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O ROMANCE ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS: ESTÉTICA E

IDEOLOGIA NO ROMANTISMO BRASILEIRO

JULIANO CARRUPT DO NASCIMENTO

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para obtenção do
Título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Doutor Alcmeno Bastos

Rio de Janeiro
Junho de 2009

1
DEDICATÓRIA

Para meus pais,

Catarina Carrupt do Nascimento

José Francelino do Nascimento.

Aos Mestres Destinados,

Anazildo Vasconcelos da Silva

Christina Ramalho.

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NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis:
estética e ideologia no Romantismo brasileiro. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da
UFRJ. 106 fl. 2009. Dissertação de Mestrado em Literatura brasileira.

Resumo

Esta dissertação desenvolve a crítica sobre a construção narrativa do romance Úrsula


(1859), demonstrando que a mulher e o negro, como personagens, desorganizam o
mandonismo patriarcal e escravocrata vigente na cultura e literatura brasileiras do século
XIX. A contribuição de Maria Firmina dos Reis para a visibilidade feminina e a elaboração
da identidade africana do negro escravo está ligada ao travejamento discursivo da estética
romântica. A investigação se concentra no modo que o romance se constrói, na distribuição
de vozes que tecem o encadeamento narrativo. A estratégia do deslocamento do poder
efetuado pela narradora, através de seu recurso estilístico, cria o efeito estético que se
harmoniza à concepção ideológica localizando a mulher e o negro como personagens não
cordiais em relação aos senhores da terra.

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NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. The novel Úrsula by Maria Firmina dos Reis:
esthetic end ideology in the Romanticism Brazilian. Rio de Janeiro: Faculty’s Letter UFRJ
106 pages, 2009. Dissertation of master in Brazilian literature.

Abstract

This dissertation develop a critical on the narrative construction of the novel Úrsula
(1859),demonstring that the woman and the black, how character, disorganize the
patriarchal end slavocrat mandonism in vigour in the Brazilians culture end literature of the
century XIX. The contribution by Maria Firmina dos Reis to female visibility end the
elaboration of the african identity of the black slave be connected on the discourse warping
of the romantic esthetics. The investigation to fix one attention on manner that the novel
constructions, on distribution of voices that weave the narrative enchainment. The
strategy’s displaced by power effectuate of narrator, through of your stylistic recourse,
breed the effect esthetic that harmonize on ideology conception localizing the woman end
the black how character no amiable in the relation on the proprietor’s earth.

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Sumário

1 Introdução ..........................................................................................................................1

2 A receptividade crítica da obra de Maria Firmina dos Reis: repetição e relatividade


canônica ..................................................................................................................................8

3 Breve consideração sobre o Romantismo brasileiro e o romance como forma literária....27

3.1 Possibilidades estéticas e ideológicas na forma do romance Úrsula .............................31

4 A forma do relacionamento entre os gêneros no romance Úrsula ....................................56

5 A forma estética e ideológica do negro no romance Úrsula .............................................82

6 Conclusão ........................................................................................................................100

7 Referência bibliográfica ..................................................................................................103

5
1 Introdução:

Durante o século XIX, foram produzidos no Brasil vários romances que certamente

estão eternizados, devido ao trabalho crítico desenvolvido por historiadores, teóricos e

críticos da Literatura. No entanto, outros vários romances sofreram o processo cultural da

invisibilidade, seja pela ignorância do não conhecimento daqueles que constroem o cânone,

seja (pior ainda) pela perspectiva autoritária da ideologia tradicionalista que limita a visão

abrangente do fenômeno literário brasileiro.

Para questionar a postura do autoritarismo impregnada na tradição canônica

brasileira acerca dos estudos literários, a professora e pesquisadora Elódia Xavier fez a

seguinte pergunta: “Seria válida, hoje, em face da pluralidade em que vivemos, a

permanência do cânone com seu poder regulador e excludente? ” (1999).

Tendo em vista a construção da flexibilidade crítica em face da literatura brasileira,

este trabalho consiste em investigar a criação literária narrativa do romance Úrsula, de

Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, para constatar a construção ideológica e

estética de sua forma narrativa.

Na urdidura do referido romance, duas manifestações de identidade cultural se

impõem à caracterização das personagens: a condição crítica do negro africano e a situação

subalterna da mulher. A ideologia e a estética formam a originalidade do romance como

forma narrativa do século XIX no Brasil, devido ao posicionamento da instância de

enunciação narrativa que se sintoniza com as identidades culturais inferiorizadas,

realizando, na urdidura da narrativa, o pressuposto contraideológico, em relação, ao poder

mandonista dos proprietários da terra e usando a estética do Romantismo brasileiro como

veículo contra a escravidão do negro e a submissão da mulher.

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Dessa maneira, o romance Úrsula aparece como o único romance romântico

brasileiro do século XIX que se solidariza criticamente com a originalidade literária por

unir estética e ideologia na elaboração de suas personagens, fato que distorce a afirmação

de Haroldo Paranhos, ao comentar o Romantismo no Brasil: “Se não foi inteiramente

original, é porque não possuímos tradições nem organização étnica e sociológica que nos

permitisse alimentar tal pretensão” (1937).

O romance Úrsula pode ser considerado uma construção irônica perspectivada nos

valores culturais do Brasil colonial, por três motivos: 1º - devido à consciência da autora

(manifesta no prólogo do livro) de ser sua obra recebida como menor pelos homens letrados

do século XIX, e, mesmo assim trazê-lo a lume; 2º - por construir de maneira excepcional a

persuasão da mulher sobre sua própria condição submissa, radicalizando a naturalização

dos papéis femininos (ROCHA-COUTINHO: 1994, p. 39) para torná-los visíveis enquanto

movimentação narrativa e características das personagens mulheres; 3º - por fazer com que

o negro seja humanizado e sujeito do seu próprio pensar, sendo parte fundamental da trama

narrativa através da articulação dos acontecimentos e pela sua própria fala.

Úrsula se torna o primeiro romance brasileiro a desorganizar o poder mandonista

dos proprietários da terra, pois além de eles serem personagens secundários, são punidos

pelo investimento literário, ao exercerem na narrativa apenas a função de antagonistas

reacionários que impedem o desenvolvimento do amor e da plenitude da vida, fato que

consolida a ironia em sua construção narrativa, não apenas como um tropo retórico, mas

como construção de significado, pois os senhores da terra (os poderosos) passam a ser maus

e execráveis no domínio da literatura.

No importante estudo de Francisco Venceslau dos Santos (1990) há a revelação de

que muitas obras da literatura brasileira reduplicam o mandonismo cultural, através da

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conciliação, do jeito e da cordialidade, formas do poder dominante para manter sua

vigência e perpetuação; o romance Úrsula não reduplica os valores, em geral, do

patriarcado escravocrata brasileiro, ao contrário, critica-os. Entretanto, para realizar o efeito

literário da contraideologia, os recursos utilizados pela autora foram os que formam a

estética romântica: a descrição ufanista da natureza, o enredo simples do amor romântico, a

sensibilidade humana integrada à natureza a ponto de o canto dos pássaros ondular

conforme o ânimo das personagens, ou o tempo da natureza ambientar as ações amorosas

ou violentas, tendo a confissão amorosa um clima ameno e o assassinato a noite soturna.

Toda a estética do romance de Maria Firmina dos Reis manifesta a abundância

sintagmática própria do Romantismo brasileiro, mas seus elementos característicos

funcionam como camuflagem para o propósito ideológico da narrativa, funcionam como

elementos determinantes da forma da obra ( EIKENBAUM: 1973, p. 157) que dão força à

construção das personagens, ao encadeamento da trama narrativa, de modo que o enredo

passa a ser pouco significativo, cedendo lugar à trama que reduz o tom panfletário

tipificado esteticamente com o princípio da subjetividade intrínseca (HEGEL: 1972, p. 169)

gerador do mergulho revolucionário romântico. A trama da narrativa ultrapassa o enredo

ingênuo, pois se organiza na distribuição das falas dos oprimidos, e na destruição

propriamente simbólica do poder mandonista, que pela força da imaginação romântica se

torna descentrado tanto cultural quanto literariamente.

Como a narrativa se rege pelo princípio da subjetividade intrínseca, por se

solidarizar com as vozes oprimidas da configuração cultural do Brasil colônia e por esse

princípio ser a fonte do individualismo romântico que se fragmenta nas dimensões de cada

identidade cultural manifesta nas personagens do romance, opta-se por usar o termo

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narradora e não narrador quando a análise da obra exigir atenção à instância de enunciação

narrativa.

A urgência com que o romance Úrsula se mostra no plano da Literatura Brasileira e

a sua originalidade revolucionária, em relação ao cânone formulado ao longo dos anos,

levam-no à imposição de se deslocar das taxionomias tradicionais e amarras

epistemológicas. Para fixar a revolução literária e cultural de Maria Firmina dos Reis,

torna-se necessário o conceito de narradora, mesmo pela época em que o romance fora

publicado e mesmo pelo fato de a autora se solidarizar com as identidades culturais

subalternalizadas durante o processo escravocrata e patriarcal da moralidade mandonista.

A análise que se efetua nesta dissertação se volta para a estrutura narrativa do

romance, para que dela surjam as identidades culturais como caracterização das

personagens. A caracterização das personagens do romance evidencia a formulação literária

baseada em elementos que se projetam para o campo cultural e histórico, que passam a ser

matéria literária do enredo da narrativa, pois Úrsula aparece como uma narrativa literária

que desorganiza a formulação histórica e a contextualização tradicional da História

Literária Brasileira, por ser um romance que destoa das considerações canônicas do século

XIX e conter enunciações que sustentam a crítica feminina e do negro acerca de suas

respectivas condições culturais e literárias.

As citações do romance de Maria Firmina dos Reis foram tiradas da edição fac-

similar vinda a lume em 1975 pelos esforços de Horácio de Almeida. Por que não usar

edições mais recentes e atualizadas como a de 1988 organizada por Luiza Lobo ou a de

2004 organizada por Eduardo de Assis Duarte? Responde a essa pergunta Fausto Cunha:

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A retórica do Romantismo brasileiro necessita de consulta direta ao
texto primitivo, onde por vezes um travessão marca a cesura, assinala a
proximidade da metáfora, impede a sinalefa, indica a alusão a versos de
outrem, ou a citação não especificada, ou o emprego incomum do vocábulo
que se lhe segue. (1971: 89).

O romance Úrsula possui uma pequena fortuna crítica que vem se consolidando ao

longo do tempo, sua receptividade crítica abusa dos elementos inovadores e originais do

plano construtivo da narrativa. O romance parece ser concebido mais pela sua função

histórica e ideológica que por suas qualidades estéticas, assim se formula a receptividade de

historiadores, teóricos e críticos da Literatura Brasileira, que vêm valorizando mais as

questões de ser Maria Firmina dos Reis a primeira mulher a publicar romance no Brasil, ou

a situação da mulher na literatura, como também o negro como personagem de ficção

literária.

A este trabalho não cabe a panfletagem crítica da mulher ou do negro como

personagens históricas ou literárias, nem a reivindicação de que Maria Firmina dos Reis

tenha sido excluída das Histórias da Literatura Brasileira. Este trabalho visa a apenas

estudar as manifestações estéticas e ideológicas que formam a forma do romance, a

extensão da estética romântica às vozes de negros e mulheres sem os estereótipos próprios

tanto dos estudos literários quanto culturais, uma vez que a literariedade estabelecida pelo

cânone não passa de uma construção elaborada por razões de ordem histórico-cultural.

(COUTINHO: 2003, 71).

A realização das personagens como elemento constituinte da forma narrativa, os

procedimentos estéticos que geram a ideologia caracterizada pelas personagens, a armação

da urdidura narrativa como desenvolvimento do conflito entre senhores da terra, mulheres e

escravos são condições sui generis para a realização do romance Úrsula e foco da

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investigação deste trabalho. A diferença do investimento crítico, em relação aos estudos

dedicados a Maria Firmina dos Reis, consiste em verificar, especificamente, no âmbito da

estrutura narrativa, as tensões entre as personagens e o modo com o qual a narradora realiza

os conflitos culturais imanentes na distribuição de suas vozes e a contribuição dos discursos

da mulher e do negro para a feitura do romance. De um modo geral, os estudos extrapolam

a estrutura narrativa para se deter em biografismos, historiar a presença do negro no

Maranhão, identificar a influência de Sotero dos Reis sobre a escrita de Maria Firmina,

escrever a história revolucionária da mulher; posturas que em muitos casos, acabam

deixando, em segundo plano, a estrutura da narrativa e a realização interna da obra.

Caberá a este trabalho estabelecer a forma com a qual o romance Úrsula

desorganiza a História Literária Brasileira, através de sua própria estrutura narrativa.

Demonstrando, através da análise das personagens, como os negros e as mulheres se livram

dos estereótipos culturais e de que maneira instauram, literariamente, seus próprios

conceitos de liberdade, a fim de exaltar os aspectos específicos da narrativa e apontar para

os recursos (devido à época de composição do romance) originais encaminhados por Maria

Firmina dos Reis para literatura brasileira.

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2 A receptividade crítica da obra de Maria Firmina dos Reis: repetição e relatividade

canônica

Embora se tenha aprofundado a abordagem crítica acerca da obra de Maria Firmina

dos Reis, as diretrizes que se impõem ainda hoje continuam sendo vinculá-la à produção de

autoria feminina e à tematização do negro. Pouco ou nada foi feito que se proponha a

examinar sua obra sob o ponto de vista interno da sua urdidura criativa, pois os trabalhos e

ensaios ainda pagam tributo a circunstâncias levantadas pela produzida pelos jornais,

primeira receptora da obra, ainda no século XIX.

Muito pouco foi feito para compreender os recursos poéticos utilizados pela autora

na elaboração de sua narrativa. Há uma preocupação constante em reivindicar o lugar do

negro na Literatura Brasileira e de situar o romance Úrsula como uma das obras que

figuram nos primórdios do romance no Brasil e como obra fundadora da autoria feminina.

Entretanto, falta uma investigação que articule as manifestações do negro e da mulher

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enquanto personagens de ficção com características específicas da prática literária. Ou seja:

o romance Úrsula possui uma poética interna digna de obra literária por sua urdidura

construtiva, salvo o problema lingüístico (de o negro escravo se expressar oralmente

através dos aspectos eruditos da língua portuguesa oitocentista), o romance apresenta

elementos próprios da arte literária que ultrapassam a mera representação para alcançarem a

altitude simbólica da cultura pensada e articulada, no romance, de maneira muito particular,

original e específica; inclusive mostrando poeticamente os cancros sociais que

fundamentam a sociedade mandonista brasileira.

Em um movimento inverso, a originalidade da autora reside exatamente no que foi

em princípio levantado pelos jornais da época, o que talvez lhe tenha custado a

invisibilidade Histórica e Literária, mas que ao mesmo tempo deu-lhe certa notoriedade na

imprensa, por uma mulher ter publicado romance e o romance possuir como tema o negro .

Vale rastear se houve ou não, de fato, um aprofundamento nas questões impostas pela

autora, se a crítica modificou a postura primária dos jornais apenas ideologizando a mulher

e o negro, chegando ao ponto de ratificar a obra e a autora em duas vertentes: estudo de

autoria feminina e estudo de afro-descendência na literatura (ratificação desembocada nos

dias atuais). Fora desses dois circuitos, não há um estudo que enobreça a obra da autora por

seus méritos propriamente literários, mas pura e simplesmente por suas forças ideológicas,

fato que, para o estudo de Literatura como arte, consiste em um vazio muitas vezes

preenchido por biografismo, aprofundamento excessivo na História do Maranhão, na

situação cultural da mulher, e na condição do negro na sociedade escravista.

Não se pode afirmar, para a época, em termos de recepção crítica, que o romance

Úrsula tenha estupefação no imaginário da população brasileira, ou que ele tenha sido lido

por boa parte dos leitores da época, pois ao que parece, o livro nasceu com sua publicação

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em 1859 e morreu na crítica dos jornais, em meados da década de sessenta, tendo

ressuscitado na década de 70 do século XX.

Contudo, ao decorrer do tempo não se pode afirmar sem cautela que o romance de

Maria Firmina dos Reis e sua obra tenham passadas na mais completa invisibilidade crítica,

uma vez que aqui e acolá encontram-se, ainda que de passagem, referências à autora.

Quanto ao nível, ou à veracidade, ou à correspondência crítica com os fatos da história

literária e principalmente com a obra da autora, não se pode concluir que as passagens, ou

menções, ou citações fossem de fato capazes de perpetuar o nome da autora e de sua obra.

A total invisibilidade crítica acerca da obra da autora (a meu ver inexistente) deve-se mais à

crítica que mal soube apreciá-la que propriamente às qualidades poéticas manifestas em

suas produções literárias.

Perdeu-se muito tempo com divagações, devaneios, notas elogiosas e ao mesmo

tempo cheias de preconceitos (como as matérias dos jornais próximas à publicação) ou

mesmo a citação da citação vulgar de um Silvio Romero (1980, p. 1115. v. VI), que deu

apenas o nome da autora entre outros nomes propostos no Panteon Maranhense, poemas e

autores coligidos por Antônio Leal Henriques; como também se perdeu tempo em

afirmações e negações se Maria Firmina foi a primeira mulher a publicar no Brasil. O fato

consiste no tempo perdido sem que se examinasse seriamente se há um discurso poético ou

não na obra, se há qualidade literária aliada à critica cultural no romance Úrsula, ou se o

romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma

exótica ou, no melhor dos casos, peculiar.

A produção literária de Maria Firmina dos Reis recebeu atenção por parte da crítica

desde meados da década de sessenta do século XIX, especificamente, o romance Úrsula.

No entanto, o fato de ter merecido certa receptividade à época não fortificou o nome da

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autora e, principalmente, a realização poética de sua obra, ao longo da evolução da crítica

literária brasileira e também estrangeira.

Em apenas um repente circunstancial dada à recente publicação do romance, os

jornais: Jornal do Comércio, A marmota, Verdadeira Marmota e Jardim dos Maranhenses

anunciaram que um livro escrito por uma mulher estava em circulação. Do elogio sincero à

velada manifestação do preconceito, em relação à mulher audaciosa que ousara produzir e

publicar literatura em um lugar e tempo inexoravelmente determinados pelo modelo

patriarcal, como num jogo intermitente entre a aceitação e o espanto daqueles que

escreviam nos jornais, Maria Firmina e sua obra foram recebidas.

Leiam-se algumas passagens em que se evidenciam ora o constrangimento

camuflado por um “machismo galante”, ora o elogio espontâneo e incentivador, que por

vezes se mostra como aconselhamento:

Convidamos aos nossos leitores a apreciarem essa obra original


maranhense, que, conquanto não seja perfeita, revela muito talento na autora
e mostra que se não lhe faltar animação poderá produzir trabalhos de maior
mérito. (...)
A não desanimar a autora na carreira que tão brilhantemente ensaiou,
poderá o futuro, dar-nos belos volumes. (04/08/1860) Jornal do Comércio,
na seção Noticiário.

Aos 11/08/1860, o jornal A marmota publica uma chamada publicitária a fim de

levar os leitores à compra do livro, lançado em San’Luis, Na Typographia do Progresso,

Rua Sant’Anna, 49 — 1859:

Úrsula — Acha-se à venda na Typographia Progresso, este romance


original brasileiro, produção da Exma. Maria Firmina dos Reis, professora
pública em Guimarães. Saudamos nossa provinciana pelo seu ensaio, que
revela de sua parte bastante ilustração (...)

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Em um apuro crítico à sociedade masculina e letrada brasileira consiste a

reportagem de 13/05/1861 do jornal A verdadeira marmota, entretanto não sem estar livre à

construção do estereótipo acerca da mulher, personificada na autora. Expressões

corriqueiras à época evidenciam o tratamento “machista” a ela dado, como : “ente delicado,

caprichoso e sentimental” e “belo sexo”. Cita-se, no entanto, a passagem mais interessante,

na qual percebe-se o primórdio da aceitação da literatura produzida por mulheres entre nós

e uma certa mea culpa patriarcal do articulista em face daquela produção:

Se é, pois, cousa peregrina ver na Europa, ou na América do Norte,


uma mulher, que, o círculo de ferro traçado pela educação acanhada que lhe
damos, nós os homens e, indo por diante de preconceito, apresentar-se ao
mundo, servindo-se da pena, e tomar assento nos lugares mais proeminentes
do banquete da inteligência, mais grato e singular é ainda ter de apreciar um
talento formoso, e dotado de muitas imaginações, despontando no nosso céu
do Brasil, onde a mulher não tem educação literária, onde a sociedade dos
homens de letra é quase nula.
O aparecimento do romance Úrsula na literatura pátria foi um
acontecimento festejado por todo jornalismo, e pelos nossos homens de
letras, não como por indulgência, mas como homenagem rendida a uma obra
de mérito.

O lampejo jornalístico de noticiar a publicação de um romance, excepcionalmente

publicado por uma mulher, cedeu lugar por parte da história literária a um profundo

esquecimento. Embora jornalísticos, os escritos da época que versavam sobre Úrsula, já

apontavam para elementos constituintes da narrativa, que no final do século XX e início do

século XXI viriam a ser fundamentados, inclusive, pela produção da pesquisa acadêmica: a

presença do negro e da mulher na Literatura Brasileira.

Tal dualidade, que ainda perdura, no campo da crítica literária em face do romance

Úrsula originou-se de afirmações tais como: “Raro é ver o belo sexo entregar-se a trabalhos

do espírito e deixando os prazeres fáceis do salão propor-se aos afãs das lides literárias” “A

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Verdadeira Marmota” (Op. cit.). E: “É pena que o acanhamento mui desculpável da novela

escrita não desse todo o desenvolvimento a algumas cenas tocantes , como as da

escravidão, que pecam pelo modo abreviado a que são escritas”. “Jornal do Comércio”

(Op. cit)..

