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TOSKA

cenas da vida íntima de uma guerra particular

dramaturgia de Eduardo Nunes


adaptada da obra de Anton Tchekhov

dirigida por Renato Carrera

produzida por Sergio Medeiros

(versão #02 - setembro 2017)

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PERSONAGENS

CAPITÃO RIABÓVITCH

MULHER MISTERIOSA, cena do beijo (secundária)

OFICIAL LOBITKO

OFICIAL PTAKHA

OFICIAL NICANDIR

CAVALEIRO (secundário)

MULHER QUE NARRA

MULHER LILÁS

MULHER LOURA

MULHER DE AMARELO

PRISIONEIRO

IRINA, mulher do prisioneiro

COCHEIRO IONA

CAVALO, cavalo de Iona

PASSAGEIRO MILITAR

PASSAGEIRO JOVEM #01

PASSAGEIRO JOVEM #02

PASSAGEIRO JOVEM CORCUNDA

TRANSEUNTE #01 (figuração)

TRANSEUNTE #02 (figuração)

TRANSEUNTE #03 (figuração)

TRANSEUNTE #04 (figuração)

JOVEM COCHEIRO (figuração)

DR. PÁVEL

SR. VON RABBEK (secundário)

SRA. VON RABBEK (secundária)

JOVEM VON RABBEK (figuração)

JOGADOR #01 (figuração)

JOGADOR #02 (figuração)

GRIGÓRI

MASHA, mulher de Grigóri

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CENA 01 - PRÓLOGO

Lento movimento de multidão no escuro, parece um único corpo que move-se em


todas as direções. Ao fundo, sons de sirenes bem distantes. Na multidão escura,
apenas uma figura está imóvel: CAPITÃO RIABÓVITCH, mas ainda não
identificamos quem é. Sobe um leve foco sobre o CAPITÃO. Da penumbra, surge a
figura de uma MULHER que aproxima-se lentamente por trás dele, o abraça e o
beija. Ele permanece imóvel. Lento fade. Durante o beijo, sobre esta cena entra a
voz de uma MULHER QUE NARRA (que está próxima a plateia).

MULHER QUE NARRA


Foi assim. Sem querer...
E foi apenas um momento. Depois disso, nós viveremos.
(pausa) Eu, ele e vocês.
Viveremos a longa, longa sequência de dias e de noites.
Suportaremos com paciência os golpes do destino.
Trabalharemos sem descanso pelos outros; agora e na velhice.
E quando chegar a nossa hora morreremos em paz, e lá, além do túmulo,
diremos que sofremos, choramos, tivemos muitas tristezas,
e Deus então se apiedará de nós.
(pausa)
Tenho fé nisso. Creio ardentemente, apaixonadamente...
Creio que descansaremos. Descansaremos.

Durante a fala da MULHER, o CAPITÃO vai andando lentamente em direção ao um


grupo que também está parado. Junta-se ao grupo.

CENA 02 – O ACAMPAMENTO

Em um dos cantos do palco percebemos um grupo de quatro OFICIAIS sentados e


alguns em pé, arrumando as coisas, acabaram de chegar. Som de bombas e
sirenes, uma guerra distante. Entre estes homens está o CAPITÃO RIABÓVITCH,
mas ele se mistura com todos os outros. É apenas mais um. Um CAVALEIRO,
montado num cavalo, aproxima-se do grupo de oficiais. O cavalo vem dançando,
com movimentos miúdos. O CAVALEIRO desce e faz um cumprimento com seu
chapéu.

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CAVALEIRO
Prezados senhores, a Sua Excelência, o Tenente General Von Rabbek,
que possui muitas terras aqui, convida os senhores oficiais a
irem agora mesmo tomar chá em sua casa.
Diz que será um prazer recebê-los.

O CAVALEIRO diz isso e sai da mesma forma que entrou. Os OFICIAIS, atônitos,
permanecem olhando.

OFICIAL PTAKHA
Tenente General Von Rabbek...
que pouca vergonha dos diabos...

OFICIAL LOBITKO
Estamos cansados, com sono,
e aí vem esse Von Rabbek com seu chá!
Conhecemos esses chás!

OFICIAL NICANDIR
Lembram naquela outra cidade?
Tinha aquele proprietário rural que parecia um anfitrião
tão hospitaleiro, tratava todo mundo com carinho,
servia comida e bebida... e não parava de falar.
Falava, falava, falava...

OFICIAL LOBITKO
Ficava contando histórias até o amanhecer:
episódios de seu passado glorioso, mostrava quadros caros,
gravuras antigas, armas raras, cartas autênticas...

OFICIAL PTAKHA
E a gente sonhando com a cama e
bocejando dentro das mangas.

OFICIAL NICANDIR
Não vamos não.

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OFICIAL LOBITKO
Isso.

Continuam a arrumar as coisas do acampamento em silêncio. De tempos em


tempos se olham. Parecem se conformar.

OFICIAL PTAKHA (tomando a iniciativa)


Bom, vamos logo.
Assim voltamos mais cedo.

Eles terminam de se arrumar e partem.

CENA #03 – O COCHEIRO

Os oficiais caminham por uma praça. Muitas pessoas de um lado ao outro. O único
que está parado é o cocheiro IONA. Quieto, num canto com o seu cavalo. O OFICAL
NICANDIR interrompe a caminhada, enquanto os outros continuam, e fica olhando
para IONA. Ao fundo continua o som de bombas e sirenes, como uma guerra distante.

OFICIAL NICANDIR
Ele está encolhido o mais que pode encolher um corpo vivo.
Está completamente branco, como um fantasma.
A impressão é que se caísse sobre ele toda a neve do mundo
ele continuaria assim, imóvel.
(o oficial aproxima-se do CAVALO)
O cavalo também está branco e imóvel.
Seguramente os dois estão em profunda meditação.
O cavalo eu entendo:
foi tirado do seu arado, do campo... e jogado aqui.
Mas ele...

IONA e o CAVALO permanecem imóveis. O OFICIAL NICANDIR junta-se aos outros


e o movimento na praça é cada vez mais intenso.

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CENA #04 – INDO PRA FESTA

Os quatro oficiais continuam a caminhada para a festa. As pessoas nas ruas andam
freneticamente. O cocheiro IONA permanece imóvel num canto do palco, por toda a
cena.

OFICIAL PTAKHA
Que espécie de gente deve ser este Von Rabbek?

Os outros dois não respondem e eles continuam a caminhada, entre eles está o
CAPITÃO, mas ele permanece em silêncio todo o tempo. De repente, param e
olham para os lados. Parecem perdidos.

OFICIAL LOBITKO
Disseram que a gente podia ir por baixo, passando atrás da Igreja,
e seguindo pela margem do rio, chegando até o jardim da propriedade.

OFICIAL NICANDIR
Acho que também dá pra ir pela frente da Igreja,
passando pelas alamedas e do lado dos armazéns.
Parece um caminho mais curto.

OFICIAL LOBITKO (depois de um tempo refletindo)


Vamos por baixo.

Continuam a caminhar em silêncio. Não parecem muito entusiasmados com a ideia


de ir a festa.

OFICIAL NICANDIR
Quem será esse Von Rabbek?
(pausa)
Não será aquele que comandou uma divisão de cavalaria em Novak?

OFICIAL PTAKHA
Não, aquele não era Von Rabbek.
Era só Rabe, sem o Von.

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OFICIAL LOBITKO
Está uma noite linda!

Continuam a caminhar, LOBITKO vai um pouco mais na frente.

OFICIAL NICANDIR
Esse é o rio, estamos próximos.

OFICIAL PTAKHA
Senhores, um bom indício!
O nosso perdigueiro vai na frente de todos;
quer dizer que está prevendo uma presa.

OFICIAL LOBITKO (sorrindo)


Sim, deve ter mulheres aqui.
Sinto isso por instinto.

CENA #05 – IONA

Os oficiais continuam a caminhada. Um outro MILITAR aproxima-se de IONA e entra


em seu coche.

MILITAR
Cocheiro, para Víborgskaia!
Cocheiro!

IONA vira lentamente a cabeça para trás e percebe a presença do MILITAR.

MILITAR
Para Víborgskaia!
Está dormindo?
Para Víborgskaia!

IONA puxa as rédeas, e finalmente o coche sai do lugar lentamente. A multidão, ao


redor, é cada vez mais frenética.

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MILITAR
Mais rápido, por favor!

IONA bate no cavalo e vai mais rápido. Pessoas na multidão ficam incomodadas
com a forma como o coche vai passando.

TRANSEUNTE #01
Onde vai, demônio?!

TRANSEUNTE #02
Ei! Cuidado!

MILITAR
Não sabe dirigir, olha a direita!

IONA continua a guiar o coche, agora um pouco mais tranquilamente. Os dois


permanecem em silêncio por um tempo.

MILITAR
Que gente canalha!
Eles se esforçam em chocar-se contra você
ou cair embaixo do cavalo.
Parece que combinaram isso...

IONA vira-se para trás, balbucia algo muito baixo, mas quase não sai som nenhum.
Faz isso diversas vezes. O MILITAR vai ficando irritado com aquilo.

MILITAR
O quê foi?

