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16/10/2017 O que é uma condição necessária?

Crítica
4 de Outubro de 2006 Lógica

O que é uma condição necessária?


Desidério Murcho

Usa-se por vezes um certo tipo de exemplos de condicionais, em contextos didácticos, que,
estritamente falando, não devem ser usados. Porque se usa esses exemplos, surgem
perplexidades com respeito à definição de condição necessária. O objectivo deste artigo é
mostrar que tais perplexidades têm origem no uso de exemplos inadequados, e explicar por
que razão tais exemplos são inadequados.

Por definição, uma condição suficiente é a antecedente de uma condicional, e uma condição
necessária é a consequente de uma condicional. As definições são as seguintes:

Def. 1) P é a condição suficiente de Q se, e só se, a condicional indicativa “Se P, então


Q” for verdadeira.
Def. 2) Q é a condição necessária de P se, e só se, a condicional indicativa “Se P, então
Q” for verdadeira.

Estas definições são metalinguísticas porque são mais claras deste modo. É fácil ver como
seriam as definições em modo linguístico: a segunda, por exemplo, seria assim: Q é a
condição necessária de P se, e só se, se P, então Q. Assim, uma condição necessária para
estar em Braga é estar em Portugal, pois se alguém está em Braga, está em Portugal.
Contudo, se usarmos um certo tipo de exemplos, parece absurdo insistir que a consequente
das condicionais é sempre uma condição necessária (ou seja, a Def. 2 parece errada). O tipo
de exemplos em causa é o seguinte:

1) Se estiver Sol, vou à praia.

Parece pura e simplesmente absurdo declarar que uma condição necessária para fazer Sol é a
pessoa que profere 1 estar na praia: parece evidente que a presença dessa pessoa na praia não
é uma condição necessária para que faça Sol. Contudo, é evidente que uma condição
necessária para estar em Braga é estar em Portugal — porque a seguinte condicional é
verdadeira: “Se alguém está em Braga, está em Portugal”. Ou seja, é falso que uma pessoa
que está em Braga não está em Portugal — mas é estranho afirmar que estar Sol quando

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quem proferiu 1 não está na praia é uma falsidade. Afinal, se a pessoa entretanto morrer e
não for à praia, nem por isso deixa de estar Sol.

As condicionais como 1, contudo, são enganadoras. Para explicar porquê é necessário falar
um pouco do tipo de coisas diferentes que podemos fazer com as palavras.

Podemos usar palavras para descrever estados do mundo, exprimir opiniões, fazer
promessas, ameaças e perguntas — entre muitas outras coisas. Um caso particularmente
interessante de coisas que podemos fazer com as palavras é promessas ou declarações de
intenções em geral. Ora, neste caso, escondem-se algumas subtilezas que é necessário
compreender correctamente. Quando alguém diz “Prometo devolver-te o livro que me
emprestaste” não está, estritamente falando, a fazer uma afirmação comparável a algo como
“O livro que me emprestaste é muito interessante”. O próprio acto de proferir aquelas
palavras constitui a promessa. É o que se chama um acto ilocutório (Austin 1962, Searle
1979): faz-se algo com as palavras que não é do domínio estritamente linguístico. Há vários
tipos de actos ilocutórios, sendo que só nos assertivos o locutor se compromete (ou simula
comprometer-se, se estiver a mentir) com a veracidade do que afirma. Assim, um acto
assertivo é algo como “Está a chover”: o locutor está a declarar o que julga ser um estado de
coisas do mundo; ou algo como “A pena de morte devia ser abolida”: o locutor está a
declarar o que julga ser uma verdade moral. Em contraste, os actos compromissivos não
comprometem o locutor com uma verdade, mas antes com o cumprimento de uma dada
acção. As promessas são o caso mais saliente de actos compromissivos — o locutor
compromete-se a realizar determinada acção. Mas qualquer declaração de intenções de acção
constitui um acto compromissivo — e o caso mais evidente é precisamente o caso da nossa
condicional: “Se estiver Sol, vou à praia”. Neste caso, o locutor está a comprometer-se a
realizar uma dada acção — ir à praia — no caso de se verificar uma determinada condição
— fazer Sol.

Assim, estritamente falando, a condicional problemática não tem realmente valor de verdade
— tal como as exclamações, perguntas, ordens ou promessas não têm valor de verdade. A
condicional “Se estiver Sol, vou à praia” é como a condicional “Se estiver frio, fecha a
janela” — tal como as ordens, as promessas não têm canonicamente valor de verdade.