Mais de cem anos depois foi que a obra da autora maranhense começou a ganhar

relevo por parte de pesquisas acadêmicas. José Nascimento Morais Filho deve ser

considerado o estudioso que merece mais importância quando se trata da visibilidade que a

obra de Maria Firmina dos Reis encontrou nas últimas décadas do século XX. A sua

publicação Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, de 1975, de fato, tenta

reconstituir por mosaicos históricos e literários tanto a vida quanto a obra da autora

maranhense, inclusive revelando seus enigmas (formas de charadas), seu livro de poesia

Cantos à beira-mar (1871), fragmentos de um diário produzido pela autora entre o período

de 9 de janeiro de 1853 e 1º de abril de 1903, o conto A escrava (1887) e artigos dos jornais

mencionados acima que versavam sobre a autora. Morais Filho não elabora nenhum juízo

crítico, limita-se apenas a tirar do esquecimento as manifestações de Maria Firmina dos

Reis, atitude que, por si mesma, o leva e o levará a ser sempre lembrado e apreciado.

Segue-se seu depoimento acerca do achado que fizera:

Descobrimo-la, casualmente, em 1973, ao procurar nos polorentos do


século XIX, na Biblioteca Pública Benedito Leite, textos natalinos de
autores maranhenses para nossa obra “Esperando a Missa do Galo”. Embora
participasse ativamente da vida intelectual maranhense publicando livros ou
colaborando quer em jornais quer em revistas literárias quer em antologias
— “Parnaso Maranhense” — cujos nomes foram relacionados; em nota, se
exceção, por Sílvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira,
registrada no cartório intelectual de Sacramento Blake — o “Discionário
Bibliográfico Brasileiro” — com surpreendentes informações, quase todas
ratificadas por pesquisa, Maria Firmina dos Reis, lida e aplaudida no seu

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tempo, foi como que por amnésia coletiva totalmente esquecida: o nome e a
obra. ( MORAES FILHO: 1975, s/p)

Os anos de 1975 e 1976 foram muito importantes para a obra da autora maranhense

em termos de visibilidade proporcionada pelas publicações fac-similares de sua obra. Além

dos Fragmentos de uma vida, José Nascimento Morais Filho publica Cantos à beira-mar

em 1976, e Horácio de Almeida publica o romance Úrsula em 1975.

O jornalismo no Brasil, no que tange ao romance Úrsula, certamente não perde

tempo. Pois no mesmo ano (1975) de sua edição fac-similar, aos 25 de dezembro, o

jornalista Marcílio Farias escreve um artigo intitulado Primeira Crítica e um subtítulo com

o título do livro. O valor de tal escrito consiste na consciência de seu autor de que o dito

romance seja o primeiro entre brasileiros a levar o cunho de abolicionista. Talvez, Marcílio

Freitas tenha sido o primeiro a observar as relações do negro no romance como de caráter

ideológico, porém entra na inevitável discussão (levada ao extremo pelos estudiosos) sobre

a primeira mulher que publicou no Brasil. No entanto, não alcançou a poeticidade do

romance. Cita-se a passagem em que está, quem sabe, a primeira afirmação de que Maria

Firmina dos Reis tenha categoricamente produzido um romance abolicionista, e portanto

radicalmente destoante da produção romanesca do século XIX:

(...) Quando se constata, porém, que o livro é o primeiro romance (na


exata concepção crítica do termo) abolicionista escrito no Brasil, e quando
se evidencia de forma contundente que este romance é também o primeiro
escrito por mulher (...) ( LUX JORNAL. Jornal de Brasília, Distríto Federal:
25/12/1975.

No que diz respeito à inscrição do nome da autora e de sua obra em dicionários de

biografia de brasileiros e sobre Literatura Brasileira, Maria Firmina dos Reis aparece em

três. No primeiro deles e cuja autoria pertence a Sacramento Blake, há um dos primeiros

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registros sobre a autora, que fundamentou a pesquisa bibliográfica feita por Horácio de

Almeida. Sacramento Blake escreveu o seguinte verbete, publicado, ainda, em vida a

autora:

D. Maria Firmina dos Reis — Filha de João Pedro Esteves e dona


Leonor Felipa dos Reis, nasceu na cidade de S. Luiz do Maranhão a 11 de
outubro de 1825. Dedicando-se ao magistério, regeu a cadeira de primeiras
letras de S. José de Guimarães, desde agosto de 1847 até março de 1881,
quando foi aposentada. Em 1880 fundou uma aula mista em Maçarico,
termo de Guimarães, cujo ensino era gratuito para quase todos os alunos, e
por isso foi a professora obrigada a suspendê-la depois de dois anos e meio.
Cultiva a poesia, e tanto em verso, como em prosa escreveu algumas obras,
de que as mais conhecidas são:
— Cantos à beira-mar: poesias. S. Luis...
— Úrsula: romance. S. Luis...
— A escrava: romance. S. Luis... (BLAKE: 1900, 232)

No segundo dos dicionários, há uma maior abrangência acerca do levantamento

feito por Sacramento Blake em relação à vida e à obra de Maria Firmina dos Reis. Deve-se

sua autoria a Raimundo de Menezes, que não relevou o importante livro de José

Nascimento Moraes Filho e deu prioridade a Horácio de Almeida, tanto quanto ao esforço

de tornar Maria Firmina dos Reis conhecida do grande público. Embora longo, torna-se

necessária a transcrição na íntegra do verbete, pois há a precisão de mostrar o

posicionamento que Raimundo de Menezes assumiu com a inserção da autora maranhense

em seu Dicionário Literário Brasileiro (1978, p. 570-571):

Reis (Maria Firmina dos) — N. em S. Luís (MA), a 11 de outubro


de 1825, filha de João Pedro Esteves e D. Eleonora Felipa dos Reis.
Dedicando-se ao magistério, regeu a cadeira de Primeiras Letras de S. José
de Guimarães (interior do Maranhão) desde agosto de 1847 a março de
1881, quando se aposentou. Em 1880 fundou uma aula mista,
escandalizando os círculos locais, em Maçarico, termo de Guimarães, cujo
ensino era gratuito para quase todos os alunos e por isso foi a professora a
suspendê-la depois de dois anos e meio. Cultivou a poesia e tanto em prosa

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como em versos, escreveu algumas obras. É considerada em seu Estado a
primeira mulher a escrever romances no Brasil. Seu romance Úrsula foi
descoberto em 1962 por Horácio de Almeida numa casa de livros usados do
Rio de Janeiro. Chamou a atenção do pesquisador porque, no lugar do nome
do autor, estava assinado Uma maranhense. Depois de muitos estudos,
Horácio de Almeida, que nasceu na Paraíba, descobriu a identidade da
autora: Maria Firmina dos Reis escreveu também o poema Cantos à beira-
mar e os romances Escrava e Gupeva, onde, além de casos de incesto,
aborda as relações entre os brancos e os índios em seu Estado. A paulista
Teresa Margarida da Silva e Orta é considerada a primeira brasileira a
escrever romances, mas, segundo os maranhenses, sua obra Aventuras de
Diófanes, escrita em 1752, foi publicada em Portugal e trata da mitologia
grega, um tema que nada tem a ver com o Brasil. Por isso, entendem, não ser
considerada a primeira. É uma tese que encontra apoio em vários círculos
intelectuais de outros Estados. Assim foi homenageada pelo governo do
Maranhão, que deu seu nome a uma rua de São Luís e mandou colocar uma
placa na antiga tipografia Progresso, onde em 1958 foi impresso Úrsula. F.,
em data ignorada, com certeza na terra natal.
Bibliografia: Cantos à beira-mar (poesias), A Escrava (romance), S.
Luis, ed. fac-similar de Úrsula, pelo governo maranhense, em 1975. Fontes:
Sacramento Blake, Dic. Bibliog. Bras. 6º vol. p. 232. Arquivo de O Estado
de São Paulo. Arqivo da Academia Maranhense de Letras, MA.
(MENEZES: 1978, p. 570-571)

No terceiro, dirigido por Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, há uma


brevíssima síntese acerca da autora e suas produções, como também algumas referências de
pesquisa:

REIS, Maria Firmina dos. ( São Luís, MA, 11 out. 1825 —


Gumarães, MA, 11 nov. 1917), romancista, poeta, professora, Pseud.: Uma
maranhense. BIBL.: Úrsula, 1859 (rom.); id. 1975 (ed. fac-sim., pref. De
Horácio de Almeida); Cantos à beira-mar (poes.); versos em parnaso
maranhense. S.d. p. 222-5. Colab.: Semanário maranhense, São Luís, MA,
1867-1868. REF: BLAKE Dic., VI, 232; Montello, Josué. A primeira
romancista brasileira. J. Brasil, 11 nov. 1975. ( v. II: p. 1357, 2001)

O prólogo de Horácio de Almeida (ALMEIDA, Horácio: 1975, I-VII) traz preciosas

informações sobre sua pesquisa bibliográfica, no qual se percebe o esforço em rastear a

obra e a autora no âmbito da literatura nacional, porém sua tentativa de pensar o livro

Úrsula como obra literária apresenta alguns equívocos, como por exemplo, as afirmativas

20
de que falta ao romance “o colorido das descrições” e de que “ as cenas acontecem sem

qualquer preparação psicológica”.

Tais afirmativas aparecem incertas em relação à estrutura da narrativa, porque as

descrições se constituem como recurso fundamental para a fixação espacial das

personagens e estas possuem o efeito psicológico nelas próprias (seja por via de traições,

vingança, até mesmo pela via cultural da diáspora), e tal efeito se estende ao leitor que se

choca com os relatos de Tancredo, Luiza B., Preta Suzana e com as reações enfurecidas de

Fernando P.; as personagens se sintonizam com a natureza descrita pela narrativa e os

acontecimentos decorrem da articulação do que se narra pela narradora e do que se narra

pelas próprias personagens, de forma tal que personagens e descrição se articulam,

intensamente, atingindo o leitor através de um efeito psicológico: exemplos são a descrição

que Preta Suzana faz de África no IX capítulo e a primeira parte do romance, em que a

narradora descreve o quadro natural cheio de significações e símbolos, logo no primeiro

capítulo da obra.

Horácio de Almeida motivado em saber qual o primeiro romance escrito no Brasil

por uma mulher funda a discussão de que Maria Firmina dos Reis teria sido a primeira

mulher brasileira a escrever e publicar um romance no país com suas cores locais. Essa

discussão foi retomada por inúmeros estudiosos, cada qual impondo sua perspectiva acerca

da primeira obra romanesca advinda da mão feminina. Citam-se as considerações de

Horácio, que são a mãe das discussões no Brasil acerca do pioneirismo de Maria Firmina

dos Reis e embora longas, vale a pena lê-las, pelo seu caráter histórico e bibliográfico,

segundo o lugar do romance Úrsula nas letras nacionais:

21
As investigações feitas me levavam ao romance Úrsula, de Maria
Firmina dos Reis, dado a estampa em 1859. Antes, ninguém apontara outro.
O que vale, no caso, é romance e não tradução de romance, como fez Nísia
Floresta, em 1850, na relação que nos dá Sacramento Blake.
Também não entra aqui, em linha de cogitação, o romance de Tereza
Margarida da Silva e Orta — Aventuras de Diófanes — publicado em 1752,
porque esse romance, em verdade, não é brasileiro. Teresa nasceu em São
Paulo, de onde se retirou aos cinco anos de idade, levada por seus pais para
Portugal. Nunca mais voltou ao Brasil. O romance que lá escreveu e
publicou, enredado na fábula, foi, com efeito, o primeiro de mulher
brasileira, mas o que se quer é romance escrito no Brasil, com tema e cor
locais, saído da pena de uma mulher.
Neste caso está Úrsula. É o primeiro de autoria feminina, surgido no
Brasil, como o primeiro de autoria masculina, é O filho do pescador, de
Teixeira e Souza, publicado em 1843. (Ibdem)

Wilson Martins discorda dos argumentos de Horácio de Almeida e em um processo

enciclopédico afirma outras possibilidades de outras autoras terem publicado antes que a

maranhense, inclusive rebate a argumentação de Horácio de Almeida no que diz respeito a

Nísia Floresta, e nem cita qualquer valor da produção de Tereza Margarida da Silva e Orta,

no volume III de sua História da Inteligência Brasileira (1977, p. 94):

No Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1825-1881), autora, também,


de A escrava, publicou o romance Úrsula, apontado incorretamente como o
primeiro do seu gênero escrito por mulher e impresso no Brasil ( cf. Anais
do Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes, 1973, pp. 72 e s.) Antes dela (...)
seria preciso considerar Nísia Floresta, com Daciz, ou A jovem completa
(1847) e Dedicação de uma amiga (1850), ainda que excluíssemos da
competição, aliás sem maior interesse, A filósofa por amor, de Eufrosina
Barandas, no qual há páginas de ficção (1845), e Lição a meus filhos (1854),
de Ildefonsa Laura, que são dois contos em versos.

Temístocles Linhares nega a proposição de que Maria Firmina dos Reis tenha sido a

primeira mulher brasileira a publicar um romance no Brasil, ao contrário de Horácio de

Almeida, e seguindo a esteira de Wilson Martins. Seus argumentos são repetitivos, porque

como Martins, Temístocles nega a autora do Maranhão como primeira romancista brasileira

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e, diferentemente dele, legitima Teresa Margarida da Silva e Orta como primeira brasileira

a escrever romance. De qualquer forma, Temístocles difere tanto de Horácio de Almenda,

quanto do crítico paulistano:

O equívoco por parte dos maranhenses, estava em considerar a


autora a primeira romancista brasileira a tratar de tema brasileiro, excluindo
assim a primeira brasileira na ordem cronológica a escrever romance, a
santista Teresa Margarida da Silva e Orta, autora de Aventuras de Diófanes,
um romance que não se ocupava do Brasil e antes se preocupava com a
mitologia grega. (...) esse livro tinha de ser analisado à luz de sua simbologia
e nesta tanto entrava Portugal como o Brasil. Ainda, porém, que esse livro
fosse excluído ou deixado de lado, houve outra autora brasileira, e também
romancista, que se antecipou a Maria Firmina dos Reis, publicando nove
anos antes, em 1850 portanto, o romance Dedicação de uma amiga, de
autoria de Nísia Floresta, que antes ainda, em 1847, publicara um romance
didático, Daciz, ou A Jovem Completa.
Desse tipo de engano está referta a história de nossas literaturas
regionais, principalmente, de modo que sempre se impõe a correção.
Quanto propriamente os dois romances de Maria Firmina, não se
descobriu neles nada que pudesse chamar a atenção. Até há pouco tempo,
eles eram de muito difícil alcance, quando o Governo do Maranhão tomou a
iniciativa de republicá-los em um volume, mas a verdade é que eles
continuaram a ser ignorados, pelo menos fora do Estado. (LINHARES:
1987, p. 392. V. 3).

Dando continuidade à discussão sobre ser ou não ser Maria Firmina dos Reis a

primeira mulher a publicar romance no Brasil, que de fato possui por tema a realidade

brasileira, tem-se a voz de Josué Montello em um artigo publicado em 11 de novembro de

1975, e Republicado em Madri, Espanha em 1976, intitulado: La primera Novelista

Brasileña:

Maria Firmina dos Reis es, realmente, la primera novelista brasilenã.


Porque si bien hay el antecedente de Teresa Margarida da Silva Orta,
hermana de Matias Aires, autora famosa de las Aventuras de Diófones, libro
publicado por primeira vez em Lisboa en 1752 com el seudónimo de
Dorotea Eugrassia Tavareda Dalmira, bajo el modelo de las Aventuras de
Telémaco tal y como sugiere su título esse libro no constituye materia

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especifica en cuanto a su autor se refiere, y outra parte, como bien señala
Antonio de Oliveira, no es un libro de temas brasileños.
Todo lo que se sabía de Maria Firmina dos Reis antes de los estudios
de estos dos investigadores marañenses se limitaba a una breve nota en el
sexto volumen del Diccionario Bibliogáfico Brasileño, de Sacramento
Blake. (La primera novelista brasileña: In Revista de Cultura Brasileña,
Madri, n. 41, jun. 1976)

Um determinado aspecto das manifestações críticas acerca do romance Úrsula

surgiu certamente da possibilidade de esse romance ter sido o primeiro saído das mãos de

uma mulher brasileira, em terra brasileira e sobre a cultura brasileira. Muito se disse e se

desdisse sobre tal possibilidade aberta à obra, porém esses estudos travaram a recepção

propriamente do romance, uma vez que se cogitou primeiro o registro canônico da obra, o

seu lugar de autoria dentro da Literatura Brasileira. Essa discussão estabelecida por aqueles

que bem ou mal se debruçaram sobre o romance Úrsula torna-se produtiva apenas para um

determinado princípio crítico postulado pela fixação do texto enquanto produção exótica,

inaugural, mas não desenrola os emaranhados do romance e não se debruça sobre o feito

especificamente literário, quando muito, visa a certos determinismos ideológicos, tais

quais: o negro e a mulher, sem situá-los como rigorosamente vigentes no âmbito estético-

literário.

Um exemplo desse determinismo, por um lado aparece no livro O tigre da abolição,

no capítulo “Apoteose”, parte “A literatura da escravidão” (ORICO: 1977, p. 179-188), em

que o autor situa os romances e poemas brasileiros que tratam da situação do negro no

Brasil. O tratamento, apenas como de registro, evidencia o caráter puramente documental a

que o livro passa a ser submetido:

A esse rol poderia juntar-se, antecipando-se a todos em data, um


romance que tem por título Úrsula, aparecido em São Luís do Maranhão, de

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autoria de uma professora nascida na cidade de São Luís em onze de outubro
de 1825, Dona Maria Firmina dos Reis. (Op. cit.)

Por outro lado o determinismo se dá na publicação antológica intitulada História

das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priori, onde há um ensaio intitulado

“Escritoras, escritas, escrituras” de autoria de Norma Telles (Op. cit. 2007, p. 401-442) que

situa a autora do romance Úrsula no conjunto das escritoras brasileiras do século XIX,

considerando o seu público leitor e o seu enredo, e claro, o fato de o livro ter sido escrito

por uma mulher:

O romance, por mais inocente que fosse, era ainda um gênero


literário malvisto, pernicioso para as moças, quando, em 1859, os jornais de
São Luís anunciavam Úrsula, de autoria de uma maranhense, ao custo de
dois mil réis pela Typografia do Progresso. Logo se soube que o livro, hoje
considerado o primeiro romance de uma autora brasileira, era de Maria
Firmina dos Reis. (Ibidem)

A tendência segmentária da crítica em situar o romance Úrsula seja no cânone, seja

como manifestação da mulher, seja como manifestação do negro leva-me à crença de que a

obra em questão nunca foi analisada por ela mesma, o olhar crítico apenas em momentos

fugazes se deteve a observar e analisar sua conjuntura narrativa, sua urdidura construtiva,

mesmo que sim, os aspectos poéticos do romance e sua literariedade foram subordinados

aos temas que ele aborda. Parece-me que se estudou muito o negro e a mulher, e a autoria

feminina, a partir do romance Úrsula, fazendo com que a narrativa fosse apenas um espaço

em que motivos extraliterários existem.

Aos poucos o romance de Maria Firmina dos Reis vêm sendo analisado em seus

aspectos literários, ainda que o negro, a mulher e a autoria feminina determinem o enfoque

de estudo. Três trabalhos produzidos como dissertação de mestrado e tese de doutorado de

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universidades brasileiras da área de Letras vem introduzindo estudos estéticos ao aspecto

ideológico do romance, fato que significa um certo avanço da criatividade e da produção

acadêmica, pois há uma conciliação entre estética e ideologia, e não puramente o uso do

romance Úrsula para se pensar a condição da mulher e do negro no Brasil, e exaltá-lo como

primeiro romance escrito por mulher, no âmbito da literatura nacional.

A dissertação de mestrado da pesquisadora Cristiane Maria Costa Oliveira cujo

titulo consiste em A escrita vanguarda de Maria Firmina dos Reis: Inscrição de uma

diferença na Literatura do Século XIX (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2001.

Mestrado em Teoria Literária) levanta aspectos relevantes para a comparação do romance

Úrsula com os romances canônicos do século XIX da tradição literária brasileira. O

vanguardismo de Maria Firmina dos Reis consiste exatamente na relação do negro com as

personagens brancas e no fato de a maranhense ter sido pioneira na produção romanesca da

autoria feminina no Brasil.