IONA (virando-se para trás)


Pois é, meu senhor, assim é...
perdi um filho esta semana.

MILITAR
Hum... Do que foi que morreu?

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IONA
Quem é que pode saber! Acho que foi de febre...
Passou três dias no hospital e morreu...
Deus quis.

O MILITAR nem parece escutar. IONA está um pouco distraído com a sua narrativa.
E, na rua, dois transeuntes gritam; IONA desvia o coche.

TRANSEUNTE #03
Dá a volta, diabos!

TRANSEUNTE #04
Não está enxergando, cachorro velho?
É com os olhos que se tem que olhar!

MILITAR
Anda, anda...
Assim não chegaremos nem amanhã.
Mais depressa!

Andam mais um pouco e chegam ao destino. O MILITAR desce e dá algumas


moedas a IONA. Ouve-se o som de uma música alegre, de festa.

MILITAR (entrando na festa)


Finalmente! Vamos a festa!

IONA fica ali parado com o seu CAVALO. Novamente imóvel. A neve vai, aos
poucos, cobrindo novamente. Ao fundo, o som da festa. Três jovens aproximam-se
de IONA e, esbaforidos, ficam ao lado do coche.

JOVEM #01
Que festa mais chata!

JOVEM #02
Vamos embora, rápido!

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Tentam os três entrar no coche, mas não cabem. Ficam todos apertados. Saem
novamente e tentam uma outra arrumação, até que os dois maiores ficam sentados
e um, que era mais corcunda, fica em pé. Com a cabeça ao lado de IONA.

JOVEM CORCUNDA
Cocheiro, para a Ponte Politzéiski!

JOVEM #02
Damos vinte copeques... os três!

IONA (quase que para si mesmo)


Só vinte?...

JOVEM #01
Bem, faz o cavalo andar!

IONA balança as rédeas e o cavalo começa a andar lentamente. Os três jovens


estão muito eufóricos e tentam se ajeitar exprimidos dentro do coche.

JOVEM CORCUNDA (pegando o chapéu)


Dá nele!
Que chapéu você tem, irmão!
Não se encontra um mais feio em toda Petersburgo!

IONA (divertindo-se)
Hi-i... hi-i...
Assim é...

JOVEM #02
Ora, você assim é, bate no cavalo!
Vai andar desse jeito o tempo todo?
(silêncio)
Você disse sim, foi isso? E se eu te torcer o pescoço?

Os três jovens e depois IONA começam a rir. Eles olham para IONA sem entender
porque ele está rindo.

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IONA
Que jovens divertidos!

JOVEM #01
Estou com a cabeça estalando...
Acho que foram as quatro garrafas de conhaque que tomei!

JOVEM #02
Não compreendo para que mentir!
Mente como um animal.

JOVEM #01
Que Deus me castigue, é verdade...

JOVEM CORCUNDA
Tão verdade como um piolho tossindo!

IONA
Hi-i... Que senhores mais alegres!

JOVEM CORCUNDA
Irra, com todos os diabos!
Você vai andar ou não, velha peste?
É assim que se anda?
(pega o chicote da mão de Iona e bate no cavalo)
Bate esse chicote com força! Eh diabo! Dá nele!

Os jovens estão cada vez mais agitados e agressivos, IONA permanece impassível.
O CAVALO sai de sua posição de cavalo (os outros atores permanecem em seus
personagens) e dirige-se até a ponta do palco.

CAVALO
Iona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trêmula do corcunda.
Apesar dos insultos, vê gente, e – de vez em quando – quase sorri.
Aquele sentimento de solidão começa
a deixar o seu peito, pouco a pouco.
O corcunda continua com os impropérios,

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e por fim engasga e desanda a tossir.
Os outros começam a falar de uma certa Nádia.
E Iona volta a cabeça para olhá-los,
e aproveita um silêncio entre eles.

O CAVALO volta para a sua posição de cavalo; e IONA vira-se para trás, na
intenção de dizer algo importante.

IONA
Esta semana... assim... perdi meu filho!

JOVEM #03 – CORCUNDA


Todos vamos morrer.
(enxuga os lábios depois do acesso de tosse)
Bate nele, bate com força!
Minha gente, decididamente não posso continuar andando assim!
Essa corrida não acaba mais?

JOVEM #01
Você deve animá-lo um pouco,
umas pancadas no pescoço!

JOVEM #03 – CORCUNDA


Eu estou batendo no cavalo!

JOVEM #01
Eu tô falando no velho.

JOVEM #03 – CORCUNDA


Está ouvindo, velha peste?
Vou te moer o pescoço de pancada!
Não se pode fazer cerimônia com gente como você,
senão é melhor andar a pé!
Ou você não se importa com o que a gente diz?
(e ele dá umas pancadas no pescoço de Iona)

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IONA
Hi, hi, hi...
Que senhores alegres! Que Deus lhes dê saúde!

JOVEM #01
Cocheiro, você é casado?

IONA
Eu? Hi, hi... que senhores divertidos...
Agora, eu só tenho uma mulher, a terra fria...
Hi, ho, ho... O túmulo, quer dizer!...
Meu filho morreu, e eu continuo vivo.
Coisa esquisita, a morte errou a porta.
Em vez de vir me buscar, foi procurar o filho.

IONA vira-se para falar com os jovens, mas nesse momento o CORCUNDA levanta-
se num rompante. E logo depois, os outros dois.

CORCUNDA
Graças a Deus! Chegamos!
Tome, seus vinte copeques.

Os três jovens desaparecem no escuro, IONA e seu CAVALO voltam a ficar imóveis
e a neve cai sobre eles. A multidão vai tomando conta da praça. IONA permanece
imóvel. O CAVALO sai da posição de cavalo e vai até a ponta do palco.

CAVALO
Iona está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele.
Aquela angústia que, agorinha, aliviou um pouco,
tornava a aparecer, inflando o peito com força redobrada.
Os olhos dele correm, inquietos e sofredores,
pela multidão que se agita em todos os lados da rua.
Não haverá, entre essas milhares de pessoas,
pelo menos uma que possa ouvi-lo?
Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua angústia.
Dá a impressão que, se o peito de Iona estourasse e dele fluísse
para fora toda aquela angústia, daria para inundar o mundo.

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E, no entanto, não se pode ver essa angústia.
Ela conseguiu caber numa casca tão insignificante, o próprio Iona,
que não se pode perceber nem mesmo de dia, com muita luz.

O CAVALO volta para a sua posição de cavalo, e ficam os dois ali parados;
enquanto a multidão continua a passar ao lado. Um TRANSEUNTE passa mais
próximo de IONA. Ao fundo, sons de bombas e aviões distantes.

IONA (para o transeunte)


Que horas são, meu caro?

TRANSEUNTE #04
Mais de nove...
Por que você parou aqui? Passa!

IONA e o CAVALO dão três pequenos passos à esquerda. E depois continuam


parados por um tempo, com a neve caindo sobre eles.

IONA (para o CAVALO, interrompendo o silêncio)


Vamos para casa.

IONA e o CAVALO voltam a andar melancolicamente. Cavalgam por um tempo e


chegam a um estábulo com pessoas dormindo no chão e sobre os bancos. IONA
amarra o CAVALO num canto e busca um lugar para dormir, passando com cuidado
entre as pessoas. Deita-se no chão e tenta dormir. Num outro canto levanta-se um
JOVEM COCHEIRO, sonolento, funga e fica sentado. IONA percebe.

IONA
Ficou com sede?

JOVEM COCHEIRO
Com sede? Sim...

IONA (buscando uma garrafa d’água)


Bem, que faça proveito. (entrega a água)
Pois é, irmão, e eu perdi um filho...
Está ouvindo? Foi essa semana, no hospital... Que coisa...

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O JOVEM COCHEIRO já deitou e cobriu a cabeça. IONA vai para o seu canto e fica
parado, olhando para o nada. O CAVALO sai de sua posição de cavalo e vai para
frente do palco.

CAVALO
Era preciso contar como o filho adoeceu,
como ele foi padecendo devagarinho...
O que ele disse um pouquinho antes de morrer,
e como ele morreu.
Também é preciso descrever o enterro
e aquela ida no hospital no dia seguinte,
só pra buscar a roupinha do defunto.
(pausa)
Na aldeia ficou a filha.
É preciso falar sobre ela também...
De quantas coisas mais poderia falar agora?
E o ouvinte deveria soltar exclamações,
suspirar, lamentar...

IONA (levantando-se de repente)


É bom ir ver o cavalo!
Sempre há tempo para dormir.

O CAVALO, rapidamente, volta para a sua posição de cavalo. IONA passa por entre
as pessoas dormindo e senta-se ao lado do cavalo.

IONA
Está mastigando? Ora, mastiga, mastiga...
Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno.
Já estou velho para trabalhar como cocheiro.
O filho é que devia trabalhar, não eu...
Era um cocheiro de verdade, só faltou viver mais.
(pausa)
Assim é, irmão, meu cavalinho...
Não existe mais Kuzmá, ele foi para outro mundo.
Morreu assim, por nada.
Agora vamos dizer, você tem um potrinho,

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que é teu filho...
E, de repente, vamos dizer,
esse mesmo potrinho vai para o outro mundo.
Dá pena, não é verdade?

