destoante à imagem que a mulher negra
recebeu tanto do discurso histórico quanto do discurso literário, por estudiosos como
91
O processo de idealização não obedece ao espaço brasileiro, este se torna
um processo estilístico que caracteriza a dicção romântica para elaborar uma percepção
ideológica pertinente no plano da obra e persuasora no plano da cultura. Preta Suzana inova
Pindorama dos índios brasileiro, pois a África passa a ser o espaço da idealização, dos
liberdade.
A crítica à realidade histórica e aos costumes brasileiros não paga tributo à Idade
África na cultura brasileira sem apelar para o exotismo, ou melhor, integra a cultura
brasileira à África, a uma África ancestral, ainda não destruída pela invasão do
colonialismo europeu.
Mesmo ao que toca o bom tratamento dispensado a ela por Úrsula e por Luíza B.
(suas senhoras) não diminui a perda dos elementos que constituem seu senso de nação, de
identidade cultural, Preta Suzana não aceita o cativeiro, ainda que ele seja amenizado pela
92
captura até o desembarcar em terras brasileiras. Vale lembrar, que estas passagens em que
constam a fala de Preta Suzana se referem à sua exortação a Túlio, para ensinar a ele o
conceito de liberdade elaborado pela africanidade. Tais passagens são expressões dialógicas
indicação dicendi proposta pela própria personagem “Vou contar-te o meo captiveiro” (p.
92) e realizam a atrocidade com que os negros eram submetidos na captura em terras
originalidade firminiana, pois, em sua lírica os poemas são narrativos e a sua voz
enunciativa não vem da identidade africana, em sua lírica o negro não fala, aparece apenas
narrado e descrito, não possui a internalidade do ponto de vista que há na longa passagem a
seguir, que sozinha desconstrói toda a poética do livro Os Escravos (1864) do poeta baiano,
descrição pura e simples armada por um processo distanciado (de fora) sobre o negro como
figura literária:
93
eminente, que ahi me aguardava. E logo dous homens appareceram, e
amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava! Foi em
balde que supliquei em nome de minha filha, que me restituissem a
liberdade: os barbaros sorriam-se das minhas lagrimas, e olhavam-me sem
compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possivel... a
sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram
d’aquelles lugares, onde tudo me ficava — patria, esposo, mãe e filha, e
liberdade! meo Deos! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o
podestes avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais tresentos companheiro de infortunio e
de captiveiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de crueis
tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida
passamos n’essa sepultura até que abosdamos às praias brasileiras. Para
caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que
não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das
nossas mattas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-
nos a agua immunda, podre dada com mesquinhez, a comida má e ainda
mais porca: vimos morrer a nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de
alimento e de agua. E’ horrivel lembrar que creaturas humanas tractem a
seos semelhantes assim e que não lhes doa a consciencia de leval-os à
sepultura asphixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar esse extremo — davam-se a morte.
Nos dous ultimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos
entraram a vozear. Grande Deos! Da escotilha lançaram sobre nós agua e
breu fervendo, que escaldo-nos e veio a dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da patria, dos entes caros, da liberdade foram
suffocadas n’essa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti — é que Deos quis poupar-me para provar
a paciencia de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.
(p.92-93-94)
trabalho livre dissociado do trabalho escravo imposto pelo colonizador. A negra africana
aparece dotada de maternidade, fato que a difere, da mucama mãe de leite que tinha por
obrigação amamentar os filhos dos brancos. A noção de mãe aparece sob duas acepções: a
mãe que da à luz a criança, a protege, que a ama, que cuida, a educa; e a mãe Terra que
94
oferece seus frutos a seus habitantes, a mãe África com sua esplêndida natureza e espaço da
A premonição sugere o estado de espírito que será imposto à mulher negra africana.
A mãe, esposa, filha tornar-se-á meramente escrava. O fato de Preta Suzana narrar como
era sua situação humana antes da chegada do colonizador em África torna-se importante
ela um passado humano e cultural, diverso do que vige ainda hoje no Brasil acerca da
Preta Suzana elabora a sua condição humana, sugere e ao mesmo tempo intensifica
África pessoas livres, que tinham uma existência calcada em seus próprios princípios
Preta Suzana em tempos “não coloniais africanos por antecedência ao processo histórico
ocidental” traz a mulher africana como dado de humanidade, como sujeito atuante em uma
liberdade.
sua fala se torna pesada, reflexiva, contundente. Á proporção em que a voz da personagem
revela os aspectos atrozes da memória étnica, quando entra em cena a presença dos
95
aculturado dentro do navio negreiro, situação-preâmbulo do que viria a ser sua vida em
terras brasileira.
6 Conclusão
brasileira, a construção das identidades culturais a partir do ponto de vista dos oprimidos.
96
Sua narrativa, embora tenha como fundamento construtivo a estética romântica, usa a
negro africano e a mulher. Procurou-se, por meio desta dissertação, demonstrar de que
O levantamento acerca da crítica que visa a estudar a obra de Maria Firmina dos
Reis levou à compreensão de que invisibilidade e cânone são conceitos relativos, caso
aplicados ao romance Úrsula, já que existe um número razoável de estudos sobre a autora.
juntamente, com o pioneirismo de Maria Firmina dos Reis em relação à autoria feminina do
romance brasileiro.
literária produzida por Maria Firmina dos Reis, não apenas no plano da autoria feminina
As estratégias usadas pela autora maranhense, para veicular ideais libertários, foram
altos da realização estética presentes no romance Úrsula são aqueles em que a radicalidade
97
da submissão feminina aparece como ironia à naturalização do emudecimento feminino,
negro. O romance cria uma atmosfera, na literatura brasileira, em que os mitos de origem
surgem efetuados fora dos padrões tradicionais, pois os heróis são os mandados, não os que
mandam.
mulher e o negro, deslocando o poder para o próprio processo da escrita que se transforma
como cenário do drama humano, dos assassinatos como sublimação para compensar o peso
da existência; assim como sua função ideológica possibilita ler a narrativa como fundação
da voz do negro africano na literatura brasileira, como crítica radical à escravidão do negro
Porém, a leitura que o romance merece, a meu ver, consiste na leitura de suas
Este estudo está longe de ser uma conclusão abrangente do fenômeno narrativo que
envolve a autora e sua obra, mas espero ter contribuído, pelo menos em partes, para que a
fruição acadêmica.
98
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