Embora ainda ligada a conceitos estabelecidos pela crítica dos jornais do século

XIX e pelas ideias rasas (para o estudo específico de literatura) que sobrepõem ao texto

literário a história do negro no Maranhão, por exemplo, Cristiane Maria Costa Oliveira

avança a crítica acerca do romance de Maria Firmina dos Reis, ao menos por constatar as

articulações da escrita firminiana, como na passagem a seguir:

Úrsula é escrito com a técnica de encaixes de narrativas com as


personagens contando suas vidas. Na primeira narrativa, fundamental para
toda a estória, o escravo Túlio, salva a vida do jovem branco Tancredo e
leva-o, moribundo para a casa de Úrsula, que cura seus ferimentos. Na
segunda narrativa, o decepcionado Tancredo descreve sua vida repleta de
acontecimentos tristes, decepções e amores traídos. Na terceira, a mãe de
Úrsula, Luíza B., também conta sua vida de pobreza, represália e abandono,
decorrido do fato de seu casamento ter sido feito sem o consentimento da

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família. E na quarta narrativa, a da velha africana Preta Susana, conta como
era sua vida na África e sua triste transformação em escrava. (Ibidem: p. 79)

Outra dissertação de mestrado sobre o romance Úrsula foi concluída em 2007, cujo

título se dá: Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

(Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Faculdade de Letras da

UFMG, Linha de pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade) e sua autora chama-se

Adriana Barbosa de Oliveira. Em seu trabalho há a atualização das idéias propostas pelo

romance de Maria Firmina dos Reis e tão perseguidos pela crítica. Os temas de gênero e de

etnia são localizados no âmbito da narrativa, que ao ser meio de comunicação, estabelece as

intervenções na consciência cultural do leitor, como demonstram as passagens a seguir:

O romance é estruturado segundo os moldes folhetinescos


românticos, possuindo outros elementos próprios da estética romântica,
como a linearidade; a donzela angelical disputada pelo mocinho e pelo vilão;
a presença de elementos góticos, como cenários sombrios e tenebrosos; a
paixão incestuosa de Fernando P. por Úrsula.; o assassinato do herói à porta
da igreja após o casamento; o amor eterno, a loucura e o remorso.
Essa imitação dos padrões europeus era um fato comum, e também
as raras escritoras mulheres e os negros, mesmo se opondo à ideologia
dominante, se apropriam de elementos que pertencem ao código literário da
época, pois escrevem para a mesma elite branca, usando sua literatura como
modelo e, ao mesmo tempo, entrando no sistema como um elemento
subversivo, à medida que, por meio de uma identificação do leitor com a
obra, parece haver a intenção de desestabilizar a ordem estabelecida, ao
fazer com que esse leitor pertencente às camadas senhoriais mude suas
concepções e posturas com relação ao negro e à mulher. (Ibdem: p. 40-41)

Algemira Macêdo Mendes investiga a exclusão de Maria Firmina dos Reis das

Histórias da Literatura Brasileira. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na História

da Literatura Brasileira: Representação, Imagens, Memórias nos séculos XIX e XX (PUC -

Rio Grande do Sul: departamento de Teoria da Literatura, Tese de Doutorado, 2007) além

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de refletir sobre os conceitos canônicos examina os aspectos formais do romance Úrsula,

fazendo com que pela primeira vez as questões do negro e da mulher sejam examinados

segundo o processo de criação literária da narrativa. O capítulo “Úrsula: A escrita de

vanguarda” resulta em um trabalho de grande acuidade estética sem desconsiderar a

perspectiva ideológica vigente no romance:

O narrador de Úrsula é extradiegético, pois o enredo é narrado em


terceira pessoa. Durante a narrativa, fazem-se descrições psicológicas e
conjecturas sobre o modo de ser das personagens, o que conduz o leitor a
uma reflexão sobre os conflitos enfrentados por elas. (...) Sabe tudo sobre as
personagens, no entanto, ao utilizar-se do discurso direto e indireto, e às
vezes indireto livre, dá voz às personagens, as quais vão narrando suas
histórias. Como o enredo é estruturado através de encaixes, as vozes andam
em paralelas, mas todas se cruzam. (IBIDEM: p. 84-85)

Além do prefácio da edição fac-similar de Horácio de Almeida, existem uma

Introdução intitulada: Uma rara visão de liberdade, cuja autoria pertence a Charles Martin

e está na terceira edição do romance Úrsula (Organização, Atualização e Notas, Luiza

Lobo: 1988), e um Posfácio, cuja autoria se dá a Eduardo de Assis Duarte e se intitula:

Maria Firmina dos Reis e os Primórdios da Ficção Afro-Brasileira, localizado na quarta

edição do romance Úrsula (2004). Ambos os textos valorizam o aspecto do negro no

âmbito do romance, assumem a perspectiva inovadora de Maria Firmina dos Reis ao tratar

o negro como personagem de ficção dotado de humanidade e não reproduzido como

mercadoria humana ou inferior à etnia branca.

Charles Martin eleva o romance Úrsula em relação às obras produzidas no século

XIX que tematizaram o negro e principalmente em relação ao romance A cabana de Pai

Tomás (1853), uma vez que no romance de Maria Firmina dos Reis os negros não

aparecem como inferiores aos brancos e servem, inclusive, para eles, de parâmetro moral,

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que conduz a realização do enredo da narrativa forjando a identidade africana do negro sem

que este passe pelo processo do branqueamento, sem deixar de ressaltar também a

originalidade da autora em face do relacionamento entre marido e esposa:

Úrsula não se limita a repintar os negros de alma branca — como


fazem muitos livros de sua época. Mostra como os escravos buscavam a
estima de seus donos e tinham seus próprios padrões de comparação, os
quais derivavam do passado africano.
(...)
Raramente os livros do século XIX trataram da mulher senão como
procriadoras ou amantes. É bastante surpreendente que Maria Firmina
descreva a relação entre marido e mulher como “despótica” e “tirânica”.
(1988: p. 9-14)

Eduardo de Assis Duarte funda a concepção de afro-descendência acerca da obra de

Maria Firmina dos Reis, situa o romance Úrsula na chamada literatura afro-brasileira e seus

estudos nortearam a dissertação de mestrado de Adriana Barbosa de Oliveira, em termos de

investigação étnica. O pesquisador atenta para o posicionamento da voz afro-descendente

integrada a um ponto de vista interno no plano da narrativa, interno tanto quanto diegese

enunciativa como voz da identidade cultural da mulher e do negro, habilitando o jogo

autoral da autora com as respectivas identidades culturais das personagens:

É, portanto, como mulher e como afro-brasileira que a autora põe-se


a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada mãe, ao qual se
acrescentam os infortúnios de Tancredo, traído pelo próprio pai, e a tragédia
dos escravos Tulio, Susana e Antero, que receberam no texto um tratamento
marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à
história oculta da diáspora africana em nosso país. (Ibidem: p. 268-267)

3 Breve consideração sobre o Romantismo brasileiro e o romance como forma literária

29
O Romantismo literário brasileiro surgiu a partir dos modelos europeus de se

produzir literatura, a forma do romance veio importada dos ingleses, franceses e dos

alemães, o espírito sentimental e constituinte dos ideais nacionais derivara muito pouco da

acepção portuguesa de se fazer literatura, pois a independência política do Brasil em

relação a Portugal fez com que os ficcionistas brasileiros buscassem modelos literários fora

da esfera lusitana, embora a cultura portuguesa prevalecesse ainda sobre as demais culturas

européias, ao que diz respeito ao romance brasileiro.

Os romances brasileiros produzidos sob a égide romântica, por uma questão de

revelar a identidade nacional brasileira através de seus fundamentos históricos, trouxeram

para a nossa literatura personagens caracterizados culturalmente como portugueses, tais

quais são as personagens de O Guarany e Iracema de José de Alencar. No cunho da

nacionalidade brasileira, em sua realização ideológica via estética literária, o português fez-

se presente na literatura brasileira apenas como personagem, pois a forma dessa literatura

teve o seu modelo em Walter Scott, Cooper e Alexandre Dumas.

As raízes europeias do romance brasileiro deram origem a uma nova forma de se

expressar, elaboraram temas mais especificamente brasileiros. Devido à própria estrutura

do romance, o escritor brasileiro pode, por meio de sua forma, se aproximar desde a

realidade histórica do momento de formação da cultura brasileira, tendo como personagens

o índio e o português, até a sociedade brasileira já um pouco mais adiantada em termos de

localização cultural, como se nos apresentam os romances urbanos e de costumes

produzidos durante o nosso Romantismo.

Ao assumir a função sócio-cultural de localizar a cultura brasileira desde os seus

mitos de formação até a consolidação primária da burguesia, o romance brasileiro, em um

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primeiro tempo, arraigado aos valores da estética romântica, desvelou a imaginação e os

relacionamentos humanos do Brasil, servindo como forma literária cujo bojo cultural se

presta a revelar os aspectos próprios do seu povo em formação.

Por vezes, a concepção tradicionalíssima da crítica literária em perceber no romance

do século XIX (que antecede o Dom Casmurro de Machado) apenas o sabor adocicado das

construções narrativas calcadas em enredos que apenas falam do ideal amoroso acaba

deixando de perceber que o tema amoroso aparece apenas como motivo para se encaminhar

questões próprias da realidade cultural brasileira, embora existam estudos eminentes como

O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, de Flora Süssekind (1990), que propõe

uma investigação sobre o nascimento do romance neste país abordando suas origens

ficcionais calcadas na realidade daquilo que de fato aparece como amostragem da formação

de um povo, a ponto de afirmar que:

Não é, pois, a qualquer lugar que se pode chamar de Brasil, a


qualquer literatura brasílica. É necessário que se submetam à malha fina da
“originalidade”, da “natureza exuberante”, dos “costumes peculiares”. E, se
no que se vê ou no que se lê não se acha a paisagem esperada, a reação não
tarda, assim como a sensação de que, ou aquilo não é tipicamente brasileiro,
ou, bem mais inquietante, que há um descompasso entre o que se define
como Brasil e o que se vive como tal. (Ibidem: p.24)
Ao lado da pesquisa de Flora Süssekind, o estudo de Silvana Carrizo (2001)

intitulado Fronteiras da imaginação: os românticos brasileiros: mestiçagem e nação

contribui para o entendimento do romance como forma artística que se constitui como

modulação hegemônica da cultura e da literatura brasileiras, onde há a marcação definidora

das classes sociais e raciais, sua localização e diferença como movimento próprio da

constituição do romance configurado em narrativa literária e afirmação da cultura branca,

patriarcal e escravocrata; assim a pesquisadora formula um arcabouço teórico que

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possibilita a análise do romance romântico brasileiro através da tríade: raça / costumes /

paisagem, que a leva a pensar aquela produção literária sob a égide da razão racial, que

segundo a autora consiste em uma categoria analítica que sustentou a forma de pensar a

comunidade de nação que imaginavam nossos escritores românticos. (Ibidem: 41)

A forma do amor romântico obscureceu o valor do romance como possibilidade de

compreender a eficácia da revelação com que os romancistas brasileiros desvendaram os

interstícios do imaginário cultural. O romance brasileiro constituiu-se como uma forma

literária altamente violenta, mesmo que ao fim de sua narrativa geralmente se resolvam os

conflitos por meio da conciliação e do final feliz; no entanto os caracteres mostram os

conflitos das personagens em face de elementos oriundos da diferença, do preconceito, da

ambição, da luta pelo poder. Vale ressaltar que tais elementos funcionam envoltos por uma

estória de amor, entre homens e mulheres que almejam a realização do relacionamento

impossível, que se mostra como o grande motivo da criação romanesca romântica, mas que

traz temas, no mínimo, relacionados a uma certa violência simbólica, ou seja: os dominados

aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação,

fazendo-se assim ser vistas como naturais. (BOURDIEU: 2003, p. 46).

As personagens românticas simbolizam as contrariedades da personalidade

brasileira, as relações afetivas conduzem para conflitos culturais que se sustentam na

sensibilidade, as diferenças de classes sociais se fundamentam na estrutura cultural que

caracteriza as personagens no plano da ficção, os valores são propostos como divisíveis,

antagonista e protagonista carregam marcas ideológicas e estéticas que fazem a prática

literária dialogar com o momento histórico, com o desalinho real das cores, dos lugares, das

maneiras de se conviver. Embora o discurso apareça carregado de descrições, de volumes

altos de adjetivação e peculiaridades levadas ao extremo, a ponto de sobrepor-se aos

32
núcleos da trama e do enredo, o romance do século XIX apontou tanto para a realidade

ficcional quanto para o imaginário histórico da vida brasileira.

A fundação da identidade nacional posta pelo romance em termos mais abrangentes

que vão do passado indígena até a “nascente formação” das estruturas sociais brasileiras

construiu também uma série de estereótipos e categorias culturais de exclusão, uma vez que

o negro como elemento constituinte da identidade cultural brasileira apareceu apenas como

elemento corriqueiro, mais que secundário, inevitavelmente excluído das relações humanas

que se processam dentro da própria estrutura do romance, de maneira a reforçar a idéia de o

negro ser apenas escravo e mercadoria. A mulher, assim como o negro, mesmo que seja ela

título de romance e mesmo a personagem principal, sempre está associada à idéia de

serventia, que se torna abrandada pelo enredo que põe em foco a estória de amor.

O romance no Brasil impõe a submissão de toda identidade cultural que não se

enquadra dentro dos parâmetros branco-patriarcal-escravocrata, seja o índio, a mulher e o

negro, no entanto os dois primeiros possuem a aura guardada seja pelo nacionalismo

literário seja pela expressão sentimental a que são vinculados. Mesmo que o romance do

século XIX tenha assumido deveras a função de ser um instrumento de descoberta e

interpretação, assim como mostrou Antonio Candido (1959, p.109-118), a realidade da

identidade cultural brasileira foi dilacerada pelo próprio romance, sendo este, meio de

comunicação folhetinesca, obra literária da produção artística de um país, documento

histórico que recebe tratamento estético ou mesmo mera obra literária de terceira categoria.

3.1 Possibilidades estéticas e ideológicas na forma do romance Úrsula

33
Para um entendimento razoavelmente aprofundado do romance Úrsula, não basta

apenas considerar a sua estrutura em si mesma, a fim de estabelecer sua classificação como

romance tipo folhetim ultraromântico (LOBO: 1993, p. 228), devido aos emaranhados que

são desenvolvidos ao decorrer dos acontecimentos propostos por sua narrativa.

Para uma compreensão que possibilite aproximar-se da totalidade do romance,

torna-se necessário levantar aspectos que estão fora da narrativa, uma vez que a

representação, no romance Úrsula, sobre a sociedade colonial, visa à elaboração do

nacionalismo através das histórias das personagens que formam na narrativa o “instinto de

nacionalidade”.

A brasilidade que se manifesta na representação do modo de viver das personagens,

que são tecidas conforme o olhar crítico da narradora, cuja exposição discursiva da

atmosfera colonial impõe a desorganização da mentalidade mandonista dos proprietários da

terra, elabora um nacionalismo às avessas, por tender a valorizar a representação do negro e

da mulher, deslocando o poder dos senhores patriarcais, através de recursos próprios da

criação literária.

Na nacionalidade do romance Úrsula, o negro possui identidade africana e a mulher

aparece ironicamente subalternalizada; daí a expressão “instinto de nacionalidade às

avessas”; pelo fato de o conceito de nacionalidade ganhar outra coloração e um aspecto

mais aprofundado, a respeito da cultura e de literatura do século XIX no Brasil.

As histórias que formam a narrativa do romance Úrsula são as histórias dos

oprimidos da sociedade colonial, a exaltação ultrapassa os limites da natureza brasileira

para que as personagens falem e construam a sua própria perspectiva do que seja a Nação

Brasil, a partir de seus próprios discursos que trazem sua vida íntima.

34
Assim a narradora constrói as identidades culturais dos sujeitos, revoluciona ao criar

um nacionalismo que se fundamenta na história dos gêneros e da etnicidade, fundando a

nacionalidade brasileira através das vivências das mulheres e dos negros, em confronto com

a ideologia senhoril patriarcal escravocrata.

Dá-se um importante confronto na trama da narrativa, pois sob tal organização e

emaranhamento de detalhes o enredo da obra desorganiza a concepção usual dos senhores

patriarcais e escravocratas.

A sua formação narrativa não corrobora com os aspectos dos romances tradicionais

brasileiros produzidos durante o século XIX, pois Maria Firmina dos Reis (como autora)

representa a constituição da mulher como agente histórico por ser agente da escrita, e a

representação da sociedade colonial imanente em sua obra propõe a revelação da

perspectiva de negros e mulheres sobre a sociedade daquele tempo.

Sabe-se que, ao longo da tradição literária brasileira, a voz da mulher como

produtora de texto literário sofreu um processo de emudecimento, seja por não ser

privilegiada nas principais Histórias da Literatura Brasileira, seja por suas obras serem

consideradas menores, e portanto, não merecerem a devida atenção dos historiadores, e

ainda hoje serem etiquetadas com estigmas de ordem cultural.

O problema consiste em que a própria Maria Firmina dos Reis tinha consciência do

lugar inferior a que a mulher era destinada, no século XIX, e magistralmente pensou o seu

lugar (de mulher em uma sociedade patriarcal), o lugar da personagem feminina, e do negro

como personagem de ficção, no âmbito das letras nacionais, em contraponto com

personagens que representam, no espaço narrativo da obra, os proprietários da terra; estes

são deslocados para um papel secundário, no romance Úrsula, uma vez que representam a

35
censura da liberdade tanto de negros quanto de mulheres e definem a moralidade

conservadora dos homens de poder da época, que controlavam os latifúndios.

Para Rita Schmidt (1995, p. 187): “A literatura feita por mulheres envolve dupla

conquista: a conquista da identidade e a conquista da escritura.” Identidade e escritura

entrelaçadas na formação da mulher enquanto agente discursivo, deixando de ser, apenas,

objeto do discurso masculino. A escritura da mulher fundamentou sua identidade através de

processos literários sofisticados, como, por exemplo: imprimir no corpo da própria obra

literária o jogo de submissão e transgressão, ambas sustentadas pelo entrelaçamento de

sintagmas que formantes de um todo literário, altamente irônico.

No caso de Maria Firmina dos Reis, em pleno século XIX, momento em que o

romance ainda estava se definindo enquanto forma literária, além das duas conquistas, há a

elaboração de personagens femininas que entram em choque com os proprietários de terra,

dentro do romance Úrsula, e personagens cuja identidade se define como propriamente

africana, que são verdadeiros exemplos de humanidade, fato que destoa de toda construção

perjorativa acerca do negro escravo, sendo que africano fica além de escravo, por se

constituir imaginariamente dentro de sua própria concepção de cultura, ou seja: o negro

possui sua própria voz, constrói sua própria identidade, tornando-se livre por sua própria

imaginação, que elabora a imagem da África sem cair no colonialismo, porque o seu

discurso transporta-o às suas origens ancestrais.

As conquistas de Maria Firmina dos Reis vão mais além daquelas duas, muito bem

apresentadas pela pesquisadora, pois as suas personagens femininas, ainda que envoltas

pelo jogo ambíguo da submissão/transgressão, superam, de certa maneira, o papel

secundário da mulher como personagem de literatura. Superam, porque suas identidades

não são forjadas pelo outro, mas pelo olhar da própria mulher, lançado, criticamente, sobre

36
o feminino. E tais personagens entram em conflito com a autoridade patenteada

culturalmente pelo masculino, formando um choque, de identidades culturais, representado

pelas vivências dos homens e das mulheres e seus respectivos papéis sociais, literariezados

no plano da obra.

Pode-se dizer que existem três conquistas: a conquista da identidade, a conquista da

escritura e a conquista das identidades buscadas pelas personagens femininas, que efetuam

em suas caracterizações e vozes a sua persuasão acerca dos personagens masculinos

autoritários, que representam o poder em forma de opressão.

Por outro lado, há uma quarta conquista: o negro manifesto como ser humano, o

negro em sua plena dignidade, o negro construído africanamente, como crítico do sistema

escravocrata, seja por sua caracterização, por seus atos, pensamentos e voz, que o definem

também como sujeito, passando ele de ser representado apenas como a vítima de um

sistema economicamente perverso a pensador de sua condição servil e de sua liberdade

(como acontece na caracterização de Preta Suzana e de Túlio).

Entretanto, para veicular tais conquistas, a Maria Firmina dos Reis/narradora

precisou (no duplo sentido do verbo) articular a linguagem em uma escrita que camuflasse

as suas conquistas e as conquistas por ela dada, em geral, às mulheres e aos negros. A

estética romântica, com todos os seus floreios, como forma de expressão artística européia,

serviu para a autora maranhense como veículo, e ambiguamente, como camuflagem para as

suas investidas ideológicas em defesa das mulheres e dos negros.

Na sociedade duramente estratificada, submetida à brutalidade de


uma dominação baseada na escravidão, se de um lado os escritores e
intelectuais reforçaram os valores impostos, puderam muitas vezes, de outro,
usar a ambigüidade do seu instrumento e de sua posição para fazer o que é

37
possível nesses casos: dar a sua voz aos que não poderiam nem saberiam
falar em tais níveis de expressão. ( CANDIDO: 2003, 178)

A narrativa do romance Úrsula propõe uma leitura que deve ser realizada nas

entrelinhas, o leitor necessita desbravar os exageros românticos, para também conquistar o

significado da obra, escondido por trás do amor romântico entre Tancredo e a personagem

homônima: ao enfrentar e vencer os excessos de significantes, o leitor se aprazerá com uma

narrativa que interpreta e questiona o processo da opressão colonial estendido a seus

herdeiros, e encontrará as mulheres e os negros emergindo como sujeitos dotados de

humanidade, como protesto à coisificação imposta a eles pelos proprietários da terra, que

lhes endureciam a identidade cultural e como consequência, a identidade literária.

Não que apareçam meramente idealizados, vivendo em um paraíso onde a

cordialidade representa a falta de conflitos; ao contrário, negros e mulheres surgem como

personagens históricos, representantes de uma Nação imaginada e construída pela literatura,

cuja vigência evidencia suas respectivas identidades culturais desenvolvendo-se de maneira

discrepante à tradição narrativa literária brasileira, que se consolidará tradicionalmente duas

ou três décadas depois da publicação em 1859 do romance Úrsula. Primordialmente, Maria

Firmina dos Reis destoa da tradição narrativa literária brasileira, antes mesmo de ela se

consolidar, funda aspectos de literariedade que produzem pressupostos ideológicos, que não

foram assumidos pelos grandes autores da época.

