You are on page 1of 19

Calendários na Antiguidade: Coligny e o Mundo Clássico

Nelson de P. Bondioli

Todas as culturas possuem suas próprias formas de perceber a passagem do


tempo, seja de acordo com o movimento do sol pelo céu ou pelas fases da lua, formando
uma sucessão de dias que originam semanas, meses e anos1. Este fato fora igualmente
verdadeiro para o mundo antigo como é para nossas sociedades atuais faltando,
entretanto, ao passado a uniformidade em que vivemos hoje; uma uniformidade que
tomou o lugar de uma variedade de formas engenhosas e originais de medir a passagem
do tempo e criar calendários.

Os calendários na antiguidade eram, geralmente, de três tipos: Solares, isto é,


baseados no movimento do Sol pelo céu, como era o caso do calendário da República
Romana tardia 2 ; Lunares, aqueles baseados nas fases da Lua, como por exemplo, o
頴頴墿 蘟盼盼盼

calendário religioso em Atenas nos séculos V e IV a.C.3 , e os Lunisolares que tentavam


conciliar ambos os corpos celestes, este último como será demonstrado durante este
estudo, é o caso do calendário de Coligny4.

No mundo Romano o Senado era o responsável pela criação e modificação dos


calendários, embora sua gerência estivesse sob a responsabilidade dos Pontifices. Como
se bem sabe, durante 36 anos após a reforma Juliana do calendário Romano, os
pontifices erraram adicionando o dia extra do ano bissexto a cada três anos ao invés de
quatro, um erro corrigido somente pela ação do Imperador Augusto5. No mundo Celta
apenas os fragmentos de dois calendários foram encontrados: O Calendário de Coligny

1
Rosen, R. Ancient Time across Time. In: Time and Temporality in the Ancient World. Philadelphia:
University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Anthropology. 2004. pp. 3-5.
2
Michels, A. The Calendar of uma and the Pre-Julian Calendar. In: Transactions and Proceedings of
the American Philological Association v. 80. (1949). pp. 320-346; Hannah, R. Greek and Roman
Calendars: Constructions of Time in the Classical world .London: Duckworth. 2005.
3
Mikalson, J. The Sacred and Civil Calendar of the Athenian Year. Princeton: Princeton University Press.
1975
4
Duval, P. and Pinault, G. Recueil Des Inscriptions Gauloises. R.I.G. 3. Paris:Centre National de la
Recherche Scientifique. 1986.
5
Hannah, R. op. cit. pp. 116-117

1
(1897) e aquele de Villards D’Héria (1807), embora pouco se saiba sobre este último
devido a pequena quantidade de fragmentos encontrada6.

Neste estudo examinaremos a premissa de que o calendário de Coligny é um


dos melhores exemplos da capacidade Celta de adaptar idéias estrangeiras sem que com
isso perca sua identidade e crenças. Esta habilidade de compartilhar idéias demonstra
que, tanto o mundo Celta quanto o Clássico não estavam tão distantes quanto
normalmente se assume, mas ao contrário, o longo contato entre estas culturas provou
ser um amplo espaço para trocas culturais.

1 – Calendários na Antiguidade

1.1 – Coligny: Construção e Datação

O calendário de Coligny (fig.1) foi encontrado em 1897 na região do Ródano-


Alpes da França, consistindo em diversas peças de uma placa de bronze enterrados junto
aos pedaços de uma estátua do mesmo material. O calendário estava incompleto: da
placa original de bronze que cobria cinco anos (62 meses) em 2021 linhas – todas
escritas em gaulês, mas utilizando caracteres em Latim – distribuídas em 16 colunas,
por uma superfície de 1,48 x 0,9m, apenas 59% foi recuperado7.

A datação do calendário tem sido uma questão em aberto desde a sua


descoberta. Foi somente através da comparação com outras inscrições que uma data
para a sua possível criação foi assinalada. Duval e Pinault8, no maior e mais influente
trabalho já publicado sobre o tema, examinaram especialmente as características das
letras A, M, , X inscritas no calendário para se chegar a uma conclusão: O estudo das
serifas9 horizontais no topo das letras A, M, ; A grossura das hastes que formam as

6
Duval, P. e Pinault, G. op. cit. p. XII
7
Ibid. p. 31
8
Ibid. p. 26
9
Traços e prolongamentos que ocorrem ao fim das hastes de cada letra.

