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Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro Cinema Existencial, Cinema Estrutural e Cinema Brasileiro Contemporaneo ANDRE PARENTE Os ensaios que compoem este livro sao atravessados por uma idéia que confere unidade aos textos e lanca os termos para se pensar o cinema contempordneo numa tinica operacao - estética e politica - que define em larga medida o lugar que a reflexdo sobre aimagem cinematografica deve instaurar hoje. Este lugar, que é de forma ampla o da critica de arte, precisa, de acordo com Giulio Carlo Argan, Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro Copyright © by Ande Parente o Nacional do Live Catalogagae na fonte do Departamer P2ahe Parente, Andee, 1957 Enpaios sobre» cinem do simmer: cinema existenetal. cin cetrtual e cine bassline eomenporineo Auulné Parente: prefiein, revinaa tenet wgunizayan: Liliane Heynemann ~ Riv de Jans ISBN 85-86816-01.9, Incl olive cinema grees = cpp-791.4 Capa Marcello Lino Prjeto Grfien Mariana Hermeto Revisaw Cecilia Moreira Aasitente de Projet Crifcw fe Editoragi Bletriniew Aline Coelho Dire para est eligi conteatals com PAZULIN EDITORA LTDA Randy Laranjiras. HIV/001 222404002 Riv dle Janeiso. RJ tellias: (021) 225-2215 ‘e-mal: pazulin@poatocumcom.be tin tr part dacs oy Nile de Tecnologia da Tagen Escola le Comunieagao UFR) Ae Pastor 250 ful ‘cep 22290 240) Praia Verh tel: (024) 295 9399 fase (021) 295 9199) veamail: aparente@aed ff br Sumario Agradecimentos, 7 Prefiicio, 9 Cinema Existencial, 15 A Arte do Intersticio e do Vazio, 17 0 Pequeno Teatro ea Grande Husao, 28 Modlelos de Vozes Brancas, 42 As Linhas cle Fuga de Alain Tanner, 52 Andrei Tarkovski, 59 Cinema Estrutural, 65 Marienbad, a Ultima Versio da Realidade, 67 Alphaville, a Capital da Dor, 77 0 Impostor Inverossfmil Raul Ruiz, 90 Cinema Brasileiro Contemporaneo, 105 A Década de Oitenta, 107 As Novas Geragdes: 0 Cinema da Vila, LLL Passagens Entre Imagens, 115 A Luta Operdria e © Documentévio, 118 A Juventude e o Cinema Existencial/Comunicacional, 123 Um Cinema Pés-Moderno?, 126 Um Cinema de Replicantes, 131 Os Anos 90: Cinema e Audiovisual, uma Questio Polttica, 135 For All: 0 Triunfo da Vontade, 142 Espago Critico e Produgio Audiovisual: uma Questa Estética, 149 ‘Um Outro Cinema: o Super-Outro, 152 Indice Onoméstico, 156 Agradecimentos Este livro é fruto do convite desinteressado de alguns amigos como Bemarco Carvalho, Rosa Lima, Eric Alliez e Muniz Sodré, que me incitaram a escrever grande parte dos artigos aqui apresentados. Os artigos que o compaem foram escritos entre 1987 e 1997, nos anos seguintes & minha volta da Franga, onde fiz 0 Doutorado em sob a orientagio de Gilles Deleuze. 0 apoio do CNPq foi decisivo para a realizagio das pesquisas que resultaram nestes ensaios. Agradego a generosidade de Liliane Heynemann, que dedicou algumas de suas preciosas horas na organizagaio e revisto do livro, 6 Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro Prefacio Os ensaios que compiem este Livro so atrave: os por uma idéia que confere unidade aos textos ¢ langa 03 termos para se pensar o cinema contempordineo numa tiniea operagao ~ estética ¢ politica ~ que define em larga medida o lugar que a reflexio sobre 2 imagem ci que é de forma ampla 0 da critica de arte, precisa, de acordo com Giulio Carlo Argan, ser o da lute por uma politicidade da cultura”, tarefa aqui assumida em sua radicalidade. ematogrdfica deve instaurat haje, Este lugar, nirinseca A centralidade que a nogao de simulacro ocups nos ensatios de André Parente vem, portanto, contemplar as instaneias politica ¢ estétiea, integrando-as num s6 domfnio e substituindo uma ordenagao cronolégica de vertentes cinematogrificas em favor de um peculiar cardter “histérico” que orienta sua leitura: histéria que procede por estilos e devires, nao por etapas. € que por isso mesmo engendra um pensamento sobre 0 cinema no sentido deleuziano de que sew objeto”. “algo que também se faz, no menos E assim que, numa perspectiva nitidamente comparativa, o autor nos dé a ver um embate entre u pouco de real e de mundo”, de extrair imagens verdadeiras dos cinema capaz de “nos dar wm clichés, ¢ aquele, caracteristico da vertente de inspiracio pés- moderna da década de B0, que reproduz seus recorrentes im- passes, no sob a fo artisticas de extragao moderna, mas como submissio is ma de uma crise, como nas expressdes determinagdes que anunciam o fim da hist6ria e sepultam a possibilidade do novo num funeral de citagoes. Se o cinen € por exceleneia arte do simulaera, da cépia, da representagio, termos pesados de sentido na longa histéria do pensamento sobre as relagdes entre arte ¢ realidade, o cinema do simulacro ~ cujos pressupostos estéticos se identificam com © conceito dle imagem-tempo em Deleuze ~ deve fazer dla arte cinematografica uma poténcia do falso. Em Cinema 2: a Imagem-Tempo, Deleuze descreve a passagem realizada pelo cinema moderno do pés-guerra, a partir, sobre tudo, do marco do Neo-tealismo italiano, Passagem que vai da crise da imagem-agio 3 pura imagem ética-sonora 6 que, a0 provocar, através de diferentes operagies fil cas, uma ruptura com 05 esquemas sensério-motores que coustitufan nossos siste- mas de defesa, revela, ¢ nos devolve, o mundo em seus aspectos intolerdveis ou de insuportavel beleza Uma vasta produgdo de imagens ird atualizar essa possibilidade. Os Ensaios Sobre 0 Cinema do Simulacro fazem itvompet, na cena mesma dos clichés da pés-modernidade, algumas de suas expressées mais significativas, que se convertem dese modo em verdadeiras imagens de resistencia “Tudo que ha de novo na arte surgiu em resposta a uma neces: dade espiritual, alirmou Tarkovski. A leitura dos textos de André Parente potencializa essa necessidade para além dos limites civeunstanciais que restringem sua validade a um tempo de inquietagses, de cuja morte precoce somos herdeiros tanto quanto vitimas. Ao submeter suas “imagens-resposta” a luz fria das imagens-pastiche de um dado cinema mais recente, o autor comprova que as primeiras podem consistir num presente que do cessa de nos percorter. 10 Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro a : 2 atime Dividiclo em trés partes, Cinema Existencial, Cinema Estrutural © Cinema Brasileiro Contemporaneo, organizadas em torno de a periodizagao, Ensaios Sobre o Cinema do Simulacro coloca em cireulagaia as temas, conceitos e rupturas estéticas perpetradlas pelas préprias imagens cinematogrificas ¢ que se relacionam necessariamente com outras préticas: “E pela interferéncia de muitas préticas que as coisas se fazem, os seres, as imagens, 08 conceitos, todos 0s géneros de acontecimentos”, afirma Deleuze sobre a teoria do cinema erminados elementos em comum que justificam sua As leituras de filme do presente volume presentificam essa multiplicidade do olhar, ao incorporar, por exemplo, & vigorosa andlise filmica de Renoir, a reflexao de Rilke sobre a representagdo da paisagem na pintura, Multiplicidade do olhar ¢ do pensamento que incide na imagem cinematografica, sem abandonar o que Ihe € préprio: a substituigéo do plano pela cena a partir da utilizagdo da profundidade de campo, as ¢ imagem, as modalidades de duragao dentro Ime (deseritas no texto sobre Tanner), relagies entre soi de um mesmo comentarios que contribuem para que cada imagem constitua uma experiéncia original e permutavel de conhecimento. Em Cinema Existencial, 0 autor anelisa os cineastas Yasujiro Ozu, Jean Renoir, Robert Bresson, Alain Tanner ¢ Andrei Tarkovski. Alain Resnais, Jean-Luc Godard ¢ Raul Ruiz formam. oelenco de diretores enfocados em Cinema Estrutural, enquanto 0s ensaios de Cinema Brasileiro Contemporaneo formulam uma reflexio critica sobre a produgao brasileira das décadas de 80 ¢ 90. 