CENA #06 – A FESTA

IONA continua a falar, uma música de festa sobe devagarinho, e um homem, o DR.
PÁVEL, olha para IONA e depois para a plateia.

DR. PÁVEL
Neste últimos vinte anos virei outra pessoa.
Sabe por quê? De tanto trabalhar.
Desde cedo até tarde da noite estou de pé.
não conheço descanso e passo a noite debaixo do cobertor
com medo que me arranquem de lá para visitar um doente.
(ele olha para IONA, ainda conversando com o CAVALO)
Bom, e a vida é mesmo enfadonha, idiota e suja.
Ela nos engole vivos.
Estamos cercados de um monte de excêntricos, um monte de gente estranha.
(a música da festa vai aumentando e a luz revela muitas pessoas dançando)
Convivendo com eles por alguns anos,
a gente, devagarinho, sem se dar pela coisa,
também vira uma pessoa estranha.

O DR. PÁVEL junta-se as pessoas que dançam. Clima de festa. Pessoas dançam e
bebem. Divertem-se. Entram na festa os quatro OFICIAIS. Parecem um pouco
deslocados, são recebidos pelo SR. e SRA. VON RABBEK.

SR. VON RABBEK (apertando a mão dos convidados)


Estou muito contente. Estou muito feliz!
Peço desculpas por não poder oferecer a pernoite aqui.

SRA. VON RABBEK (cumprimentando os oficiais)


Estou muito feliz!
Peço desculpas por não poder oferecer a pernoite.

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SR. VON RABBEK (os dois falam tensos, um cortando o outro)
Chegaram os meus irmão e primas...

SRA. VON RABBEK


E com os filhos e também tem os vizinhos.

SR. VON RABBEK


E não sobrou nenhum quarto vago.

SRA. VON RABBEK


Estão todos ocupados.

SR. VON RABBEK


Mas fiquem à vontade.
(e faz um gesto para que entrem)

Os OFICIAIS entram e tentam ficar à vontade. OFICIAL LOBITKO já aproxima-se


das mulheres e pega uma bebida. Logo depois os OFICIAIS NICANDIR e PTAKHA.
Apenas o CAPITÃO fica só num canto. Todos já estão dançando, menos ele.
A MULHER LILÁS, enquanto dança com um dos OFICIAIS, dirige-se a plateia.

MULHER LILÁS (com um certo deboche)


Aquele ali deve pensar:
“Sou o mais tímido, o mais modesto,
o mais incolor dos oficiais de toda a brigada!”
Vejam que, entrando na sala e pegando a sua bebidinha,
ele não consegue, de modo algum,
deter a sua atenção em algum rosto ou objeto.
Coitado...

MULHER LOURA (também dançando)


Os rostos felizes, os vestidos, os decotes,
as jarrinhas de cristal com conhaques, o movimento dos corpos.
Isso tudo deve confundir o pobrezinho.
E a coragem dos seus colegas, aqui já dançando.
Coragem que ele nunca teve.
Deve estar com vontade de enfiar a cabeça num buraco.

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O CAPITÃO, totalmente deslocado, vai de um lado para outro da sala. Passando,
timidamente, por entre as pessoas que estão dançando.

MULHER DE AMARELO (também dançando)


E fica ali observando, com aquele ridículo copo na mão.
Com certeza, em toda a sua vida, nunca dançou com uma mulher.
Só pode imaginar pegar uma mulher pela cintura,
sentir o seu corpo e o seu cheiro.
Aproximar a cabeça de seu pescoço e da sua nuca.
Mas sabe que nunca vai estar na condição de seus colegas.

MULHER LILÁS
Um tempo atrás, ele invejava a vivacidade
e a coragem de seus colegas.

MULHER LOURA
E ele sofria no íntimo.

MULHER DE AMARELO
A consciência de que era tímido,

MULHER LILÁS
curvado,

MULHER LOURA
e incolor.

MULHER DE AMARELO
Isso tudo o ofendia profundamente.

MULHER LILÁS
E com o passar dos anos, essa ideia tornou-se um hábito.

MULHER LOURA
Mas agora, olhando os que dançam e falam alto,
ele não tem mais inveja.

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MULHER DE AMARELO
Apenas comove-se sozinho. Entristecido.

Todos continuam dançando, cada vez mais animados. O CAPITÃO permanece num
canto, olhando, com a sua bebida.

CENA #07 – GRIGÓRI

A festa continua, mas num canto do palco um homem, GRIGÓRI, estica um lençol
no chão; e sobre ele, coloca o corpo de MASHA, a sua mulher. A festa, do outro
lado do palco continua, mas agora no escuro. GRIGÓRI segura com dificuldade as
pontas do lençol e vai tentando puxar o corpo. Fica assim por um tempo. O DR.
PÁVEL sai da festa e olha a cena de GRIGÓRI puxando MASHA. Caminha de um
lado ao outro, ao redor de GRIGÓRI, como se o analisa-se.

DR. PÁVEL (caminhando de um lado ao outro)


Grigóri, é um excelente mestre mecânico,
mas é mais conhecido como um velho bêbado.
Nesse momento ele está conduzindo para o hospital a sua velha mulher.
(aproxima-se e olha para MASHA, faz uma cara de resignação)
Ele tem que percorrer ainda umas trinta verstas.
E a estrada está horrível, um vento frio e cortante bate em seu rosto.
Rodopiam tantos flocos de neve
que ele nem sabe sem vem do alto ou de baixo.
Na frente dele tem um campo, postes, mata...
Mas a névoa é tão forte que ele não vê nada.
(pausa)
Grigóri está bem inquieto.

O DR. PÁVEL volta para a festa. GRIGÓRI continua a sua luta contra a tempestade,
carregando MASHA.

GRIGÓRI
Não chore, Masha.
Vá aguentando um pouco.
Se Deus quiser, vamos chegar daqui a pouco ao hospital

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e eles tratarão de você.
O Dr. Pável te dará umas gotas,
ou talvez mande fazer sangria,
vai te esfregar com álcool e então... vai aliviar aí do lado.
Dr. Pável vai providenciar...
Vai gritar, bater o pé, mas providenciará tudo...
É um senhor muito distinto, muito amável,
que Deus lhe dê saúde...
(pausa)
Mas logo que a gente chegar,
ele vai pular e começara a xingar.

DR. PÁVEL (irritado, para GRIGÓRI)


Como? Que foi isso!?
Por que chega fora de hora?
Pensa que sou algum cachorro,
para me ocupar com vocês, diabos, o dia inteiro?
Por que não chegou de manhã?
Não vê que estou ocupado?
Vá embora. Não quero ver aqui nem sombra de você.
Volte amanhã!

GRIGÓRI (soltando o lençol e ajoelhando-se na frente do DR. PÁVEL)


Senhor Doutor! Pável Ivânitch!
Vossa alta nobreza!

GRIGÓRI levanta-se novamente e volta a carregar MASHA no lençol.

DR. PÁVEL
O que você quer?

GRIGÓRI (novamente ajoelhando-se na frente do DR. PÁVEL)


Vossa Alta Nobreza!
Estou lhe falando como se estivesse diante de Deus...
Posso jurar na frente de uma cruz.
Saí de casa cedinho, mal amanheceu.
Como podia chegar na hora, se Deus, se Nossa Senhora...

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ficaram zangados e mandaram uma tempestade dessas?
O senhor mesmo está vendo.
Se até mesmo com um cavalo descente não chegaria a tempo,
imagina assim?
É uma vergonha.

GRIGÓRI levanta-se novamente e volta a carregar MASHA no lençol.

DR. PÁVEL
Conheço vocês!
Sempre arranjam uma desculpa!
Principalmente você, Grigóri.
Te conheço há muito tempo!
Certamente, antes de pegar esse caminho
entrou num botequim umas cinco vezes.

GRIGÓRI (novamente ajoelhando-se na frente do Dr. Pável)


Vossa Alta Nobreza!
Pensa que sou algum malfeitor, algum pagão?
Minha velha Masha está morrendo, entregando a alma a Deus,
e eu vou correr pelos botequins?
Que é que está dizendo?!
Que o Diabo carregue esses botequins!

DR. PÁVEL, ainda com um cálice de bebida na mão, apenas olha para GRIGÓRI
ajoelhado em sua frente.

GRIGÓRI (ainda ajoelhado)


Eu lhe peço humildemente,
perdoa-nos, não nos condene,
mujique que somos,
imbecis excomungados!
Merecemos é muita pancada,
e o senhor digna-se a inquietar-se,
a talvez sujar de neve os pézinhos.

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DR. PÁVEL
Em vez de se jogar no chão,
seria melhor que você, imbecil,
não se encharcasse de vodca
e tivesse pena da velha.
Merece pancada!

GRIGÓRI (ainda de joelhos)


Verdade, Dr Pável, que Deus me castigue,
o que mereço mesmo é pancada!
Mas, como é que a gente não vai se ajoelhar,
se vocês são nossos benfeitores, nossos pais?
Vossa Alta Nobreza, é pura verdade.
Estou falando como se estivesse diante de Deus.
Pode cuspir-me na cara se o engano:
logo que minha Masha ficar boa,
voltar ao que era antes,
vou fazer tudo o que Vossa Alteza mandar!
Se quiser, vou tornear uma cigarreira,
umas bolas de críquete, ou tacos de verdade!
E não vou cobrar nada!