2
letras A, M, , X; A verticalidade da primeira e última haste da letra M (isto é |\/|

inscrito no calendário ao invés do /\/\) (cf. Fig. 2) – comparando estes elementos a


outras evidências epigráficas de Roma e suas províncias. Embora, como os autores
demonstraram,, existem exemplos destas características em inscrições desde meados do
século I d.C, assume-se
se que o calendário de Coligny seja uma construção do final do
século II ou início do século III d.C.,
d.C., momento no qual há uma maior quantidade de
inscrições que, em
m seu conjunto,
conjunto se assemelham mais com aquelas do calendário.

Fig.1

Fragmentos do Calendário de Coligny. Imagem do Museu Galo-Romano


Galo Romano em Lyon

3
Fig. 2

Detalhe do segundo mês intercalar do Calendário de Coligny. Imagem retirada de Duval & Pinault 1986.

Propomos,, entretanto,
entretanto, considerar dois elementos que podem indicar uma
datação mais antiga para o calendário. O primeiro elemento trata-se
trata se da tábua Claudiana
(Fig. 3),, uma construção em bronze datada do ano 48 d.C, encontrada em Lyon e que se
refere a um discurso do Imperador Cláudio em favor de conceder aos homens notáveis
da Gália acesso ao Senado Romano. Os próprios Duval e Pinault reconhecem 10 que
quem quer que tenhaa construído o calendário de Coligny pode ter decidido empregar
deliberadamente o mesmo estilo chamado “rústico” utilizado na tábua Claudiana, e
também presente na Lex Vespasini,
Vespasini tábua de bronze do ano 69 d.C. Acreditamos que
seja importante notar que a cidade
cidade de Coligny onde o calendário foi encontrado
localiza-se
se a não mais do que 100 km de distância de Lyon onde tábua Claudiana
Claudi era
mantida e, apesar de não podermos argumentar com certeza onde o calendário foi
construído – sabemos apenas onde ele foi depositado
depo – existe a grande possibilidade que
seu criador tenha tido a oportunidade para estudar a tábua Claudiana por si mesmo.

10
Duval, P. e Pinault, G. op. cit. p. 25

4
Fig. 3

Detalhe da Tábua Claudiana. Imagem pertencente ao Museu Galo-Romano


Galo Romano em Lyon

O outro elemento a ser considerado, e talvez de maior importância, é a estátua


com a qual o calendário foi encontrado: sua reconstrução revelou tratar-se
tratar de uma
representação do deus Marte nu e imberbe, um estilo particularmente conhecido na
Gália e datado por Stéphanie Boucher como pertencente a meados d.C.11
meados do século I d.C
(Fig.4). R. Osborne 12 em seu trabalho, já notou que existe uma longa tradição em
estudos arqueológicos de analisar os artefatos encontrados somente em si mesmos em
detrimento de considerar os achados como um todo e estudá-los
estudá los em relação
relaçã com os
outros com os quais foram depositados. Isto é particularmente significante no caso do
calendário de Coligny,, pois mesmo tendo suas partes mescladas com a da estátua, esta
última passou praticamente invisível nas análises sobre o calendário.

11
Ibid. p. 35
12
Osborne, R. Hoards. Votives, Offerings: The Archaeology of the Dedicated Object. In: World
Archaeology. v. 36 (2004). pp. 4-5
4

5
Fig. 4

Reconstrução da Estátua de Marte. Imagem tirada de Duval & Pinault 1986.