Extraordinariamente, a autora maranhense explorou as possibilidades do romance, a

vulnerabilidade fundamental de sua abertura quase indiscriminada a muitas outras formas

discursivas (BASTOS: 2007, p. 83), pois diversas classificações que caracterizam a forma

romanesca podem na narrativa do romance Úrsula encontrar respaldo: romance romântico,

pelo seu caráter indubitavelmente sentimentalizado; romance histórico pelas passagens em

38
que o negro expressa a sua voz africana, como persuasora do sistema escravocrata

brasileiro; romance de costume, por conta do discurso se aprofundar e discutir o

relacionamento entre os senhores patriarcais escravocratas com negros e mulheres; do

romance psicológico, pelo mergulho no universo íntimo das personagens e analises dos

sentimentos morais como o amor, o ódio; e romance gótico, pelos momentos de

ambientalização taciturna, sombria e suspensa; mesmo caracteres do romance político, cuja

crítica tradicional estabelece como expressão vinculada aos acontecimentos políticos

brasileiros (das décadas de 60 e 70 do século XX), estão presentes na narrativa do romance

Úrsula, pois a narradora imprime em seu discurso, claramente, a ideologia da abolição da

escravidão dos negros e o fim da escravatura dos brancos; assume, ora conectada aos

personagens, ora em sua própria enunciação o rasgo ideológico de mulheres, negros,

senhores patriarcais.

A representação das personagens revela a observação da narradora sobre os

mecanismos de poder vigentes. Úrsula figura como uma narrativa que pensa os tempos

coloniais e suas consequências em períodos posteriores da vida brasileira. No romance,

surge a cultura criticada, são desveladas as relações de poder, entre as mulheres e os

homens, entre a africanidade e os senhores de escravos, entre o amor romântico e a

estrutura do poder colonial, regulada e mantida pelos senhores patriarcais; todo o romance

estabelece uma perspectiva crítica sobre a realidade histórica, sem deixar de se preocupar

com a amarração estética, que serve de veículo às indagações impressas nos caracteres de

valor literário, como, por exemplo: a forte participação do espaço e as movimentações das

personagens seja no plano da ação, seja no plano da imaginação.

A construção de personagens e suas histórias são fontes para a trama da narrativa, a

sua manifestação maior e mais contundente consiste nas identidades presentificadas pela

39
memória das personagens e a memória da narradora. Tais memórias não se circunscrevem

em uma mentalidade elitista, e muito menos corrobora para a manutenção do poder

patriarcal e escravocrata. A não relação entre tais memórias, contraditoriamente, move o

encadeamento dos acontecimentos, através do dialogismo das personagens e das

intervenções da narradora.

As identidades culturais postas na narrativa fazem do romance Úrsula uma escritura

revolucionária, porque são presentificadas em uma memória poética que traz a mulher e o

negro como sujeitos ativos por suas mentalidades no âmbito do processo histórico e da

série literária, e a memória torna-se o fator primordial na constituição daquelas

personagens, pois suas caracterizações surgem de suas próprias reminiscências e da

memória da narradora, que constrói poeticamente as mentalidades, as identidades, os

acontecimentos que gerenciam a imagem de mundo de uma cultura propriamente colonial.

A poeticidade da memória, que subage na formação cultural dos


povos de outrora e de agora, constitui o objeto privilegiado de uma poética
generalizada da cultura, que inclui e transcende a poética restrita das artes
compaginadas nos tratados estéticos. A poética cultural corresponde à
memória criadora, (...), comparece nas manifestações criativas do espírito
humano. (MELO E SOUZA: 2001/2002, p. 10)

No romance Úrsula, está a construção de identidades que convivem em conflitos e

que se afirmam na contradição, gerando um universo que corresponde, poeticamente, à

história cultural brasileira, porém não reitera ou reproduz a ideologia vigente, naqueles

tempos, dos herdeiros do colonizador português, ou seja: o romance Úrsula assume a

descontinuidade do poder dos colonos brasileiros, agride o código convencional da tradição

literária, por não ser um elogio aos senhores patriarcais, e nem fazer com que seus dramas

sejam propostos como topos principal do romance; não continua, pelo viés literário, a

40
opressão dos colonos recaída sobre os marginalizados, e denuncia o processo colonizador

ao registrar as suas marcas deixadas na mentalidade e nos corpos das mulheres e dos

negros.

Ao contrário, o romance Úrsula colabora para a mudança de paradigma moral, ao

apresentar e representar os proprietários da terra como criminosos e exploradores de

mulheres e negros, que mesmo sob o julgo dos senhores patriarcais são capazes de

construírem suas identidades por suas próprias palavras e ações, reconstituídas por suas

memórias e pela memória da narradora, que se afasta temporalmente dos acontecimentos,

dando um caráter analítico à narrativa, ao mesmo tempo, cria a literariedade, que produzida

com recursos específicos da preocupação estética, revela a perspectiva dos oprimidos.

Os acontecimentos aparecem como motivos que desencadeiam as identidades,

tecendo o papel social a que as personagens são destinadas, nos acontecimentos surgem os

elementos da cultura do imaginário da formação brasileira baseada no mandonismo

patriarcal, pois as ações das personagens estão ligadas à construção de suas respectivas

identidades culturais. Ação e inação, a palavra da fala das personagens e da narradora

presentifica os acontecimentos já acontecidos, a narração não se impõe no mesmo momento

em que o fato acontece, o relato das instâncias narrativas (narradora e personagens

narradoras) surge a posteriori ao fato acontecido, daí a forte presença da memória no

âmbito da narrativa.

O espaço, elaborado a partir de uma natureza ruralizada, possui aspectos

reveladores em relação aos acontecimentos e caracterizações das personagens, com seus

campos, suas fazendas, e elementos de arquitetura colonial que formam a ambientalização

para que as identidades se manifestem com toda a riqueza de detalhes: seja no plano

psicológico, em que a natureza está em sintonia com os sofrimentos das personagens; seja

41
no plano da descrição física em que a natureza aparece localizada como espaço geográfico;

seja a natureza como criação de Deus; seja também a cultura dentro da natureza, cultura

esta que se identifica com os padrões coloniais, e que transpõe a atmosfera medieval com

os seus assombros, presença da noite, senso lúgubre do mistério presentificados nos

aspectos de ruína e abandono das construções arquitetônicas transportadas para a natureza

brasileira.

A atmosfera do espaço reproduz elementos da narrativa gótica, no romance Úrsula,

só não há o Castelo, porém o Cemitério de ***, o Convento de ***, a Mata vivenciam os

acontecimentos, por coagirem com as personagens, servindo a elas como abrigo, como

espaço de meditação, como espaço de prisão, torneados por um clima de ruína conforme

uma atmosfera macabra, que ao mesmo tempo convive com o ambiente colorido proposto

pela natura brasileira, fazendo com que esta comporte a construção do mistério, do terror,

aliada às construções arquitetônicas.

Maria Conceição Monteiro (2004), ao investigar o romance gótico inglês, constatou

que o convento, entre outras funções dentro daquele tipo de narrativa, “fornece refúgio

contra a violência masculina, garantindo assim relativa independência para as mulheres” (p.

66). Na narrativa do romance Úrsula, a personagem homônima se refugia das perseguições

de seu tio Fernando P, justamente no convento de Nossa Senhora da*** . Conforme a

descrição do convento, e por ele ser um dos elementos que oferecem à narrativa do

romance Úrsula característica que se coadune com uma tradição romanesca ocidental

marginalizada, como o caso do romance cortês e gótico, Maria Firmina dos Reis/narradora

usou de recursos para dramatizar a condição feminina, dentro de uma cultura colonial que

traz em si os resquícios medievais:

42
Meia legua fora da cidade erguiam-se denegridas pelo tempo as
velhas paredes de antigo convento, com suas gelogias também esfumaçadas
pelo tempo, e que escondiam zellosas às vistas indiscretas as puras virgens
dedicadas ao senhor.
Era um edificio antigo na sua fundação, grave e melancholico no seo
aspecto: era a casa do Senhor sem ostentação. (REIS: 1975, p. 142)

A construção do espaço natural serve como pano de fundo para a localização das

identidades inferiorizadas pelo proprietário da terra, que, por outro lado, possui sua

subalternidade calcada pelo divino da Criação, ou seja: a natureza aparece no romance

também como criação de Deus, pondo em cheque o valor de propriedade, que gera as

corrupções e as desigualdades sociais, e hierarquias identitárias geradas pela cultura.

Tanto que a narradora elogia a natureza e o sentimento de solidão nela encontrado,

para efetivar a crítica à cultura colonial, que constrói sua moralidade materializada em

propriedades. A narradora originariamente busca a natureza como criação e morada de

Deus, para que haja a desapropriação econômica da natureza, e para que a humanidade, em

comunhão com ela, (se viva e a viva) em total plenitude, sem que valorize o dogmatismo

religioso:

Quem haverá ahi que se não sinta transportado ao lançar a vista por
esses vastos paramos ao alvorecer do dia, ou ao arrebol da tarde, e não se
deixe levar por um deleitoso scimar, como o que escuta o gemer da onda
sobre areiaes de prata, ou o canto matutino de uma ave melodiosa!!... A
vista expande-se e deleita-se, e o coração volve-se a Deos, e curva-se em
respeitosa veneração; porque ahi está Elle.
O campo, o mar, a aboboda celeste ensinam a adorar o supremo
Auctor da naturesa, e a bemdizer-lhe a mão; porque é generosa, sabia e
previdente.
Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor ahi impera; porque ahi
despe-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o
apodrece, e livre d’essa vergonhosa cadeia, volve a Deos e o busca — e o
encontra; porque com o dom da ubiquidade Elle ahi está! (REIS: 1975, p. 9)

43
Entretanto, para Fernando P. representante, dos proprietários da terra, a natureza

nunca assume o vigor de ser criação sagrada. A cor local perde todo o seu sentido de

brasilidade e manifestação divina, toda a sua descrição pormenorizada feita pela narradora

aparece como um espaço deslocado da caracterização de Fernando P., como se ele não

fizesse parte do espaço, por não experimentá-lo.

O proprietário da terra não se presentifica como parte da natureza, por não

comungá-la, ele e a natureza são separados pela narradora, para demonstrar que Fernando

P. representa a cultura materialista colonial, diante do quadro paisagístico esboçado pelos

elementos naturais, ele parece estar fora de lugar. Por estar preso em seus próprios

interesses, não há sintonia entre a natureza e ele, ela não reforça a sua caracterização,

porque ele se define como seu dono, seu proprietário. Acima de Deus e da própria natureza,

Fernando P. se reduz à sua própria existência, deixando entrever a narradora que entre a

natureza e o herdeiro da colonização não há sentimentalidade e nem comunhão:

Brilhavam ainda no ocaso os últimos raios do sol. A parda tarde


embelesava a naturesa com essas melancholicas côres, que trasem ao
coração do homem a saudade e a tristesa.
Sentado em um banco do seo jardim, o commendador Fernando P...
não via, nem curava de toda essa bellesa arrebatadora, que enebria os
sentidos, e eleva a alma até Deos. A essa hora magica em que a flôr singela e
seductora escuta enlevada o suspiroso segredo da brisa, que a festeja; em
que o colibri furtando-lhe um mimoso e feiticeiro beijo adeja e sussurra-lhe
em volta; em que lá no bosque o vento suspira harmonioso, e os cantores
das selvas soltam seo trinar melodioso e terno; em que o mar na praia é
pacifico e manso, e perde a altivez com que bramia; em que a virgem
entregue a um vago, indefinivel e magico scismar recende mais casto, mais
enlevador perfume, como o aroma de uma flor celeste; a essa hora mesma
Fernando P..., aguilhoado pelos remorsos, só via horridos phantasmas, que o
cercavam. (REIS: 1975, p. 186-7)

A cor local busca dar autenticidade à forma literária que se instaura na tradição,

como obra especificamente dotada de brasilidade, pela apreensão do meio que serve à

44
narrativa como espaço dos acontecimentos, lugar onde se põe a representação dos dramas

humanos, articulados com o tempo histórico manifesto. A cor local em Úrsula não se reduz

apenas aos espaços narrados, mas se amplia à extensão das personagens, à maneira com que

as suas respectivas identidades culturais se relacionam e entram em conflito, o imaginário

não se prende tão-somente nas descrições do tempo meteorológico, da fauna e flora, da cor

verde das matas, mas na extensão ampla do humano submetido a leis culturais em convívio

com a natureza.

A natureza, como objeto da exaltação nacionalista, além de representar a

grandiosidade das terras brasileiras, o templo das personagens ali inseridas, surge

personificada, em uma similaridade com os estados físicos e espirituais humanos, como as

aves que emitindo seus sons reforçam a enfermidade de Tancredo, velado por seu amigo

Túlio, e a noite dando um tom melancólico à voz da narradora para reforçar o sofrimento

do mancebo:

Violenta, terrivel, espantosa tinha sido a crise, e Tulio velava à


cabeceira do enfermo. A noite há muito que tinha desdobrado sobre a terra
seo pesado manto de escuridão, animando des’arte o profundo silêncio dos
bosques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longiquos palmares,
ou pelo gemido triste de sentido notibó, ou os agoureiros pios do acahuan.
(REIS: 1975, p. 21)

A referência à cultura européia diluída por comparações com a natureza brasileira

gera um movimento em que há a apreciação da literatura francesa romântica e um

empobrecimento da imagem plástica dos pintores do Renascimento italiano. Pois em um

momento digressivo em que a narradora descreve o crepúsculo, a natureza brasileira se

torna não representável pela arte pictórica renascentista, ao mesmo tempo em que nas

páginas da literatura francesa, a narradora encontra o seu ideal de descrição. Bernadin de

45
Saint-Pierre aparece como modelo superior à narradora, pois a natureza recriada por ele, em

sua narrativa Paulo e Virgínia, torna-se inigualável, porque pintada com as penas da

imaginação romântica que a narradora de Úrsula tanto exalta, tomando-a como estratagema

para tratar de questões específicas da realidade brasileira:

Era uma d’essas tardes, que parecem resumir em si quanto de bello,


de luxuriante, e de poetico ostenta o firmamento no equador; era uma
d’essas tardes, que só Bernadin de Saint-Pierre soube pintar no delicioso
Paulo e Virgínia, que deleita a alma, e a transporta a essas regiões aereas,
que só a imaginação comprehende, e que divinisando as nossas ideias, nos
torna superiores a nós mesmos.
Era pois uma dessas tardes em que o sol no seo descambar para o
ocaso recebe mil e cambiamtes côres, invejadas pela palheta dos Raphaeis, e
que se confundem com o sorriso da triste amante, a lua, que resurge pallida
na orla do horisonte. Os ultimos raios de um sol vivido misturavam-se com
os raios prateados de uma lua de agosto. (REIS: 1975, p. 124)

A cor local posta, na estrutura do romance Úrsula, constrói a natureza animada,

dinâmica, em um movimento que vai da personificação à pintura paisagística do espaço

rural. Em meio à descrição da natureza, a narradora insere sua digressão, a respeito de sua

crítica à moralidade patriarcal, elaborando o sol e a flor como similares ao posicionamento

explorador do homem sobre a mulher:

Era apenas o alvorecer do dia, ainda as aves entoavam seus meigos


cantos de arrebatadora melodia, ainda a viração era tênue e mansa, ainda a
flor desabrochada apenas não sentira a tepida e vivificadora acção do astro
do dia, que sempre amante, mas sempre ingrato, desdenhoso, e cruel áfaga-a,
bebe-lhe o perfume, e depois deixa-a murchar, e desfolhar-se, sem ao menos
dar-lhe uma lagrima de saudade!... Oh! o sol é como o homem maligno e
perverso, que bafeja com halito impuro a donzella desvalida, e foge, e deixa-
a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! — e depois, ri-se e busca
outra, e mais outra victima!
A donzella e a flor choram em silêncio, e o seo choro ninguem o
comprehende!... (REIS: 1975, p.-11-12)

46
As mulheres como representação das variadas posições culturais de uma cultura

colonial, os negros representados conforme sua própria mentalidade africana, e não a que

foi construída pelo sistema escravocrata de ser ele o mero objeto; a figura de um padre,

como homem santo, que não pode interferir nas crueldades do antagonista Fernando P., e

este como representação dos proprietários de terra, mas sendo, no romance Úrsula a

encarnação do mal, o déspota, sobre o qual recai todo o sentimento de culpa, toda

imoralidade, e logo: toda a imperfeição moral.

A caracterização dada a Fernando P. demonstra o quanto a narradora perverteu a

moralidade da época, pois construir uma personagem que represente o máximo do poder

colonial, atribuindo a ela todas as características do preconceito, da inveja, do ciúme, do

crime, do descontrole, elevando-a apenas pelo seu porte senhorial, pelo seu poder

econômico, consiste em uma crítica metafórica a todos os representantes do poder

concentrado, nas propriedades de terra do Brasil colonial. Sua valorização consiste apenas

na caracterização física, sendo Fernando P. apenas um corpo de aparência aristocrática,

apenas uma beleza conservada pela posição que ocupa:

Esse homem não estava no verdor dos anos; mas sua physionomia,
supposto que severa e pouco sympatica, n’essa hora crespucular, que dá
certa sombra a toda natureza, não senunciava a sua edade. A pelle sem
rugas, os olhos negros e scintilantes, tinham um que de bello; mas que não
attrahia. Era de estatura acima da mediocre, esbelto, e bem conformado; e as
feições finas davam-lhe um ar aristocratico, que, quando não attrahe, sempre
agrada. (REIS: 1975, p. 1001)

Ao fim da narrativa, o mesmo senhor patriarcal, de porte esbelto, saudável, possui

sua caracterização física denegrida, os sofrimentos recaem sobre ele como pendor

moralizante que a narradora a ele imprime. Sua aparência jovial, seu ar aristocrático

estatelam na amargura, no cansaço, na metáfora do despoder, na fraqueza que não pode ser

47
superada apenas porque se põe como o todo poderoso da terra. Sua fisionomia representa o

declínio do status mandonista patriarcal; sua caracterização anímica, manifesta no corpo,

recebe o desvanecer produzido pela culpa, pelo desgosto, pelo sentimento de ser menor,

embora senhor de terras:

No rosto pallido e desfeito as lagrymas escavavam-lhe profundos


sulcos; os olhos encovados, e vermelhos, e pisados denunciavam a insomnia
febricitante. Já não era o mesmo, senão no seu amor e na sua desesperação.
A dor enrugou-lhe as faces, os remorsos alvejaram-lhe os cabellos.
Tão poucos dias de afflicção transformaram-n’o em um velho fraco e
abattido. (REIS: 1975, p. 186).

A formação narrativa, entendida como as formas com que o discurso expressa a

construção de personagens, espaços, tempo, acontecimentos, instância de enunciação e

temas, gera a narrativa como manifestação e representação da cultura, desdobrada pelo

olhar crítico e interpretativo da autora, que se apropriou largamente do amor idealizado,

como tendência estética romântica, para introduzir, no espaço romanesco, a resistência a

modelos cristalizados pelo poder vigente.

O romance Úrsula possui a complexidade dos textos veiculados por jornais do

século XIX, quando articulados para comporem o livro, sua estrutura narrativa obedece ao

molde do folhetim. Estruturalmente, ele começa com um prólogo e termina com um

epílogo, que amarram os seus XX capítulos, sendo que o epílogo funciona como balanço

feito pela narradora, conforme os acontecimentos que movimentaram a narrativa, e o

prólogo como reflexão da autora acerca de sua condição de produtora de texto literário, em

pleno século XIX.

Nos elementos que geram a formação narrativa, encontra-se a ideologia do texto,

acobertada por uma exagerada apreensão da estética romântica, que assume a função de

48
estratagema para a transgressão da autoria feminina, em denunciar os preconceitos morais

da cultura colonial, patriarcal e escravocrata.

O amor romântico aparece como acontecimento principal, porém circundados a ele,

existem temas que são aparentemente transversais ou menores. O rendimento literário

desses temas faz com que a narrativa do romance Úrsula seja importante dentro da

literatura brasileira, uma vez que a mulher e o negro são trabalhados como temas

emergentes, logo precisam aparecer na literatura problematizados, ou seja: levanta-se a

situação dos oprimidos, cujas angústias são reveladas, cujos posicionamentos de resistência

à dominação são desenvolvidos; quando por outro lado: secundários são os homens que

detém o poder, os proprietários da terra, comendadores e fazendeiros são relegados ao

papel de antagonistas, suas vozes e ações questionadas, são responsabilizados pela

condição subumana das mulheres e dos negros, não aparecem como modelos para a

sociedade, mas como aqueles que impedem a humanidade de ser moralmente elevada.

O amor surge como sentimento moral. Em uma digressão da narradora, há a

comparação entre o fenômeno amoroso sentido por homens de índoles diferentes. O amor

como sentimento moral revela o caráter desses homens, que se confrontam na disputa do

amor de Úrsula. A sentimentalidade e a devoção do homem à mulher aparecem como

marcas que separam os homens que escravizam daqueles que libertam. Trata-se do modelo

moral do amor de Tancredo: libertador e apaixonante; em contraste com o amor de

Fernando P: mesquinho e egoísta. A alegoria do amor como representação social de dois

tipos distintos de homens que desejam a mesma mulher aparece em um

multiperspectivismo narrativo acerca de um mesmo sentimento moral, que embora

bipartido, não se manifesta em tom maniqueísta, mas como representação anímica dos

homens:

49
O amor que se nutre no coração do homem generoso, é puro e nobre,
leal e sancto, profundo e immenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode
conhecer, de quanta dedicação se possa conceber. Elle o eleva acima de si
próprio, e as suas acções são o perfume embriagador d’esse sentimento, que
o anima: mas o amor no peito do homem feroz e concupicente é uma paixão
funesta, que conduz ao crime, que lhe mata a alma e a despenha no inferno.
(REIS: 1975, p. 181)

O amor de Tancredo e Úrsula não passa de um engano para o leitor habituado ao

romance romântico, pois a idealização amorosa, no romance de Maria Firmina dos Reis,

serve como desvio de atenção para a censura do século XIX. Em relação a textos literários

produzidos por mulheres, a ditadura patriarcal escravocrata daquela época foi ludibriada

pela inteligência e sensibilidade da autora maranhense.

