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- UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

CURSO DE FILOSOFIA

ELA, VILÉM FLUSSER E A PÓS-HUMANIDADE

Por: Patrícia Gouvêa Aguiar Rocha


Matrícula : 20111381021
Disciplina: Filosofia e Informação na Contemporaneidade
Professor: Valéria Wilke
A partir de um título de imensa simplicidade, o cineasta Spike Jonze nos
presenteia com uma das melhores histórias já contadas no cinema: Ela.
Em tempos de internet e redes sociais, reuniões de amigos, encontros
amorosos, ou qualquer outra atividade que envolva pelo menos duas pessoas, costumam
ser interrompidos ou divididos entre os presentes pela interação virtual nas diversas
redes sociais presentes em seus Smartphones. Os celulares e outros apetrechos
tecnológicos já são entes queridos e as pessoas já não conseguem mais controlar sua
interferência constante e muito menos sua necessidade de utilizá-los.
Nos tempos atuais, relacionamentos virtuais já são fenômenos corriqueiros para
a maioria de nós, mas o que dizer de uma relação com uma máquina? E se essa máquina
demonstrar sentimentos humanos, como amor, ciúme, raiva? No filme, Jonze, levanta
essas questões, deixando para o espectador a tarefa de respondê-las...
A história é ambientada num futuro não tão distante, numa Los Angeles
mergulhada em tons pastéis que variam para um bege-melancolia, que traduz em
alguma medida, o vazio existencial que gera carência - ao ponto de se viver a vida
alheia. Nosso “avatar” nesse futuro é Theodore (Joaquin Phoenix). Recém-separado,
imerso em recordações, ele vive a vida dos outros através de seu trabalho como escritor
em um site que é procurado por pessoas que querem enviar cartas “manuscritas” a
pessoas queridas, ao viver os relacionamentos alheios que estabelece através das
correspondências que escreve. É interessante observar a peculiaridade do oficio de
Theodore: que demonstra extrema sensibilidade e rara habilidade para manter seus
clientes felizes, mas não consegue reproduzir o mesmo em sua vida pessoal.
A imersão num mundo cada vez mais mergulhado na tecnologia nos mostra
também comportamentos que se tornam naturais, como: apesar de trabalhar num site
especializado em “cartas escritas a mão”, Theodore nem se sequer toca em seu teclado.
Quando chega em casa, sozinho, suas atividades continuam permeadas pela
tecnologia, como o vídeo game, e mesmo quando entra numa sala de bate papo de sexo
online não toca em nada ou em ninguém.. Tudo é executado por comando de voz ou
captação de movimentos. Tudo muito solitário. Tudo bem diferente de quando era
casado, que neste caso, marca uma época de contato físico, troca com o outro.
É neste vazio deixado pelo fim de sua relação que Theodore abre espaço para a
chegada de Samantha (Scarlett Johansson), um sistema operacional revolucionário que
promete ser muito mais do que um simples programa. Durante a instalação, Theodore
escolhe que o sistema tenha uma voz feminina e, à medida que vão interagindo, ele
começa a se sentir atraído pela perfeita inteligência artificial de Samantha se revela
capaz de se adaptar ao dia a dia, adquirindo características humanas, mostrando-se
atenciosa e se tornando confidente de Theodore. E vice-versa. Logo o fato de Samantha
ser um ser humano ou não deixa de importar. A iminente sensação que Theodore tem de
se sentir completo outra vez parece suprir qualquer ausência física...
Samantha mostra que é capaz de compreender o universo a sua volta e se
comunicar com seu dono com base em seus desejos pessoais e anseios do momento.
Diante de um momento delicado e triste de sua vida, Theodore encontra no
relacionamento com Samantha o afago que procurava para seu coração. Theodore e
Samantha passam a desenvolver uma relação que, em alguma medida se desenrola
dentro da linearidade real, sem levar em conta que a interação que eles estabelecem
provém dom encontro inusitado entre um humano e uma máquina.
De repente, Theodore parece esquecer que Samantha é um produto; cuja
finalidade é a de “escutar”, “entender” e “conhecer” a humanidade, mas somente um
produto cibernético, fruto do avanço tecnológico. Por ser um sistema operacional,
programado para ser uma inteligência artificial perfeita, Samantha cumpre todas as suas
funções organizacionais com maestria até que começa a ter pensamentos e sentimentos
cada vez mais humanos, tanto por ela quanto por Theodore, chegando a desejar ser uma
pessoa de verdade.
Mas o que seria esse “de verdade”? Seria esse “de verdade” tudo o que
concentra o que seja corporal?
Falta à Samantha a corporalidade; a possibilidade da experimentação das
sensações imediatas, humanas.
Será que a presença avassaladora da tecnologia e suas consequências sobre a
contemporaneidade, que permeiam todo o ideal que criamos, mantemos e ostentamos na
internet, através de perfis em redes sociais, avatares, não serve de nada se não for
traduzido fielmente no mundo real? Será que mesmo uma inteligência perfeita como a
de Samantha, capaz de aceitar e compreender toda a complexidade do pensamento
humano sucumbe e se torna incapaz de realizar um amor concreto pela falta de um
corpo humano? Seria impossível manter uma relação verdadeira sem a proximidade
corporal?
Esta mescla entre humano e máquina; o avanço tecnológico tão presente na
vida cotidiana, essa mudança, ou transformação ou transmutação do homem
contemporâneo também é tema do livro “O explorador de abismos — Vilém Flusser e o
pós-humanismo” (Editora Paulus).
Lançando um olhar sob a perspectiva do pensamento de Vilém Flusser, Erick
Felinto e Lucia Santaella, autores do livro, discutem a mesma questão que o filme de