Embora se possa argumentar que estes elementos sejam circunstanciais e


certamente não definitivos o suficiente para re-datar o calendário de Coligny,
acreditamos que se constituem de pistas que foram descartadas ou pouco consideradas
no esforço para se atingir uma datação mais precisa, e sendo assim, devem ser melhor
estudados. O fato de todos esses elementos apontarem para meados do século I d.C. faz,
ao menos em nossa visão, um bom caso a ser investigado. De todo modo, deve ser
notado que ainda que o calendário tenha sido mesmo uma construção do século II ou III
d.C., o grau de sofisticação demonstrado em sua produção implica certamente em uma
tradição antiga na construção de calendários. Nas palavras de Duval e Pinault: “pode-se
recitar uma epopéia de memória, mas não um calendário”13. Venceslas Kruta14 também

13
Duval, P. e Pinault, G. op. cit. p. XII. Traduzido livremente do francês pelo autor: on peut reciter une
epopee de mémoire mais pas un calendrier

6
aponta para o fato que o sistema Lunisolar apresentado no calendário de Coligny
pressupõe um longo estudo e profundo conhecimento do movimento dos corpos
celestiais e a habilidade em traduzi-los em modelos matemáticos, sendo um trabalho
que muito provavelmente tem suas raízes em observações anteriores. De fato, Júlio
César no século I a.C. já atribuía aos druidas “muitas discussões concernentes às
estrelas e seu movimento, o tamanho da do universo e da terra” 15 , sendo uma boa
indicação para a existência desta tradição na criação de calendários.

1.2 – O Calendário: Sistema e Inscrições

O calendário de Coligny apresenta uma proposta original e engenhosa para


contar a passagem do tempo, se comparada com as soluções apresentadas em outros
calendários da antiguidade, pois a duração de seus meses corresponde às fases da Lua
contendo, porém, um mecanismo interno para se manter alinhado às estações do ano no
decurso dos cinco anos para os quais foi construído, sendo assim um calendário
Lunisolar:

O Sistema do Calendário de Coligny

62 meses = (12 ordinários)x5 + 2 (meses intercalares).


Os 12 meses ordinários possuem 29 ou 30 dias da seguinte forma:
5 meses de 29 dias = 145 dias
7 meses de 30 dias = 210 dias
Total = 355 no ano.
Os anos 1 e 3 do calendário possuem um mês intercalar adicional de 30 dias.
A soma dos dias, portanto, para os 5 anos inscritos no calendário é igual a:
(355 x 5) + 60 = 1835 dias
14
Kruta, V. L’Ecriture. In: Moscati et al. eds. Les Celtes. Paris: EDDL, 2001, pp. 495-496
15
Caesar. De Bello Gallico, VI. 14. Traduzido livremente pelo autor: Multa praeterea de sideribus atque
eorum motu, de mundi ac terrarum magnitudine.

7
O calendário Juliano para o mesmo período possuía 1826 dias, isto é, uma
diferença de apenas 9 dias para o ano solar – uma façanha difícil de se realizar usando a
Lua como base para se medir a duração do mês e utilizando-se um sistema de
intercalação de meses completos.

As inscrições para os meses no calendário (cf. Fig. 5 e 6) começavam com a


letra M ou a palavra MID (significando “Mês”), antes do nome propriamente, como por
exemplo, SAMO, seguido pelas palavras MAT(-u) ou AMAT(-u), significando
provavelmente completo/bom e incompleto/não-bom respectivamente 16 . Os adjetivos
completo/ incompleto, relacionam-se com a duração dos meses: aqueles de 29 dias eram
considerados incompletos enquanto que os com 30 dias eram completos. Os meses eram
separados em duas metades: A primeira possuindo sempre 15 dias (marcados de I-XV),
e a segunda possuindo 14 ou 15 dias. SAMO de nosso exemplo era um mês MAT
possuindo assim duas semanas de 15 dias. As semanas eram separadas pela palavra
ATEOX cujo significado ainda é obscuro. Cada mês possuía um número grande de
inscrições: algumas cujo significado ainda é desconhecido, como por exemplo, AMB ou
a notação de sinais triplos localizados ao lado de alguns dias da semana. Outras o
significado ainda não é claro embora sua utilização seja conhecida, sendo o caso de
PRII LAGET/ PRII LOVDI que são somente usadas durante a primeira
semana de cada mês, a primeira apenas em meses AMAT e a segunda para meses
MAT. A série de inscrições P. LOVDI começa com o início do mês de SAMO (o
primeiro mês do ano no calendário), enquanto que a série de P. LAGET inicia-se com o
mês de GIAMOI localizado na metade do ano o que, de acordo com Duval e Pinault,
serve como um bom exemplo para demonstrar que o ano era divido em dois semestres17.