É uma tentação tentar defender, contra a tipologia canónica de Searle e Austin, que as
promessas e as declarações de intenções têm afinal valor de verdade com base em algo como
o seguinte: se o João disser “Prometo devolver-te o livro amanhã” e não o fizer, dizemos
geralmente que o João mentiu. Mas este tipo de observação é insuficiente porque a
linguagem é demasiado vaga. Dizemos que ele mentiu tal como dizemos que uma
proposição é válida — porque usamos as palavras de forma algo descuidada. Estritamente
falando, o João não mentiu — apenas faltou à sua promessa. Se tivesse mentido, estaria a
dizer uma falsidade; se estivesse a dizer uma falsidade, não teria prometido; e se não tivesse
prometido, não poderia ter faltado à promessa — caso em que chegamos ao absurdo de ter
de admitir que é impossível faltar às promessas: tudo o que podemos fazer é mentir. Logo,
este argumento não estabelece que as promessas têm valor de verdade.

Outra motivação para defender que as promessas têm valor de verdade é a seguinte:
imaginemos que o João está a dizer “Prometo devolver-te o livro amanhã”. Alguém pode
correctamente descrever o que o João acaba de fazer dizendo “O João prometeu devolver o
livro amanhã”. Ora, esta última afirmação é claramente assertiva — exprime uma
proposição, ou seja, tem valor de verdade. Este exemplo pretende provar que as promessas
têm afinal valor de verdade. Mas de facto não prova coisa alguma; afinal, quando, em vez de
estar a prometer algo, o João está a beijar alguém, com certeza que o que ele está a fazer não
tem valor de verdade — mas a descrição do que ele está a fazer tem valor de verdade: “O
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João está a beijar alguém”. Assim, do facto de podermos descrever, com um acto assertivo, o
acto de prometer, não se segue que os actos de prometer são, em si, assertivos — e portanto
não se segue que as promessas têm valor de verdade.

As promessas são apenas um caso particular da classe geral de actos ilocutórios nos quais o
locutor se compromete com algo ou declara as suas intenções. Assim, quando alguém
declara que irá à praia dadas certas condições, a sua elocução não é assertiva — e como tal
não tem valor de verdade. Por isso, não se deve usar este tipo de condicionais
compromissivas quando se procura ilustrar as condições de verdade das condicionais — tal
como não se devem usar condicionais como “Se estiver Sol, vais à praia?” nem “Se estiver
frio, fecha a janela!”. É preciso garantir que nos exemplos para ilustrar condicionais
assertivas se usam exclusivamente condicionais realmente assertivas, como “Se estiver Sol, a
temperatura será mais elevada”, “Se alguém está em Braga, está em Portugal” ou “Se um
aluno tiver menos de 8 valores, reprova”. Compreende-se assim por que razão só no caso das
condicionais compromissivas as suas consequentes não estabelecem condições necessárias
para as suas antecedentes: uma condicional na qual a sua antecedente ou consequente não
constitui uma asserção é uma condicional sem valor de verdade.

Quem defende que as promessas têm valor de verdade não ficará evidentemente convencido
com este artigo — nem esse é o seu objectivo. O objectivo é apenas mostrar o seguinte: se
todos os exemplos que põem em causa a definição canónica de condição necessária como a
consequente de uma condicional indicativa verdadeira se baseiam em condicionais
compromissivas, a resposta a esses exemplos é simplesmente a canónica — mostrar que as
condicionais compromissivas não têm valor de verdade e portanto não estabelecem
condições necessárias. Cabe a quem defende que as promessas têm valor de verdade
apresentar uma nova definição de condição necessária.

Contudo, a definição canónica de condição necessária em termos de consequente de uma


condicional indicativa verdadeira parece ser colocada em causa por outro tipo de exemplos
que não envolvem actos compromissivos. Vejamos o seguinte caso:

Se está Sol, então 1 = 1.

Esta condicional é indicativa e verdadeira, dado que a sua consequente é uma verdade
necessária. Mas parece absurdo admitir que a identidade entre 1 e 1 é uma condição
necessária para fazer Sol. Logo, não devemos aceitar que as consequentes das condicionais
são condições necessárias.

Este argumento falha, mas esconde uma subtileza. Dado que se define condição necessária
em termos da consequente de uma condicional verdadeira, temos de aplicar à noção de
condição necessária o mesmo tipo de distinções que aplicamos às condicionais.