Jonze aborda: que tipo de tecitura o mundo contemporâneo está estabelecendo entre a
humanindade e a tecnologia e que nos chama à reflexão de que mesmo viciados em
tecnologia, ainda nos emocionamos com cartas escritas à mão...
Flusser é um pensador que segue um caminho diferente da filosofia tradicional,
tendo adotado um olhar transdisciplinar sobre a realidade muito antes dessa
transdiciplinaridade se tornar um viés de pensamento. Flusser um conhecido
“bodenlos”, direciona sua reflexão à multiplicidade do mundo e, consequentemente ao
risco e ao fascínio que ela exerce sobre quem se entrega a ela.
Os autores do livro enfrentam um problema ao tentar conciliar o pensamento
livre de amarras de Flusser, que não abandona o humanismo, com o que eles
denominam pós-humano, ou seja, o homem que perde sua centralidade e que enfrenta o
ocaso dos humanismos aos quais sempre esteve ligado, vivendo num mundo que passou
a ser regido pela tecnologia.
No livro, Felinto e Santaella abordam o pós-humanismo através de um olhar
que enxerga a supremacia das máquinas sobre os humanos, como se a linha que separa o
natural do artificial estive sendo apagada, pouco a pouco. Como no filme de Jonze, em
um futuro universo pós-humano, homem e tecnologia não apenas compartilhariam a
autoridade sobre o mundo, mas esta estaria prestes a superar àquele. E é bem verdade
que, em algumas passagens do livro, os autores nem encaram essa questão de forma
negativa, mas como um avanço.
Vivemos num mundo onde a quantidade de informações disponíveis ultrapassa
a capacidade humana de armazenamento, organização e acesso. E a pergunta é:
seríamos capazes de dar conta delas sem a ajuda dos dispositivos tecnológicos? Sob esta
lente, é possível perceber que a subjetividade já se vê diminuída diante da capacidade de
atuação dos dispositivos e sistemas de computação.
No capítulo “O nascimento do pós-humano na cibernética”, os autores fazem
uma reflexão que tem como ponto de partida a consequente decadência do humanismo
conhecido e experenciado até então, por conta da supremacia e complexidade dos
sistemas de informação que, pelo menos teoricamente, tira o homem do lugar de centro
do saber e do universo.
Mas, assim como no filme, é possível perceber que o mundo contemporâneo
demanda tantos e novos conflitos, problemas pontuais e existenciais que o humanismo
clássico já não é mais capaz de trazer soluções para essas questões. No filme vemos um
homem mergulhado na solidão, levando a vida quase como um autômato: sem emoção,
sem cor, sem alegria, que descobre na aquisição de um dispositivo tecnológico a
possibilidade de uma vida feliz.
Da mesma forma, no livro, Felinto e Santaella olham para um futuro onde o
desenvolvimento tecnológico propicia cada vez mais a interação entre o maquínico e o
humano, tornando essas “relações” cada vez mais eficazes e, em alguma medida,
naturais; como se esse desenvolvimento fosse uma expressão da própria pós-
humanidade, que engendra esforços voltados para a expansão do homem, da espécie
humana como um todo, para a superação de limites do homem, alavancada por meio da
própria tecnologia.
Na verdade, é preciso perspectivar uma nova ontologia. O humanismo clássico
encontra-se em aporia: quem é este homem pós-humano, que estabelece relações com e
através de dispositivos cibernéticos; que não concebe mais o dia a dia sem o uso dos
celulares, da internet, e de sistemas de armazenamento e organização de dados? O que
são esses objetos tecnológicos aos quais confiamos a administração de nossos contatos,
informações e dados privados, como fossem nossos fiéis depositários? Que tipo de
relação de confiança é essa que desenvolvemos com a tecnologia, com a virtualidade,
que de tão íntima, por muitas vezes supera e substitui as relações humanas e reais?
É preciso repensar a subjetividade construída até então pelo pensamento
humanista clássico.
A questão da pós-humanidade é uma questão que está muito presente nas
reflexões de Flusser e em vários momentos de sua obra. No Vampyroteuthis Infernalis,
recuperado por Felinto do Arquivo Flusser, em Berlim, Flusser fala de uma criatura que
se move pelas regiões submarinas abissais que seria diametralmente oposto ao homem,
tanto por sua constituição corporal, quanto por seu habitat natural. E é exatamente essa
tremenda diferença que leva Flusser a pensar que se poderia pensar o humano a partir
do mais anti-humano possível.
“É ele que habita todas as nossas
profundidades, e nós habitamos ele. E esse
encontro de si próprio no outro extremo do
mundo é o derradeiro propósito de todas as
explorações humanas. Porque, “no fundo”, o
único tema do homem é o homem”.

Minha conclusão é que Felinto e Santaella conseguem, através do livro mostrar


que o legado de Flusser para o pensamento das gerações futuras é indiscutível.
Fica claro que, para Flusser, não é possível encarar o futuro sem que passemos
por uma revisita ao passado; na verdade sem que mergulhemos nos abismos humanistas
que nos trouxeram até aqui. E, mais do que identificar o novo sítio desse pós-humano, é
necessário conhecer o chão que nos gerou, para que sejamos capazes subverter a
dialética descrita pelo próprio Flusser no livro “Filosofia da Caixa Preta”: “o fotógrafo
domina o input e o output da máquina, sem todavia conhecer suas entranhas, sem
entender realmente os processos que se efetivam no interior do aparato. Por desconhecer
o seu funcionamento é por ele dominado.”

Referências Bibliográficas

FELINTO, Erick. O explorador de abismos: Vilém Flusser e o pós-humanismo / Erick Felinto e


Lucia Santaella. São Paulo: Paulus, 2012. – (Coleção Comunicação)

JONZE, Spike. Ela. 126 minutos, 2013.

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