16
Duval, P. e Pinault, G. op. cit. pp. 18-20. Uso das palavras em francês <<bom>> e <<mauvaise>> para
traduzir os termos mat/amat.
17
Ibid. pp. 431-432.

8
Fig. 5

Calendário de Coligny: Mês de Samon. Ano 2: Imagem retirada de Duval & Pinault 1986.

9
Fig. 6

Facsímile da Imagem 5. Imagem tirada de Duval & Pinault 1986.

10
Existem também inscrições cujo significado tenha sido entendido como o caso
já mencionado do M ao início dos meses ou as palavras MAT/AMAT, D sendo a
primeira letra para o termo utilizado para designar “dia”. Todo o mês de SAMO
também possuía a inscrição TRIO/ TRIOX SAM no segundo dia da segunda
semana, sugerindo provavelmente uma festividade anual. Como pode ser visto, sem
entrar em uma consideração mês-a-mês, o calendário de Coligny é uma construção
complexa que em seu sistema é originalmente Celta, não havendo paralelos na
antiguidade com sua construção, embora como veremos, existem muitas características
nele compartilhadas com os calendários do mundo clássico.

1.3- Calendários do Mundo Clássico

a) Calendário durante a República Romana

O calendário Republicano de Roma usava o Sol como base de seu sistema: por
volta dos últimos dois séculos a.C. o ano era dividido em doze meses mais um décimo
terceiro intercalar. A única evidência material que possuímos do calendário pré-Juliano
são os fragmentos encontrados em Antium conhecido como Fasti Antiates Maiores18
(Fig. 7). O calendário data do século I a.C., media originalmente 1.16x 2.5m 19 . Os
meses eram separados em treze colunas e consistiam de 29 ou 30 dias (marcados ao fim
de cada mês com XXIX ou XXX), exceto pelo mês intercalar que possuía 27 dias
(XXVII). Disto resultava que o ano possuía 377 dias, avançando assim 12 dias em
relação ao ano solar. Devemos notar que, como mostra A. Samuel20, apesar da duração
dos meses ser próxima aos ciclos da Lua, o ano Romano durante a República tardia
almejava alinhar-se com as estações do ano desconsiderando qualquer paralelo lunar.

18
Samuel, A. Greek and Roman Chronology: Calendars and Years in Classical Antiquity. Munchen:
Beck. 1972. p. 158; Hannah , R. op. cit. pp. 102-103; Haensch, R. Inscriptions as Sources of Knowledge
for Religions and Cults in the Roman World of Imperial Times. In: Rüpke, J. ed. A Companion to Roman
Religion. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, pp. 2007. pp. 178-179.
19
Hannah, R. op.cit. p.102
20
Samuel, A. op. cit. pp. 159-160

11
Fig. 7

Reconstrução do Calendário em Antium: Palazzo Massimo alle Terme em Roma. Imagem disponível
online pela Universidade de Chicago.

Fig. 8

Facsímile do Calendário de Antium. Imagem Retirada de Haensch, R 200721.

21
Haensch, R. Inscriptions as Sources of Knowledge for Religions and Cults in the Roman World of
Imperial Times. In: Rüpke, J. ed. A Companion to Roman Religion. Oxford:
xford: Blackwell Publishing Ltd.
2007. pp. 176-187.