O exagero confessional de personagens, as excessivas descrições, a peculiaridade da

pontuação firminiana, a movimentação repentina e curta dos acontecimentos que se

deslocam dentro de uma temporalidade que se distingue apenas pela narração da memória

das personagens e da narradora, fazendo com que a linearidade seja construída pela não

linearidade de acontecimentos que são aglutinados, formando pequenas narrativas dentro de

uma grande narrativa que expressa o amor romântico que se origina como veículo e

camuflagem de problemas culturais. São elementos exemplares da técnica discursiva da

autora para viabilizar e veicular denúncias acerca da condição cultural que alicerçava

homens e mulheres negros e brancos dentro de uma organização social que restringia o

poder aos proprietários da terra, estes eram também os donos das pessoas sem posses

territoriais.

Todos os elementos do romance que se manifestam em sua forma encaminham para

uma leitura tradicional do romance romântico, porém a forma de expressão romântica do

50
romance Úrsula camufla a sua verdadeira originalidade, a sua relevância para os estudos de

literatura brasileira. Nele aparecem pela primeira vez mulheres e negros articulando a

crítica ao mandonismo patriarcal escravocrata através da dicção imaginária de mulheres e

negros; nas entrelinhas, nos subentendidos do discurso surgem levantes simbólicos da

transgressão a um silenciamento histórico cultural que pretendia manter emudecidos negros

e mulheres.

A forma de expressão romântica e seus elementos de cunho sentimentalóide podem

até ser a subordinação da criação literária à estética epocal, no entanto, evidencia-se na

narrativa de Úrsula um rasgo contínuo à moral estabelecida pelos senhores de propriedades

latifundiárias; a figura deles sugerida simbolicamente pela semiosis do discurso narrativo,

que usa elementos da realidade histórica para dar-lhes um tom de denúncia, converte-se em

malefício cultural, ou seja: os senhores latifundiários, donos de engenho, escravocratas,

machistas, mandonistas, opressores de mulheres e negros são postos como tais, e sua

representação não se torna gloriosa, ela passa a representar a maldade a que eles submetem

os seus oprimidos. O romance tematiza não o poder de Fernando P. e do pai de Tancredo,

mas a reação daqueles que sofrem por serem subordinados aos seus costumes morais.

As características românticas da narrativa do romance Úrsula podem ser

consideradas como um emaranhado folhetinesco e ultrassensível de complicações impostas

pelos acontecimentos, cuja fabulação foi intencionalmente proposta para que o seu

conteúdo fosse veiculado de maneira não explícita. Como se a narradora quisesse ocultar a

denúncia, a resistência e a transgressão latentes na forma, que aparentemente demonstra

apenas um amontoar de acontecimentos, que existem apenas em função do amor romântico.

O fato consiste no peso dos preconceitos culturais que cairiam sobre Maria Firmina

dos Reis, caso ela fizesse simplesmente o panfletarismo em prol da mulher e do negro.

51
Todos os exageros e possíveis deslizes contidos, na formação narrativa do romance Úrsula,

são formas de obnubilar o genuíno propósito do romance: romper com os padrões morais

impostos pelo colonialismo patriarcal e escravocrata vigentes no Brasil, através da estética

romântica, vigente na época, e estabelecer a crítica à cultura excludente dos patriarcas

brancos e escravocratas por meio de uma forma de expressão estética do literário que

amenizasse a transgressão: no caso, a forma do romance romântico com seu alto grau de

sentimentalismo e lógica estruturante submetida às experiências da expressão subjetiva da

personagem. (SILVA: 1984, p. 64)

A subversão da autora maranhense, entendida ao longo da tradição literária como

“sub versão”, “versão menor”, aparece como subversão revolucionária, que revê a própria

época a que está contextualizada, para transformá-la através da literatura, sem deixar de

usar seus elementos esteticamente tradicionais.

Ou foi por extrema ignorância: os historiadores não sabiam da existência da obra de

Maria Firmina dos Reis; ou foi por uma concepção altamente reacionária de mantê-la

muda, que os historiadores da literatura brasileira não deram ao romance Úrsula a devida

atenção que merece. Seja por uma ou outra negligência, a beleza estética e o apuro

ideológico do romance não foram devidamente estudados pela crítica que fundou tradição

no campo dos estudos da literatura brasileira.

A instância de enunciação narrativa se manifesta como fala de personagens

narradoras que contam suas histórias a outras personagens, cujas impressões acerca da

personagem que fala surge através da memória que constrói a narrativa, assim tem-se o

plano dialógico da narrativa: na confissão amorosa de Tancredo à personagem homônima o

relato de sua vida; na conversa de Luísa B. com Tancredo, ela relata a ele sua pesada

52
existência, preta Susana relata sua vida a Túlio, que por sua vez, descreve sua condição de

escravo a Tancredo.

Assim a formação narrativa comporta desde a digressão à ação. A primeira, no

plano dialógico fundamentado na memória; a segunda no plano das peripécias

fundamentadas pelos acontecimentos, que movimentam as personagens nos espaços. Ação

e inação se coadunam no tecido da narrativa: ação expressa nos acontecimentos e inação

expressa na memória como digressão das personagens e da narradora aos fatos passados

que dão substância ao relato, e fazem mesmo o discurso narrativo se movimentar. Todos os

acontecimentos ligam-se à memória convertida em discurso pela fala das personagens ou

pelas intervenções digressivas ou descritivas da narradora.

Em alguns momentos da narrativa, a narradora mergulha no universo psicológico

das personagens, mesmo que aparentemente esteja focalizando apenas os seus aspectos

físicos e circunstanciais, como a expressão do rosto, os gestos. Na digressão da narradora,

existem críticas respaldadas por uma consciência ideológica de grande apuro, que persuade

os aspectos mais sutis da dominação política do Brasil colonial.

As personagens representam a encarnação de papéis sociais remanescentes do Brasil

colônia, o romance Úrsula visa a questionar a estrutura do poder, com base na

ficcionalização de personagens representantes das esferas culturais: Casa Grande e Senzala,

demonstrando que os oprimidos, além de estarem no espaço destinado a escravos, estavam

também dentro da Casa Grande, as mulheres representam outro tipo de escravidão

acontecida na cultura colonial: a subordinação ao proprietário da terra, da casa. A

pluralidade se demonstra no romance Úrsula através da não fixação acerca do masculino e

do feminino e da construção do negro como sujeito, seja em Túlio, seja em Preta Susana.

53
As diferenças são postas de maneira a elaborar uma espécie de cosmovisão da

cultura brasileira, ao que tange na esfera do cotidiano das fazendas, das províncias; o

imaginário colonial em termos de dominação na história da vida privada torna-se revelado

pela narrativa, de modo a construir a escondida pluralidade não manifesta em uma

sociedade inexoravelmente definida no seguinte esquema: Homem, mulher; homem branco,

homem negro. O romance Úrsula altera o mero conhecimento histórico e abre caminho

para:

Na realidade, existem muitos gêneros, muitos “femininos” e


“masculinos”, e temos que reconhecer a diferença dentro da diferença. Desse
modo, “mulher” e “homem” não constituem simples aglomerados;
elementos como cultura, classe, etnia, geração e ocupação devem ser
ponderados e intercruzados numa tentativa de desvendamento mais frutífera,
através de pesquisas específicas que evitem tendências a generalizações e
premissas preestabelecidas. Sobrevem a preocupação em desfazer noções
abstratas de “mulher” e “homem”, enquanto identidades únicas, a-históricas
e essencialistas, para pensar a mulher e o homem enquanto diversidade no
bojo da historicidade de suas inter-relações. (MATOS: 86, 1997)

A importância do romance Úrsula para a literatura brasileira consiste no não uso de

estereótipos ao tratar das mulheres e dos negros, que são vitimados, mas que resistem, e de

certa maneira superam o poder inexorável dos senhores patriarcais, estes sim, são

caricaturalizados, são levados ao ridículo como punição à sua maldade: o fim de Fernando

P representa sua ridicularização camuflada no arrependimento dos crimes que cometera, o

pai de Tancredo morre em desgosto, como punição ao mal feito à sua esposa e a seu filho, e

Paulo B pai de Úrsula nem consegue redimir-se, plenamente, pela maternidade; enquanto o

fim de Úrsula, Tancredo, Túlio, Luísa B, preta Suzana, representa a morte por redenção e

sublimação; a morte como resultado de uma resistência simbólica ao poder do opressor.

54
Há uma perspectiva ideológica muito distinta, na estrutura do romance Úrsula, a

perspectiva de punir os assassinos, os algozes, de levar ao des-poder os poderosos, e dar

voz aos que na sociedade eram tratados com vilipêndio, como se fossem objetos.

O romance de Maria Firmina dos Reis torna-se uma espécie de texto que visa à

conscientização dos leitores, afirmando as identidades culturais subalternalizadas e

desautorizando o mandonismo patriarcal e escravocrata, — através da denúncia de suas

práticas opressivas —, que exercem a função de manter o poder sob o controle de

fazendeiros e comendadores, legitimando-os como donos da terra e dos seres humanos ali

sitiados.

Construindo a identidade cultural de negros e mulheres, como confronto aos

mesmos donos da terra; dando um movimento singular à literatura brasileira produzida no

século XIX, pois através de uma narrativa que aparentemente tematiza o amor romântico e

cria a estrutura tradicional romancesca entre mocinhos e vilões, propõe o desvelar cultural e

simbólico da vida privada de negros africanos, de esposas humilhadas, amantes ambiciosas,

donzelas solitárias, crimes por ambição territorial, impotência da igreja diante dos crimes

motivados por paixões materiais e espirituais; uma série de caracteres da vida brasileira são

multiperspectivados dentro de um enredo que leva ao extremo a estória romântica de um

jovem casal enamorado.

55
4 A forma do relacionamento entre os gêneros no romance Úrsula

Os gêneros (concebidos aqui como uma construção cultural que especifica

comportamentos e atitudes atribuídos aos sexos masculino e feminino) ganham aspectos

universais, na sociedade maranhense do século XIX, pelo fato de que o tratamento estético

dado ao tema, embora camufle a ideologia proposta pela narradora, faz com que essa

ideologia ultrapasse os limites do localismo e propõe a reflexão do papel submisso imposto

à mulher pelo mandonismo patriarcal: desde o relacionamento entre marido e esposa a

senhor de escravos e escrava. A partir de uma visão particular que elabora a crítica e a

resistência e, por isto, transgride a vigência da cultura colonial enraizada no Brasil. Os

gêneros como tema assumido por Maria Firmina dos Reis aparecem como força motriz do

projeto ficcional da autora em dar visibilidade à mulher, em uma sociedade dominada por

homens.

56
O romance Úrsula abarca em sua estrutura a consciência da mulher acerca do

feminino, e essa perspectiva alcança a denúncia. Pois as imposições culturais provindas de

um sistema cultural em que o homem assume posição superior à mulher, dentro da

sociedade, aparecem desveladas pelo personagem Tancredo, pela caracterização das

personagens femininas: mãe de Tancredo, Adelaide, Luísa B e Preta Susana, e pelas

digressões da narradora. Personagens e voz narrativa se unem para fundar, na literatura

brasileira, a ficcionalidade do drama vivenciado por mulheres.

A articulação poética da narrativa mostra características originais no tratamento da

mulher enquanto matéria e produto ficcionais, pois na aparente submissão a que estão

sujeitas no plano da obra existe uma intenção transgressora, uma grande metáfora-irônica

construída através de uma urdidura cheia de símbolos e significados: do emaranhado em

que a narrativa se estrutura nasce a armação poética do romance, em que o aparente da

submissão revela o ato transgressor da resistência, claro que uma resistência fundamentada

no imaginário, e não na violência desvelada.

As mulheres, em Úrsula, são símbolos de resistência à moral patriarcal, e pela sua

construção metafórica e irônica, entendeu-se que elas apenas reproduziam a submissão das

mulheres da sociedade do século XIX , porque não há entrega ou consentimento, a

paralisação feminina se dá pelas forças culturais do patriarcado e não por sua vontade, daí a

resistência, e a submissão que metaforiza ironicamente o seu oposto: a liberdade extrema.

A caracterização gótica do personagem Fernando P, que se constrói no plano

narrativo como a encarnação maldosa da autoridade, corrobora com a crítica sobre a

situação da mulher, na cultura colonial. Fernando, o tio da personagem principal do

romance e o seu antagonista por excelência, representa toda a opressão resultante do abuso

do poder, o lado sombrio e perverso dos comendadores da época, suas práticas opressivas

57
são determinantes para a obediência, calcada no engendramento do medo pela prática da

violência.

Não há na estrutura do romance, meramente, um jogo maniqueísta, onde homens e

mulheres disputam o poder, sendo que as mulheres são boazinhas e os homens maus, há o

desenvolvimento literário de condições culturais a que eram submetidos homens e mulheres

durante o século XIX. As personagens representam tanto as relações do amor ideal, como

representam os conflitos que impediam a plenitude da felicidade de homens e mulheres que

viveram sob a cultura do patriarcalismo escravocrata.

O relacionamento entre homens e mulheres se dá de maneira em que seus papéis

sociais são bem definidos no plano sociológico do romance, como se a narrativa de Úrsula

pudesse ser característica do romance de costumes, onde os personagens representam a

sociedade na qual estão inseridos e as relações de poder estabelecidas entre eles e elas.

Maria Firmina dos Reis denunciou o aspecto opressivo pelo qual se fundavam as relações

entre os gêneros, levando-as para o espaço romanesco, através da observação do que tenha

sido a sociedade da época em que o romance foi escrito.

A caracterização moral das personagens aparece no enredo como a manifestação da

resistência da narradora às imposições a que eram submetidas às mulheres, e o romance

Úrsula, ao assumir como um de seus temas a questão dos gêneros, assume também a

resistência ao modelo senhoril, patriarcal e escravocrata, que solidifica o mandonismo do

homem.

Sua proposta em discutir os patamares de relacionamentos entre os gêneros,

próprios daquela época, abrange um universo que vai desde o amor romântico da

personagem principal Úrsula e o mocinho Tancredo, desde a decadente estrutura familiar

dos pais de Tancredo, que se torna falida pela traição patriarcal ao modelo familiar

58
convencionalmente aceito; passando pelo relacionamento adúltero vivenciado por Adelaide

e o pai de Tancredo; passando pela desventura do mocinho de perder Adelaide para o

próprio pai; até o relacionamento entre irmão e irmã protagonizado por Luísa B e Fernando

P.; passando pela integridade moral do genro junto à sogra, manifesta nas conversas entre

Luísa B e Tancredo; até o relacionamento desumano do senhor de escravos com a escrava,

manifesto em Fernando P. e Preta Susana.

Essas tensões propostas pelo romance Úrsula fazem dessa narrativa um exemplo de

que o olhar crítico feminino já vinha amadurecendo e se consolidando, no âmbito da ficção

brasileira de autoria feminina, desde o século XIX. Tanto que estudos contemporâneos do

final do século XX, que visam às encenações e transgressões de mulheres sendo produtoras

de literatura como Heloísa Maranhão e Zulmira Ribeiro Tavares, servem também para o

romance de Maria Firmina dos Reis. Como a designação da categoria gênero elaborada pela

pesquisadora Geysa Silva (1999, p.203):

Masculino e feminino, enfrentando-se ou caminhando lado a lado,


procurando dar sentido às próprias vidas, eis a questão dos gêneros, que
merece nossa reflexão, não só no plano da literatura, como também na
História das Idéias, pois esse assunto implica um debruçar-se sobre a
condição humana, em que o importante é percorrer situações de união e de
conflito, ou seja redelinear a trajetória das relações entre homens e mulheres,
através dos séculos. O gênero, portanto, é uma noção que não abrange
apenas o domínio do literário, a expressão de um enunciado, o significado de
uma palavra. Ele nos convida a pensar costumes e convenções, o aceito e o
interdito, dores e prazeres, amor e ódio, tristeza e alegrias.

Ao considerar a época em que Maria Firmina dos Reis escreveu Úrsula e as

condições a que as mulheres eram submetidas, em relação à vida intelectual e à formulação

de idéias acerca da sociedade, a autora maranhense está em um nível superior às autoras do

século XX e XXI. Pois, mesmo presa a amarras que limitavam a prática literária feminina e

que impediam a mulher de pronunciar sua própria opinião sobre qualquer assunto que

59
ultrapassasse os limites domésticos, Maria Firmina dos Reis criticou, resistiu, e criou,

através da prática literária, uma visão individual que ultrapassou as limitações da sociedade

e do tempo em que viveu, pelo aspecto de denúncia manifesto no romance Úrsula.

As digressões da narradora e a fala do personagem Tancredo, mesmo as vozes das

personagens femininas e suas caracterizações criticam as imposições dos personagens que

representam os comendadores e fazendeiros da época. Estes, antagonistas do romance

Úrsula, por imporem sua moralidade às demais personagens, moralidade, aliás, calcada na

hipocrisia e em interesses puramente econômicos e sexuais. Expressões da manutenção do

poder do homem, em um espaço romanesco que absorve a situação de homens e mulheres

daquela época, condicionados por uma moralidade rígida, onde a voz feminina supera o

emudecimento, tanto na condição de produtora de texto literário, como de personagem de

ficção.

As personagens femininas presentes no romance Úrsula representam a resistência à

submissão, e a voz da narradora formula a crítica aos mandos e desmandos de fazendeiros e

comendadores representados, principalmente por Fernando P.

A inovação existente no tratamento do tema consiste no desenho da mulher

proposto pela imagem literária das personagens femininas que, mesmo submetidas à

subalternidade, superam as imposições culturais.

Sua ideologia visa ao deslocamento da centralização masculina e traduz a relação de

poder não apenas dentro do espaço doméstico, porque a extensão espacial do romance

elabora todo um processo cultural de universalidade particularizado na sociedade colonial

brasileira, expresso por metonímia em: “uma das melhores e mais ricas províncias do

norte” (REIS: 1975, P. 10). Esta localização enunciada pela narradora possibilita a

afirmativa de o romance se inserir como um ancestral do romance de trinta da literatura

60
brasileira, porque tal qual um Vidas secas (1938), por exemplo, os dramas da humanidade

são postos em um espaço particularizado.

A perspectiva do olhar feminino se manifesta como o refletir sobre a diferença entre

homens e mulheres e, como o representar das tensões geradas por essa diferença que se

construiu por meio da ideologia cultural proposta e imposta pelo pensamento dominante

dos homens. A ideologia desse olhar não quer postular que a mulher se diferencia do

homem, mas denunciar os pressupostos culturais que construíram os estereótipos

mantenedores dessa diferença.

A narrativa do romance Úrsula não reitera a dominação masculina, mas a questiona

através da proposta reflexiva, imanente na estrutura do enredo, indo do individual para o

universal: conforme a particularidade das relações entre os gêneros localizados em uma

determinada província do Brasil (a do Maranhão) se estendendo à problemática da cultura

humana, em um determinado período histórico (o século XIX).

A maneira com que as personagens femininas são criadas pela narradora em

situações de submissão/transgressão revela o multiperspectivismo narrativo, cujo foco

caleidoscópico situa a mulher dentro da atmosfera cultural: ora lutando pela sua realização,

ora sendo vitimada pelo mandonismo patriarcal.

A narrativa que fragmenta o feminino em diversas posições culturais demonstra a

intensidade com que foi construída, a preocupação da narradora em abarcar as variáveis do

comportamento feminino, no âmbito da sociedade colonial brasileira, elabora o feminino

não apenas como objeto de idealização amorosa, contrariando o romance romântico

adocicado, que construía a imagem do feminino, como projeção da ideologia masculina em

mantê-la dentro de um quadro social conveniente. Tal pintura colorava-se tão meramente

61
com as cores do amor, que na época era o único nobre lugar em que o feminino poderia ser

posto.

Na literatura brasileira, o romance Úrsula se põe e se inscreve contra as imposições

patriarcais, mesmo que suas personagens femininas sejam punidas por suas ousadias, como

a mãe de Tancredo e o próprio, que, embora seja culturalmente designado como homem,

assume para si a reivindicação do casamento fora da mera conveniência de castas e dotes,

tanto em relação a Adelaide quanto em relação a Úrsula.

Tancredo se inscreve como um defensor dos direitos femininos, dada a sua crítica

ao comportamento do próprio pai, e por aliar-se às personagens femininas, desobedecendo

a confraria do poder masculino.

Os desenhos sociais e psicológicos das personagens do romance Úrsula aparecem

em linhas estéticas que fazem as personagens serem caracterizadas como heroínas

românticas, contudo sua perspectiva ideológica formula um proto-feminismo, uma vez que

são feitas críticas muito severas aos relacionamentos, que buscam a todo custo manter a

mulher submissa ao homem.

Ao longo de toda a narrativa, a tensão entre o posicionamento cultural de homens e

mulheres se constrói, através de acontecimentos que são tecidos para revelarem a maldade,

a ruindade do senhor patriarcal Fernando P, e esses acontecimentos revelam ora a

submissão, ora a resistência, chegando à transgressão das mulheres.

O papel secundário cabido a elas no plano cultural torna-se destoado no plano

narrativo, pois a representação crítica do modelo cultural do relacionamento entre os

gêneros condena o mandonismo masculino que se apoia na prática da violência como ato

de vingança do Fernando P, e no senso luxuriante do pai de Tancredo.