0 primeiro bloco trata de autores que, guardadas as diversidades jomada de uma perspectiva de suas escritas, inscrevem-se na r espiritual enearnada na espessura mesma da existéncia expressa nas operagdes filmieas, Os ritmos de enuneciagio, a construgio e desconstrugio de personagens, os enquadramentos e travellings. a escolha dos pontos de vista significam uma agilo sobre o mundo: imagens como eventos. recortadas & homogenei- dade do tempo, um “encerrar-se fora de si", como ensina Blanchot. Em Ozu, por exemplo, nos mostra o autor, que recria a estilistiea do cineasta japonés pela categorizagio de suas imagens em plano Tatami, Ma e Mu, 0 cotidiano, o regular, o banal, 0 anénimo integram uma narrativa desconcertante por correspon der a0 préprio espaco em que se atwalizam: “Como na pintura japonesa ou chinesa, Ozu aperfeigoou os espagos descont(nuos, 08 expacos vazios ¢ o silén : jo. a0 mesmo tempo em que as trajetérias de seus personagens foram se transformando em trajetérias andnimas, como a de um trem, e iméveis. j4 que os personagens foram perdendo a mobilidade”. A descrigdo das diferentes man 'S Maneiras com que as imagens filmicas podem romper com a I ; ° \diferenciagio é desenvolvida nos demais ensaios. Renoir subverte o real e o espetéculo ‘convidando 0 espectador a participar do jogo e da multi- plicidade de mascaras". Em Charles Mort ou Vif, primeiro longa de ficgdo de Tanner, o personagem, emblematico da “perfeigao” ¢ da neutralidade sufga, literalmente *rompe com as apa- réncias”, passando a ver ¢ experimentar para além delas. Nos filmes de Tarkovski os anti-herdi ci executam movimentos do esptrito, mais que agdes, seu trgico herofsmo consistindo em “estar pronto ao sacrificio” (e, acrescentarfamos, a partir da indicagdo do autor da relagao desses personagens com os heréis de Dostoievski, um trégico extraido ainda da confissdo de seu 2 Ensaios Sobre 0 Cinema do Simulacro proprio ridiculo e de sua impoténeia). Em Didrio de um Péroco de Aldeia, adaptagao do romance de Georges Bernanos por Bresson, a palavra desliza e faz problema com a imagem, que chega ao limite de sew desaparecimento, realizando uma auséncia andloga ao da poética moderna em Mallarmé, Cinema Estrutural, segunda parte do Livro, trabalhia com a nog ume diferentes de uma estética do simulacro que aqui al estratégias. Ela pode constituir uma “geometria varidvel”, como ‘em O Ano Passado em Marienbad, de Resnais (e Robbe-Grillet, roteirista do filme), ou, como em Alphaville, de Godurd, operar jca que corresponde “as trés formas de uma serialidade trfp pensamento presentes no filme, com se fossem trés metalisieas ‘ou automatismos psiquicos distintos”. E pode, através de uma ceslética propriamente barroca, utilizar de forma labirtntica 0 infinito potencial de falsifieagio do cinema, reproduzindo-o num jogo de espelhos e citagées, como vemos no ensuio sobre Ruiz. Cinema Brasileiro Contemporineo, dltima parte (ou “viagem”), co ensaios, uma verdadeira © con- constréi, através de lundente revisie critica do ein filtimas duas décadas, Trata-se (le um olhar intensamente atento 4 todas as suas manifesiagbes, este que André Parente langa a0 ma brasileiro realizado nas nosso cinema e ao préprio pensamento que busca apreendé-lo, 0 papel da urbanidade e o revival do género policial, Cinema da Vila, a temética da questo operévia, o “cinema gaiicho”, os curtas, 05 personagens estrangeiros que irrompem profi na cena de nossa “pés-modernidade” cinematogréfica acabam, quando historiadas pelo autor, por desenhar um panorama recente, Realizando um inquietante da produgdo nacional mi confronto entre as imagens eriadoras de um cinema de invengao PRIMEIRO ENSAIO eas de “um cinema de replicantes”, os textos dedicados cinema brasileiro sugerem 0 diagnéstico, mas també: antidote: “O que quer o que pode esse cinema? E uma questa que devemos nos langar, A luta por reeursos do governo e di ‘empresdrios talvez tenha obscurecido a luz da ousadia de cinema do possivel, do devir, do nove que sempre foi a tin; possibilidade para 03 cinemas do Terceito Mundo”. Liliane Heynemany ac Ensaios Sobre o Cinema do Simulaero 16 A Arte do Intersticio e do Vazio ‘O cinema de Yasujiro Ozu suscita, ainda hoje, muitas questdes. A obta de Ozu nao pesterce ae paseailo do cinema, mas 2 seu futuro, Nao por ‘caso ele foi redescoherto nos anos 80, como contraponto ao cinema ps-modetno: tata-se de um cinema de grande atualidade, na medida fem que aponta ao mesmo tempo para o fim de um antigo mundo ¢ para 2 auséncia de mundo, para o fim de um antigo cinema e paras auséncia de cinema. Falar dle Ozu hoje € ao mesmo tempo um prazer € uma necessidade: é uma forma de resisténcia, jé que o campo onde se exerce ‘cinema se reduz a cada dia devido a proliferagao de imagens-eliche, Ozu nasceu em 12 ce dezembro de 1908, em Téquio, Entse 1927 & 1963 realizou 53 filmes de longa-metragem, 21 dos quais desa- pareceram. A iniensa consagragio critica de seus filmes (seis deles ganharam o 1* prémio do ano da revista Kinema Jumpo) teria, paradoxalmente,dlificultado sua difwsdo no estrangeiro: 0s japoneses 0 cousiderayam tipicamente japonés ¢ temiam que ele ndo fosse compreendido no ocidente. Viagem a Téquio, um des seus filmes mais ‘conhecidlos, s6 foi exibido em Paris em 1978, com vinte € quatro anos de atzaso. No entanto, 20 contrério do que se pensa, esse attaso deve ser alributdo muito mais ao estilo do que ao “eontedido cultural” dos filmes. Como aparecimento do Neo-realismo, da Nowwelle Vague ¢ dos nnoves cinemas do ocidente (“cinema direto”, “einema novo" no Brasil, ha Alemanha e nos paises do leste), criot-se uma receptividacle maior para esse tipo de cinema onde a intriga, a dramatizagiio das emogoes, as agdes espetaculates e 0 sensacionalismo sito secuncdirios, senio inexistentes. Trajetérias andnimas 0s filmes de Ozti, feitos nos esticios Shochiku ~ onde ele tinha a sua prépria troupe de atores € técnicos — com grande rapidez & poteos ecuts0s, contam sempre as mes personagens comuns, da mesina cidade, Téquio. Eles formam uma histérias banais, sobre os mesmog grande erdnica da m tamorfose da vida dla classe médlia no Japio, do processo de ocitlentalizagdo e do deelfnio da familia tradicional Japonesa. No entanto, 0 olhar le Ozu nio € ressentido ou acusailor, hem mesmo nostélgico, como, por exemplo, a nostalgia distanciada cle um Wim Wenders. As relagdes sociais que formam a substdncia das filmes de Ozu, 08 confitos de geragies, as relagoes de trabalho do homem assalariado ¢ as relagies familiares que constituem mais ou menos as trés fases teméticas de sua obra nilo sao hi cquizadas segundo reflexos fixos, sejam eles histéticos, ideolégicos, éticas ou estéticos. Thata-se de um ponto de vista mutavel, mével, que segue a inclinagao do olhar € as solicitages do novo tempo. Ozu nio é historiador, politico, moralista ou esteta, mas sim um pensador, unt artista, dizia Nietzsche, que deseja 0 novo mundo, Néo se treta apenas de um saber, mas de uma sutil sabedoria que no confunde o sentido do novo coma verdace da coisa dita, vista ou sentida pelo nove homem, J que este se encontra no momento raro em que o pleno de sua identidade se instala num novo espago, aquele do intersticio e do vazio, Neste sentido a arte de Ozu se afirma extremamente oriental: atte do intersticio (Ma) ¢ co vazio (Mu).! Trata-se de deixar 0 caminkio do sentido aberto e incexto. De O Corapao de Toquio a Dia de Outono, os trens atravessam os filmes de Ozu como um leitmotie, Ems Imids Munekata e-em Viagem a Téquio, os trens parecem desviar ou mesmo exeluir os seres que os eontemplam de suas proprias trajetérias, assim comio faz tum silencio que emerge no meio de uma linha musical. Como na pintura Japonese ou cl descontinues, 08 inesa, Ozu aperfeigaou os espa Ig Cinema Existencial espagos vazios € osiléncio, ao mesmo tempo em que as trejetérias de seus personagens foram se transformando em trajetérias andnimas, como 1 trajet6ria de um trem, e iméveis (tajetéria interior), j4 que os personagens foram perdendo a mobilidade. Além disso, os personagens que sofvem a ausénefa de um outro ~em Pai e Filla, Também Fomos Felizes, Viagem a Téquio, Flor Higanbana eA Rotina Tem Seu Encanto, a pai fica s6, seja porque a mae morre, seja porque sua filha se casa — foram se transformando cada vez mais em personagens «ue sofrem radicalmente a auséncia de si mesmos, Cotidiano Quando Ozu comegou a fazer cinema, oeinema japonés se dividie entre 0s filmes Jidai-Geki (filmes sobre 0 Japio tradicional) e os filmes Gendai-Geki (filmes sobre o Japao modemno). Seus primeiros filmes exam bastante influenciados pelo cinema americano, sobretudo Lubitsch, McCarey ¢ Hawks: a mistura da comédia, do melodrama e do filme noir, a utilizagao um tanto expressionista da luz, as fusdes ete. Neste época, seus filmes se alternavam entre comédias sobre os estudantes melodramas realistas sobre as dificuldades da vida dos assalariados e desempregados. Na verdade, a divisio entre comédia € melodrama exprime muito bem a alternéncia de dois sentimentos que ‘acompanham todo seu cinema: o humor sutil, por vezes anarquista, ¢ a tristeza suave (mono no aware). Mas, 2 contrévio do cinema ecidlentsl, Oar rejeita os acontecimentos, as ages € os personagens notiveis: rele, tudo ¢ ordingrio, banal, catidiano, repetitivo, mesmo as légrimas € a morte sao parte da vida ordingrie e nio emergem como tempo forte out como acontecimentos extraordinérios: “Eu quero dar as pessoas 0 sentimento da vida sem retratar os altos e 09 baixos draméticos”.’ Os tempos fortes do cinema cliéssico, tanto nas comédias ¢ melodramas, A Arte do Intersticio e do Vazio como no einems de ago, ddo lugar, em Ozu, banalidade do cotidiano € 4 imagem do que ¢ o pessonagem, do que ele diz. fae, independente de qualquer referencia a intriga, O roteiro € quase exclusivamente realizado através cle conversagiies quaisquer, sem que exista um assunto preciso, Os préprios atores ndo representan nada, O que importa sio tas expresses fisieas € mori ag suas presengas, assim como em Bresson e Rohmer: f sintomstico que Ozu fale de seus atores como de inceladas de cor”. E significativo, também, que ten feito remakes de seus préprios filmes: Bom Dia retoma Bu Nasci, Mas..3 Ervas Flutuantes rela a Historia de Ervas Flusuantes e Dia de Outono € um remake de Pai e Fitha: Plano Tatami Pouco a pouco, o estilo de Ozu foi se depuranda e se tornancdo mais coneisos ¢ sébrios de toda © cinema, Ele abandonow os procedimentos de énfase © hipérbole ~ iluminagao ligeiramente ‘expressionista, fusto,ritmos eelipses mareados, movimentos de camera, Aramatizagdo dos gestos — para adlotar um prinefpio de naturalidade zen, 0 wot chi: um nada de nada, ox, em outras pala especial que se refere a um estado de coisas expresso em sua naturalidade. Bm 1932, durante a filmagem de Eu Nasci, Mas... O2u abandona para sempre as fusdes € decide utilizar a montagem eu (corte sece). m193 centimetros ilo solo para filmar exiangas numa seqiéncia antols em Coragiia de Téquio, “forgado” a baixara camera a alguns gostou do resultado ¢ o adotou para sempre. Nao podendo deslocar a cdmera sob um tal dngulo, acabou aceitande o corobivio da cémera fixa, abandonando quase totalmente os movimentos. Plano fixo, cdmera baixa, em ligeito contre-plongé, o teriam levado a adotar também a 20 Cinema objetiva 50 milimetios para todos os filmes. na medida em que uma objetiva mais aberta ou fechada implicavia, nesta posigdo, em angulos acentuacos ov aberrantes. A céera baiva de Oza nio pavou de fazer glosar seus exegetas: paeshola estética, parti-pris arbitndtio, expressilo da comumicacao horizontal entre os personagens (oconflita de gergaes seria a comunicagio vertical), othar da infinoia perdida sobre a imobilidade dos adultos... Ora, o plano laturdi de Ozu tem a ver-eom a sabedotia 2en, feta de aceitagio do mundo, que nes ensina que tudo na vida é ordindtio, regular, cotidiano, “As veres" diz Ozu, “as pessoas tornam as coisas simples complicaias, A esséncia da vida, que parece confusa, pode ser simples de mancira totalmente inesperda”.* Em Dia de Outono. num didlogo entve dois amigos, um deles diz: “Somos ngs que complicamos a vida, agitando a igua que domme”. A experiéneia do satori é assim definida por Suzuki: la é semelhante & experiéncia ntimetros do ordinaiia, cotidiana, salvo que ela se passa a alguns c solo"," Nao hi nada que exptique melhor o plano fatami. Ma Os espagos deseontnuios e desconectados, ido constantes ¢sistematicas na obra do cineastajaponés, produzen uni ansgressto da decupagem classiea e desiroem a representagio de um espago-tempo argdnico € totalititio, No cinema elissico, a determinagi do enquadramento, do plano e da decupagem € motivada, isto 6, ela deve manter a ilusio de quea coisa filmada ou narrada € anterior ao dispositivofilmico utilizado para “enuncid-la”. Os espagos descontinuos, as descontinuidades de olhat, cle diego, cle movimento, cle objetos etc, assim como os planos vazios que veremos adiante, alestam a anterioridade dos processos {ilmivos utilizados em relagao ao filmado ou natzado, Mesmo quando Ozu ainuta utilizava mavimentos de cAmera, os reenquacramentos e o A Arte do Interstfeio e do Vario movimentos de acompanhamento provocavam arbitrariamente 0 movimento dos personagens. Ao conirério do einema clissico, os rmovimentos de cfimera precedem os deslocamentos dos onagens bu condicionam seus comportamentos. Em Ew Nasci, Mas... travelling nos mostra empregados de uma firma em suas meses de trabalho. Cada empregado boceja isoladamente no momento preciso tem que ele é visto. Um tinico empregado foge & regra e ni boceja, [Apés ter passaclo por ele, a cfmera para, volta atrds e aguarda que ele execute 0 gesto esperado, 0 que ele nfo deixa dle fazer. Mesmo mais tarde, com o abandono dos movimentos de acompanhamento ¢ dos reenquadeamentos, os dispositivos da decupagem de Ozu continuaram 1a preceder e contlicionar o narrado ou emuneiado. Desta forma, se um personagem sentadose levanta,a cAmera continua imével, enquadrando a parte baixa ce seu corpo. No plano seguinte, fixo, & meia altura, no mesmo exo, mesmo personagem se levanta e entra no campo visual. Essa repetigio do gesto do personagem cria a impressdo de um retrocesso no tempo e atesta s anterioridade do filme sobre seu contetido. Um outro modo de descontinuidade consiste em deslocar os objetos de lugar, ou mesmo suprimi-los ou acrescenté-los, entre um plano e outro, E que Ozu, assim como Eisenstein,’ se preocupava mais com a composigio de cada plano isoladamente do que com a iusto de verossimilhanga. Uma das fungdes da decupagem classica consiste em situar 0s personagens no espago. Assim, quando dois personagens se ‘olham ou conversam, o “campo/contracampo” mostra cada umn deles isoladamente olhando em diregio conteéria, Em Ozu, o olhar dos personagens vai quase sempre na mesma diregilo ¢ eria no espectador a impressao de desorientagdo espacial ¢ 0 sentimento de que os onagens ndo somente ngo se olham, mas olham no vazio, no infinite. pe Segundo Bergala." os “olhares-O2u” se furtam 2 paixdo suturunte do 2 Cinema Existencial espectador e frustram a sua vontade de identificagao. O olhar indeterminaclo dos personagens ce Ozu, na medida em que nao sabemos de onde e para onvle eles olham, coloca o espectador numa posigée singular: um espectador que nao é nem centrado (voyeur), nem exeluide (interpelado pelo filme), mas espectador desse vazio, esse nada que ‘0 personagens parecem olhat; um espectador eu olhar participa da linha de fuga dos olhares, jamais um interlocutor. Se a cinema de Ozu nos a impr sto de que os homens ¢ as coisas se mostram como eles so om si, 6 que os dispositivos filmicos sio paracloxalmente arbitrdrios € sem origem. O cinema cle Ozu consegue o milagre de criar um tipo de “enunciagio” que diz: “eis aqui, mas um eis aqui que ndo vemetetia, ‘como em tantos outros cineastas, A autoridade do mostrador, ao ‘eu’ que elegeu 0 ‘isso’ em questao (eu escolhi mostrar isso), nem a necessidade histérica de um destinatério subjugado (veja isso que é para vocé)".” Assim como os espagos e olhares descontinuos, desconectados, 08 espagos vazios nos dio o sentimento de uma enunciagdo sem autor, ce um olhar sem sujeito, de uma presenga concreta criada por uma enuneiagao vazia, Mu Muitos filmes de Oz comegam com imagens de espagos vazios, como fem Pai e Fitha: és planos fixos da estagio de Kamakura vista do exterior, onde temas pedagos do prédio, drvores, flores cte..¢ um plano fixo do teto de um templo, cujas arestas formam diagonais simétricas. s espagos vazios ~ exteriores ou interiores vazios le acontecimentos € petsonagens ~ podem muitas vezes surgit numa cena, como inserts, ou entre uma cena ¢ outea, No enlanto, ao conteatio do que se pensa, jo possuem nentiuma fungao narrativa, seja ela ritmica ou dlesctitiva, como por exemplo a deserigio clo espago que engloba a eles A Arte do Interstfeio ¢ do Vazio ‘cena ou a situagdo narracla, Os espagos vazios de Ozu sao autonomos & atestam um estado dle pura contemplagdo, ao mesmo tempo em que sd0 fortes injegdes infinitesimais de a-temporalidade. Deleuze mostrou que 08 espages vazios (naturezas-mortas, D. Ritchie, stases, B. Schrader pilow-shots, N. Burch) se dividem em espagos ou pi moras, assim como em Cézanne." Os espagas vazios so Hecimentos puramente sticos € sonores num espaco vazio de acontecimentos. A natureza-morta € a imagem do vaso que se intercala entre os dois primeiros planos de Notiko, no quarto, logo depois que ela havia decidlide se easar (Pai e Filha); & a imagem belissima da gatrafa e do farol no comego de Ervas Plutuantes: do vaso com fiutas em Mulher de Toquio ou das frutos em cima da mesa em O que a Dama Esquecen?, No momento em que a imagem cinemalogrifica s confronta mais. estreitamente com a foto, ela se distingue desta radicalmentes “as naturezas-mottas de Oru duram, tém uma duxagao. os cez segundos do vaso: essa duragtio do vaso € precisamente a representagao do que pennianece, através da sucessao dos estados mutéveis. Uma bicicleta também pode durar, o que significa representar a forma imutével, isso que se move, a condigdo de permoneoes, de ficur imérel, colada no muro (em Historia de Ervas Flutuants). A bicicleta,o vaso, as naturezas mottas silo imagens putas © diretas do tempo. Cadla uma delas & 0 tempo, a cada vez, sob tais e tais concligées do que muda no tempo. O tempo é 0 cheio, ou seja,a form inalterada preenchida pela mudanga”." Com 08 espagos vazios ¢ as naturezas-mort Ozu se confronta com a questio do cheio e do vazio nas artes japonesa ¢ chinesa. O cheio eo vazio sio os dois aspectos ou dimensées da contemplagdo pura, mas também se relacionam com o pensamento clo permanente e do ef O que permanece é o tempo como forma pura, o que muda é 0 efémero, as coisas em sua neseéneias “Agora, diz Ozu, eu ereio que o que me atrai num filme é seu aspecto transitério, sua qualidade evanescente, 24 Cinema Existencial me sa ea morte do individuo como a bruma”.!? A morte da familia japonesa € a mort sso os principais temas da tiltima fase do cinema de Ozu, Mas a morte ho & um acontecimento irrecuperdvel, ela € coextensiva & vida © rmiiltipla (nds ndo paramos de morter), a morte uma instancia ao mesmo tempo permanente © mutsvel, césmica © cotidiana: forma pura € imutivel do que mud Ozu morreu, vitima de um cancer, em 1963, no dia do seu aniversario. Ble foi enterraclo em Kitaa-Kamakura, no templo de Enkaku-ji. A su nore negro, ndo traz nenhuma data antigo ~ Mu que significa tumba, uma pequena caiva ce mai ‘ou nome, somente um ideograma do chini vazio, nada, 0 nada.. Filmogtafia de Yasujiro Ozu Ozu teria realizado, entre 1927 e 1963, mais de cingtienta filmes. No centanto, muitos deles desapareceram, sem deixar tragos. A lista que se segue se refere aos filmes conhecidos através de espn ou negative, Wakaki hi, 1929 Hogoraka ni Ayre, 1930 Sono yo no Tuma, 1930 Kaishain Sekatsu, 1931 Ojosan, 1931 0 Coragao de Téquia (Tokyo 10 Gassho), 1932 Bu Nasci, Mas... (Umacete wa Mitakevedo), 1932 Mulher de Téquio (Tokyo no Onna), 1933 Hijosen no Onna, 1933 ekigoroko, 1934 eae de Eroas Flatwantes (Ukigusa Monogatari), 1934 Tokyo no Yado, 1935 A Arte do Intersifeio @ do Vario Jinsei no Onimotsu, 1936 Hitori Musuko, 1936 O que a Dama Esqueceu? (Shukujo Wa Nani Wo Wasurekata), 193 Toda“ no Kids Tol ae Chichi Ariki, 1942 Nagaya Shinshiroku, 1947 Kaze no Naka no Mendori, 1949 Paie Filha Banshun), 1949 As Irmas Munekata (Munekata Shimai), 19: Também Fomos Felizes (Bakushu), 1951 ~ Gchasuke no Aji, 1953 Viagem a Téquio (Tokyo Monogatari), 195 Soshun, 1956 ements t Tokyo Boshoku, 1958, Flor Higanbana (Higanbana), 1958 Eroas Flutuantes (Ukigusa), 1959 Bom Dia (Ohayo), 1960 Dia de Outono (kibiyori), 1960 Fim de Verdo (Kohayagawe-ke no Aki), 1961 4 Rotina Tem Seu Encanto (Sanma no Aji), 1962 Notas ‘0 fa é wna nogdo inerente a cultura japonesae signifi um inerstcio ou uma Tuptara entre dois elementos ou agdes sucessivas, O Mu € i chines antigo que signilica vazi igno do sada, 2 Paulo sob o qual o fi {oi langado comercislivente no Brasil, * OZU, Yasui. Pour Parlr de Mes Films, In Positif, 208, p. 25, A vevista Cinema Existeneial Positif consagrou vérios dossiés a Ozu com texios de Hubert Niogvet, Michel Cimein, Dotinique Paini, Jacques Petat, Joel Magny, K. William Guérin, entre outros (cf a! 205, 265 e 266). * Uma sequencia inesquectvel desse filme: os filmes amadores lo patrdo sto projetados para 0° filles dos fancionsrios que descobrem que seus pais S30 fubinissos 208 patrbes. Como conseqiéncia, eles fazem geeve de fome. Ja ein Bont Dia, de 1959, as exiangas fazem gveve de fome porque os pais tiram a televisio de casa SOZU, Yasujito. Op. cit. p. 25 Cf, WATTS, Alan, O Bucismo Zen. Lishon: Presenga, 1979, p.42. Ver também ANDERSON, Lindsay. Tico Inches off Grou, In Sight and Sound w#27, 1957- '58, Este foi um dos primeivos artigos sétios escritos no Ocidente sobre Ozu. * A respeito da prevaléncia da composigao sobre as regias de continuidade na ‘obra de Eisenstein, cf, BURCH, Noel. Praxis di Cinéina. cap. 3, Plastique da Montage. SBERGALA, Alain, LHomave qui se Lave. In Cahiers du Cinéma 811, 1980, pp. 24-30, ° Op. cits p30. ™ DELEUZE, Gilles, Cinéma 2: Umage-Temps. Paris: Minuil, 1985, p. 26: RITCHIE, Donald. Ozu, University of California Press, 1974; SCHRADER, Paul. Transcendental Style in Film: Ozu, Brascon, Dreyer. University of Califomia Press, 1972; BURCH, Noel. Pour un Obsercateur Lointain. Pais: Cahiers du Cinéma-Callimard, 1981 ™ DELEUZE, G. Op. cit. p28. "020, ¥. Op. cit. p.19 A Arte do Intersticio e do Vazio | O Pequeno Teatro e a Grande Ilusdo “Je joue Ti joues Nous jouons Aue Ta Crois quil ya Une régle du jew Pare que tu es un enfant Qui ne suit pas encore Que cst un jew et qui est Reservé aus grandes personnes Dont tu fas ga pantie Parce que tu as oublié Que e’est un jew enfants En quoi consiste-teil ya plusieurs definitions En voila deus ou tois Se regarder Dans le miroir des autres Oublier et savoir Vite ot lentement Le monde Etsoi-méme Penser et parler Diole de jeu Crest la vie Godard - 1967 Cinema Existencial Jean Renoir, segundo filho do pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir, nasceu em Paris a 15 de setembro de 1804. Para ele, ar um empreendimento, mas um moxloe vida, una maneiade positivar a vid, busca constante da arte de viver, da alegtia de viver, Se a arte reflete um modo de vida € porque a existéncia precede a esséncia: “existamos primeiro”, diz Renoir, “e depois veremos”, Tuo em Renoir aspira a liberdade de exist@ncia e& verdadeiea nobreza do homem: aristocracin do coragio” (André Bazin). Grande parte dos filmes de Renoir foram realizados en. cenirios naturals ‘econ som clireto e lemonstram uma grande ate! ddas coisas e dos seres, uma visio sensual da natureza, Quando Boul so pela singularidade (Boudu Sauré des Baws.) se salva das iguas ¢ aborda a margem do rio, tuma panorimica lenta de 360 graus olha a paisagem, indicando 0 espago ea liberdade reencontrada por Bouelu, mas mostra também, cle forma poética, a heleze singular das margens «lo Marne, “No final do movimento”, diz Bazin, “a e&mera enquadra a selva da margem de perto, e pode-se ver distintamente a poeira branca que o vento € 0 calor levantaram do caminho, (..) Se eu fosse privado até 0 fim dos rmeus dias do prazer de ver Bouclu, no esqeceria essa relva e sua poeirae a relacio que ela estabelece com a liberdade de um elochard™.! Renoir tem uma predilegdo especial pela égua e pela relva, os titulos dos filmes o confimam: La Fille de Eau, Boudu Sauré des Baux, Une Partie de Campagne, O Segredo do Pantano (Swamp Water), A Muller Desejaca (The Woman on the Beach}, O Rio Sagrado, Le Déjeuner sur PHtecbe Quando Bazin comegou a defender a substituigao do plano pela cena, wlidade de-campo.em Renois; Welles, anderam que ele fazis um simples provocada pela utilizagio da prof Willer eos neo-vealistas, muitos e apelo.a um cinema realista. & vertlade que, para Bazin,a profundidade de campo tem como efeito um aparente actimulo de realidade, mas ela 0 Pequeno Teatro « # Gran 29 i implica também, ¢ de modo mais profundo, em uma neva forma de realidad, onde o real nd é mais representado ou reproduzido através de modelos preestabelecidos, mas, sim, visado Em lugar de uma tmontagem organica, ce uma representagio orgénica relacionada a agio do homem sobre a realidade, de uma instancia construtora de onivicéncia (0 earster analitico das planos) ¢ de oniseiéncia (o catéter sintético da montagem), Bazin defeudia a presentificagao de um real ambfguo, indiferente, a set decifrado, ¢ sobretudo um olhar eoncreto que se colacasse diante da realidale como se esta fosse auténoma, insignificante: um mero ponto de fuga, Com a profundidade de campo © cinema perdeu a presungdo dle um olhar que relaciona tudo com a ago do homem sobre a realidade, De fato, a profundidade de campo ‘em Renoir atesta uma mutagdo da imagem cinematogréfica comparaca Aquela ocorrida na arte da paisagem Num texto belissimo scbre a representagao da paisagem na pintura, Rainer Maria Rilke mostra que existiu uma lenta transformagao do mundo em paisagem, correlativa @ uma evolugao co homem. Segundo Rilke, para o antiguidade, a pai gem era uma cena vazia que no existia, que ndo tinha sentido nenhum enquanto © homem nao aparecesse, animanclo-a com a ago serena ou thigica do seu corpo. A paisagem era orgtnica, isto é, ela era vista pelo olhar prevenide do homem, que relaciona tudo com ele mesmo, com suas necessidades ¢ seus interesses: era desconhecida a paisagem que ndo fosse relacionada A aco do homem sobre ela; “desconhecida a montanha em que nenhum deus com resto de homem morasse; clescouhecido o promontérie onde no se erguesse nenhuma estétua visfvel a distancia"? Lembramos ‘que no cinema os planos sto classificadtos ¢ reconhiecidos em fungio dlas partes do corpo humano enquadradas, Além disso, eles representam 4 ago do homem no ruundo: o que ele vé (plano geral ou imagem= Percepedo),o que ele faz (planio médio ou amorieano ou imagemagio) © 0 que ele sente (primeiro plano ou imagem-afecgao). Se pata a 30 Cinema Existeneial antiguiddade a visio do homem era orginiea, é porque tudo o que ele via tinha significado em fungao do seu corpo: tinia coisa que retinha 0 seu olhar. “O homeni", diz Rilke, “embora existisse hé milénios, era ainda nove demais para si mesmo, estava por demais encantado consigo para dirigir o seu olhar para outro lugar longe de si mesmo”. Mas eis que 4 paisagem se forma arte ao mesmo tempo em que se torna um prelexto para a expresso de um sentimento humano: aleg biedade, uma profuundidade quase indizivel. Poucoa pouco,¢ de forma imperceptivel, o pathos se dissipa e se retira da paisagem ¢ a paisagem vai ganhando sutonomia, autonomia de uma natureza em devin, de uma ante sut6noma em devit; Quando o homem comega a sentir a paisagem como uma coisa dlistante, diferente dele, como uma realidade de que rio toma parte ¢ que esté af, radicalmente fora, uma realidade que nao tem sentidos para nos perceber, realidade indiferente, sé ento.o homer pode compreendé-la, “E quando o homem, mais tarde, entrow nesse ambiente como pastor, camponés, ou simplesmente figura no fundo do s bisteza, quadro, ele havia perdido toda presungao