DR. PÁVEL
Ora, ora...
Pena que seja um beberrão.

DR. PÁVEL diz isso e vira-se de costas. Retorna para a festa. GRIGÓRI fica
olhando ele afastar-se e pega novamente o lençol e volta a carregar a mulher.
Caminha com muita dificuldade. Dá algumas voltas, procurando enxergar no meio
da tempestade. No meio do caminho, MASHA levanta-se do lençol e senta-se, um
pouco curvada, numa cadeira. Olha para GRIGÓRI.

MASHA (olhando fixamente para GRIGÓRI)


Então Grigóri lembrou-se da noite anterior
quando chegou em casa.
Voltava para casa, bêbado como de costume,
e conforme o velho hábito, gritava e batia, batia, batia na velha.

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Mas então aconteceu uma coisa:
os olhos dela, que normalmente tinham uma expressão
sofredora, humilde, como a de cachorros que os donos
espancam muito e alimentam mal, desta vez,
esses olhos estavam olhando de modo severo e imóvel.
Como costumam olhar os santos dos ícones e os moribundos.
Mas ela não falava nada. Mais nada. Apenas olhava.

MASHA fica imóvel olhando para GRIGÓRI, que fica aflito com aquilo. Não sabe o
que fazer, anda de um lado para o outro e começa a sacudir MASHA, cada vez com
mais violência. Ela não reage. GRIGÓRI pega MASHA e coloca deitada no lençol e
volta carregá-la.

GRIGÓRI
Escuta, mulher...
Se o Dr. Pável perguntar a você se eu te bati,
diga que não!
E eu não vou mais bater. Aqui está a cruz para jurar.
Pensa que te batia por mal? Eu batia assim, à toa.
Tenho pena de ti.
Um outro não se afligiria assim e estou te levando ao hospital.
Estou me esforçando...
(carrega com cada vez mais dificuldade a MULHER)
E como neva, Senhor!
Que o Senhor permita que eu não me perca.
Ainda está doendo aí do lado?
(silêncio)
Por que não fala, mulher?
Estou perguntando: ainda dói aí do lado?
(continua a puxar, mas vai parando)
Que boba! Estou falando com você e fica assim, muda.
Se não falar, não levo mais ao Dr. Pável.

GRIGÓRI para, fica pensativo. Não quer olhar para trás. Depois de um tempo, solta
o lençol e vai até MASHA, abaixa-se ao lado dela. Toca o seu rosto. Levanta a mão
de MASHA, que cai sozinha.

23
GRIGÓRI
Quer dizer que morreu. Que coisa!

GRIGÓRI fica sentado ao lado de MASHA que está deitada. Ela abaixa a cabeça e
permanece assim.

MASHA (sentando-se)
Então Grigóri lembrou-se de dois anos antes,
em que completavam quarenta anos juntos.
Foram quarenta anos,
mas mal tivera tempo de viver com a velha.
Logo agora que ele ia expressar a sua paixão.
Como se fôra de propósito, a velha morria justamente
quando ele percebia que se compadecia dela.
Que não podia viver sem a sua companhia.
Ele a fez andar pelo mundo!
Mandava ela de casa em casa pedir esmola.
Ele pensava que aquela boba deveria viver mais uns dez anos.
Pois, desse jeito, ela vai acabar pensando que ele é assim mesmo:
que ele não gosta dela. (pausa)
E ela só deixou aquele olhar.

MASHA deita-se novamente. Depois de um tempo, GRIGÓRI levanta-se num


supetão. Olha para MASHA deitada.

GRIGÓRI
Preciso enterrar! Preciso enterrar!

GRIGÓRI pega novamente as pontas do lençol e volta a carregar MASHA, cada vez
com mais força e ficando cada vez mais cansado. Essa ação dura um tempo, até
que GREGÓRI não aguenta mais e deixa-se cair no chão. Ficam os dois deitados.
Depois de um tempo, MASHA senta-se.

MASHA (sentando-se)
Então Grigóri lembrou-se de quarenta e dois anos antes,
Quando a mulher era jovem, bonita, alegre,
vinda de uma casa rica.

24
Casou-se com ele atraída pelo seu jeito
e pelo seu ofício que parecia tão bonito: torneiro mecânico.
Tudo prometia uma vida boa,
mas a desgraça veio quando, embriagando-se depois
do casamento, estirou-se em cima do fogão
e foi como se não tivesse acordado até agora.
Ele não se lembra de nada que veio depois.
Bebia, ficava deitado, brigava...
acho que era isso...

MASHA diz isso e volta a deitar. Os dois permanecem imóveis: ela deitada sobre o
lençol e ele na frente, ainda com as pontas dos lençóis entre as mãos. Entra a
música alegre da festa, e o palco vai sendo ocupado pelas pessoas da festa.

CENA #08 – O BEIJO

A festa continua, as pessoas continuam dançando, e o CAPITÃO, deslocado, num


canto. Um JOVEM VON RABBEK aproxima-se do CAPITÃO.

JOVEM VON RABBEK


Gostaria de jogar bilhar?
Parece um bom jogador.

O CAPITÃO faz que sim com a cabeça e segue o JOVEM VON RABBEK que, no
caminho, convida mais dois JOGADORES que os acompanham. Eles afastam-se do
salão de festas e caminham por um tempo pelos corredores escuros. Caminham e
caminham... até chegar numa sala com uma mesa de bilhar. Mais uma vez, o
CAPITÃO fica deslocado, não sabe onde ficar. O JOGADOR #01, quando prepara o
taco, esbarra no CAPITÃO.

JOGADOR #01 (para o CAPITÃO)


Pardon!

O CAPITÃO tenta ficar próximo a mesa, mas sente-se cada vez mais deslocado.
Aos poucos, afasta-se do grupo e volta a andar pelos corredores escuros. Parece
perdido, vai e volta algumas vezes. Até que o CAPITÃO para em frente a uma janela

25
aberta. A luz azul do luar e o som da natureza chamam a atenção. Ele fica ali
parado, observando a natureza. O CAPITÃO está na mesma posição da CENA 01,
e, como nesta cena, uma MULHER QUE NARRA está num canto do palco,
dirigindo-se a plateia.

MULHER QUE NARRA


Então, aquele homem tímido, curvado e incolor
enfim, estava só.
Apenas com seus pensamentos.

Como na CENA 01, da penumbra, surge a figura de uma MULHER MISTERIOSA


que aproxima-se lentamente por trás dele. Escutamos seus passos. O CAPITÃO
permanece imóvel. Ela aproxima-se e o abraça por trás.

MULHER MISTERIOSA (sussurrando)


Até que enfim...

Ela o beija, e ele permanece imóvel. Penumbra. Durante o beijo, sobre esta cena
entra a voz de uma MULHER QUE NARRA (que está próxima a plateia).

MULHER QUE NARRA


Era uma voz ofegante e murmurada.
Os dois braços macios, cheirosos, envolveram
o seu pescoço e uma face quente apertou-se contra a sua.
E então, ressoou o beijo.

A MULHER MISTERIOSA que deu o beijo, dá um pequeno grito abafado e um pulo


assustada para trás. O CAPITÃO não se vira imediatamente, apenas depois que ela
sai. Ele já não vê ninguém. Fica sozinho. Aos poucos a luz vai subindo e a música
da festa também. Percebemos que ele está cercado de pessoas dançando
animadamente. O CAPITÃO permanece parado. Mas quando a narração começa,
ele vai integrando-se aos outros, parece feliz.

MULHER QUE NARRA


Ele entregou-se a uma sensação nova,
que jamais experimentou antes.
Acontecia algo estranho.

26
O seu pescoço, que agorinha foi envolvido
por braços tão macios, cheirosos,
parecia untado com manteiga.
Sobre a face, junto ao bigode esquerdo,
onde foi beijado pela desconhecida,
tremia um friozinho ligeiro, agradável,
como gotas de menta.
E quanto mais ele esfregava esse lugar,
mais forte ele sentia esse friozinho.
E todo ele, da cabeça aos pés, estava repleto
de um sentimento novo, estranho, que não parava de crescer.
Teve vontade de dançar, falar, correr para o jardim, rir alto!
Esqueceu-se completamente que era
tímido, curvado e incolor.

O CAPITÃO, alegremente, aproxima-se do SR. VON RABBEK.

CAPITÃO
A sua festa é maravilhosa!

SR. VON RABBEK agradece com a cabeça e continua a andar entre os convidados.
Todos continuam a dançar. O CAPITÃO olha atentamente para cada uma das
mulheres.

MULHER LILÁS (dançando)


O Capitão ficou imaginando o quanto tinha
de misterioso em sua pequena aventura.

MULHER LOURA (dançando)


Certamente a moça marcou com alguém
um encontro no quarto escuro.

MULHER DE AMARELO (dançando)


E com os nervos excitados, na penumbra,
confundiu o Capitão com o seu herói.

27
MULHER LILÁS (dançando)
O fato se tornava ainda mais compreensivo
porque o Capitão estava ali, parado na janela,
como também se esperasse alguém.