Costuma-se distinguir a condicional material da implicação estrita. A distinção é a seguinte:


uma implicação material, ou uma condicional, é verdadeira exactamente quando a
antecedente é falsa ou a consequente verdadeira. Assim, a condicional “Se Sócrates nasceu
em Paris, é egípcio” é verdadeira — apesar de ser intuitivamente falsa, pois temos tendência
para ler a condicional como se exprimisse a seguinte ideia: “Sendo as coisas como são, se
Sócrates tivesse nascido em Paris, teria sido egípcio”. Ora, esta condicional contrafactual(1) é
falsa, pois se Sócrates tivesse nascido em Paris, sendo as coisas como são, teria sido francês.

A implicação estrita difere da condicional material porque exprime uma necessitação da


condicional: uma condicional com a forma “Se P, então Q” só é uma implicação estrita se for
verdadeira em todos os mundos possíveis (isto é, quando □(P → Q)). Assim, a condicional

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“Se Sócrates nasceu em Paris, é egípcio” é uma implicação estrita falsa porque não é uma
condicional verdadeira em todos os mundos possíveis, apesar de ser verdadeira no mundo tal
como é. Consequentemente, ser egípcio não é uma condição necessariamente necessária para
Sócrates ter nascido em Paris — mas é uma condição materialmente necessária, ou
contingentemente necessária, pois no mundo tal como é a condicional indicativa é
verdadeira.

Eis outro exemplo: uma condicional como “Se alguém está em Braga, está em Portugal” é
uma condicional indicativa verdadeira, mas não é necessariamente verdadeira — por outras
palavras, a implicação material é verdadeira, mas a implicação estrita é falsa. A implicação
estrita é falsa porque não é verdade que em todos os mundos possíveis nos quais uma pessoa
está em Braga, está em Portugal — pois há mundos possíveis em que Braga é uma cidade
espanhola, por exemplo. O que isto significa é que estar em Portugal não é uma condição
necessariamente necessária para estar em Braga: é uma condição contingentemente
necessária para estar em Braga.

Voltando à condicional “Se está Sol, 1 = 1”: esta é uma implicação estrita verdadeira e
portanto é também uma implicação material verdadeira (todas as condicionais estritamente
verdadeiras são materialmente verdadeiras, mas não vice-versa). Portanto, a identidade entre
1 e 1 é uma condição necessariamente necessária para estar Sol: em todos os mundos
possíveis em que está Sol, a identidade mantém-se. Contudo, é contra-intuitivo dizer que a
identidade entre 1 e 1 é uma condição necessária para estar Sol. Isto acontece porque a
condicional não exprime uma relação causal entre a antecedente e a consequente: não é o Sol
que causa a identidade entre 1 e 1, ou que a torna possível. Por outras palavras, a condicional
não exprime uma condicional nomológica relevante. Por isso, a identidade entre 1 e 1 não é
uma condição nomologicamente necessária para estar Sol — mas é uma condição
materialmente necessária para estar Sol, porque é uma condição estritamente necessária para
estar Sol. Para que uma consequente seja uma condição nomologicamente necessária da
antecedente, a condicional em causa tem de ser nomologicamente relevante: algo como “Se
está Sol, a temperatura aumenta”. Dado que quando uma condicional refere fenómenos
naturais a expressão “condição necessária” fica associada a relações causais entre
fenómenos, qualquer condicional indicativa verdadeira que não seja nomologicamente
relevante (ainda que seja uma implicação material verdadeira ou uma implicação estrita
verdadeira) parece constituir um contra-exemplo à definição canónica de condição
necessária. Contudo, trata-se de uma ilusão que resulta de não se ter em conta os vários tipos
de condições necessárias — tantas quantas os tipos de implicações existentes — e de não se
ter em conta que Q só é uma condição nomologicamente necessária de P se a condicional
“Se P, então Q” for nomologicamente relevante. Mas do facto de Q não ser uma condição
nomologicamente necessária de P não se segue que não é uma condição necessária em
qualquer outro sentido.