12
Como Robert Hannah aponta22, o ano começava com o mês de Janeiro, ao lado
esquerdo dos dias do mês havia uma seqüência de oito letras que se repetiam
continuamente: A-H, chamadas de nundinais, tomadas por estudiosos como referência
ao ciclo de oito dias de mercado 23 . O calendário apresenta outras inscrições e
abreviaturas como as letras K para marcar kalendae: primeiro dia de cada mês, O
nonae: 5º. ou 7º. dia de cada mês , e também EIDVS para os idus: 13º. Ou 15º dia de
cada mês 24 . Havia diversas outras abreviaturas em determinados dias dos meses
marcando festivais como, por exemplo, as letras: Q. ST. D. F << Quando Stercus(um)
Delatus Fas>> no dia 15 de junho, quando o templo da deusa Vesta era limpo25.

b) O Parapegma grego

O Parapegma foi uma inovação grega do século V a.C. em calendários usado


para acompanhar a passagem do tempo do ano solar através das várias fases estelares26
(Fig. 9). O parapegma consistia de tábuas de pedra inscritas com pequenos buracos que
serviam para receber um pequeno pedaço de madeira (pegma) que era movido
diariamente para mostrar os eventos celestiais significantes para aquela data (se
houvesse algum). No mundo grego, o parapegma também era usado como forma de
prever condições meteorológicas de acordo com eventos astronômicos durante o ano27.
A pesquisa realizada sobre o parapegma nos indicou que embora existam alguns
exemplos de seu uso entre os Romanos28, ele não era muito popular e seu sistema não
era usado em calendários da República ou Império Romano (que desde meados do
século I a.C. empregava o sistema Juliano).

22
Hannah, R. op. cit. p. 102
23
Samuel, A. op. cit. p. 154
24
Haensch, R. op. cit. p. 179
25
Hannah, R. op. cit. p. 104
26
Ibid. p. 58
27
Hannah , R. The Star of Iopas and Palinurus. In: The American Journal of Philology. v. 114 (1993). pp.
123-135.
28
Long, C. The Pompeii Calendar Medallions. In: American Journal of Archaeology. v. 96 (1992). pp.
477-501.

13
Fig. 9

Extrato do Parapegma de Miletos do séc. II a.C. Imagem tirada de Hannah, 2005.

1.4 – Coligny: Adaptação e Originalidade

O calendário de Coligny apresenta um mecanismo original de medição da


passagem do tempo alinhando o movimento do sol às fases da lua com um erro de
apenas nove dias em relação ao ano solar ao final do seu ciclo de cinco anos. Devemos
notar que o calendário independentemente de ser uma criação do século I ou III d.C, já
estava competindo com o mais preciso calendário Juliano. O impacto da reforma Juliana
não deve, entretanto, ser superestimada. Alan Samuel 29 demonstrou que embora a
influência da reforma tenha sido fortemente sentida nas provinciais orientais do Império
Romano, o calendário Juliano não fez desaparecer nem suplantou todos os seus
competidores. Embora não tenhamos encontrado exemplos vindos de outras províncias
Romanas para comparação, é possível que os efeitos do calendário Juliano tenham sido
similares especialmente na Gália.

29
Samuel, A. op. cit. p.171

14
Original como é em seu sistema, o calendário de Coligny, entretanto, apresenta
diversos aspectos do mundo Clássico, que agora já devem ter se tornado evidentes. Em
primeiro lugar o calendário, embora escrito em língua gaulesa, utilizou-se de caracteres
romanos ao ponto de ser possível analisar os estilos gráficos das suas inscrições no
esforço para datá-lo conforme a evidências epigráficas de Roma e suas províncias.
Tanto o calendário Romano quanto Celta, são artefatos de um tamanho considerável e
por sua natureza objeto de exibição pública, mesmo que somente um pequeno grupo –
como as elites – tenham sido capazes de completamente entendê-los. Considerando as
informações inscritas e exibidas neles, notamos semelhanças de ordem prática como o
uso de abreviações do nome dos meses e notações específicas em algumas datas,
embora exista uma importante diferença: enquanto o calendário Romano enfatizava o
dia da semana, provavelmente em relação ao seu caráter de dia de mercado (A-H), e
apresentava ao final de cada mês o número de dias que este possuía isto é, 29 ou 30. O
calendário de Coligny era visualmente mais claro em apontar o dia numérico dentro da
semana (I-XV) e no caso dos meses com apenas 29 dias isto era indicado ao final pela
palavra DIVORTOMV.