MULHER LOURA (dançando)


Foi assim que ele explicou a si mesmo
o beijo recebido.

MULHER DE AMARELO (dançando)


Mas quem seria ela?

MULHER LILÁS (dançando)


Devia ser jovem, porque as velhas
não vão a encontros.

MULHER LOURA (dançando)


Devia ser culta, pelas maneiras, pela forma de andar.

MULHER DE AMARELO (dançando)


Devia ser bonita, pelo aroma, pela voz.

MULHER LILÁS (para de dançar e faz um gesto apresentando-se)


A senhorita de lilás tinha os ombros e braços bonitos,
rosto inteligente e uma bela voz.
O Capitão gostaria muito que tivesse sido ela.
(a MULHER #01 sorri)

MULHER LOURA (para de dançar e faz um gesto apresentando-se)


Mas ao sorrir, a senhorita de lilás
mostrava uma expressão insincera
e franzia aquele nariz comprido.
(faz uma pausa debochada)
Ele, então, transferiu o olhar para a loura de preto.
Era a mais jovem, mais simples e sincera,
tinha umas têmporas encantadoras.

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MULHER DE AMARELO (para de dançar e faz um gesto apresentando-se)
Mas ele achou que seu rosto era pouco delicado.
(faz uma pausa debochada)
Já a senhorita de amarelo, tem um rosto lindo!
Lábios bem desenhados e olhos curiosos.

CAPITÃO
Mas o seu corpo não era tão bonito.
(pausa)
Estão comecei a somar mentalmente
a qualidade de cada uma delas.
E aí surgiu a imagem daquela que beijei.
(sorri)
Mas ela não está em nenhum lugar daqui.
Será que já foi?

A música é interrompida abruptamente. SR. VON RABBEK dirige-se a todos,


tentando ser simpático.

SR. VON RABBEK


Senhoras e senhores, foi um prazer.
Mas aqui estão meus filhos e sobrinhos,
e não posso hospedá-los esta noite aqui.
(fazendo um gesto para que saiam)
Foi um prazer, foi um prazer...

CENA #09 – O FIM DE GRIGÓRI

Todos saem um pouco a contragosto, apenas o DR. PÁVEL fica. No fundo do palco,
ainda permanece GRIGÓRI deitado. DR. PÁVEL aproxima-se dele.

GRIGÓRI (tentando sentar, assustado)


É preciso rezar a missa pela velha!
Mandar chamar o padre.

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DR. PÁVEL
Ora, está bem, está bem!
Fique deitado aí!

GRIGÓRI
Paizinho! Dr. Páver Ivânitch!
Vossa Alta Nobreza! Benfeitor nosso!

GRIGÓRI tenta levantar-se, mas cai. Percebe que está sem os braços e as pernas.
Olha assustado para o DR. PÁVEL.

GRIGÓRI
Vossa Alta Nobreza! Onde estão as minhas pernas?
Onde estão os meus braços?

DR. PÁVEL
Diga adeus às pernas e aos braços...
Congelados! Por que está chorando?
Já viveu o bastante e foi graças a Deus.
Vai ver que já viveu uns sessenta anos,
chega pra você.

GRIGÓRI (desesperado)
Que aflição!
Vossa Alta Nobreza, que aflição!
Seja generoso e perdoe-me.
Uns cinco ou seis aninhos a mais...

DR. PÁVEL
Para quê?

GRIGÓRI
Eu preciso devolver o cavalo que está lá em casa.
Enterrar a velha...
E tudo acontece depressa nesse mundo!
Vossa Alta Nobreza! Pável Ivânitch!
Vou tornear a melhor cigarreira, um jogo de críquete...

30
DR. PÁVEL
Ora, ora...
Veja, estou bêbado também.
Em geral só encho a cara assim uma vez por mês.
Nesse estado, meu descaramento e minha ousadia
não conhecem limites.
Nessas horas tudo me parece fácil!
Já não me sinto um estranho,
e me convenço que sou extremamente útil para a humanidade...
Extremamente!
Nessas horas tenho meu próprio sistema filosófico
e vocês, meus caros, todos vocês,
não passam de uns pequenos insetos a meus olhos.
Uns micróbios...

DR. PÁVEL vai dizendo isso enquanto sai lentamente. Ficamos apenas com
GRIGÓRI deitado no fundo da cena.

CENA #10 – INDO PARA A GUERRA

O CAPITÃO e os três OFICIAIS caminham para o acampamento. Próxima a plateia


está a MULHER QUE NARRA. Ao fundo, sons de bombas e sirenes.

MULHER QUE NARRA


Estavam embriagados, alegres, satisfeitos...
Mas as trevas e o silêncio obrigavam a ficar
uns instantes pensativos.
(pausa)
Provavelmente todos tiveram o mesmo pensamento:
chegará também para eles o dia em que,
como Von Rabbek, terão uma casa espaçosa,
uma família, um jardim?
E também terão a possibilidade de
receber as pessoas, ainda que de forma insincera,
deixá-las fartas, embriagadas, contentes?

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Os OFICIAIS e o CAPITÃO chegam ao acampamento. Os OFICIAIS deitam-se, o
CAPITÃO fica sentado, pensativo e o OFICIAL LOBITKO anda, impaciente, de um
lado para o outro.

OFICIAL LOBITKO
Nenhum de vocês quer ir buscar uma cerveja?

Ninguém responde. LOBITKO continua a andar de um lado para o outro. Enquanto o


CAPITÃO permanece sentado, pensativo.

OFICIAL LOBITKO
Ptakha, vá buscar cerveja!

Sem nenhuma vontade, PTAKHA que estava deitado, levanta-se e sai na sua busca
pela cerveja. Os que ficam permanecem em silêncio. LOBITKO andando de um lado
para o outro e o CAPITÃO sentando, pensativo. As três MULHERES surgem no
outro canto do palco.

MULHER LILÁS
O seu pescoço, tinha a impressão,
ainda estava untado de manteiga.

MULHER LOURA
E junto à boca, um friozinho como
de gotas de menta.

MULHER DE AMARELO
E o calor dos seus braços em seu corpo.

MULHER LILÁS
Passavam pela sua imaginação
os ombros e os braços da senhorita lilás...

MULHER LOURA
As têmporas e os olhos sinceros da
senhorita loura...

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MULHER DE AMARELO
A cintura, o vestido, os broches
da senhorita de amarelo...

MULHER LILÁS
Procurava deter a imaginação sobre
essas imagens, mas elas pulavam, diluíam-se, tremiam.

MULHER LOURA
Quando desapareciam completamente sobre
o largo fundo negro que todo o ser humano vê ao fechar os olhos,

MULHER DE AMARELO
E aí ele começava a ouvir passos apressados,
o fru-fru do vestido, o som de um beijo...
E uma alegria intensa, sem causa, apossava-se dele.

Neste momento chega PTAKHA, sem as cervejas. LOBITKO, que ainda andava de
um lado para o outro, olha furioso para ele.

OFICIAL LOBITKO
Então, não é mesmo um idiota, hein?
É preciso mesmo ser um grande tolo e imbecil
pra não encontrar cerveja. Não é um canalha?...

OFICIAL NICANDIR (que estava deitado)


Naturalmente não se encontra cerveja aqui...

OFICIAL LOBITKO (cada vez mais irritado)


Essa é a sua opinião?!
Meu Deus, podem me mandar a lua, e no mesmo instante
eu vou encontrar cerveja e mulheres!
Vou sair agora e encontrar bebida...
Podem me chamar de calhorda se eu não encontrar.

LOBITKO começa a preparar-se para sair. Os outros OFICIAIS apenas olham sem
reação. O CAPITÃO continua absorto em seu pensamentos.

33
OFICIAL LOBITKO
Ninguém me acompanha?!
(silêncio)
Não dá vontade ir sozinho, que diabo!
Não que dar uma voltinha Capitão, hein?

Todos permanecem indiferentes a LOBITKO, que ainda olha de um lado para o


outro, até sentar-se.

OFICIAL LOBITKO (acende um cigarro, conformado)


Que assim seja...

O CAPITÃO assuma o seu colchão e deita-se. LOBITKO continua a fumar seu


cigarro e ou outros dois OFICIAIS arrumam as suas coisas.

MULHER QUE NARRA


O Capitão enrolou-se como uma rosca.
Pôs reunir na fantasia as imagens que passavam
de relance, e a fundir isso num todo.
(pausa)
Mas não conseguiu obter nada.
Logo adormeceu, e seu último pensamento foi de alguém o acariciando,
e sonhava que na sua vida acontecia algo extraordinário,
tolo, porém muito bom e alegre.
(pausa)
Esse pensamento não o abandonou durante todo o sono.

CENA #11 – SONHOS

Som de sirenes, bombas e aviões passando. No escuro, pessoas correm e andam


desesperadas, de um lado ao outro. O movimento é crescente, até cessar
completamente. Corpos no chão e o som das bombas e aviões estão mais distantes.
OFICIAIS PTAKHA e NICANDIR caminham, um pouco cansando, conduzindo um
PRISIONEIRO, uma figura estranha, magra, quase feminino, e com aparência muito
frágil. Num canto do palco, LOBITKO narra a cena.