62
As personagens femininas superam o mandonismo destes personagens, mesmo que

sua relação com eles seja de submissão, pois elas, cada qual a seu modo, assumem, seja

pela representação a elas dada, seja pela própria voz, a consciência de serem oprimidas,

pelos proprietários da terra, e a partir da manifestação dessa consciência, a narrativa

constitui o feminino como sujeito.

Cada uma das personagens femininas identifica-se dentro de um condicionamento

cultural, elas trazem as feridas abertas pelo mandonismo, cada uma representando as várias

formas de poder exercidas sobre a mulher. Mesmo a construção feita da personagem

principal Úrsula, que como centro do fio narrativo, mobiliza todas as outras personagens

(sejam homens ou mulheres) dentro de um aparato estético altamente voltado para a

idealização ingênua. Sua presença no romance também representa a transgressão das

mulheres, e sua condição feminina se impõe por não ceder à vontade de Fernando P.:

Úrsula prefere a loucura e a morte, a ser esposa de seu próprio tio.

As personagens femininas representam o olhar crítico da narradora acerca das

condições em que vivia a mulher durante o século XIX, no Brasil. Observa-se que há a

apreensão de vários aspectos da dimensão mulher/sociedade que são discutidos de maneira

muito séria, e que são postos através de um aprofundamento estético que, embora

hiberbolize os sofrimentos de tais personagens, camufla a problemática ideológica

levantada. Deve-se a camuflagem a um recurso estratégico de que lançou mão a autora para

que sua crítica aos costumes da época fosse eufemístico, daí o exagero romântico. A

estética romântica esconde, com sutileza, a reflexão a que se propõe o discurso narrativo,

para não escandalizar em demasia os/as leitores/as folhetinescos/as.

Por trás dos exageros românticos, dos arrufos pormenorizados que buscam disfarçar

o conteúdo por meio de descrições excessivas e diálogos dramáticos, vigem as dinâmicas

63
sócio-cultural e psicológica do feminino, investigadas por uma escritora que está muito

além do seu tempo, porque no romance Úrsula o feminino não aparece cristalizado em

apenas uma dimensão sócio-cultural, como o fez José de Alencar em seus perfis de mulher.

O escritor romântico, considerado por muitos como o patriarca da literatura

brasileira, não foi solidário com suas personagens femininas, por não tê-las feito transgredir

às imposições culturais. Suas personagens femininas não passam de reduplicações da moral

patriarcalista, “passageiras da voz alheia, Lucíola, Diva, Aurélia ou Amália circulam como

protótipos do amor de abnegação, cego desaparecimento no espelho de seus heróis”

(BRANDÃO: 2004, p. 13). Enquanto, Maria Firmina dos Reis em um único romance

consolidou a transgressão de várias personagens femininas, representando-as, ainda que

submissas, mas resistentes às determinações culturais, e ainda se antecipou

cronologicamente, ao que diz respeito à publicação de Lucíola (1862), Diva (1864),

Senhora (1875) e Encarnação (1893).

No romance Úrsula, as personagem representam mulheres de distintas camadas

sociais, sua construção não se fixa em apenas um modelo de identidade cultural da mulher,

que represente apenas um tipo de submissão no contexto do patriarcado do século XIX,

mas a pluralidade do feminino construída por identidades culturais que abrangem situações

de mulheres submetidas à conduta imposta pelo homem, na tentativa de superá-la.

Ressalvando as devidas proporções, esposas e escravas são postas em um mesmo

condicionamento cultural que unifica o gênero feminino, mas as diferenças culturais

revelam o feminino multiperspectivado pela narradora.

A narradora critica a situação imposta à mulher, mesmo as próprias personagens

refletem sobre suas condições submissas e tentam ultrapassá-las seja por meio do devaneio,

seja por ações que acabam fracassando, seja pela loucura e até mesmo pela morte. O

64
romance Úrsula representa criticamente o feminino, como também insere, na literatura

brasileira, a reflexão crítica produzida pela mulher sobre as situações sócio-cultural e

psicológica que subjugaram-na.

As caracterizações das personagens femininas que definem não um padrão

convencional da imagem literária e sócio-cultural da mulher, mas mostram várias faces dos

tipos femininos existentes dentro de identidades culturais, começam com a mãe do jovem

Tancredo, o par romântico de Úrsula.

O foco narrativo que caracteriza aquela personagem aparece pela voz do próprio

filho. Tancredo descreve a situação cultural de submissão de sua mãe em relação ao seu

pai. Sua perspectiva filial manifesta-se em discordância com a maneira que se forma o

mandonismo, ou seja: o jovem põe-se contra o relacionamento do marido e da esposa, por

aquele não valorizá-la como ser-humano e lhe impor um comportamento subserviente. O

relacionamento entre marido e esposa visto pelo ponto de vista filial tende a ser solidário à

condição da mãe e a condenar a perspectiva masculina patriarcalizada do pai.

Não nomeados na narrativa, o pai e a mãe de Tancredo aparecem como o modelo do

casal provinciano, cujos conflitos são impostos pelo mandonismo do senhor patriarcal. Seu

comportamento autoritário resulta da posse de terras (comendador), e por isso determina

tudo que está presente nos espaços que pertencem a eles, inclusive entes humanos.

O fato de esses personagens não serem nomeados demanda um posicionamento por

parte da narradora de que sua visão particularizada ultrapassa fronteiras geográficas,

encontrando o universal no particular, levando a reflexão sobre o relacionamento

marido/esposa a toda uma época, e não apenas casos isolados em que se evidenciam a

exploração do homem sobre a mulher.

65
A partir dos inícios do século XIX, estaria consolidado o poderio
econômico dos chefes de parentela, podendo a estruturação de dominação da
sociedade brasileira ser caracterizada como tendente para o tipo patrimonial-
patriarcal que, subjacentemente, se vinha formando desde os princípios da
colonização. (SAFFIOTI. 1976: p. 161)

A hipocrisia revela-se no livro Úrsula, uma vez que a moral do “chefe de parentela”

se baseia em seu poder econômico e em sua sexualidade pervertida, condenada segundo a

LEI (Latifúndio, Estado, Igreja)1 por ele mesmo sustentada.

Na fala do personagem Tancredo se desenham as características do relacionamento

entre marido e mulher que diz respeito a seus pais, a traição adúltera de seu pai, que troca

sua mãe por Adelaide, a idealização desta e o vínculo com a luxúria da mesma personagem.

A narradora usa a mãe de Tancredo para criticar a falência do casamento postulado

por dotes e conveniências, e principalmente critica a manutenção do modelo patriarcal, em

manter o poder econômico em família . A caracterização dessa personagem manifesta sim a

submissão da esposa à vontade do marido, no entanto, através de Tancredo há a revelação

das injustiças impostas à mulher/esposa.

Considerando a época em que o romance foi escrito e sua autoria feminina, pode-se

afirmar que existe na mãe de Tancredo a denúncia ao comportamento do marido em relação

à sua esposa, dentro do desenrolar dos acontecimentos que a envolvem e muito mais na

própria fala de Tancredo. Há muito de resistência e mesmo de crítica à instituição

(casamento) calcada na submissão da mulher ao homem. Lê-se a fala de Tancredo, em um

momento em que relembra sua infância:

Não sei porque; mas nunca pude dedicar a meu pae amor filial que
rivalisasse com aquelle que sentia por minha mãe, e sabeis por que? E’ que

1 Ver: Sigla e sua significação elaboradas por Jorge Fernandes da Silveira. Nota de rodapé 128 do livro A solidão
tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. De autoria de Lucia Helena.

66
entre elle e sua esposa estava collocado o mais despotico poder: meo pae era
o tyranno de sua mulher; e ella, triste victima, chorava em silencio, e
resignava-se com sublime brandura.
Meo pae era para com ella um homem desapiedado e orgulhoso —
minha mãe era uma santa e humilde mulher.
Quantas vezes na infancia, mao grado meo, testemunhei scenas
dolorosas que magoavam, e de louca prepotencia, que revoltavam! E meo
coração alvoraçava-se n’essas occasiões apesar das prudentes admoestações
de minha pobre mãe.
E’ que as lagrymas da infeliz, e os desgostos, que a minavam,
tocavam o fundo da minha alma. (1975:46-7)

A narradora, ao usar a fala de um personagem masculino para denunciar as

humilhações sofridas por uma personagem que representa a esposa dentro do espaço

doméstico, ameniza a crítica sobre o patriarcalismo. O filho tomando as dores da mãe

torna-se muito mais aceitável, no plano da verossimilhança, que se a própria mãe de

Tancredo refletisse sobre sua condição de silenciada, de humilhada.

A cultura patriarcal tem seu desmoronamento na gestualidade do discurso. A mãe

de Tancredo serve de objeto para a crítica desenvolvida acerca da situação da mulher dentro

do espaço doméstico, uma vez que a fala de Tancredo claramente se dirige em favor da

mãe, e ataca as atitudes do pai.

O ponto de vista do filho defende a mulher/mãe, e claramente dentro da voz de

Tancredo e, mesmo na sua construção de bom mocinho, há muito da voz feminina da

narradora que usa um personagem masculino, criado ao molde do herói romântico, para

resistir e criticar abertamente o modo de tratamento do marido machista, típico no século

XIX, nas províncias do Brasil.

Essa perspectiva apresenta um aspecto original, no âmbito do romance brasileiro,

posto que o filho, natural herdeiro do senhor patriarcal, ao invés de lhe ser fiel até mesmo

67
em suas atrocidades, para eternizar a cultura do patriarca no espaço doméstico, denuncia e

condena a exploração da mulher/mãe pelo homem/pai.

Quando Tancredo vai “para San’ Paulo cursar as aulas de direito” (REIS: 1975, p.

44), suas preocupações são o lugar onde nascera, os amigos de infância e, principalmente,

não abandonar a mãe, deixando-a desprotegida do algoz que vivia dentro de casa. “N’um

dia recebi o grau de bacharel e n’outro segui para minha terra natal” (REIS: 1975, P.45).

Ao retornar, o mancebo encontra sua mãe com uma sobrinha que havia ficado órfã,

apaixona-se, então, por Adelaide. Porém, seu casamento com a bela donzela embarga-se

por conta de suas diferenças econômicas:

Aprasia-me ver Adelaide, no arrebol da vida, tão casta, tão


encantadora, compartilhando ora a dôr, que nos opprimia, ora o praser que
enchia os nossos corações. Em Adelaide minha mãe encontrara uma
desvelada amiga; a sua estrema belleza, e a dedicação àquela mulher, que eu
tanto amava, attrahiam-me incessantemente para ella; e a primeira vez que a
vi, o meo coração adevinhou que havia de amal-a.
Sim, amei-a loucamente, amei-a com todas as forças de um primeiro
amor, e quando um dia lhe revelei o profundo affecto que me inspirava,
conheci que era correspondido, não obstante o ella dizer-me:
— Tancredo, sou pobre, e teo pae se há de oppor a semelhante união.
(REIS: 1975, p. 48)

Adelaide começa a narrativa como uma pobre órfã abandonada, virgem sem pai e

mãe, amada por Tancredo e acolhida por sua tia, a mãe do mancebo, e se torna mulher do

pai do mocinho. A construção dessa personagem sofre uma gradação negativa, pois suas

características vão se transformando: de órfã, para virgem idealizada; de mulher

promíscua, para mulher que sofre e morre arrependida.

A narradora faz a caracterização de Adelaide, ao trazer à tona o delírio de Tancredo.

O aspecto onisciente oscila com a voz do próprio personagem, pois a sua fala resulta do

68
delírio que a narradora descreve, deixando que o próprio delirante expresse o conteúdo de

seu delírio, que organiza as características de Adelaide, como mulher idealizada e como

mulher que condena o homem à desgraça:

— Eu a vi — «exclamou, erguendo a voz, n’um transporte de


satisfação» — vi-a, era bella como a rosa a desacrochar, e em sua puresa
simelhava-se a assucena candida e vaporosa! E eu amei-a!... Maldição!...
não... nunca a amei... E calou-se.
Depois um gemido lhe veio do coração; cobrio os olhos com as mãos
ambas, e repetio:
— Oh! Não, nunca a amei!...
Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos, e gesticulações
desordenadas para ao depois cahir em inercia.
Era o delirio assustador que se manifestava!... (REIS: 1975, p.22)

A fala irônica de Adelaide: “Tancredo, respeitai a esposa de vosso pae!” (REIS:

1975, P. 69) encerra-a digna de boas páginas de uma narrativa que foge ao tema da

idealização amorosa, pois seu corpo, seus gestos estão completamente desligados de

qualquer candura, sublimidade e elevação espiritual, próprias da personagem típica das

narrativas em que o amor idealizado subordina a personagem feminina.

Ao ser aproximada da luxúria, Adelaide encarna a fruição realizável da mulher

objeto, seu corpo passa a representar a carne sexualizada, os prazeres oferecidos pelo corpo

feminino ao homem, sua caracterização se aproxima muito da luxúria que aparecerá em

mulheres construídas por narrativas realistas e naturalistas, porque na literatura romântica a

mulher poderia ser representada como mãe, filha, religiosa, mas nunca como amante.

Até o espaço, onde Adelaide se situa não mais como a virgem idealizada por

Tancredo, aparece transgressor às exigências estéticas românticas: a luminosidade, as jóias,

o leque como elemento da sensualização e metonímia de suas intenções, o seio nu, a

maneira provocante de se sentar, a sua distração simulada, os aparatos que a adornam dão-

69
lhe, ao fundo do salão, uma imagem espantosa, cujo efeito contrasta com qualquer

sentimentalidade romântica e ela nem mesmo se inibe por seus seios estarem descobertos:

No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em


primoroso sophá, estava uma mulher de extremada bellesa. Figurou-se-me
um anjo. A explendente claridade, que illuminava esse salão dourado,
dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e limpida circundava-a de
voluptuoso encanto.
Era Adelaide.
Adornava-a um rico vestido de seda côr de perolas, e no seio nú
ondeava-lhe um precioso collar de brilhantes e perolas, e os cabellos
estavam enastrados de joias de não menor valor.
Destrahida, no meio de tão opulento explendor, afagava meigamente
as pennas de seo leque dourado.(REIS, 1975: p. 68-9).

Mesmo que Adelaide apareça redimida pelo sofrimento e pela morte, ao final do

romance, no capítulo Epílogo, momento em que a narradora encerra a narrativa com um

tom discursivo de balanço sobre os acontecimentos que deram movimento ao romance. A

força da sua caracterização de órfã carente a objeto do afeto de Tancredo e depois esposa

do pai de Tancredo não permite que o leitor ou a leitora se entristeça por ela, uma vez que

fica cristalizada na narrativa a sua imagem promíscua.

No ponto de vista ideológico que permeia a narrativa, em Adelaide também há a

resistência feminina aos mandos do senhor patriarcal. Sua diferença em relação às outras

personagens femininas se constrói no fato de ela ser posta pela narradora como mulher

promíscua. Através da promiscuidade de Adelaide a narradora pune o pai de Tancredo:

“Ella ludibriara o decrepito velho, que a roubara ao filho; e elle em seos momentos de

ciume impotente almaldiçoava a hora em que a amara.” (REIS: 1975, P.198)

A resistência ao casamento como negócio se manifesta em Luísa B.. Em conversa

com Tancredo, lembra-se da vez em que desacatou a vontade do irmão, para casar-se com

um homem mais pobre:

70
Mais tarde, um amor irresistivel levou-me a desposar um homem,
que meo irmão no seo orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela
fortuna.
Chamava-se Paulo B...
Ah! senhor! — «continuou a infeliz mulher» — este desgraçado
consorcio, que attrahio tão vivamente sobre os dous esposos a colera de um
irmão offendido, fez toda a desgraça de minha vida. (REIS, 1975: p. 80)

A narradora empresta voz à mulher velha, pobre e paralítica. O problema da

senescência aparece encarnado na personagem Luísa B (mãe da personagem homônima), e

a reboque, a narradora constrói uma personagem completamente debilitada pelo

galvinismo, fazendo com que exista, na literatura brasileira, uma personagem que

problematiza a deficiência física, por sua própria caracterização ficcional.

A voz de Luísa B. traz consigo a perspectiva da mulher idosa e com problemas de

saúde, e nem mesmo a uma personagem tão frágil fisicamente escapa à ruindade do senhor

patriarcal, representado, em relação a essa personagem, pelo seu marido Paulo B e seu

irmão Fernando P.

Luísa B como personagem de ficção representa o limite extremo da opressão do

homem sobre a mulher. Ela encarna o próprio sofrimento, sua imagem toda construída pela

imobilidade, pela prostração em uma cama por motivos de saúde debilitada, sua falência

econômica, seu desamparo, apenas aliviado pela filha são elementos que denunciam os

resultados da opressão masculina e seus efeitos sobre o corpo feminino, o corpo físico,

como também o corpo sócio-cultural e psicológico, que lavam-na a dizer: “eu nada peço

para mim nada mais que a sepultura;” (REIS: 1975: p.77)

Leiam-se as passagens em que a narradora descreve o encontro de Luísa B com

Tancredo, a caracterização da personagem feminina como metáfora extrema das mazelas

decorrentes do mandonismo masculino:

71
O mancebo resentia-se ainda dos efeitos de uma longa enfermidade;
e o seo rosto conservava morbida pallidez, que n’ess’ora sobresahia-lhe,
augmentando a gravidade do seo porte, em presença d’essa mulher, que
semelhava o proprio soffrimento.
E elle entrou; mas ao aproximar-se do leito de Luísa B. uma
commoção de pesar lhe ferio a alma. E’ que n’esse esqueleto vivo, que a
custo meneava os braços, o mancebo não podia descobrir sem grande custo
os resto de uma penosa existencia, que se finava lenta e dolorosamente.
Estremeceo de compaixão ao vel-a; porque em seo rosto estavam
estampados os sofrimentos profundos, pungentes, e inezprimiveis da sua
alma. E os labios lividos e tremulos, e a fronte palida, e descarnada, e os
olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dôr, quanto sofrimento lhe
retalhava o peito. (REIS: 1975, p. 76)

A narradora leva o discurso narrativo a um posicionamento multiperspectivado, ao

mostrar que nas profundezas de uma caracterização de enfermidade, de dor e sofrimento,

havia os restos de uma beleza que foi se transformando em ruína ao longo da vida, por

vivenciar as experiências sacrificiais a que a mulher fora submetida. A continuidade da

beleza e do sofrimento e sua permanência no mundo fora legada a Úrsula, que como a mãe,

outrora bela, padecerá, e terá ao fim do romance sua beleza sacrificada pela loucura e pela

morte.

O tom de ruína torna-se eufemizado pela descrição da narradora, que leva a

enunciação narrativa para o tempo em que a mãe de Úrsula era jovem, e compara mãe e

filha. Porém, a imobilidade de Luísa B. volta a ser perspectivada logo em seguida pela

narradora, que finaliza a apresentação da senhora paralítica a Tancredo, reforçando os seus

aspectos mórbidos e degradantes:

Luisa B... fora bella na sua mocidade, e ainda no fundo de sua


enfermidade podia descobrir-se leves traços de uma passada formosura.
Ursula herdara as doces feições de sua mãe. Então o mancebo
contemplou-a com religioso respeito, e o que sentiu em presença d’esse leito
de tão apuradas dôres mal podia dizer.

72
Semelhava um cadaver a quem o galvinismo imprestara movimento
limitado as extremidades superiores, myrrhadas e pallidas, e brilho a uns
olhos negros, mas encovados. (Ibdem)

A taciturnidade se manifesta como característica materializada e idealizada dos

sofrimentos vividos pela mulher em uma sociedade machista. O esgotamento da força leva

a voz de Luísa B. a se arrastar pela narrativa. Os espaços em que a narradora a situa são o

quarto onde Luísa B. está entrevada na cama e o cemitério. Estes espaços em que a

personagem habita, por estar literalmente prostrada, manifestam bem a perspectiva

patriarcal do lugar cabível ao feminino, e ilustram o emudecimento, o confinamento em

seus limites e aspectos extremos.

Mesmo sob a forte caracterização do aprisionamento, Luísa B. possui voz para

denunciar não só as mazelas de sua condição de abandonada e doente, como também para

denunciar a impunidade aos crimes praticados pelos senhores patriarcais:

Ninguem, a não ser eu, sentio a morte de meo esposo. A justiça


adormeceo sobre o facto, e eu, pobre mulher, chorei a orphandade de minha
fulha, que apenas sahia do berço, sem uma esperença, sem um arrimo, e
alguns mezes depois, veio a paralisia — essa meia morte — roubar-me o
movimento e tirar-me até o goso ao menos de seguir os primeiros passos
desta menina, que o céo me confiou. (REIS: 1975, P. 81)

Todo o discurso da personagem Luísa B. surge de uma situação dialógica com

Tancredo. No entanto, permeia esse diálogo a digressão da narradora, que constrói a partir

do discurso indireto livre as caracterizações da mãe de Úrsula. A narradora desvenda suas

intenções, os seus gestos, a sua sabedoria em caracterizar o feminino em múltiplos

aspectos.