Podemos assim concluir que a identidade entre 1 e 1 é uma condição materialmente


necessária e estritamente necessária para estar Sol — mas não é uma condição necessária
nomologicamente relevante para estar Sol. Em sintonia perfeita com isto, a condicional em
causa é materialmente verdadeira e estritamente verdadeira, mas não é uma condicional
nomologicamente relevante. Note-se, contudo, que é uma condicional nomologicamente
verdadeira — dado que, por definição, uma condicional é nomologicamente verdadeira se, e
só se, é verdadeira em todos os mundos possíveis com leis da natureza iguais às nossas.
Dado que a condicional é verdadeira em todos os mundos possíveis, tenham ou não leis da
natureza iguais às nossas, segue-se que é verdadeira também em todos os mundos
nomologicamente possíveis. Ora, as condicionais nomologicamente relevantes são
precisamente as que são falsas em pelo menos um mundo possível com leis da natureza

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diferentes das nossas: é através desse contraste que confirmamos, digamos assim, a ligação
nomológica entre a antecedente e a consequente da condicional. Por exemplo, a condicional
“Se aquecermos o metal, ele dilata” exprime uma condicional nomologicamente relevante
porque em alguns mundos possíveis com leis da natureza diferentes os metais não dilatam
quando são aquecidos, mas dilatam em todos os mundos possíveis com leis da natureza
iguais às nossas. Portanto, para exprimirmos condições necessárias nomológicas, temos de
garantir que a condicional em causa é verdadeira em todos os mundos nomologicamente
possíveis, mas falsa em pelo menos algum mundo nomologicamente impossível.

Outro exemplo que levanta dificuldades à definição canónica de condição necessária é o


seguinte:

Se o Sporting ganhar, Figo fica feliz.

Este caso parece, uma vez mais, desafiar a ideia de que as consequentes são condições
necessárias das antecedentes. Pois a felicidade de Figo não parece uma condição necessária
para que o Sporting ganhe: é perfeitamente possível que o Sporting ganhe sem que Figo
fique feliz (imagine-se que Figo morre antes do fim do jogo, ou que acontece uma
calamidade à sua família mais querida). Mas, ao exprimir a nossa perplexidade deste modo,
denunciamos o modo como estamos a entender a condicional: não como uma implicação
material, mas como uma implicação estrita. Para que a implicação material seja verdadeira
basta que Figo fique feliz no mundo tal como é. Mas para que a implicação estrita seja
verdadeira, Figo tem de ficar feliz em todas as circunstâncias em que Sporting ganhar, e não
apenas nas circunstâncias do mundo tal como é. Dado que há circunstâncias possíveis em
que Figo não fica feliz apesar de o Sporting ganhar, a condicional não exprime uma
implicação estrita — e portanto não exprime uma condição necessária estrita, ou uma
condição necessariamente necessária. Podemos ser tentados a dizer que a condicional é
nomologicamente verdadeira, mas isso não é verdade. Na melhor das hipóteses, há uma boa
correlação entre a vitória do Sporting e a felicidade de Figo. Mas há muitos mundos
possíveis em que Figo não fica feliz apesar da vitória do Sporting: mundos em que alguma
desgraça se abateu sobre Figo momentos antes da vitória do Sporting (pode ter partido uma
perna, perdido um familiar querido, etc.).

Em conclusão, diferentes tipos de condicionais assertivas exprimem diferentes tipos de


condições necessárias; mas as condicionais não assertivas, como as compromissivas, não
exprimem condições necessárias. Em contextos didácticos é necessário dar muita atenção às
condicionais que se usam para exemplificar condições necessárias e suficientes.(2)

Desidério Murcho

Notas
1. Uma condicional contrafactual tem como antecedente algo que é contrário aos factos. Por
exemplo, factualmente, Platão era grego. Qualquer condicional como “Se Platão tivesse sido
egípcio, teria sido um poeta” é uma condicional contrafactual, dado que Platão não era egípcio.
As condições de verdade das condicionais contrafactuais diferem das condições de verdade das
condicionais indicativas. A condicional contrafactual “Se Platão tivesse nascido em Paris no
século XIX, teria sido alemão” é falsa, mas entendida como uma condicional indicativa (que
seria expressa como “Se Platão nasceu em Paris no século XX, é alemão”) é verdadeira —
porque a antecedente é falsa.
2. Este artigo resulta de uma dificuldade levantada por Aires Almeida. Agradeço a sua insistência
na dificuldade e a profícua discussão que se seguiu. Este artigo é parcialmente também da sua
autoria. Agradeço igualmente as objecções de António Paulo Costa, que me ajudaram a

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esclarecer melhor alguns aspectos, assim como os comentários de Artur Polónio e de António
Padrão, que ajudaram a esclarecer perplexidades importantes.

Referências
Austin, J. L. 1962. How to do Things with Words. Oxford: Clarendon Press.
Searle, J. 1979. Expression and Meaning. Cambridge: Cambridge University Press.

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