34
OFICIAL LOBITKO (narrando)
Faz muito tempo que meus colegas estão caminhando.
Mas percorreram apenas um pequeno trecho.
Na frente deles entende-se uma estrada suja, negro-pardacenta.
E, em todas as direções, aparece uma muralha opaca de neblina branca.
Vão caminhando, caminhando...
Mas é sempre o mesmo chão, a mesma muralha de neblina,
o mesmo trecho de caminho.
Aparece de vez em quando uma pedrinha branca,
uma valeta, um feno... qualquer coisa pra quebrar a monotonia.
E eles vão caminhando, caminhando...

OFICIAL PTAKHA (caminhando)


Você é ortodoxo?

PRISIONEIRO (também caminhando)


Sim, ortodoxo.

OFICIAL PTAKHA
Hun... Quer dizer que foi batizado?

PRISIONEIRO
Claro que sim. Não sou turco.
Vou à missa, confesso, comungo, observo o jejum...
Cumpro fielmente meus deveres lerigiosos.

OFICIAL PTAKHA
E como é que você de chama?

PRISIONEIRO
Pode me chamar como quiser.

Os três continuam a andar com muita dificuldade, estão cansados. Do outro lado do
palco, LOBITKO observa e comenta a ação.

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OFICIAL LOBITKO (narrando)
Ptakha está muito intrigado.
Mas meu outro colega, Nicandir,
permanece num silêncio grave.
Ele sabe muito bem os motivos que leva uma
pessoa ortodoxa a esconder o nome.
Caminha observando os dois.
E vai saber escolher muito bem as suas palavras.

OFICIAL NICANDIR (também caminhando)


Deus sabe o que pensar de você.
Não é mujique, não é senhor, talvez alguma coisa intermediária...
(pausa)
Outro dia, lavando as redes no açude, apanhei uma cobrinha,
do tamanho de um dedo, com guelras e rabo.
No começo, achei que fosse peixe,
depois olhei e – raios a partam! – tinha patas!
Não se percebia bem se era peixe,
cobra ou o diabo sabe que bicho...
Assim é você.

PRISIONEIRO
Sou um mujique, camponês.
(pausa)
Minhas mãezinha era serva, agregada à casa dos senhores.
Não pareço mujique, não é?
Mas isso porque assim quis o destino, meu bom homem.
Minha mãezinha era babá dos patrões, tinha do bom e do melhor.
E eu, sou carne de sua carne e sangue de seu sangue,
vivia ao lado dela, que me tratava com muito mimo,
sempre com a intenção de me tirar da condição humilde,
de me fazer gente de verdade.
Mamãe me dava de comer tudo que lhe serviam.
Os patrões davam dinheiro para ela se vestir,
e ela me comprava roupas.
Se a gente pudesse vender os bombons e bolos que eu comia,
dava pra comprar um cavalo.

36
(pausa)
Mãezinha ensinou as letras,
inspirou - desde cedo – o temor a Deus
e me preparou de tal maneira que, atualmente,
sou incapaz de dizer uma palavra indelicada.
Não bebo vodca, meu bom homem, visto roupa limpa,
e sei comportar-me em sociedade.
(pausa)
Se ela é viva, que Deus lhe dê saúde.
Se ela morreu, que Deus lhe receba a alma em seu reino,
entre os justos.

Os OFICIAIS e o PRISIONEIRO continuam a caminhar. Vão andando em silêncio.


Apenas o som dos passos.

PRISIONEIRO (mais introspectivo)


Que Deus lhe dê o repouso eterno.
Ilumina, Senhor, a tua serva com a tua misericórdia.
(pausa, e fica mais agitado)
Se não fosse a minha mãezinha, eu seria um
simples mujique, sem qualquer compreensão.
Mas agora, meu amigo,
eu compreendo tudo que me perguntam:
livros sacros e profanos, orações, o catecismo...
Vivo de acordo com as escrituras.
Não ofendo os homens, mantenho o corpo em limpeza e virtude,
respeito o jejum e me alimento a hora devida.
(pausa)
Outras pessoas encontram prazer somente
na vodca e em palavrões,
mas eu, sempre que tenho um tempo,
sento num cantinho com um livro.
Leio e fico chorando, chorando...

OFICIAL PTAKHA
Mas por que chora?

37
PRISIONEIRO
Escrevem de um modo tão triste!
A gente, às vezes, paga cinco copeques num livrinho.
Mas dá pra chorar até não poder mais.

OFICIAL NICANDIR
Teu pai já morreu?

PRISIONEIRO
Não sei, senhor. Não conheço meu pai,
não vou esconder esse pecado.
Penso que eu era, pra minha mãezinha, um filho natural.
Minha mãezinha passou toda a vida na casa dos patrões,
e não quis casar com um simples mujique...

OFICIAL PTAKHA (ironicamente)


E tropeçou no patrão!

PRISIONEIRO (envergonhado)
Não soube guardar, é verdade.
Ela era piedosa, devota, mas não conservou a virgindade.
É pecado, está claro, um grande pecado, nem se fala.
(animando-se)
Mas, em compensação, é possível que eu tenha sangue fidalgo.
Pode ser que eu seja mujique apenas no nome,
mas, na verdade, um nobre senhor.

CENA #12 – NO ACAMPAMENTO

Os OFICIAIS e o PRISIONEIRO chegam ao acampamento, onde já estão o


CAPITÃO e LOBITKO. Todos sentam-se muito próximos. Os que chegam, estão
ofegantes. Ficam em silêncio por um tempo.

OFICIAL NICANDIR (olhando para o Prisioneiro)


Até um cachorro sabe o seu nome.
(pausa)

38
Eu me chamo Nicandir, ele, Ptaka,
cada um tem seu nome de batismo
e não se pode esquecer esse nome. Nunca!

PRISIONEIRO
Quem é que precisa saber meu nome?

OFICIAL PTAKHA
Não vai dizer seu nome, não é?

Todos ficam em silêncio. Se olham de vez em quando. Ajeitam as coisas do


acampamento. O PRISIONEIRO parece mais agitado. Os outros olham com
desconfiança.

OFICIAL LOBITKO (quebrando o silêncio)


Quais são as novidades?

Os OFICIAIS iniciam uma conversa maçante sobre questões burocráticas do


acampamento, o CAPITÃO está alheio a tudo aquilo. A voz da MULHER QUE
NARRA e das outras MULHERES (que estão ao redor do grupo) alternam-se com a
conversa dos OFICIAIS. O PRISIONEIRO permanece quieto num canto. Ao fundo,
sempre escuta-se os sons de bombas e sirenes ao longe.

MULHER QUE NARRA


Aquela conversa em nada interessava o Capitão.
Já não sentia mais a manteiga sob o pescoço;
nem o friozinho mentolado junto aos lábios.

OFICIAL PTAKHA
Um cavalo de tração e de sela machucou o garrote.

MULHER LILÁS
O que vinha na memória agora era a casa da festa.
Provavelmente, a esta hora, as persianas estão fechadas.
E ainda dormiam ali.
E dormia também aquela que o beijava naquela noite.

39
OFICIAL NICANDIR
Semana que vem precisamos nos reabastecer.

MULHER LOURA
Quis imaginá-la dormindo:
a janela do quarto completamente aberta,
os ramos verdes espiando por essa janela,
o frescor matinal, o aroma do choupo, dos lilases e das rosas...

OFICIAL LOBITKO
Na outra bateria, um cavaleiro tirou a perneira
e pendurou sobre o reparo. Como se ninguém notasse isso.

MULHER DE AMARELO
O leito, a cadeira e, sobre esta, o vestido que ainda
naquela noite fazia fru-fru, os sapatinhos,
o reloginho sobre a mesa...

MULHER QUE NARRA


Traçou tudo aquilo de modo nítido.
Mas o traço do rosto, o querido sorriso,
justamente aquilo que é mais importante,
fugia da mente, como a água entre os dedos.

OFICIAL PTAKHA
E o senhor, Oficial Lobitko, tem hoje um aspecto triste.
Está com saudades das mulheres daquela festa?

OFICIAL NICANDIR
Quantas foram? Duas? Três?

OFICIAL LOBITKO (sorrindo)


Quatro.

As MULHERES afastam-se do grupo de OFICIAIS e vão para um outro canto do


palco. O CAPITÃO olha intrigado para LOBITKO, e depois volta-se para si.

40
MULHER QUE NARRA
Naquele momento ele procurava convencer-se
de que o episódio do beijo podia ser interessante
apenas como uma aventurazinha misteriosa,
que em essência tal episódio era insignificante;
e que pensar nele seriamente era – pelo menos – uma tolice.

O CAPITÃO levanta-se e afasta-se dos OFICIAIS. Tudo fica escuro, ficamos apenas
com o CAPITÃO e a voz da MULHER QUE NARRA.

MULHER QUE NARRA


Mas logo ele descartou a lógica e entregou-se aos devaneios.
Ora ele se imaginava na sala de visitas dos Von Rabbek,
ao lado de uma jovem que parecia a senhorita lilás,
(surge a senhorita lilás)
ou sentado ao lado da loura de preto,
(surge a loura de preto)
ou caminhando com a senhorita de amarelo.
(surge a senhorita de amarelo)
E então fechava os olhos e via-se com uma outra moça,
completamente desconhecida,
com um rosto de traços indeterminados;
e ele falava com ela, acariciava, inclinava-se sobre seu ombro;
depois imaginava essa guerra, a separação,
depois o regresso, a ceia com a mulher, os filhos...