73
O tom moribundo do discurso faz com que a imagem de Luísa B. represente uma

mulher traumatizada. E as vozes da narradora e da personagem se entrelaçam, para

revelarem os desvelos de uma mãe cuja filha se torna indefesa pela falta da presença do pai:

— Ha dose annos — «começou Luisa B... suspirando aquele suspiro,


que vem do fundo da alma, não para comover a outrem, e captar a sua
attenção, ou a sua bondade; mas aquelle suspiro, que é o momentaneo, mas
triste alivio de um soffrimento apurado e baldo de toda esperança» — Ha
dose annos que arrasto a custo esta penosa existencia. Deus conhece o
socrifício, que hei feito para concerval-a. Parece-vos isto incomprehensivel?
— « interrogou ella ao mancebo, que attento a escutava» — Sou mãe,
senhor! Vede minha pobre filha! é um anjo de doçura e bondade, e
abandonal-a, e deixal-a só sobre este mundo, que ella mal conhece, é a maior
dôr de quantas dores hei provado na vida. Sim, é a maior dôr —«continuou
ella com amargo acento» — porque então perderá o unico apoio que ainda
lhe resta! Ao menos se meo irmão podesse esquecer o seo odio, e protegel-
a!... (REIS: 1975, p. 79)

Luísa B. caracteriza-se como uma personagem de ficção que traz em si a mulher

esposa, idosa, a mulher viúva, a mulher com deficiência física, a mãe, a sogra, a irmã. A

dimensão feminina, vista pela narradora dentro de um multiperspectivismo narrativo, situa

uma única personagem em vários papéis sociais e levanta a crítica sobre a situação

feminina em vários aspectos.

A construção da personagem multifaceada revela o feminino fora de uma fixação

baseada em estereótipos, problematiza-o de maneira inovadora, compondo-o, de modo a

demonstrar os diversos papéis sociais a que uma única mulher poderia ser enquadrada no

âmbito cultural do século XIX.

A preocupação de mãe, com o bem-estar da filha, leva Luísa B. a duvidar até

mesmo de Tancredo, e não legitima passivamente a união dele com Úrsula. A precaução da

personagem em não aceitar de pronto o casamento do par romântico caracteriza-a fora dos

padrões interesseiros, que norteavam os casamentos na época em que o romance fora

74
escrito. Por sua condição economicamente decadente, por Úrsula não possuir dotes, Luísa

B. se constrange ao saber que um mancebo distinto deseja desposar sua filha, mesmo que

esta esteja apaixonada por ele, e mesmo que o amor entre os dois seja recíproco:

Luisa B... redusida a ultima miseria, e descobrindo nas maneiras de


seu hospede os signaes de um nascimento destincto, assim como o
explendor de uma prospera fortuna, jugou-se vivamente offendida por
aquellas palavras proferidas com tanto arrebatamento, e que aos seos
ouvidos pareceram insultuosa offensa; e resentida, invergonhada, e quasi
que desesperada, abandonada já de forças, cahio quasi que completamente
desmaiada nos braços de Ursula, que lhe brandava: — Minha mãe... minha
mãe!... (REIS: 1975, p. 83-4)

A elevação moral se manifesta em uma mulher cujo corpo representa o resultado

extremo do poder patriarcal sobre o feminino. As palavras que ouvira eram a confissão de

Tancredo, dizendo que cuidaria de Úrsula, porque a amava. Não foi pelo amor de Tancredo

a sua filha, ou pelo tom eloquente com que o mancebo jurou amor à sua amada, em

presença de Luísa B., que esta se afetou, mas pelo fato de ter percebido através da fala de

Tancredo a posição social do mocinho, e tê-lo igualado a Fernando P.. Um sintoma do

trauma de uma mulher que passou parte da vida sendo submetida aos mandos e desmandos

do poder masculino, não desejando à sua filha o mesmo destino.

Sua doença, sua condição de pobreza, os infortúnios sofridos não impedem que

Luísa B. tenha elevação moral, portanto ela se constrange com a união de sua filha com um

homem melhor situado na sociedade. Essa não aceitação imediata confere à personagem

uma autonomia em relação aos personagens patriarcalizados, pois a sua perspectiva não faz

de Úrsula uma mercadoria, que pode ser comprada com dinheiro, ou com a promessa da

felicidade domesticada, ou simplesmente porque um homem afortunado deseja desposá-la e

portanto ela deve aceitar, apenas para fazer-lhe a vontade.

75
Ao sabor do acaso, o romance Úrsula não deixa de pagar tributo ao casamento de

castas, entretanto o recurso da narradora em aproximá-los como consangüíneos, não passa

de uma estratégia (bem realizada) para as intrigas que fazem a narrativa ser bem

movimentada, quer em seu plano de ação, quer em seu plano estético.

Úrsula, ao saber-se prima pobre de Tancredo também se abate, e revela, com seu

comportamento, a dignidade de uma virgem pura e desinteressada em bens materiais, que

almeja para sua existência o amor ideal, o amor ao amor, e não o interesse escondido por

detrás de cortesias que visam à subida na escala social, através do casamento com um

homem rico:

Então uma viva pallidez tingio as faces avermelhadas da pobre


Ursula, que na sua ingenuidade nunca tinha indagado do nobre cavalheiro o
seo sobrenome. Sabia de seo nome, que era Tancredo, e esse lhe bastou; seo
nascimento, sua posição social, não lhe lembraram ao menos. Ella amou o
mancebo desconhecido, seo amor era por tanto desinteressado, mas agora
que um nome illustre lhe soara aos ouvidos, agora que ella acabava de
reconhecer no mancebo seo primo, de destincto nascimento, sua fonte
curvou-se abatida, como a flor que, no arrebol da manhan ostentando beleza
e sedução, vai rastear na terra, quebrada a haste por furacão violento. (REIS:
1975, p. 85)

Tancredo precisa de esforçar-se para convencer Luísa B. de que suas intenções são

das mais nobres possíveis, de que não faz parte da cultura patriarcal calcada no

mandonismo e na opressão sobre a mulher. Sua atitude passa a ser a de reconquista, pois a

dignidade de Luisa B. e de Úrsula determina-lhe a exclusão de qualquer ranço patriarcal,

em sua conduta. Tal circunstância do romance revela o poder da mulher sobre o homem, e

reforça o seu caráter ideológico de reconhecer no feminino a sua força, o seu vigor, mesmo

dentro de um condicionamento cultural favorável ao homem, e mesmo que a imposição a

Tancredo venha de uma velha, paralítica, sofredora e sem prestígio econômico:

76
— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem
vedes a que estado me vejo redusida... e eu nunca aspirei a mão de um
homem como vós para minha filha. Tancredo de*** quem vos não conhece?
sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor? nós que somos?! Ah!
vós não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre Ursula. Seo pae,
senhor, era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.
O mancebo sorrio-se, e redarguiu-lhe:
— Então recusais-me a mão de vossa filha?
— Oh! senhor — « tornou Luiza» — minha filha é uma pobre
orphan, que só tem a seo favor a innocencia, e a puresa de sua alma.
— Ursula, — «disse o mancebo, voltando-se para a donzella» —
pelo amor do Céo, fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meos
sentimentos. (REIS: 1975, p. 86)

O consentimento de Luísa B. ao casamento de Tancredo e Úrsula não se manifesta

sem crítica, sem ressalvas, pois sua legitimação de mãe vem carregada de forte consciência

sobre sua situação cultural e de sua filha. O posicionamento subalterno da mulher na

sociedade provinciana dos tempos coloniais coloca-se questionado por Luísa B., sua

capacidade reflexiva problematiza o casamento que se constrói como prática das escolhas

masculinas impostas pelo feminino.

Nas passagens do romance Úrsula em que Luísa B. induz Tancredo a revelar sua

identidade cultural, a mulher se põe em um patamar superior ao mandonismo patriarcal, e

segue o seu destino através de escolhas próprias, fazendo-se não mandada, não

subordinada, mas com que valha a sua opinião e não a que se lhe impõe.

Preta Susana, em condição de escrava, sofre as mazelas do mandonismo patriarcal.

Através dessa personagem, o romance Úrsula denuncia não apenas a violência da cultura

colonial praticada sobre a mulher branca, mas inclui em sua defesa a voz da escrava

africana, o direito à liberdade. Como na fala em que a personagem caracteriza o esposo de

Luísa B.: “Seo marido era um homem mau, e eu suportei em silencio o peso do seo rigor”

(REIS: 1975, p.94).

77
Fernando P., ao não conseguir arrancar de Preta Susana o paradeiro de Úrsula e

Tancredo, condena-a ao aprisionamento, e a escrava resigna-se, mas com um gesto irônico.

— Levem-na!— «tornou accenando para Susana» — Miseravel!


Pretendeste iludir-me... saberei vingar-me. Encerrem-na em a mais humida
prisão desta casa, ponha-se-lhe corrente aos pés, e à cintura, e a comida seja-
lhe permittida quanto baste para que eu a encontre viva.
Susana ouviu tudo isto com a cabeça baixa; depois ergueo-a, fitou os
céos, onde a aurora começava a pintar-se, como se intentasse dar à luz seo
derradeiro adeos, e de novo volvendo para o chão, exclamou:
— Paciencia! (REIS: 1975, p. 138)

Nesta passagem da narrativa há a última aparição de Preta Susana viva. Sua última

fala revela que, mesmo sob o jugo escravocrata, indefesa, em meio ao senhor de escravos e

seus capangas, a personagem preservou sua integridade moral. Na palavra “paciência”, ao

mesmo tempo em que há a submissão (imposta e não escolhida) há a transgressão, que se

sustenta na ironia. A imagem não se constrói por estereótipos, onde o desespero da escrava

poderia vir ao rasgo, pelo contrário, sua imagem se constrói a revelar a sua serenidade, a

resignação sábia, em um tom meditativo que, em si mesmo, forma um ato de resistência.

Sua última aparição na narrativa vem com a descrição de seu cadáver, enrolado em

uma mortalha. Mesmo morta, Preta Susana perturba Fernando P., sua força como

personagem de ficção apresenta-se como o abalo que sua voz possui, no âmbito da

narrativa. Seus restos mortais assombram o senhor patriarcal, e sua voz permanece

fantasmagoricamente transfigurada no remorso do senhor de escravos, perturbando sua

consciência:

— Vêdes? — « lhe disse apontando com o dedo na direcção do


poente» — E’ ella,— é Susana!
O commendador levantou maquinalmente a cabeça e olhou.

78
Em uma rede velha levavam dous pretos um cadaver involto em
grosseira mortalha; hiam-no sepultar!
Então Fernando P... estremeceo; porque aos ouvidos echoou-lhe uma
voz tremenda e horrivel que o gelou de medo. Era a voz do remorso
pungente e agudo, que sem treguas nem pausa acicalava o seo coração
febera por febera. (REIS: 1975. P. 187)

O par romântico Tancredo e Úrsula não se inclui no rol dos relacionamentos onde

se concretiza o poder do homem sobre a mulher por conta do poder econômico. Embora

este casal não inove no aspecto ideológico, seu envolvimento resulta do motivo encontrado

pela narradora para tirar o véu dos relacionamentos que evidenciam o abuso de poder dos

fazendeiros e comendadores em relação às suas irmã, esposa, sobrinha, enteada, escrava. O

relacionamento do casal romântico serve como modelo do amor ideal, que foge ao

autoritarismo e se funda no respeito recíproco entre homem e mulher, que buscam juntos a

felicidade e a liberdade, e se impõem juntos ao mandonismo, mesmo que sua plena

realização seja por ele impossibilitada.

79
5 A forma estética e ideológica do negro no romance Úrsula

A narrativa romântica com seus exageros sentimentais, por vezes, excede a

idealização ingênua para desembocar nos aspectos mais contundentes da realidade

histórica. O Romantismo, como acepção estética e localizado no âmbito da literatura

brasileira, assumiu, pelo viés da marginalização, o aspecto narrativo que focaliza as

personagens dando a elas originalidade, e deslocando o cânone literário de sua

circunferência tradicional ao que diz respeito a formas literárias da estética construtiva e

dos seus conteúdos ideológicos evidentes na caracterização do negro como personagem da

narrativa literária.

Assim se deu o processo narrativo do romance Úrsula, ao que tange à construção de

personagens negras como elemento fundamental da urdidura do enredo, diferentemente da

dificuldade em dar conta da presença tão incômoda qual fosse o negro, tão pouco propício a

idealizações, tão ameaçadora em seu quase silêncio reservado, como atesta Heloísa Toller

Gomes (TOLLER: 1988), em seu estudo sobre as manifestações do negro no Romantismo

brasileiro.

Túlio, Preta Suzana e Antero são personagens cujas identidades culturais se

destacam no plano construtivo do romance Úrsula por suas vozes elaborarem a crítica ao

processo escravocrata, subsidiando a realidade histórica ao processo da criação da narrativa

literária, e sendo personagens fundamentais na trama da narrativa, por apresentarem papéis

80
importantes no desenrolar do enredo, papéis que funcionam como dispositivos para a

articulação dos acontecimentos. Tais personagens, consideradas secundárias, por aqueles

que se debruçaram criticamente sobre o romance Úrsula, aparecem, ao contrário, em um

plano muito relevante no âmbito da narrativa, tanto para a sua organização literária como

para o seu fundo ideológico.

Túlio, Preta Susana e Antero agregam caracterizações morais que os diferem dos

estereótipos articulados pelos processos culturais e literários do século XIX, sua função de

personagens impõe à narrativa acontecimentos que não seriam possíveis caso fossem

construídos de outra maneira. Sua existência na narrativa revela a movimentação descritiva

em face dos acontecimentos do enredo e sua caracterização se dá muito além do que disse

Giorgio Mariotti, em seu livro Il negro nel romanzo brasiliano:

Gli schiavi descritti in Ursula rientrano anch’essi nella regola: Túlio


è lo schiavo buono che anche dopo esser stato liberato sceglie di continuare
a servire Tancredo, il nuovo padrone; Susana è la buona vecchia negra, la
mãe preta, la mamma negra, che si sacrifica pe salvar ela sua padroncina.
2
(1982: 11).

Dessa maneira, suas vozes aparecem em dissonância com os discursos histórico e

literário tradicionais, porque as vozes se caracterizam como africanas e persuasoras, e não

aparecem apenas como vozes de escravos, que aceitam a subordinação ao poder patriarcal e

escravocrata, são os próprios negros que se pensam, que se expressam. Do ponto de vista da

enunciação narrativa, são eles que se manifestam sem que sejam mediados por um narrador

que se harmoniza com os valores tradicionais do patriarcado brasileiro escravagista. Porém

2 Os escravos descritos em Úrsula fazem parte da seguinte regra: Túlio é o escravo bom, mesmo depois de ser
liberto escolhe continuar a servir Tancredo, seu novo senhor; Susana é a boa velha negra, a mãe preta, que se
sacrifica para salvar sua senhorinha. Tradução de Juliano Carrupt do Nascimento.

81
existem diferenças específicas tanto na manifestação das respectivas identidades culturais

quanto na construção de Preta Susana, Túlio e Antero enquanto personagens literários.

As diferenças das identidades culturais aparecem no desenvolvimento do papel

assumido por eles no plano da narrativa, fazendo com que Preta Susana e Antero sejam

africanos de origem e Túlio seja africano por descendência. E mesmo entre a Velha

africana e o ancião há diferenças ideológicas impregnadas na construção narrativa dessas

personagens, uma vez que Antero aparece na urdidura do texto como um fracassado,

alcoólatra, derrotado pelo processo colonial instituído no Brasil. Segue-se a sua

caracterização no plano da narrativa, caracterização esta que se alinha aos estereótipos

fixados acerca do negro, na cultura e literatura brasileiras, do negro indolente e viciado,

incapaz de assumir responsabilidade: “Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e

cujo maior deffeito era a affeição que tinha a todas as bebidas alcoholisada.” (REIS: 170)

Sua participação na trama do romance se dá inclusive ao lado do poder dominante,

como serviçal de Fernando P., sua função na peripécia do enredo consiste em tomar conta

de Túlio, que está aprisionado em uma ruína arquitetônica, para que não avise a Tancredo

que o algoz quer matá-lo. O fracasso de Antero se dá pelo seu vício no álcool, pois,

embriagado deixa que Túlio fuja.

Na construção narrativa de Antero há uma volubilidade, pois, quando sintonizado

ao poder dominante, como escravo fiel e subordinado aos mandos e desmandos de

Fernando P. ele se mostra como um capataz:

Em presença dos dous homens de má catadura e feições horrendas,


elle mostrou-se rigido, e atirou com o prisioneiro para um quarto humido e
nauseabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as ordens, que
recebera. Depois collocou-se à porta, qual fiel cão de fila à quem o dono
deixou de guarda à sua propriedade ameaçada por ladrões. (REIS: Ibidem)

82
Porém, ao encontrar-se só com Túlio se alinha aos sentimentos do jovem escravo,

tenta inclusive consolá-lo: “Antero, que tambem soffria, quis destrahil-o de seos

pensamentos dolorosos, e murmurou: ― Meo filho, não que a noite assim vae tão lenta e

fastidiosa?” (Ibidem:171).

A consternação que Antero sente ao perceber Túlio aflito por estar prisioneiro

quando Tancredo corre perigo, faz com que o Velho africano deixe fluir o outro lado de sua

caracterização, pois se compadece de Túlio, demonstrando que não se faz de

completamente mau, e mostrando alguma nobreza em sua moralidade. Assim Antero se

mostra compadecido com o sofrimento de Túlio:

A tristesa e o abattimento, que se debuxavam n’aquele rosto nobre,


contristaram ao seu guarda, que attento o considerava.
― Coitado! ― ‹ dizia elle lá consigo› ― sua pobre mãe acabou sob
os tractos de meo senhor!... e elle, sabe Deos que sorte o aguarda! Pobre
Tulio!... (Ibidem:)

Antero chega ao ponto de ser consciente do seu vício no álcool, e faz dele um

refúgio para os tormentos de ser um africano escravizado no Brasil, sua evasão se dá no

plano anímico, com a ajuda da cachaça e, no plano cultural, através da memória. Vê-se a

angústia que o envolve pela falta de aguardente:

O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo; depois


levantou-se pegou de uma cuia e tractou de lançar-lhe dentro o que quer que
era que estava em uma cabaça. Mas esta estava completamente vazia.
Antero arremessou-a longe de si com certo àr de despreso, suspirou e depois
disse: ― Maldicto vicio é este! Eque não possa eu vencer semilhante desejo!
Oh! Acredita-me, Tulio ―, estala-me a garganta de seccura. E como
não ha de assim ser? Desde que aqui chegou meo senhor que não mato o
bicho. Arre! e nem uma pinga de cachaça! nem ao menos uma isca de fumo
siquer para o caximbo. (Ibidem: 171-2)

83
Túlio, ao perceber que Antero possui a fraqueza do vício, resolve dar-lhe uma lição

de moral, porém surpreendentemente o Velho africano situa o conceito de vício em álcool

no Brasil e a sua diferença em África. A bebida tomada por um escravo e a bebida tomada

por um homem trabalhador e livre situa-a como “válvula de escape” para a sua condição de

escravo, e no passado remoto como costume sustentado pela moral do trabalho:

E’ o unico vicio que tenho; e ainda por conserva-lo não prejudiquei a


ninguem. Que te importa que beba, ― ‹acrescentou com voz que queria
dizer: não tens coração› ― por ventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou
cachaça? — e dizendo afagava a cabaça vazia com um desvelo todo
paternal, como que arrependido de tel-a despresado, a ella, a sua
companheira constante.
Pois bem ―‹continuou o velho› ― no meo tempo bebia muitas
vezes; embriagava-me, e ninguem me lançava isso em rosto; porque para
sustentar meo vicio não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhava muito,
o dinheiro era meo, não o esmolei. Entendes? (Ibidem: 172)

O Velho africano traz para o romance Úrsula a originalidade de sua identidade

cultural, ao evocar por meio da cachaça a África, sua evasão se justifica ideologicamente

pela dignidade do trabalho e dele vir o sustento para o vício do álcool. Há uma

contraposição de valores em sua fala, onde o Brasil aparece como espaço da escravidão, e a

África como lugar da liberdade humana. Tal armação ideológica se desenvolve através da

qualidade da cachaça e da possibilidade de sua compra ― no Brasil, de péssima qualidade,

e efeito da alienação do homem, símbolo do fracasso e do vício; em África, de boa

qualidade e vinculada aos momentos de lazer, símbolo de descanso e fruição do homem

trabalhador ligado à Terra :

84
― Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra ha um dia em
cada semana, que se dedica à festa do fetixe, e n’esse dia, como não se
trabalha, a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! lá então é vinho de palmeira
mil vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira. (Ibidem: 172-3)

A voz dessas personagens negras elabora a identidade cultural do negro como

personagem principal, em determinados momentos da narrativa. Suas vozes e,

consequentemente, suas caracterizações assumem autonomia dentro do plano narrativo,

seja pelo fato de construírem elementos estéticos inovadores ou porque representam o

negro do século XIX como sujeitos identitários e não como objetos forjados pelos discursos

histórico e literário, ou pelo fato de se instaurar, pelo viés da originalidade, o negro como

personagem de ficção capaz de reagir às mazelas históricas que o impediram de aparecer

como herói no romance brasileiro. Há neles uma reivindicação estética e outra ideológica

de visibilidade literária, humana e social. Muito diferentemente das narrativas tradicionais

que abordaram o negro no século XIX no Brasil, no romance Úrsula há originalidade

expressiva, por eles (os negros) aparecerem ligados à identidade africana e não apenas

como mercadoria ou escravo sofredor das imposições escravocratas.