e via-se que ele nio queria ser nacla além de uma coisa (..), que ele estd colocado entre as coisas como uma coisa, infinitamente s6, e que toda a comunidade se afastou das coisas ¢ dos homens se retivou para a profundidade comum onde se nutrem as raizes de tudo o que cresce”, Este texto de Rilke poderia ser uma descrigio das cenas em que Legrand (La Chienne, 1931), Boudu 0 batdo (Bas- Fonds, 1936) se encontram, no final do filme, solitérios, ha natuteza, enn meio & profundidade calma das coisas ile profunda é que a substituigao i independente da significagio que ela reveste para cada um de nés: 0 que Bazin nos diz de forma or do plano pela cena € uma posturs diante da reali ue, que a toma realidade indiferente, natureza indiferente, cena insignificante, o- sempre-fora, E verdade que em Renoir nés encontramos as mesmas fungdes descritas por Rilke em relagaio a arte da paisagem, Ora ela é um pretexto para a expressio de um sentimente humano — 0s péntanos 0 Pequeno Teatro ¢ a Grande Husio 31 de Sologne refletem a sithueta pessimista dos convidados (A Rega do Jogo,); 0s veclemoinhes do rio sob a tempestacle refletem 0 vemorso da mulher que acabara de fazer amor (Une Partie de Campagne) =. ora ela dleixa de ser um paleo dos sentiments hun uum ponto de f como em 0 Rio Sagrado, onde v Ganges, sereno e majestoso, € uma nos e reveste a forma de cespécie de imagem do tempo, de forms pura do tempo, horizonte e6smico ‘onde Harriet se encontra conto uma coisa entre as coisas. A Regra do Jogo conta a histéria de uma eagada e de um baile a fanta- sia organizado nas propriedades de Robert de la Chasney e sua mulher, Christine. Um quiproqué amoroso vai precipitar, durante a festa & fan tusia realizada no castelo, a queda das miscaras e a morte de Jutiet, 0 viador, assassinado por engano pelo guarda flovestal Schumacher, que pensava se iratar do amante (Marceau) de sua mulher (Lisette). Grande cléssico dos cineclubes, A Regra do Jogo € considerado a obra-prima de Renoir embora seu filme mais conhecide do pablieo sejaA Grande Mustio. A Regra do Jogo reine todas as descobertas, no campo dos processos artisticos, do cinema de Renoir: a auséneia quase total da utilizagio de pr neito plano € do campo/coniracampo, elementos Inisicos da decupagem elassica a utilizagio da profandidace de campo, do plano seqitéucia em movimento, do som direto © dos cenérios naturaiss a recusa de uma intriga linear, da dramatizagio e da divegao convencional dos atores ¢ o gosto pela improvizagio. Tudo isso faz de A Regrado Jogo um grande precursor do cinenta moderna, comparivel a Cidadiio Kane. O titulo do filme exprime nitidamente a dialética que se estabelece entre 0 método de filmagem e os processos filmicos de conterido e forma, De que regra se trata seniio daquela que rege a vida dessa socieclade «ue s6 consegue prolongar a sua existéncia através dle uma regra absurda, a mentira: dos sentimentos, dos ates, dos propésitos, 32 Cinema Existeneinl dos papéis? De que jogo se traia seno do jogo absurdo que consiste jos, 08 dois incipio da reatidade ‘em morrer cle amor? A regra ¢ 0 jogo sio os dois prin movimentos que determinam esta sociedade: 0 (aregra) 0 prineipio do prazer (0 jogo). Do ponto de vista da organizagao formal. o filme segue esta mesma dielética: por um lado, o drama, por outro, a parédia, a farsa: por um lado, a inteiga, por outto, independéncia dos temas que, como disse Bazin, se refletem © se interpelam para finalmente se disporem em eamadas coneéntrieas como ‘a madrepérola em tomo da miniscula impureza que eonstitui o nicleo papéis que 0 personagens encamnam, como s¢ essa histéria preexistisse ao filme € 4a pérola; por um lado, @ verossimilhanga da hist6ria e dos os papéis aos personagens, por outro lado, uma teatralizagdo, uma fabulagio e uma vontade de experimentagdo atingem os personagens ¢ os atores, de tal forma que eles transbordam os papéis e os propdsitos dramdticas, pondo em causa @ verdade da histéria e dos papéis. O método de filmagem de Renoir é um jogo de improvisagao e experimentagao tao intenso—nem o roteiro, nem a decupagem da cena so considerados regras a serem seguidas - que o filme acaba sico, subordinam a eriagao das imagens a regras cle continuidade ¢ « interpretacdo dos atoves 20s quebrando as convengdes que, no cinenns cli propésitos draméticos, na tentativa de convencer o espectador cla realidade material dos acontecimentos © da vendade psicalégica da ago, Diante das filmes de Renoir, o espectadoré convidado a participar do jogo e da multiplicidade de mascara. A Regra do Jogo € um carvossel de temas correspondentes que se interpelam em espiral e formam a inteligibilidade da intriga: as eaixas de misica, a pele de urso onde se debate Octave, @ agonia do coelho, 0 jogo de esconde-esconde nos arredlores do eastelo, as oposigbes entre os senhores e os empregados, entre 0 castelo e seus exteriores, entre 0 by tual com sua imagem i a fantasia e a cagada ete, Cada tema constitui uma oposigao vir~ cttide no espelho do carrossel, do la 0 Pequeno Teatro ¢ 2 Grande Llusdo 33 de pérola, Gilles Deleuze descreve como 0 uso da profundidade de ‘eanipo, em Reni fem que ela tem por fangao a eFingdo de umaSinagenm-cristal” que absorve o real num circuite aival/ “Vittual, ao mesmo tempo em que produz um ponto de fuga em _profundidade: “A Regrado Jogo (xz coexistira imagem atual dos homens ea imagem virtual dos a agen vietual dos uutdnomos, ~~ Wirlual de seus papéis durante a festa, a imagem atual dos senhores e a © sua imagem virlual nos empregades, a imagem atual dos empregaclos e sua imagem virtual nos senhores. Tudo é imagem em eapelho, mas a prafundidlade de campo dispde sempre no eircuito de um fundo pelo singular, ma medi ager alual dos personagens e a imagem qual alguma coisa pode fugir: E curioso que & questiio “quem ni joga e que Trulfaut, por iga «que € 0 aviador. O aviador, no entanto, fica preso ao a regra clo jogo?” se tenham dado varias resposta oxemplo, ¢i cristal, prisioneiro de sew papel. O tnico personagem fora de regra, interdito ao castelo & no entanto Ihe periencende, fora, mas sempre no fundo, é0 guarda florest do ter duble ‘ou reflexo. Irrompenelo, apesar da interdigio, perseguindo 0 vassalo uarda de caga, assassinando por erro o aviadon, ¢ ele que faz expledir eeristal rachado fazendo fugir 0 contedido, a titos de fuzil”.S n dentro, nem Em Renoir, o real e o espeticulo permutam seus papéis: 0 real se faz teatro, €0 leatrose torna uma presenga real. O cotidiano é identifieado ao espeticulo esubmetide a uma teatralizngso: as atitucles ¢ as posturas dda dona de casa obcecada por uma enceradeira elétrica (A Enceradcira Elétrica, episédio dle Le Petit Thédire de Jean Renoir) constituern um halé que submeie seu corpo a um jogo de mifscaras. Os préptios Personagens so av mesmo tempo atores © espectadores do eotidiano teatralizado, Em O Ultimo Réveilton (episédio de Le Petit Theatre de Jean Renoir), um easal de velhos mendigos ¢ ao mesmo tempo espectador do réveillon dos ricos, vistos como num paleo, at és de uum vidlro, ¢ atores de um jantar que eles organizam debuixo de uma a Cinema Existencial 2 a a ponte, com os restos cla comida do réveillon, Em quase todos os filmes de Renoir, jogo e 0 espeticulo sio objetos da fiegao: a petancle! (Le Petit Théatre de Jean Renoir), 0 jogo de cattas (Bas-Fonds), os brinquedos mecdinicos (La Petite Marchande d’Allumettes), o esconle- esconde (A Regra do Jogo, O Rio Sagrado), o baile a fantasin (A Regra do Jogo, A Grande Musto, A Besta Humana), a cagada (A Regra do Jogo, Le Bled), 0 musie-hall (Frencheancan), a commedia dell'arte (Le Carrosse d'Or) e, principalmente, o teatro (Le Carrosse d'Or, Le Petit ‘Thédure de Jean Renoir), Renoir sempre declarou sua paixio pelo teatro ¢ pelos atores. Lembremos que ele comegou a fazer cinema porque queria fazer de sua mulher, Catherine Hessling, modelo de seu pai ¢ ipal de seus quatro primeiros filmes, uma grande atria de trie pr nema. Freqiientemente, reformulava inteiramente um rot didlogo, uma cena, ou mesmo um personagem, pensando no ator rocuro seguiroaprenitizado de Shakespeare e Molidre, que escreviam para os atores”. Toni, filme sobre a vida dos operdrios imigrantes que trabalhavam no sul da Franga, € considerado um precursor do neo- realismo, entre outtas coisas, por ter sido filmado com pessoas da regio, essencial ¢ que em Renoir 0 teatto do € somente um objeto do filme, é 0 proprio filme que se designa como teatro, como espetécuo: ‘em Le Carrosse d'Or ¢ Le Petit Theétre de Jean Renoir, o espectador do filme se toma espectador de teatro, ou seja, o que ele vé é a prépria peca sendo representada. Nesses filmes, tudo representagao, representacao de representagiio como num jogo de eaixas chinesas. O teatro se acusa e triunfa: A verdade do teatro como representagao se substitui uma verdade do espeticulo como acontecimento: o eatto & esvaziado de sua artificialidade para fazer sair cele a vida, O cinema de Renoir implica, desta forma, numa destituigao do mundo como