OFICIAL LOBITKO (gritando)


Atenção! Preparar para sair amanhã pela manhã!

Neste momento as luzes sobre os OFICIAIS se acedem e o CAPITÃO volta a


realidade, saindo os seus devaneios. Ele aproxima-se dos outros OFICIAIS. Senta-
se ao lado deles, no acampamento. Estão em silêncio.

CAPITÃO (começando a falar, meio sem jeito)


Aconteceu uma coisa estranha na casa daqueles Von Rabbek...

Por um momento, os OFICIAIS olham com atenção para o CAPITÃO.

41
CAPITÃO (ainda sem jeito, mas animando-se)
No meio da festa, eu fui, imaginem vocês...
para o salão de bilhar... e na volta, olhem só...
Havia uma sala escura, e a janela estava aberta...
Não que seja importante este detalhe.
Mas entrei ali e fiquei parado.
E, veio por trás, uma dama.
Que me abraçou, e me deu um beijo.
Olhem só! Mas que logo depois foi-se.
Sem que eu pudesse saber quem é.

OFICIAL PTAKHA (sem nenhum interesse)


Atira-se ao pescoço, sem antes chamar pelo nome.
Deve ser uma psicopata.

OFICIAL NICANDIR (também sem interesse)


Sim, provavelmente uma psicopata.

Os OFICIAIS continuam a comer, sem demonstrar nenhum interesse no relato


contado pelo CAPITÃO, que está desapontado.

OFICIAL LOBITKO
Já me aconteceu também um caso semelhante.
Eu estava viajando, no ano passado, para Kovno.
Compro uma passagem de segunda classe.
O vagão está repleto e é impossível dormir. Dou meio rublo ao cabineiro.
Ele apanha a minha bagagem e conduz-me a uma cabine.
Deito-me e cobro-me com a manta.
Está escuro, compreendem?
De repente, percebo que alguém me toca no ombro
e respira bem junto ao meu rosto.
Faço um movimento com a mão e sinto o cotovelo de alguém.
Abro os olhos e, imaginem vocês... uma mulher!
Os olhos negros, lábios vermelhos como um salmão dos bons,
as narinas respirando paixão, o peito saltando
que nem biela de locomotiva!

42
OFICIAL NICANDIR
Perdão, quanto ao peito eu compreendo.
Mas como podia ver os seus lábios.
Não estava escuro?

Todos os OFICIAIS riem, até mesmo o PRISIONEIRO. O CAPITÃO não acha


nenhuma graça e fica apenas mexendo em suas coisas enquanto os outros
prosseguem com as risadas e a conversa.

CENA #13 – O FIM DOS SONHOS

Os OFICIAIS PTAKHA e NICANDIR e o PRISIONEIRO continuam a caminhada.


Permanecem em silêncio por um tempo, caminhando com dificuldade.

OFICIAL PTAKHA (quebrando o silêncio)


Não vai mesmo dizer seu nome?

PRISIONEIRO
E que proveito eu tiro disso?
Se pelo menos me deixassem ir aonde quero,
mas, se eu dissesse o nome, seria ainda pior.
Conheço a lei, meu irmãos.
Agora, sou um vagabundo que não lembra a filiação.
Por isso, o pior que pode me acontecer é me condenarem
a degredo na Sibéria, e me darem 30 ou 40 chibatadas.
(pausa)
Mas, se eu disser meu verdadeiro nome e condição,
vão me mandar para os trabalhos forçados. Eu sei.

OFICIAL NICANDIR
E você já esteve nos trabalhos forçados?

PRISIONEIRO
Estive, meu caro. Andei, durante quatro anos,
com cabeça raspada e com grilheta.

43
OFICIAL NICANDIR
E por quê?

PRISIONEIRO
Por homicídio, meu velho!
Quando ainda era rapazinho, tinha uns dezoito anos,
minha mãezinha, por descuido, pôs arsênico,
no lugar de bicarbonato de sódio, no copo do patrão.
(pausa)
Havia muitas caixinhas na dispensa.
Era fácil fazer confusão.

Os OFICIAIS e o PRISIONEIRO continuam a caminhar. Os passos são cada vez


mais pesados.

PRISIONEIRO
Ela era piedosa, mas... quem pode saber?
O coração alheio é uma floresta espessa.
É possível que fosse por descuido,
mas pode ser também que não se conformasse com a ofensa
de que o patrão aproximara de si uma nova criada...
Pode ser que ela desse de propósito aquele pó, Deus sabe.
(pausa)
Eu era tão pequeno e não compreendia as coisas.
Agora me lembro que o patrão realmente tomou
amante nova e que mãezinha ficou muito sentida.
O nosso julgamento durou uns dois anos...
Mãezinha foi condenada a vinte anos de trabalhos forçados
e eu, por ser menor, a sete apenas.

OFICIAL PTAKHA
Mas por que você?

PRISIONEIRO
Como cúmplice.
Fui eu que dei o copo para o patrão beber.
Era sempre assim: mãezinha preparava o bicarbonato

44
e quem levava o copo era eu.
Mas, irmãos, eu lhes estou dizendo tudo isso como cristão,
como se fosse perante a Deus,
não contem isso a ninguém, por favor...

OFICIAL PTAKHA
Ora, ninguém vai nos perguntar isso, não é, Nicandir?

OFICIAL NICANDIR
Não... Quer dizer que você fugiu dos trabalhos forçados?

PRISIONEIRO
Fugi, meu caro amigo.
Fomos uns quatorze que fugimos.
Que Deus lhes dê saúde,
os homens fugiram e me levaram juntos.
Agora, julgue em consciência, meus caros,
que motivo eu tenho para revelar meu nome?
Iam me mandar novamente para os trabalhos forçados!
E eu não tenho jeito para trabalho forçado.
Sou um homem delicado, doente,
gosto de dormir e de comer em lugar limpo.
Quando rezo a Deus,
gosto de acender um lampiãozinho
ou uma velinha, e – por favor – não façam barulho em volta.
Quando me ajoelho pra beijar o chão,
diante das imagens, gosto que não haja lixo
e que ninguém tenha cuspido ali.
E cada dia, eu beijo o chão quarenta vezes,
em intenção da minha mãezinha, de manhã e ao anoitecer.
(faz o sinal da cruz)
E que me mandem para a Sibéria!
Não tenho medo.

OFICIAL NICANDIR
Pensa que é melhor?

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PRISIONEIRO
Aí, a história é completamente diferente!
Nos trabalhos forçados,
a gente fica que nem camarão no cesto:
é abafado, apertado, todo mundo se empurra,
não se pode respirar!
É um inferno, um verdadeiro inferno,
que dele nos livre a Virgem Santíssima!
É como se dissessem à gente:
você é bandido e vamos te tratar como bandido,
pior que a um cachorro.
Nem comer, nem dormir, nem rezar a Deus!
(pausa)
E no povoamento, na Sibéria, é outra história...

O PRISIONEIRO interrompe a caminhada e, logo depois, os OFICIAIS também.


Percebemos que o pensamento do PRISIONEIRO está longe, muito distante, em
devaneio. Surge uma voz feminina, entra em cena IRINA.

IRINA (olhando com carinho para o PRISIONEIRO)


Em primeiro lugar, ele vai se inscrever na comunidade,
como os demais.
De acordo com a lei, as autoridades têm que dar
uma ajuda em dinheiro.
Dizem que a terra lá não custa nada, é como se fosse neve:
tome, quanto quiser!
Vão lhe dar terra para lavrar, para fazer horta, para moradia...
E ele vai fazer como todo mundo:
arar, semear, criar gado...
e ainda vai ter abelhinhas, ovelhas, cachorros...
(pausa, e ela segue, mais comovida)
E eu vou arranjar um gato siberiano para nós;
para que os ratos e camundongos não comam o que é nosso.
Construiremos uma casa...
E, se Deus quiser, vamos nos casar e ter filhinhos.

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PRISIONEIRO (olhando para Irina)
Vou ter uma esposa, e ela vai se chamar Irina!
(pausa, agora para si mesmo)
Não tenho medo da Sibéria!
A Sibéria é Rússia também, tem o mesmo Deus,
o mesmo czar, fala a mesma língua ortodoxa que eu e você.
(pausa, entusiasma-se)
O que existe lá é mais liberdade, as pessoas são livres.
Lá, tudo é melhor.
Os rios de lá, se querem um exemplo,
são muito melhores que os daqui.
É um mundo de peixe e caça!
E o meu maior prazer, meus irmãos, está em pescar.
Podem me deixar sem pão, mas me deem um anzol e linha.
Juro por Deus!
E os rios de lá são largos, rápidos, as margens altas...
um despropósito!
As árvores são tão altas que se tem vertigem
quando se olha para as pontas.

O PRISIONEIRO parece perder-se em seus próprios devaneios, os OFICIAIS


apenas o observam; IRINA, agora, tem a expressão triste.