Antonio Candido, em seu livro O Romantismo no Brasil, contextualiza algumas

obras e autores que inscreveram o negro no âmbito daquele período literário, e que

assumiram ou não a abolição da escravatura. Maria Firmina dos Reis difere de todos eles

pela originalidade da obra e por ser mulher produzindo em um momento histórico em que

os homens predominam do universo intelectual. Eis as considerações do crítico em relação

ao negro na narrativa brasileira do século XIX:

Sem ter assumido posição abolicionista, José de Alencar, que morreu


quando começava a fase aguda do movimento, se preocupava entretanto
com os efeitos morais negativos da escravidão e as iniquidades que ela

85
gerava, e sobre isso produziu uma comédia e um drama: O demônio
familiar (1857) e Mãe (1859). Joaquim Manuel de Macedo escreveu no
mesmo sentido algumas narrativas reunidas no livro As vítimas algozes
(1869), e abertamente abolicionista foi o famoso romance de Bernardo
Guimarães, A escrava Isaura (1875), que é muito ruim mas causou grande
efeito, pois descreve a situação extrema de uma jovem que é branca no
aspecto, mas de condição servil, podendo ser comprada e vendida. (2004:
68-9)

Considerando apenas a sua manifestação no plano geral da narrativa, percebe-se a

voz tríplice da personagem negra e não apenas o discurso autoritário do senhor patriarcal,

pois apenas o tecer da identidade africana: ora como da mulher escrava, ora do negro como

parâmetro moral, e ora como do negro ancestralizado e vilipendiado, já confere

autenticidade ao discurso estético e ideológico: estético porque se utiliza de estruturas

próprias do discurso literário; ideológico porque se manifesta como a voz que rompe com a

opressão escravocrata e senhoril.

O romance apresenta em sua estrutura narrativa o desenvolvimento da memória

como elemento construtivo, e ela se articula no plano discursivo através de diálogos das

personagens. A narrativa em si mesma cede lugar para formas dialógicas e se apresenta

apenas como localização espacial, caracterização de tempo e personagens, ou apenas para

indicar que a personagem tal, em um momento tal, disse ou pensou isso ou aquilo.

Várias narrativas são compostas no corpo estrutural do romance Úrsula, a instância

de enunciação narrativa apenas costura o gesto discursivo das personagens, entremeando os

elementos estruturais do discurso com as falas das personagens. A escrita de Maria Firmina

dos Reis não obedece a apenas um fio narrativo, ela se faz múltipla, e como parte dessa

multiplicidade está a voz da identidade africana, construída literariamente pela narradora.

Como exemplo da força da caracterização do sujeito africano, cita-se a passagem

em que Preta Susana aparece pela primeira vez no discurso. Uma descrição brevíssima,

86
apenas para que a personagem seja situada no corpo estrutural da narrativa. Tanto que a

descrição física da personagem, contrasta com a sua fala e consciência que a definem mais

amplamente, pela riqueza de sua constituição africana, desdobrada em miséria material e

riqueza cultural:

Susana, chamava-se ella, trajava uma saia de grosseiro tecido de


algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras, e
descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço
encarnado e amarello, que mal lhe occultava as alvissimas cans. (REIS:
1975, p. 89).

A narrativa do romance Úrsula obedece a emaranhados discursivos que se

conectam e formam tanto o enredo quanto a trama vinculando a mesma personagem a

diferentes aspectos de caracterização. Isso acontece com Preta Susana, pois fisicamente ela

se apresenta de determinada maneira, e cultural e animicamente de outra, muito mais

abrangente que aquela citada acima.

A consistência dos elementos que dão uma coerente formulação do relato impõe à

trama uma urdidura que faz a narrativa propor as personagens de maneira muito variada,

porque a técnica discursiva que articula o emaranhado de vozes, a localização e as situações

das personagens possibilita a apreensão estética e ideológica explodindo na construção

histórica do negro sendo reelaborada pelo discurso da literatura. O negro não deixa de ser

escravo, mas sua articulação enquanto personagem arma-se dentro de uma estética muito

peculiar, por apresentá-lo como sujeito importante para o desenvolvimento da trama

literária, e não como uma mera personagem secundária.

A trama, sendo o centro do discurso, enquanto organização dos elementos

construtivos da narrativa, forja a inserção do negro através da voz de sua identidade cultural

mostrada por si mesma, sem o intermédio da diferença ou da inferiorização: o negro no

87
romance Úrsula, apenas se manifesta. Uma espécie de leitmotiv formal, que articula a

manifestação de temas e ideologias expressos no enredo. A trama possibilita a

construtividade literária da narrativa de Maria Firmina dos Reis, pois ela torna complexa a

vulgaridade romântica demasiadamente trabalhada pela autora. Assim, o negro se impõe

como personagem relevante e não como antagonista, ou simplesmente figura secundária no

âmbito do plano narrativo, se impõe enquanto sujeito identitário cuja identidade se

intensifica por suas próprias carcterísticas que se constróem a partir da criação narrativa. O

negro passa a ser a voz de sua própria narrativa seja literária, seja histórica.

A memória atua como força propulsora à exortação que Preta Suzana faz a Túlio; só

o fato de uma personagem mais velha aconselhar uma personagem mais nova dá o indício

de que costumes da cultura africana se manifestam na caracterização das personagens, já

que o velho possui a guarda da memória e da ancestralidade das tradições. Tal

aconselhamento se dá pela experiência, pela sabedoria daquele que conta estórias, Preta

Suzana encarna o Griott, ao evocar a sua vida em África antes de ser tornada escrava, o

processo de aculturação dentro do navio negreiro e a conservação da memória africana em

pleno processo histórico da escravidão no Brasil.

O discurso de Preta Suzana, sendo motivado pela memória e com a finalidade de

mostrar a africanidade do conceito de liberdade ao jovem Túlio, produz o que Jaques Le

Goff (2003: p. 423-6) denominou de memória étnica.

A memória étnica se caracteriza nos povos sem escrita como


elemento que dá um fundamento à existência das etnias ou das famílias, isto
é, dos mitos de origem. O domínio coletivo de um fato arraigado
historicamente nos indivíduos, de uma determinada sociedade, destinado à
transmissão de saberes que identificam-nos como pertencentes a esta ou
aquela identidade cultural, a memória étnica ou coletiva se apresenta mais
como criadora que repetitiva. (Ibidem)

88
A velha africana, ao trazer para a presença de Túlio a sua terra de origem, a

ancestralidade do povo africano, propõe uma outra visão acerca da mulher negra no plano

literário brasileiro do século XIX, porque a atuação da memória manifesta em Preta Suzana

faz emergir a negra africana crítica, dotada de sentimentos e reflexão, e não o estereótipo

cristalizado pela literatura dos oitocentos, onde a mulher negra aparece como mucama,

mãe de leite e mero pasto sexual para os senhores de escravos, ou simplesmente uma

criatura que tem vilipendiadas a sua humanidade e a sua constituição de sujeito sem

identidade cultural própria. Preta Suzana, como personagem, reflete a crítica ao

posicionamento preconceituoso e tradicional da época, em que se concebia as pessoas

trazidas da África como mercadoria.

A resistência ao estereótipo e a busca à identidade cultural africana são as principais

caracterizações da personagem em estudo, ela aparece no plano da narrativa como voz da

África que se quer permanente, autêntica, viva e resistente à opressão escravocrata. Sua

memória a transporta para o seu lugar de origem, recria a vida que fora interrompida pelo

processo colonizador; a memória atua como humanidade para diferenciar a personagem das

concepções puramente objetivas do sistema escravocrata, que tratava a mulher negra como

objeto. A proposição ideológica emerge da forma estética com que a voz de Preta Suzana se

realiza.

Preta Suzana faz de sua própria experiência um ensinamento para o jovem negro

escravo Túlio, que pensa a liberdade como alforria. Em um momento do diálogo entre os

dois, Preta Suzana ironiza a concepção de liberdade de Túlio: “— Tu! tu livre? ah não me

illudas! — exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meo filho, tu és já

livre?...” (p. 91). Em outro momento da fala de Preta Suzana, ela diz claramente que o

jovem negro está trocando um cativeiro (regime político da escravidão) por outro cativeiro

89
(ser fiel escudeiro de Tancredo), por este ter dado dinheiro a Túlio para que o negro

comprasse a liberdade. “Que te adianta trocares um captiveiro por outro!” (p. 90), são as

palavras de Preta Suzana.

Liberdade para ela consiste em ser livre em África, estar integrada à própria terra e

não ser alforriada, ter a liberdade segundo as leis do sistema escravocrata não possui o

verdadeiro sentido de liberdade. Preta Suzana descreve para Túlio o sentido africano da

liberdade, discurso que discrepa da alforria ou manumissão, porque estes dois conceitos de

liberdade foram forjados pelo sistema escravocrata que dá tratamento de mercadoria ao

negro, a imagem da lágrima em Preta Susana se dá como manifestação da consciência

ideológica, e não como mero sentimentalismo, pois a sentimentalidade que impregna o

discurso da velha escrava veicula a concepção original de liberdade essencialmente ligada à

identidade cultural africana:

— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Ellas são inuteis,
meo Deos; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a
tudo quanto me foi caro! Liberdade! liberdade... ah! eu a gosei na minha
mocidade! — « continuou Susana com amargura » —. Tulio, meo filho,
ninguem a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que
eu. Tranquilla no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente
do meu paiz, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo ahi respira
amor, eu corria as descarnadas e arenosas praias, e ahi com minhas jovens
companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos labios, a paz no coração,
divagavamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias
d’aquellas vastas praias. Ah! meo filho! mais tarde deram-me em
matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como
penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem
tinha depositado todo o amor da minha alma: — uma filha, que era a minha
vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio sellar a nossa tão
sancta união. E esse paiz de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa
filha tão extremamente amada, ah Tulio! Tudo me obrigaram os bárbaros a
deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade! (p. 91-92)

90
A fala de Preta Suzana funda na literatura brasileira a africanidade elaborada pelo

próprio africano. As características românticas da fugacidade e da evasão, do retorno a um

tempo passado, a idealização de como o mundo deveria ser enquanto crítica à realidade

servem de veículo para a caracterização de uma velha africana que culturalmente se

aproxima de sua identidade, criticando, dentro da literatura, o estado escravocrata da

realidade histórica brasileira.

Preta Susana aparece como uma personagem romântica que busca o exotismo para

fugir de determinada realidade opressora, no entanto, mais que ser uma personagem

caracterizada como romântica, ela usa o procedimento estético do exótico como padrão

literário, a fim de se impor exatamente como personagem histórica despatriada e elaborar a

cor local da África como elemento da descrição narrada e dizer que o Brasil vigente no

romance Úrsula consiste em um espaço opressor.

A força da memória como presença do passado traz para a linguagem literária a

perspectiva do próprio negro sobre a sua situação em terras brasileira. Sendo Preta Suzana

mulher e negra, são duas fronteiras que se tornam ultrapassadas: o dizer da mulher a

respeito de sua construção identitária e o dizer da mulher negra voltado para as suas

próprias origens: a África.

Assim Preta Suzana assume para si a coletividade, a interrupção de milhões de vidas

que foram tiradas de suas nações, costumes, experiências dilaceradas pelo processo

colonizador; a personagem simboliza a voz que se ergue para reviver as tradições de um

espaço mítico estereotipado pelo regime escravocrata, funda a essência da identidade

cultural africana por dentro, constrói o imaginário destoante à imagem que a mulher negra

recebeu tanto do discurso histórico quanto do discurso literário, por estudiosos como

Gilberto Freire e literatos como Aluízio de Azevedo.

91
O processo de idealização não obedece ao espaço brasileiro, este se torna

ultrapassado pela memória da personagem, e aí está a inovação estética, porque se utiliza de

um processo estilístico que caracteriza a dicção romântica para elaborar uma percepção

ideológica pertinente no plano da obra e persuasora no plano da cultura. Preta Suzana inova

a velha reminiscência de se retornar ou à cultura medieva européia ou ao passado de

Pindorama dos índios brasileiro, pois a África passa a ser o espaço da idealização, dos

sonhos, da integração humana com a natureza e com a cultura, e principalmente, da

liberdade.

A crítica à realidade histórica e aos costumes brasileiros não paga tributo à Idade

Média européia, nem tenta fundar o passado “pré-cabralino” do Brasil. A realidade do

presente histórico manifesto na narrativa permea-se de africanidade; Preta Suzana integra a

África na cultura brasileira sem apelar para o exotismo, ou melhor, integra a cultura

brasileira à África, a uma África ancestral, ainda não destruída pela invasão do

colonialismo europeu.

Mesmo ao que toca o bom tratamento dispensado a ela por Úrsula e por Luíza B.

(suas senhoras) não diminui a perda dos elementos que constituem seu senso de nação, de

identidade cultural, Preta Suzana não aceita o cativeiro, ainda que ele seja amenizado pela

bondade de suas senhoras:

O senhor Paulo B... morreo, e sua esposa, e sua filha procuraram em


sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas desditas! Tulio, meo filho,
eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor, que tenho no
coração, só a morte poderá apagar! — meu marido, minha filha, minha
terra... minha liberdade... (p. 94-95)

Seguindo o itinerário da memória étnica ou coletiva, a velha africana narra a

violência a que os mercadores de escravos submetiam os negros desde o momento da

92
captura até o desembarcar em terras brasileiras. Vale lembrar, que estas passagens em que

constam a fala de Preta Suzana se referem à sua exortação a Túlio, para ensinar a ele o

conceito de liberdade elaborado pela africanidade. Tais passagens são expressões dialógicas

importantes para a construção do romance Úrsula, as que se seguem possuem uma

indicação dicendi proposta pela própria personagem “Vou contar-te o meo captiveiro” (p.

92) e realizam a atrocidade com que os negros eram submetidos na captura em terras

africanas e na travessia do navio negreiro pelo Atlântico.

Há a evidência da conversão humana em mercadoria de troca e mão de obra barata.

Neste caso há também a antecipação da proposta de Castro Alves, quando se propôs a

poetizar a situação do negro escravo, e, uma diferença fundamental o distancia da

originalidade firminiana, pois, em sua lírica os poemas são narrativos e a sua voz

enunciativa não vem da identidade africana, em sua lírica o negro não fala, aparece apenas

narrado e descrito, não possui a internalidade do ponto de vista que há na longa passagem a

seguir, que sozinha desconstrói toda a poética do livro Os Escravos (1864) do poeta baiano,

por ser a narração da própria escrava, e de maneira nenhuma a prática autoritária da

descrição pura e simples armada por um processo distanciado (de fora) sobre o negro como

figura literária:

Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o


mendobim eram em abundancia nas nossas roças. Era um destes dias em que
a naturesa parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã
risonha, e bella, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso
enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha
tristesa. Era a primeira vez que me affligia tão incomprehensivel pesar.
Minha filha sorria-se para mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me
à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vel-a.
.......................................................................................................
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um
assobio, que repescutio nas matas, me veio orientar acerca do perigo

93
eminente, que ahi me aguardava. E logo dous homens appareceram, e
amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava! Foi em
balde que supliquei em nome de minha filha, que me restituissem a
liberdade: os barbaros sorriam-se das minhas lagrimas, e olhavam-me sem
compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possivel... a
sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram
d’aquelles lugares, onde tudo me ficava — patria, esposo, mãe e filha, e
liberdade! meo Deos! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o
podestes avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais tresentos companheiro de infortunio e
de captiveiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de crueis
tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida
passamos n’essa sepultura até que abosdamos às praias brasileiras. Para
caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que
não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das
nossas mattas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-
nos a agua immunda, podre dada com mesquinhez, a comida má e ainda
mais porca: vimos morrer a nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de
alimento e de agua. E’ horrivel lembrar que creaturas humanas tractem a
seos semelhantes assim e que não lhes doa a consciencia de leval-os à
sepultura asphixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar esse extremo — davam-se a morte.
Nos dous ultimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos
entraram a vozear. Grande Deos! Da escotilha lançaram sobre nós agua e
breu fervendo, que escaldo-nos e veio a dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da patria, dos entes caros, da liberdade foram
suffocadas n’essa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti — é que Deos quis poupar-me para provar
a paciencia de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.
(p.92-93-94)

Neste trecho da narração, Preta Suzana caracteriza sua africanidade através do

trabalho de cultivar a própria terra, uma metáfora do trabalho como auto-sustento, do

trabalho livre dissociado do trabalho escravo imposto pelo colonizador. A negra africana

aparece dotada de maternidade, fato que a difere, da mucama mãe de leite que tinha por

obrigação amamentar os filhos dos brancos. A noção de mãe aparece sob duas acepções: a

mãe que da à luz a criança, a protege, que a ama, que cuida, a educa; e a mãe Terra que

94
oferece seus frutos a seus habitantes, a mãe África com sua esplêndida natureza e espaço da

evasão pela qual passa Preta Suzana.

A premonição sugere o estado de espírito que será imposto à mulher negra africana.

A mãe, esposa, filha tornar-se-á meramente escrava. O fato de Preta Suzana narrar como

era sua situação humana antes da chegada do colonizador em África torna-se importante

porque tira a mulher negra dos estereótipos conseqüentes do discurso do colonizador, dá a

ela um passado humano e cultural, diverso do que vige ainda hoje no Brasil acerca da

mulher negra, como se ela tivesse nascido a bordo do navio negreiro.

Preta Suzana elabora a sua condição humana, sugere e ao mesmo tempo intensifica

a noção de que as mulheres africanas tornadas escravas em terras brasileiras eram, em

África pessoas livres, que tinham uma existência calcada em seus próprios princípios

culturais, e exerciam papeis importantes dentro de suas respectivas sociedades.

A mulher negra como metáfora, segundo a caracterização de si mesma feita por

Preta Suzana em tempos “não coloniais africanos por antecedência ao processo histórico

ocidental” traz a mulher africana como dado de humanidade, como sujeito atuante em uma

sociedade, como elemento fundamental para o funcionamento de determinada cultura. A

negra africana se expropria da exploração, a ela dão-se a vida, a dignidade, a consciência da

liberdade.

O tom gradativo da narração de Preta Suzana se torna angustiante, desesperado; a

sua fala se torna pesada, reflexiva, contundente. Á proporção em que a voz da personagem

revela os aspectos atrozes da memória étnica, quando entra em cena a presença dos

mercadores de escravos, que capturam-na em terras africanas, converte-se a identidade

essencialmente africana em uma espécie de reflexão do sujeito da africanidade sendo

95
aculturado dentro do navio negreiro, situação-preâmbulo do que viria a ser sua vida em

terras brasileira.

6 Conclusão

O romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, inaugurou, no âmbito da literatura

brasileira, a construção das identidades culturais a partir do ponto de vista dos oprimidos.

96
Sua narrativa, embora tenha como fundamento construtivo a estética romântica, usa a

principal manifestação do Romantismo, a idealização amorosa, como desvio de atenção, a

fim de ludibriar o patriarcalismo escravocrata em torno das questões levantadas sobre o

negro africano e a mulher. Procurou-se, por meio desta dissertação, demonstrar de que

maneira acontece, na narrativa, a articulação estética da ideologia investida pela narradora,

na urdidura do texto literáario.

O levantamento acerca da crítica que visa a estudar a obra de Maria Firmina dos

Reis levou à compreensão de que invisibilidade e cânone são conceitos relativos, caso

aplicados ao romance Úrsula, já que existe um número razoável de estudos sobre a autora.

Percebeu-se que a sua receptividade crítica se orientou basicamente pelos elementos

ideológicos manifestos no romance, o negro e a mulher são os focos da crítica literária,

juntamente, com o pioneirismo de Maria Firmina dos Reis em relação à autoria feminina do

romance brasileiro.

Os capítulos desta dissertação se consolidaram a partir das relações entre estética e

ideologia, visaram ao estabelecimento da forma como veículo ideológico na construção do

discurso literário. Neles foram desenvolvidas idéias de como a narrativa comportou o

discurso da mulher e do negro, de que maneira o encadeamento da trama formou os

acontecimentos e as relações entre as personagens, visando sempre apreciar a revolução

literária produzida por Maria Firmina dos Reis, não apenas no plano da autoria feminina

como também no plano geral da literatura brasileira, por ironicamente radicalizar a

naturalização submissa da mulher e também dar consciência étnica ao negro.

As estratégias usadas pela autora maranhense, para veicular ideais libertários, foram

realizadas a partir da concepção romântica do discurso narrativo literário. Os pontos mais

altos da realização estética presentes no romance Úrsula são aqueles em que a radicalidade

97
da submissão feminina aparece como ironia à naturalização do emudecimento feminino,

como também, aqueles em que a africanidade se manifesta como caracterização cultural do

negro. O romance cria uma atmosfera, na literatura brasileira, em que os mitos de origem

surgem efetuados fora dos padrões tradicionais, pois os heróis são os mandados, não os que

mandam.

O mandonismo se torna alvo de crítica para o olhar da narradora, que descoisifica a

mulher e o negro, deslocando o poder para o próprio processo da escrita que se transforma

em instrumento estético de observação e crítica aos costumes patriarcais e escravocratas. A

função estética da narrativa possibilita ler o romance pelo ângulo da sentimentalidade

romântica, do amor impossível entre o mocinho e a personagem homônima, da natureza

como cenário do drama humano, dos assassinatos como sublimação para compensar o peso

da existência; assim como sua função ideológica possibilita ler a narrativa como fundação

da voz do negro africano na literatura brasileira, como crítica radical à escravidão do negro

e à submissão feminina ao homem.

Porém, a leitura que o romance merece, a meu ver, consiste na leitura de suas

articulações estéticas e ideológicas. Essas duas categorias se harmonizam na estrutura

narrativa, confluem para a realização literária e social da arte de escrever, simulam

armadilhas que capturam leituras tendenciosas e tornam o romance literariamente rico.

Este estudo está longe de ser uma conclusão abrangente do fenômeno narrativo que

envolve a autora e sua obra, mas espero ter contribuído, pelo menos em partes, para que a

discussão sobre o romance Úrsula se dissemine entre leitores de fruição e leitores de

fruição acadêmica.

98
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A Marmota, São Luiz do Maranhão: 11/08/1860.

A verdadeira marmota, São Luiz do Maranhão: 13/05/1861.

FREITAS, Marcílio. Primeira crítica: Úrsula. LUX JORNAL, Jornal de Brasília, Distrito
Federal: 25/12/1975.

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