moclelo do filme, dos modelos de representagdo ¢ de reprodugio mecdnnica dla realidade. Para ele, nem o roteiro, nem os propésitos «lramticos e 0 contetido, sdo preexistentes ao filme: “é preciso no © Pequeno Teatro ¢ a Grande Husa 35, esquecer uma coisa que eu respeito 0 tempo todo”. diz Renoir, “é que se descobre o conteticdo do filme & meclchs que nés o filmamos”. No filme A Diregdo de Mores de Jean Renoir, de Gisele Braunberger, Renoit faz uma linda demonstiagio do seu méiodo de disegio de atores, servindo-se de Gistle como atriz: “Agora’ nés vamos ler (a cena) impedindlo absolutamente qualquer expressio... Bu lhe disse o porque, no? Se na primeita leitura de um texto, um ator procura dar una expressio, ele tem todas as chances de que essa expressdo sea um na tela ou que ji fez, que seja algo jé utlizado, Se voce chegar com uma Emily (personag; da cena) preexistente, nés no encontraremos a verdadeira Es Em seguica, referinclo-se a cena experimentacla: “Quando voc pensa na crianga mordida, vooé tem imagens que afluem imediatamente a0 seu eérebro,e voo8 imagina a txigiea mordida numa crianga, Ni deve”, Sobre a reagdo de Emily vendoa crianca mondida: “Pode ser que Emily ria quando ela sente muita dor... Pode ser que ela seja insultante.. Pode ser que ela cuspa, ou talvez que ela fique N6s nao sabemos ainda, Entao, nao fechemos o futuro decidinelo sobre fo que fara Emily, Nés nao o sabemos”. Essa passagem é exemplar no que concerne & nogao de que, em Renois, as idéias preconcebidas sobre que 6 0 personagem dao lugar a uma experimentagio que forga oator a se desfazer de si mesmo e a atingir uma espécie de nude necessiiria a0 aparecimento do verdadeiro personagem. F; como se, cansado dle tepresentaro ator parasse para tomas folego e, cle vepente, se tomasse, no ele mesmo, mas um outro, 0 personagen, cliche... seja uma rotina... seja algo que ele nével eno faga nada, Bazin dizia que a atte de Renoir &a arte da clefasagem: 0 ator, através de uma experimentagao, de uma teatralizagdo € de uma fabulagio improvisada, € forgado a ir além de si mesmo, tansbordando 0 seu papel e 0s propdsitos craméticos tanto quanto a sua pessoa, assim como nna pintura uma cor que transhorda o desenho. Daf a importancia do teatro e do fato de que, em Renoir, os atores freqiientemente interpretam 36 Cinema Existeneial papéis de personagens que representam e experimentam virios papéis. Deleuze mostra que, “em Renoir, o teatro é inseparivel, ao mesmo tempo para 03 personagens ¢ para os atores, desse empreendimente «que eonsiste em experimentar e selecionar papéis, até que se encontre © papel que transborda o teatro e entra na vida, Para Renoir, se o teatro épn 10, € porque a vida dele deve sair. O teatro s6 vale enquante busca de uma arte de viver".* Renoir cia uma imagem-eristal onde carla face vepresenta um aspecto do tempo conio forma pura, como devir que resine o presente,o passada €o futuro, O passuda é 0 conjunto dos papéis fixos, congelados, mortos, condenados & lembranga, prisioneires dlo passadlo: so 08 diversos papéis que Boudu experimentout na casa do livreiro; os papéis experimentados pelo convivas no castelo «do marques (A Regra do Jogo). que tentou em vo todos 0s aspectos do papel de marqués: 08 papéis experimentaclos pelos amantes de Chris- line (A Regra do Jogo) ¢ Camilla (Le Carrosse dO). papéis hersicos e rominticos initeis... O presente € 0 ato de experimentar papéis. O futuro € o que sai vivo da cena e do teatro. No final le Le Carrosse d'Or. 0 rei, 0 oficial e o tesoureiro, amantes de Camila, encontraram seus verrladeiros papéis, enquanto Camilla fiea presa no teatro, no cristal do tempo, até conseguir descobrir ou inventar seu verdadeiro papel. No final ile A Grande Husdo, os dois fugitivos da fortaleza conseguem a liherdade através do sacrificio do nobre, Boieldieu, que no soube renunciar a sua nobreza; no final de La Chienne, Bas-Fonds e Boudu Saun€ des Eaux, Legrand, Le Baron e Boudu conseguem atingir a nobreza, a libertlade através de um devir clochard; em O Rio Sagrado, Harriet seri salva porque soube renunciar #0 p pel de seu primeiro amor. Deste ponto de vista, ¢ em relagao ao tema que permeia toda a obra de Renoir (a oposigao entre senhores, nobres € ricos, de um lado, ¢ vassales, pobres e empregados, do outro), é interes- sante nolar que aqueles que se salvam souberam re papéis submetidos as convengies sociais. ES a0 sair do grande teatro © Pequeno Teatro ¢ a Grande Husio at f f das convengées que o tempo se dé como futuro, Daf a importincia da questo niuitas vezes colocada por Renoir e seus criticas: “Onde acaba teatro, onde comega a vida?” (logo de Le Carrosse '00). A Grande Husto €0 Ginico filme de Renoir que obteve sucesso imediato, ese tomou mundialmente conhecidlo, como um dos maiores filmes de todos os tempos, Durante @ Primeira Guerra Mundial, © capitao Mar Boieldieu ¢ otenen chal so capturadas pelos alemaes e presos num castelo para pris dado pelo capitao von Raulffstein Boieldieu ¢ Rauffstein se tomam amigos porque pertencem & nobreza. Depois de varias te fugir gragas ao sacrificio de Boieldieu. A Grande Husto é um carvossel de temas convergentes em torno do tema da ifusdio: ilusiio de um sem divisdo de ragas e classes, ilusto da liberdade atra ilusdo do final da guerra ilusdo ce que essa guerra € ttima e,enfim, ilusio de que todas essas ilusdes ajudama viver, Essa éa grande ilusio que Renoir ndo para de exprimir em toda a sua obra, 2 na vida, A ilusdo que cada um faz do papel que tem na vida nao como se esse fosse o melhor papel (ilusdo neurstica), mas como se essa ilusio fosse a dnica capaz de nos fazer acteditar miais no mundo em que vivemos. F que os homens parecem nio acreditar mais no mundo em que vivem. Tudo 0 que nos acontece, 0 amor, a amizade, ¢ mesmo a nos, con 3s de fuga, Marechal e Rosenthal conseguem 5 de evasiies, morte, parece no nos dizer respeito, como se acontecesse num filme, como se 9 mundo em que vivemos tivesse se tornado um filme, wm filme que vivemos como se fosse o sonho de alguém que dome, A io em Renoir & a vontade de viver uma vida que nos pertenga. A jo no tem como chjeto um outro mundo, futuro, melhor. Na verdade, trata-se de uma ilusto sem objeto: o que importa € a ilusdo em si, pura ilusdo como tinica forma de transformarmos o filme miserdvel em que vivemos num mundo positivo. Se Renoir tem uma grande consciéncia da identidade da liberdade do futuro, € que « ilusio é a vontade de vida no presente como se este fosse um futuro, No mundo em que 38 Cinema Existencial vivemos, ganha quem acredita nas regras, no modelo das convengies ¢ suas verdaces preestabelecidas, perde quent tem a ilusio de que nto hid verade, mas sim vontade, jogo, No pequeno teatro da grande ilusio, «quem perde, ganha, Filmografia de Jean Renoir (1894 - 1979) Ia Fille de VB, 1924 Nana, 1926 Charleston, 1927 Marpuitia, 1927 Le Petite Marchande d’Allumettes, 1928 Tire-avflane,1928 Le Tournoi dans la vite, 1929 Le Bled, 1929 On Purge Bebé, 1931 Le Chienne, 1931 La Nuit du Carrefour, 1932 Boudu Sauvé des Eaux. 1932 Chotard et Cie, 1933 Madame Bovary, 1934 Toni, 1934 Le Crime dle Mounsieur Lange. 1936 La: Vie Est & Nous, 1936 Une Partie de Campagne, 1936 nds), 1936 A Grande usco (La Grande Musion), 1937 Bas- Fonds (Les Bas: 0 Pequeno Teatro ¢ a Grande Tlusto 39. La Marseillaise, 1938 A Besta Humana (La Béte Humaine), 1938 A Regra do Jogo (La Regle du Jeu), 1939 * Petancle 6 wn jogo com bolas de gude grades, de ago, muito difandido na La Tosea, 1940 2 haa 0 Segredo do Pantano (Swamp Water), 1941 a Esta Terra é Minha (This Land is Mine), 1943. S *DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 115. Salut 4 la France, 1944 eS Amor @ Terra (The Southerner), 1945 = Segredos de Aleova (The Diary of a Chambermaid), 1946 . A Mulher Desejada (The Woman on the Bexch), 1947 Rio Sagrado (The River), 1951 Le Carrosse d’Or, 1952 = Frenchcancan (Freneheancan), 1955, > As Estranhas Coisas de Paris (Bléna et les Hommes), 1956. - 0 Testamento do Dr. Cordelier (Le Testament dt Dr. Cortleliet), : 1963 Le Déjeuner sur PHerbe, 1959 Le Caporal Epinglé, 1962 Le Petit Phéitre de Jean Renoir. 