IRINA (melancólica)
Sob a invasão desordenada dos devaneios,
das imagens poéticas do passado
e de um doce pressentimento de felicidade,
ele cala-se e apenas move ligeiramente os lábios,
como se estivesse murmurando para si mesmo.
Mas não sai do seu rosto um sorriso embotado de beatitude.
(pausa)
Os oficiais permanecem em silêncio.
Ficam pensativos e deixam pender a cabeça.
(pausa)
Na quietude outonal, quando uma névoa gélida
passa da terra para o coração humano,
ela torna-se como uma parede de prisão

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e testemunha a limitação da vontade de um homem.
(pausa)
E aí torna-se doce pensar nos rios largos e rápidos,
de margens amplas e escarpadas, nas florestas impenetráveis...
(pausa)
Também a imaginação dos oficiais cria belos quadros
de uma vida livre, que nunca tiveram.
Evocam isso, confusamente,
imagens de algo que ouviram há muito,
ou herdaram de seus distantes e livres antepassados.
Talvez ainda estejam no corpo e no sangue
aquelas ideias de uma vida em liberdade.
(pausa)
Deus sabe...

IRINA sai de cena. Ficando apenas os OFICIAIS e o PRISIONEIRO um o pouco


mais a frente. Parecem sair de um transe.

OFICIAL PTAKHA (voltando a andar)


Vamos?

PRISIONEIRO (caminhando um pouco a frente)


Para onde vamos?
Achei que ficaríamos no acampamento.

OFICIAL NICANDIR
Assim é, você não vai chegar até aquelas terras, irmão.

OFICIAL PTAKHA (todos param, o PRISIONEIRO um pouco mais a frente)


Como pode?
Você é tão fraquinho.
Andamos um pouquinho
e você já não consegue recobrar o fôlego.

OFICIAL NICANDIR
Só nos atrapalha.

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OFICIAL PTAKHA
De fato, você não chega lá. Não é um andarilho.
Olha bem, só tem pele e ossos.
Vai morrer, irmão.

OFICIAL NICANDIR
Só nos atrapalha.

OFICIAL PTAKHA
Está claro que vai morrer. A coisa não é pra ele.

OFICIAL NICANDIR
Só nos atrapalha.

OFICIAL PTAKHA
Bom... está na hora.

Os OFICIAIS ficam parados e deixam o PRISIONEIRO caminhar um pouco mais a


frente, sem se virar para trás. Quando ele está a uma certa distância, NICANDIR
pega a sua arma, aponta para o PRISIONEIRO, e dá um tiro. O PRISIONEIRO cai
morto.

CENA #14 – RETORNANDO DA GUERRA

Os OFICIAIS e o CAPITÃO continuam a caminhada. Todos parecem cansados, mas


o CAPITÃO olha, ansiosamente, de um lado para o outro.

MULHER QUE NARRA


No dia 31 de agosto, três anos depois,
eles voltavam a cidadezinha.
Durante todo o caminho,
o Capitão devaneou e inquietou-se,
como se estivesse regressando a algo muito íntimo.
Queria, apaixonadamente, tornar a ver a Igrejinha,
o caminho perto do rio, a insincera família Von Rabbek,
o quarto escuro...

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MULHER LILÁS
E a voz interior murmurava que ele,
por algum motivo, ia encontrá-la.

MULHER LOURA
Perguntas atormentavam:
como seria o encontro com ela?

MULHER DE AMARELO
Do que falariam?
Ela esqueceu o beijo?

Os OFICIAIS e o CAPITÃO chegam ao acampamento, começam a arrumar as suas


coisas. Os OFICIAIS estão cansados, mas agitados. O CAPITÃO deixa as suas
coisas no chão e senta-se pensativo.

CAPITÃO (tentando ser simpático)


Daqui a pouco chega um cavaleiro
e nos convida para um daqueles chás
cansativos na casa dos Von Rabbek.

OFICIAL PTAKHA
Nem foi tão cansativo assim. Não é verdade, Lobitko?

OFICIAL LOBITKO
Sim, foi bem divertido.

OFICIAL NICANDIR
Mas acho que desta vez não.
A esta hora o mensageiro já teria chegado.

CAPITÃO
Você acha?

OFICIAL PTAKHA
Talvez não tenham percebido a nossa chegada.

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OFICIAL LOBITKO
Pode ser...
Mas não ficarei sem uma bebida.
Quem em acompanha na taberna?

OFICIAL NICANDIR
Vamos lá.

Os OFICIAIS levantam-se animados e começam a sair, olham para o CAPITÃO que


permanece sentado. Ele faz um sinal para que eles prossigam. Os OFICIAIS saem e
o CAPITÃO permanece sentado. Do fundo do palco, vão surgindo vários
personagens, e cada um vai completando a narrativa do outro. A ação do CAPITÃO
segue esta narrativa de forma aleatória: às vezes acompanhando, outras não.

SR. VON RABBEK


Apoderou-se dele uma pesada inquietude.

SRA. VON RABBEK


Deitou-se. Levantou-se.
E foi até a janela espiar se não vinha um mensageiro a cavalo.

MULHER LILÁS
Mas este não dava sinal de vida.

MULHER LOURA
Não suportando a inquietação,
saiu para a rua e caminhou na direção da Igreja.

MULHER DE AMARELO
A praça estava silenciosa, escura e vazia.

MULHER QUE NARRA


Desceu para o rio.
Ali haviam três soldados que sobressaltaram-se
e fizeram continência para o Capitão.

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OFICIAL PTAKHA
Caminhou pela margem do rio.
Rio tão amigo, e que o recebia com um doce ruído.

OFICIAL LOBITKO
No céu púrpuro erguia-se a lua.
Tudo estava como antes.
Só não havia o canto do rouxinol
e o cheiro de choupo.

OFICIAL NICANDIR
Chegando ao jardim,
o Capitão Riabóvitch espiou pelo portão.

SR. VON RABBEK


No jardim, tudo estava escuro e quieto.

SRA. VON RABBEK


Apareciam apenas os troncos brancos
das bétulas mais próximas.

MULHER LILÁS
E também um pedacinho da alameda,
todo o resto fundia-se numa massa negra.

MULHER LOURA
O Capitão Riabóvitch aguçava os olhos e ouvidos.
Olhava para todos os lados e percebia o menor ruído.

MULHER DE AMARELO
Tendo permanecido ali cerca de um quarto de hora
e não conseguindo ouvir nenhum som, nenhuma luzinha...
Arrastou-se de volta.

O CAPITÃO volta lentamente, arrastando-se, para o acampamento. Caminha como


se suas pernas mal conseguissem mover-se. Chegando ao acampamento senta-se,
deixando o corpo cair.

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CAPITÃO
Que idiota! Que idiota!
Que idiota que eu sou!

MULHER QUE NARRA


E o mundo inteiro, toda a sua vida,
pareceram para Riabóvitch uma brincadeira
incompreensível, sem objetivo.
Pensou em como o destino,
na forma de uma mulher desconhecida,
o acarinhou sem querer... por acidente.
Seus devaneios e imagens de Verão
foram desaparecendo pouco a pouco...
E a vida que levava agora pareceu tosca,
miserável, uma bobagem.
Se deu conta de que era apenas um
homem tímido, curvado e... incolor.

O CAPITÃO fica um tempo sentado, olhando para o nada, e depois deixa-se cair
para trás. Fica deitado em silêncio, quieto. Até que aproxima-se dele um
CAVALEIRO. O cavalo vem dançando, com movimentos miúdos. O CAVALEIRO
desce e faz um cumprimento com seu chapéu.

CAVALEIRO
Prezado senhor, a Sua Excelência, o Tenente General Von Rabbek,
que possui muitas terras aqui, convida o senhor oficial a
ir agora mesmo tomar chá em sua casa. Desta vez, em sua mansão do lado
norte da vila. Diz que será um prazer recebê-lo.

O CAPITÃO olha atônito para o CAVALEIRO, que o observa com um certo despeito,
aguardando a confirmação do CAPITÃO, que permanece quieto.

CAVALEIRO
Seus colegas já foram.
É melhor o senhor se apressar.

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O CAVALEIRO diz isso e sai da mesma forma que entrou. O CAPITÃO, ainda
atônito, permanece olhando. Fica um tempo sozinho. Não escutamos mais os sons
de bombas ou aviões, apenas o som dos grilos da noite.

CAPITÃO
Provavelmente ela vai estar lá.
Provavelmente nos encontraremos.
Vou conhecê-la. Conhecer seu rosto.
E certamente deixarei de sonhar com ela.
Não. Não vou lá.
(pausa)
Talvez isso é o que realmente importe.
Manter o desejo vivo em algum lugar.
(pausa)
Daqui a duzentos ou trezentos anos,
daqui a um milhão de anos,
a vida continuará sendo o que era.
Ela não muda, permanece constante,
sujeita a leis próprias independente de nós,
ou, pelo menos, leis que não conheceremos jamais.
(pausa)
Os pássaros migrantes,
as cegonhas, por exemplo, voam e voam.
E podem ser elevados ou mesquinhos os pensamentos
que se agitam em suas cabecinhas,
e eles continuarão a voar sem se importar com
as filosofias que existem entre eles.
(pausa, termina irritado)
Que filosofem o quanto quiserem!
Desde que voam!

Black out.

* * *

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