Há também importantes paralelos entre o calendário de Coligny e o uso do


parapegma entre os gregos. Não apenas são notáveis os espaços ao lado esquerdo dos
dias da semana no calendário de Coligny – usados como formas de se visualizar o dia
atual para quem o visse – como também é possível que parte dos sinais inscritos no
calendário refiram-se a eventos astronômicos. Duval e Pinault30 propõem que os meses
eram separados em duas semanas correspondendo as fases da lua, de forma em que a
primeira semana correspondia ao lado “brilhante” (lua crescente e cheia), enquanto que
a segunda metade ao lado “escuro” (minguante e lua nova). Com base nessa suposição
os autores notam a atenção especial dada aos dias 7, 8 e 9 de cada semana do mês que
indicaria o início das Luas Cheia e Nova (Fig. 10).

Consideramos que o fato de que boa parte das inscrições do calendário não
possuir um sentido claro até o momento, seja motivo suficiente para não descartar, a
priori, que possam conter outras informações referentes às fases das estrelas, de modo
similar ao parapegma, embora a este momento, seja apenas uma conjectura.

30
Duval, P. e Pinault, G. op. cit. pp. 416-417

15
Fig. 10

Fases da Lua pelos meses do calendário de Coligny nos anos 1, 2 e 3. Imagem retirada de Duval &
Pinault 1986.

1.5 – Calendários e Sacerdotes

O calendário de Coligny certamente possuía um caráter religioso: se não fora


visto como um objeto religioso no momento de sua criação, é razoável supor que tenha
adquirido esta conotação quando de sua deposição, especialmente se considerarmos dois
fatores: a fragmentação do objeto antes de sua deposição e o fato de ser sido enterrado
junto com a estátua de uma divindade.

A necessidade de destruir este objeto levanta um número de questões cujas


respostas não são claras: Sua destruição visava assegurar que não seria usado
novamente, como uma opção deliberada em fazer da deposição permanente,
especialmente se considerarmos que nem todas as peças foram enterradas juntas? O que
deveríamos pensar a respeito das partes que estão faltando? Seria significante lembrar

16
que basicamente 59% do calendário foi recuperado, e que, portanto 41% do mesmo teve
um destino incerto, teriam sido reciclados? O mesmo pode ser perguntado a respeito da
estátua do deus Marte cujo braço esquerdo não foi encontrado. Ben Croxford31 em sua
análise sobre Iconoclastia na Grã-Bretanha no período Romano sugere que os pedaços
quebrados de estátuas podem ter sido usados como amuletos, tokens ou mesmo
elementos para encantamentos, poderia essa explicação ser adequada para o que
aconteceu com as partes que faltam do calendário e da estátua?

Em Roma, como explicamos anteriormente, era uma tarefa dos pontifices


gerenciar o calendário através do ano e especialmente observar corretamente os
momentos certos paras as festividades. Na Gália, é mais do que provável que os druidas
tenham sido responsáveis pelos calendários, mas não apenas a sua gerência como
também sua construção, uma vez que se tratavam da “classe intelectual” e assim, os
únicos com o treinamento e conhecimento adequados para fazer os cálculos e notações
necessárias a criação de um calendário.

2 – Conclusão

Neste estudo visamos apresentar três elementos: Em primeiro lugar apresentar


o calendário de Coligny ao público uma vez que existem poucos estudos a respeito
deste objeto seja no Brasil ou no exterior. O maior volume já publicado a seu respeito,
a obra de Duval & Pinault em 1986, embora tenha sido um imenso passo à compreensão
do calendário não foi seguida de outras pesquisas que pudessem levar adiante este
trabalho, havendo ainda grandes lacunas a respeito de sua utilização e inscrições.

