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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Exame de Direitos Reais – Turno Dia, Turma B – Época Específica - Exame de coincidência
3 de outubro de 2014

I
António é titular do direito de propriedade sobre o prédio Y sito em Lisboa, desde janeiro 1987,
com registo a seu favor. Em julho de 1997, celebrou, por escrito particular, contrato de compra e
venda do prédio Y com Beatriz e Carla, suas amigas, que não procederam ao registo de qualquer
aquisição. António convencionou com Beatriz e Carla que o imóvel apenas lhes seria entregue
em setembro de 1997, dado que aguardava a chegada de um familiar que passaria as férias em
sua casa durante o mês de agosto. Em setembro de 1997 António entregou a chave da casa a
Beatriz e Carla.
Em outubro de 1998, Beatriz e Carla celebram com Duarte, mediante escritura pública, contrato
de compra e venda do referido imóvel. Duarte, que não regista a sua aquisição, passa de
imediato a habitar o imóvel. Em novembro de 1998, Duarte vende, mediante escritura pública, o
bem a Eduardo, seu primo residente em Madrid, que regista a aquisição.
Em janeiro de 2002, António constitui sobre o referido, mediante contrato celebrado por
escritura pública, direito de usufruto a favor de Filipe, que não regista a sua aquisição mas passa
a agir sobre a coisa como usufrutuário.
Hoje, Eduardo muda-se para Lisboa e depara-se com Filipe que invoca o seu direito de usufruto
e afirma que o proprietário daquele prédio é António. Em qualquer caso, alega Filipe que as
obras realizadas no imóvel conferem-lhe “direitos”. Eduardo pretende agir contra Filipe e Filipe
e António pretendem agir contra Eduardo.

Quid iuris?

Duração: 90 minutos.

Alguns tópicos de correção:

 António é titular do direito de propriedade sobre o prédio e possuidor nos termos do mesmo
direito (cfr. artigos 1305.º e 1251.º do Código Civil, de ora em diante CC), desde 1987, e
beneficia do efeito consolidativo do registo e da presunção derivada do registo (artigos 5.º, n.º
1 e 7.º Código de Registo Predial, de ora em diante CRPr).
 O contrato celebrado em julho de 1997, com Beatriz e Carla, padece de vício de forma, dado
que não observou a forma legalmente exigida, nos termos dos artigos 875.º do CC e do artigo
22.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º
99/2010, de 2 de setembro. O vício de forma é cominado com a nulidade do negócio, por
força do artigo 220.º do CC. Atenta a nulidade do negócio (artigo 286.º CC) o contrato não
produz o efeito gizado no artigo 408.º do CC (articulação entre os princípios da causalidade e
o da consensualidade), pelo que o direito de propriedade mantém-se na esfera jurídica de
António.
 A nulidade do contrato impede a transferência do direito real, mas não impede a transmissão
da posse. Beatriz e Carla adquirem a posse por constituto possessório em julho de 1997 (e não
apenas em setembro de 1997; entre julho e setembro António é mero detentor – artigo 1253.º,
discutir se nos termos da alínea b) ou se nos termos da alínea c)). Discutir artigo 1264.º - é
possível a transmissão da posse não havendo transferência da titularidade do direito. A
opinião dominante é a de que, não havendo transmissão do direito (designadamente, por
nulidade do negócio), não há também transferência da posse por via de constituto possessório,
sem prejuízo de se poder transmitir por outra causa, maxime, tradição. Neste caso, a posse
apenas se poderá considerar transferida em Setembro de 1997.
 Caracteres da posse de B e C: posse não titulada (1259.º CC – a invalidade formal determina
que a posse seja não titulada), consequentemente presume-se de má-fé (1260.º, n.º 2,
presunção esta ilidível); pacífica (à luz do artigo 1261.º do CC, na medida em que não há
violência, nem sobre as pessoas, nem sobre as coisas, para quem admita esta); pública (dado
que se verifica a cognoscibilidade a que apela o artigo 1262.º CC); formal (não há
coincidência entre a posse e a titularidade do direito, que se mantém na esfera jurídica de
António, que perdeu a posse por cedência, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 1267.º
CC); discutir se efetiva ou não efetiva entre julho e setembro, pois quem tinha o controlo
material durante esses meses era António (sobre a posse efetiva/não efetiva, ver observação da
página seguinte); civil, considerando que B e C beneficiam da plenitude dos efeitos jurídico-
possessórios.
 B e C não registam, mas ainda que o fizessem, o registo não teria efeito consolidativo, uma
vez que não adquiriram o direito real por força do contrato, nem aquisitivo, dado que não são
terceiros nem para efeitos do artigo 5.º, nem para efeitos do artigo 17.º, n.º 2 do CRPr ou do
artigo 291.ºCC, como o não são para efeitos do artigo 122.º do CRPr.
 Quando em Outubro de 1998, B e C celebram com Duarte, mediante escritura pública,
contrato de compra e venda do referido imóvel, a forma é respeitada, mas o contrato é nulo,
pois consubstancia uma venda de bens alheios, nos termos do artigo 892.º do CC. Logo,
Duarte não adquire o direito por força do contrato. Afastar a possibilidade de B e C terem
adquirido por usucapião antes de alienarem a Duarte, pois ainda que B e C fizessem acessão
na posse com António (o que seria admissível dado que adquiriram a posse de um modo
derivado, artigo 1256.º), António tinha posse apenas desde 1987 e, não tendo B e C registado,
o prazo de usucapião seria o previsto no artigo 1296.º CC, 15 anos, dado a boa-fé (se
conseguissem afastar a presunção do n.º 2 do artigo 1260.º CC).
 Duarte adquire a posse por tradição (artigo 1263.º, alínea b), CC). B e C perdem a posse por
cedência (alínea c) do n.º1 do artigo 1267.º).
 Caracteres da posse de Duarte: titulada, não obstante a falta de legitimidade de Bernardo e
Carlos para a transferência do direito e a nulidade substantiva do contrato, logo presume-se de
boa-fé, é ainda pacífica, pública, formal, efetiva e civil (quanto a estes últimos cinco
caracteres atender aos fundamentos supra expostos).
 Quando Duarte vende, em novembro de 1998, mediante escritura pública, o bem a Eduardo,
seu primo residente em Madrid, é respeitada a forma legalmente exigida para o contrato, mas
o contrato é nulo por Duarte não ter legitimidade para a transmissão (artigo 892.º CC), dado
que não adquiriu por força do contrato e não podia invocar usucapião.
 Eduardo regista a sua aquisição. Discutir do efeito aquisitivo do registo de Eduardo e do