1971 furt: Insel-Verlag, 1965. DELEUZE, Gilles, Cinéma 2: "Image-Tomps. Paris: Minuit, 1985, p. 114. i | i | t Notas "BAZIN, Andvé. Jean Reno Pais 6d, Chap Libre, 1971, p. 73. Clachant um vagabunde por escolha que perambula pela cidade, set trabalho sent * RILKE, Rainer Maris, Das Landschaft In Stimtliche Werke, Tomo 5. Frank 40 Cinema Existeneial © Pequeno Teatro ¢ a Grande Iusae al Modelos de Vozes Brancas Robert Bresson 6 um dos narus cineusias que nado fazem concessio de nenhuma ordem: seus filmes sempre foram rigorosamente realizados sem a utiizagdo de atores profissionais ¢ tuclo 0 que os cerca (efeitos teatrais dos gestos, atitudes e vozes), Seu tom lirica, Limpiclo litirgico S€ opde wo clrama psicoligico & ao expressionismo. Comparados a Bresson, os realizacores, em sua maioria, parecem meros fu tos da incisteia do espeticulo, Tudo isso explica talvex, a dificuldade que cle encontrou para realizar seus filmes (doze em 40 anos). Bresson tenovou a coneepso da adaptago, clo ator, da montagem, do enquadramento, das relacdes do som ¢ da imagem e da wartativa cinematogrifica, abrindo caminho para alguns dos mais i ressantes cinenstas do nosso tempo: Alain Re: Erie Rohmer, Jean-Lue Godard. Jean-Marie Straub, Agnes Varda, Jean Eustache, Maurice Pialat, Marguerite Duras, Andrei Tarkovsl entre outros, A titulo de exemplo cabe citar alguns testemunhos, Jean Cocteau: “Bresson existe A parte nesse diffeil metier":! Godard "O que caracteriza Bresson é que ele nos ensinou muito, a nés da nowrelle eague, pelo rigor de seu Pensamento, sem jamais desviar da sua linha: qualquer que seja 0 isco ou violéncia das coisus, ele vai até ofurido dos homen “Bresson € para o cinema francés 0 mesmo que Dostoievski para a litera russas! Eric Rohmer: “Digamos, se issn for o bastante para o elogio dleles, que depois de Rouch e Bresson, ndo se pode mais interpreter Como antes"! Marguerite Duras: “O que os homens faziam até ai em 42 Cinema Existencial pocsia, Bresson 0 faz no cinema” Les Dames du Bois de Boulogne, 1 As adaptagies le Robert Bresson partir de Diderot; Le Journal d'un Curé de Campagne ¢ Moucheite, a Virgem Possutda, x partir de Georges Bernanos; Une Femme Douce € Quatro Noites de um Sonkador, a pautir de Dostoievski, ¢ VArgent, a partir de Tolstoi ~ sao ao mesmo tempo muito € muito pouco fiéis, Vejamos 0 caso do Diério de wm Pdroco de Aldeia, que pode servir dle modelo para 2 compreensio do métodlo de Bresson. O filme relata a cexpetiéncia de um jovem padze na sua primeira paréquia: suas relagdes dzaméticas com as pessoas do vilarejo e do eastelo, os progressos de su misteriosa doenga ¢ 0 processo que o leva a ser prisioneiro da Santa-Agonia. £ indtil procurar uma fidelidade direta ao livro de Bermanos:a diferenga entre os dois autores é evidente:o temperaniento de Bernanos, seu universo quase sobrenatural, onde consinama profusdo de imagens, a magia do verbo, 0 sarcasmo € 0 tom polémico dos sentimentos, estd mais préximo cle um Dostoievski ¢ le um Léon Bloy do que do universo de Bresson, aparentemente carregado de classicismos ¢ do reptidio aos efeitos expressionistas. maior paradoxo da fidelidade do filme consiste no fato de ele ser mais “literério” que o romance. Bresson no $6 ndo transpBe em didlogo as passagens do livro em que o parocod’ Ambricour relata determinada conversa, como também impede que os verdadeiros dislogos (diseurso dlreto) sejam interpretados como no cinema € no teatro habituais: ele pedle a seus atores ~ Bresson utiliza 0 termo “modelo”, jé que eles nao tém nada dos atores convencionais ~ para dizé-los numa entonagio recto tono, monocérdia, sem inflexdo: si as chamadas vores brancas dos modelos bressonianos, que falam como se escutassem suas prprias Modelos de Vozes Brancas palayras ditas por um outro, Neste sentido, os diglogos perdem o valor de discurso diteto e passam a valer como disourso indieto live {enunciagio fazendo parte de um enunefado que depende de uma outta ‘enunciagio): eu falo e, quando falo, & como se um outro falasse. Lembremos, de passagem, que Dostoievski ¢ Bematias sio mestces clo diseurso indireto livre, Dostoievski dotava seus personagens de estranhas vozes, Em Quatro Noites ile um Sonkador um deles diz: “quando voe fala, dé impressio de estar lendo urn livto”. Eo caso dos atores do Didrio de um Pdroco de Aldeia, que falam camo se estivessem lendo 0 livro de Bernanos, apontando, assim, para a materialidade da eseritura do romance, Sonoridade Muitos autores do cinema moderno (Rohmer, Resnais, Straub, Pialat, Duras) atingem certa literasiedadle das vozes ¢ impedem que ressondncia diteta ¢ a dialétiea interior/exterior se estabelegam. Bo que se pode chamar de dliscurso diteto impessoal (Flaubert ¢ Bakhtine) ou discurso indieto livre, neutro (Blanchot), afoeal ou afénico (Duras). Assim como o discurso indiveto livre, indiztvel na Hingua falada, os dialogos e naragaes d tes autores se liberam da fungiio comunicativa dla Hinguagen’ e se tomam, nfo somente literérios, mas propriamente sonoros: “Diziam-me”, diz Resnais, “é literdrio, Eu respondia: nfo, é sonore”. As vozes branieas, monocérdicas, dos modelos de Bresson, tam pelo menos duas fungdes: de um lado, deixam pressentir que 0 ‘que é dito nfo remete a nenhum sujeito determinado, pelo contravio, 0 sujeito de emmciagdo cai numa relagdo de indeterminago, Por outvo 44 Cinema Existencial lado, apontam para 8 materialidade ea sonoridade do diseurso, 0 Didrio de Bernanos ¢ como um acontecimento, um personagem do filme de Bresson: as cenas do didrio e do piroco eserevento rompem a sétie de acontecimentos e conferem ritmo & narrativa, Mas a colocagio em evidéncia desses materiais “abstratos” e a progressiva elaboragao do ato de escrever dispensam sua representagdo, Na yerdade, Bresson nio adapta v texto de Bernanos, ja que ele o mostra como um fato estético bruto, Se o texto se libera das imagens, estas dltimas se tornam rmuclas: “devemos dizer”, pergunta Buzin, “do Didrio, que ele € um filme mudo com legendas faladas?”.” O fato € que a palavra nito se insere na imagem como componente realista ¢ que Bresson substitu pura ¢ simplesmente o romance de Bernanos por uiia montagem r= iofoniea € um filme mudo. Aqui, jamais o som completa e que é visto, embora o reforce eo multiplique. A partir da imagem e em relago & banda sonora, se organizam sigas de potenciais estéticos cuja tensio vai se tomando pouco a pouco insustentavel. No final do filme, a imagem se retira da tela em heneficio do texto de Bernanas. “Ao ponto onde chegou Bresson”, diz Bazin, “a imagem sé pode dizer mais dlesaparecendo. 0 espectador foi progressivamente levado a essa noite los sentilos cuja Gnica expresso possfvel é a luz branea sobre a tela®." Fis af a que tendia esse cinema aparentemente clissico: volatilizar a imagem e ceder o lugar ao som 0 Lexto do didtio, Assim como a péigina branca de Mallarmé ¢ osiléneio de Rimbaud sio um estado sublime da linguagem, a tela esvaziada de jmagens marca aqui o triunfo do cinema, muitas vezes vencido em sua falsa especificidade, a de uma arte da presenga: em geral, presenga tla violencia e da pornogratia Modelos de Vores Brancas i | O cinema de Bresson, como a literatura de Bernanos. exprime Profundamente a vida espiritual: « paixio de Lancelote (Lancelot du Lac) ele Michel (Pickpocket),afé de Joana d'Arc (Le Procés de Jeanne Arc), 0 sacrificio do psiroco e de Mouchette, a graga de Anne-Marie (Anjos do Pecado) e ce Jacques (Quatro Noites de um Sonhador), a salvagio de Thértse (Anjos do Pecado) e de Lucien (Urgent). No Dictrio de um Paroco de Aldeia, assim como nos outros filmes de Bresson, 0 Yalor das imagens no procede dos acontecimentos mostrados, mas sim de uma espécie de encaleamento tle alos livres e coincidentes, onde a elade € o destino, 0 acaso e a graca, se condensam numa modalidade de energia estética que nao avanga sem recomegar (dutagio). No Dictrio, como em Le Procés de Jeanne d'Are presenta sob a forma de estagio: marcha ¢ paixto se parada” do personayem, esse respeilo, ndo ¢ intl assinalar as conjungses Virtunis entre a vida do péroco e de Cristo, os vémites de vinho e de sangue, 0 sangue da Paixio ea esponja de vinagte, estopa de Seraphita © 0 véu de Ver6nica... Cacla um dos filmes de Bresson narra a “evolugdo” espiritual de um personag » eonfrontacla com os acontecimentos (situagio au histéri). Mas o que interessa a Bresson €a parte do acontecimento que transborckt 8 sua realizagdo, ou seja,a detemminagio espiritual. A hist6ria é hori- zontal, enqu nto u determinagdo espiritual é vertical. O personagem bressontiano deve afiontaro acontecimento do interior: ele deve merecd- Fotransformando-o no seu etemo contemporaneo. Eo que Charles Peguy “internet” fintemo), wo lugar de “éternel” (eterno). 0 encontro do personagem e do acontecimento, a situagao ou hist6ria, se chamava de realizn no espago e no tempo, no presente abstrato e continue, Mas 0 46, Cinema Existeneial verdadeiro encontro ~a fé, a graga,o s wrifcio, « amor —€ a parte do acontecimento que nio se confunde com o estado de coisas determinado (situagies, compos, enunciados etc} 0 verdadeiro encontru est sempre pata acontecer ao mesmo tempo em que sempre aconteceu. “Amar”, diz Guimaries Rosa, "é se unir a uma pessoa future, tiniea, am dlo passa”? No cinema de Bresson, a determinagio espiritual"* se exprime através dle um espago regido pela fragmentacio 0 “espago qualquer” (Gilles Deleuze). Deleuze mostiou em que consiste a novidade do espago qualquer bressoniano. Trata-se dle um espago ot imagem que nto prolong ao infinito um estaco de coisas e que nio se encacleia segundo stabelece como mundo. 