Em segundo lugar visamos discutir a questão da datação do calendário, pois


embora concordemos se tratar de um objeto construído após a conquista da Gália por
Júlio César e inclusive posterior a administração do Imperador Augusto, é significante
atentarmos para o momento de sua construção. Como exposto anteriormente, o
calendário de Coligny usava o sistema Lunisolar quando certamente o sistema Juliano já

31
Croxford, B. Iconoclasm in Roman Britain? In: Britannia. v. 34 (2003), p. 89.

17
era bem conhecido pelas províncias Romanas ademais, ainda que escrito em sua própria
língua o alfabeto usado é romano. Devemos questionar qual a significação desses
elementos: A recusa pelo sistema Juliano e sua escrita em gaulês seria uma forma de
resistência à dominação Romana sobre a região? Poderia ser considerado como uma
forma de reafirmação de uma identidade Celta, através do apreço demonstrado às
formas locais de medir a passagem do tempo confrontando culturalmente o poder de
Roma? Se por um lado considerarmos a questão neste sentido, é possível que
encontremos de fato sua construção mais próxima a meados do séc. I. d.C., um
momento em que diversas revoltas contra Roma espalhavam-se na Gália, das quais, os
druidas eram tidos como grandes fomentadores, como mostra Tácito a respeito dos
episódios de 69 d.C:

Mas foi, acima de tudo, o incêndio do Capitólio


que levou os homens à acreditar que os dias do Império
estavam contados. Eles refletiram que Roma havia sido
capturada pelos gauleses no passado, mas, como a casa de
Júpiter havia se mantido inviolada, o Império havia
sobrevivido. Agora, entretanto, o destino havia ordenado
este fogo como um sinal da ira divina, e da passagem do
domínio do mundo para as nações ao norte dos Alpes.
Essa de qualquer forma, era a mensagem proclamada pela
superstição do druidismo32.

Se considerarmos, entretanto o calendário de Coligny não dentro de um


movimento de resistência, mas dentro de um esforço deliberado e dirigido a
aproximação cultural entre o mundo Celta e o mundo Clássico por parte das elites
gaulesas, é possível que encontremos sua construção em um período posterior como o
início do século III d.C., quando uma cultura Imperial – que como aponta Greg Woolf33
não quer dizer uma cultura Romana imposta sobre as provinciais, mas ao contrário uma
nova cultura Imperial direcionada por Roma, mas que abrigava outras formações
culturais – já estava bastante consolidada na Gália.

32
TÁCITO. Apud: Webster, J. At the End of the World: Druidic and Other Revitalization Movements in
Post-Conquest Gaul and Britain. In: Britannia. V. 30. (1999). p. 14
33
WOOLF, Greg. Beyond Roman and atives. In: World of Archaeology. V. 28. (1997). p. 347.

18
Independentemente de sua data de construção, entretanto, o calendário de
Coligny é um exemplo indiscutível de uma longa tradição de contatos entre o mundo
Celta e o mundo Clássico; uma tradição que tem raízes num passado distante é que ao
menos no século VI a.C. já era bem visível através dos estudos da cultura material de,
por exemplo, os ricos enterros da cultura Hallstatt34. A estátua de Marte encontrada
junto ao calendário é novamente um exemplo interessante, não apenas trata-se de um
objeto de meados do séc. I d.C, quanto sua construção remete ao estilo utilizado na arte
grega dos séculos c. V-IV a.C.35, além é claro da possível conexão com o parapegma
grego, como já exposto. Este é o terceiro elemento que apresentamos, e talvez um dos
mais importantes: Notar que havia um grande contato entre os diferentes povos da
antiguidade, um contato que longe de ser apenas bélico, proporcionava amplo espaço
para trocas culturais e do qual resultava não uma aculturação ou assimilação
indiscriminada de estilos e idéias, mas sim uma adaptação que gerava um produto
original que correspondia às necessidades e interesses locais daqueles povos. Dentro
desta perspectiva encontramos o calendário de Coligny: identificamos elementos do
mundo Clássico em sua construção sem que com isso haja prejuízo a sua originalidade e
relevância dentro da sociedade celta.

34
Divisão da Idade do Ferro da Europa central marcada c. 750-450 a.C.
35
Duval, P. & Pinault, G. op. cit. p. 35.

19

You might also like