âmbito de aplicação do artigo 291.º do CC, considerando que há sucessivas transmissões
feridas de invalidade, e da distinção quanto ao âmbito de aplicação do artigo 17.º, n.º 2, do
CRPr. Discutir do requisito do prazo de três anos, nos termos do artigo 291.º, n.º 2. Não tendo
sido instaurada até novembro de 2001 acção de nulidade ou anulação da aquisição por
Eduardo, opera o efeito atributivo resultante do artigo 291.º/1, CC.
 Explicitar ainda que, quando Duarte vende a Eduardo, mediante escritura pública, sem que
esteja inscrito no registo como titulares do direito, há violação do princípio da legitimação,
consagrado no artigo 9.º do CRPr e apreciar quais as consequências dessa violação, e que
quando Eduardo regista sem que haja registo em nome de Duarte há violação do princípio do
trato sucessivo, consagrado no artigo 34.º do CRPr e quais os efeitos, atento em especial o
disposto na alínea e) do artigo 16.º do CRPr. Havendo inobservância do trato sucessivo, o
registo devia ter sido lavrado provisoriamente por dúvidas (artigo 70.º, CRP).
 Eduardo adquire a posse por tradição simbólica, nos termos da alínea b) do artigo 1263.º, na
sequência do contrato e Duarte, transmitente, perde a posse por cedência. A posse de Eduardo
é titulada, de boa-fé, pacífica, pública, formal (passa a causal se se sustentar a aquisição por
força do registo), efetiva (na medida em que Eduardo tem o controlo material da coisa,
considerando que os únicos casos legalmente previstos de posse não efetiva correspondem aos
artigos 1255.º e 1267.º/1, alínea d)).
 Em janeiro de 2002, quando António constitui sobre o referido prédio, mediante contrato
celebrado por escritura pública, direito de usufruto a favor de Filipe, já não é possuidor pois
perdeu a posse por cedência a favor de B e C e, caso se entenda que Eduardo adquire
tabularmente, à data António também já não é titular do direito, logo, a assim se entender,
António já não tinha disponibilidade para constituir o direito real de usufruto (oneração de
coisa alheia, artigos 939.º e 892.º), o que significa que Filipe não adquire por força do
contrato.
 Caso se negue a aquisição tabular a favor de Eduardo antes da celebração do contrato de
António com Filipe, Filipe adquire o direito de usufruto por efeito do contrato celebrado com
o proprietário António (cfr. artigo 1305.º, parte legítima para onerar o direito real de gozo
máximo, a propriedade, com um direito real de gozo menor como o usufruto), nos termos do
artigo 408.º do CC. Se assim se entender, o facto de Filipe não registar a sua aquisição apenas
determina que não beneficie do efeito consolidativo do registo, nos termos do n.º1 do artigo
5.º do CRPr.
 Filipe não adquire a posse de António pois este não era já a essa data possuidor, mas passa a
agir sobre a coisa como usufrutuário, pelo que é admissível afirmar que Filipe adquiriu a
posse nos termos do direito de usufruto (cfr. 1251.º do CC) por apossamento (artigo 1263.º,
alínea a) do CC) (discutir se há consequências para a posse de Eduardo, posse no âmbito do
direito real maior, face ao artigo 1267.º, n.º 1, alínea d) e artigo 1267.º, n.º 2, atento o facto de
que Eduardo só conhece que Filipe age nos termos do direito de usufruto em 2014).
 Ainda que Filipe seja tido como possuidor nos termos do direito de usufruto e como tendo
uma posse boa para usucapião (artigo 1297.º CC), não decorreu ainda o prazo para efeitos de
usucapião, não tinha por si tempo de posse suficiente e não podia fazer acessão na posse pois
adquiriu a posse de modo originário.
 Não podendo Filipe adquirir por usucapião, o proprietário seria, sem qualquer oneração,
Eduardo se considerássemos o efeito aquisitivo do registo nos termos do artigo 291.º do CC.
 Atentas estas conclusões, determinar-se-ia que podia agir em juízo. Através de que meios?
Eduardo podia intentar uma ação de reivindicação, nos termos do artigo 1311.º. Se
entendermos que Eduardo ainda mantém a posse nos termos do direito real de gozo maior,
pode intentar ação de restituição contra Filipe (artigos 1278.º e 1282.º).
 Atenta a alegação de Filipe de que as obras realizadas no imóvel conferem-lhe “direitos”,
importa discutir se estamos perante benfeitorias realizadas no imóvel pelo possuidor nos
termos do direito de usufruto e aplicamos o disposto no artigo 1273.º ou no artigo 1275.º,
consoante se tratem de benfeitorias necessárias ou úteis ou voluptuárias, ou se estamos
perante um fenómeno de acessão industrial imobiliária e devemos então aplicar os artigos
1340.º ou 1341.º consoante se propugne que Filipe está de boa ou má-fé. Discutir posições
doutrinárias e concluir aplicando umas ou outras normas consoante se entenda de aplicar o
regime das benfeitorias ou o regime da acessão.

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