0 as relagses sensério-motoras que o homie “espago qualquer” resulta ce uma slternativa entre um estado de coisas € 8 virlwalidade que o ultrapassas é a parte do acontes mento que no se reduz ao estado cle coisas determiinado: & 0 mistério desse presente recomecade acima descrito, No cinema de Bresson, os espagos, corpos e objetos nio sio mostrados intelramente, eles sdo submetidos & fragmentagao. A fragmentagio para Bresson “é indispensivel se ndo quisermos cuir na representagao, Ver (8 Seres © us coisas em suas partes separacas, solar essas partes. Toris- las inlependentes a fim cle thes dar uma nova dependéncia”.""A nova dependéncia significa que o cinema adquire uma nova dimensto perceptiva e afetiva: de um lado, o espago se tora pura conjungio virtual, puro lugar do possivel e, de outro, ele exprime o afeto enquanto fo submetidos a potencialidade pura, Os espagos fragmentades cencadeamentos rfimicos ¢ téeteis variivels, cuja conexio é daca pelo espitito, a alternincia do espitito ou a escolha (Deleuze). Modelos de Vozes Branicus a uma linha de pensadores moralistas e religiosos que se opdem i moral e & religido, Pascal, Kierkegaard, Peguy, Bernanos ¢ Bresson forma Segundo Deleuze, com eles se lesenvolve uma icléia muito interessante: a altemativa ou a escolha do espirito remete ao moclo de existéncia daquele que escolhe ¢ ndo ao combate, i oposigio e & alternaincin do bem e do mal. Cada um dos personagens cle Bresson tem um modo de existéncia concreto: 0s homens brancos clo bem e da virtude, guardas lirdnicos da ordem e da religiéo ~ o paroco de Torey (Didrio...), 0 delegado de Pickpocket, a maclte Saint-Jean (Anjos do Pecado), tribu- nal de Joana d’Ate ~ 08 homens negros do mal a vinganga de Helena (Les Dames du Bois de Boulogne), a ruindadle de Gérard (Aw Hasard Balthasar), 03 crimes de Yvon (L’Argent), a violagio de Mouchette -, ¢ 0s homens einza da inceiteza (o ado, Lancelote etc.), Para Bresson, ‘a infamia ea hipocrisia estao tanto do lado do mal quanto do bem, pois ‘ehomem do mal e o homem da incerteza s6 podem escolher na medida em que negam que tenham escolha, seja em virtude de uma necessidade moral ou religiosa, seja em virlude de um estado de coisas ou situaga0 qualquer. A esses tréstipos de personagens, Bresson opie o personagem da escolha auténtica; ocrente ou o homem de determinagao espiritual, que escolhe escolher e, por isso mesmo, exelui todos os modos dle vida que consistem em nao ter escolha. Deleuze indica como o personagem dda verdadeita escolha se enconira no sactiffeio, ou se reencontra para além clo sactificio que é sempre recomeso (presente vivo, duragao etc.) © pairoco, Joana d’Ate, 0 condenado & morte (Um Condenado a Morte Escapou), Mouchette etc., encarnam essa situagao, Bresson inelui ainda um quinto tipo: o jumento Balthasar (Au Hasard Balthasar), que, ndo estando em estaclo de eseolher, s6 conhece o efeito Cinema Existencial | | das escolhas dos homens, nao podendo, desta forma, atingira face dos acontecimentos que transborda a sua realizado no espacoe no tempo, ‘ou seja, a determinagao espiritual. “Assim”, diz Deleuze, "o jumento 6 © objeto preferido da maldade dos homens, mas também a unio preferencial do Cristo ou do homem de escolha”” Filmografia de Robert Bresson Anjos do Pecado (Les Anges du Péché), 1044 Les Dames du Bois de Boulogne, 1945 Dirio de um Péiroco de Aldeia (Le Jounal dun Curé de Campagne), 1951 Um Gondenado a Morte Escapow (Un Comdamné a Mort s'Est Echappé), 1956 Pickpocket (Pickpocket), 1959 Le Proces de Jeanne d’Arc, 1962 Au Hasard Balthasar, 1966 Mouchette, a Virgem Possu(da (Mouchette), 1967 Une Femme Dowce, 1968 Quatro Noites de um Sonhador (Quatte Nuits d'un Réveur), 1971 Lancelot du Lac, 1974 Le Diable Probablement, 1977 Argent, 1983 Modelos de Yozes Brancas Notas * Preficio ao livro de Robert Briot: Robert Bresson. Paris: Editions du Cerf, 195 * Cineforum w# 56, Nenexa. junho de 1956, * Dictionnaire des Cinéustes Frangais In Cahiers die Cinéma 1 71, maio de 1957. *LActeur In Etudes Ginsmatographignes w# 14-13, 1962. ® Cineforum. Op. cit. “BAZIN, André, Le Journal d'un Curé de Campagne et la Stylistique de Rob- et Bresson, In Quist-ce le Cinéma’. Pats: Editions du Cerf, 1981; ESTEVE, Michel. Robert Bresson. Paris Editions Seghers, 1974 * Sobre a questao do discurso indireto live ei natogrifico, ver a tese dle versité de doutorado do autor, Narratiité er Non-Narraniivé Filmique, U Pavis VIL, 1987, divigida por Gilles Deleuze. " Op-eitp. 101. " BAZIN, Anulé. Op. ci, p. 120. " Op. cit. p. 123. " Sobre essa dstingdo, assim comoentrea histériae a deleninagto espirtual, of, PEGUY, Charles. Clio, Pavs: Gallimard, 1965 "ROSA, Guimardes, Netameéia. Rio de Jancir: José Olympio, 1979, 5 eligi, p. 125, 50 Cinema Existeneial * Sobre o“espago qualquer” ea “determinagao espritual” ou a“sltersaincia doespitito”, cf. DELEUZE, Gilles, Cinema Isa Imagen-Morimento. Sao Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 139-156, "' BRESSON, Hen, Notes sur le Cinémarographe, Paris: Gallimard, pp. 95- 96. 'S DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 148. Modelos de Vozes Branens 31 As Linhas de Fuga de Alain Tanner “A verdade 6 0 que ela pode; o falso, o que ele quer” Madame de Duras Em 1951, Alain Tanner funda, juntamente com Claude Goretta, 0 Cineclube Universitirio de Genebra, cidade onde ele nasceu em 1929. Depois de completar seus estudos universitérios (economia e administragio maritima), ele passa a trbalhar numa companhia de navegagio suiga. Numa de suas viagens, se estabelece em Loncles, onde, ainda em com no Brite ish Film Institute e, gragas a Lindsay Anderson, pai do free cinema, engaja-se nesse movimento. E dentro do espfrito dos documentaries do free cinema que Tanner e Gorettarealizam um pequeno filme (Nice unhia de Claude Goretta, estuda cinem: Time, premio de filme experimental do Festival de Veneza) de fim de curso, cujo tema &a massifieagdo do povo através dos meios dle diversi de massa, Entre 1956 ¢ 1969, Tanner trabalha, tanto na Inglaterra quanto na Suiga, na produgao e realizagao de n locumentétios ¢ reportagens para o cinema ea televisdo, Essa passagem pelo documentitio deixa marcas profundas na obra de Tanner, eujo cinema acusa uma forte presenga de elementos e dispositivos do is de cingtienta ema documentério ~ 16 mm ampliado, peliculas de grande lidade, objet reduzida, utilizagao de planos-seuti campo-contra-campo ~, que ma as luminosas, som direto, décor natural, equipe cia, & quase total au sam a maior parte dos movi ia de nos cinematogréficos dos anos 60 influenciados pelo neo-realismo italiano, Nouvelle Vague, cinema novo brasileiro, cinema novo do leste, cinema nove canadense... 52 Cinema Existencial sb mein eh i Em 1969, Tanner realiza seu primeiro longa de liego ~ Charles Mort ow Vif? — e ganha o Grande Prémio do Festival de Locarno. O filme conta a histéria das diversas rupturas e mutagées que afetam a vida vazia e monétona de Charles Dé, fabrieante de relégios suigos, Charles vive uma existéncia tio perfec «que ele fubrica: uma existéncia beatificantemente entregue d fe suiga estandardizada, De repente. sem nenhuma explicagio, 0 mo se desfaz e tudo desmorona. No momento de seu | como os mecanismos dle relojoaria mo aniversério, no decorrer de uma entrevista que con- cede a um programa de televisdo que o tinka por modelo do triunfo dla cidadio suigo, ele aban ‘prime: de stibito, as cadeias de clichés do mundo interior ¢ exterior, bem como os mecanismos dle sujeigio que os fazem circular de um a ‘outro se rompem, e Charles Dé comega a ver e viver as coisas em seu ‘excesso, sem met.foras ou clichés: Charles rompe com 0 “Deus” suico com tudo 0 mais, na. as aparéneias @ confessa tudo o que o ‘Toda socierlade tem seu intolerdvel quando ela aparece em seus aspectos radicalmente injustificdveis, Para que as pessoas suportem,a sin ¢ 20 mundo, € preciso que o intolervel tenha tomado conta de seus interiores, suas consciéneias, e que o interior seja como o exterior ‘Toda sociedade tem, ao mesmo tempo, seus mecanismos de sujeigao que nos tornam insensiveis a tudo que é intolersvel ¢ injustificavel. que ocorre com Charles Dé, mas também com outros personagens dos filmes de Tanner ~ Rosemonde (La Salamandre), Vincent e Frangoise (Le Retour d'Afrique), Jeanne e Marie (Messidor), Jonas e Yoshka (Light Years Away), Paul (Dans la Ville Blanche)..~ 6 que eles se liberam clos mecanismos da sujeigdo dos clichés e passam a ver e sentir tudo que no pode ser visto ou sentido, porque € intolersvel, seja em seu excesso de horror ou de beleza, As rupturas e mutagdes que afetam Charles Dé se lo em trés tempos segundo Tanner: 1) Charles-que-niio-fala. Charles paga com seu silencio cinqlenta anos de esforgo surgo. Uleera no As Linhas de Fuga de Alain Tanner 53 estomago, tileera familiar, vinhozinho branco traidor, tudo isso porque a palavras ndo estavam lefinitivamente mortas: elas sobrenadam na superficie tranqiila, 2) Charles-que-fala. No passado, os homens se dirigiam a Deus. Hoje, eles preferem de longe falar a televisito, A audiéncia é maiot, mas mais dificil de avaliar os riscos. Um pouco por acaso (mas foi por acaso?), Charles fer suas confi es 05 telespectadores. 3) Charles-

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