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ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva
Brasil
Introdução e justificativas cia, que não existisse antes e que se proclame co-
mo uma essência a que se una a ordem jurídica
O ordenamento jurídico é a interface que per- (Dallari, 2001).
mite a existência do estado democrático de di- Se o Estado age por via legal, age através de
reito. O Estado é uma pessoa jurídica de direito conjuntos de normas, que tendem a proporcio-
público, isto é, uma instituição pública que de- nar um ordenamento das relações, criando
tém determinadas atribuições definidas em lei uma realidade social unificada para todo o co-
ou atribuições por definições culturais. Um Es- letivo que a ele se submete. O Estado é um
tado nacional historicamente representa um agente criador das leis, ainda que estas sejam,
Estado relacionado à determinada organização em sua gestação no caso pátrio, advindas de
social confinada a um espaço geográfico. Um grupos representativos dos múltiplos elemen-
Estado de direito é aquele que é definido por tos da sociedade. A entidade “Estado” absorve
leis e que coloca estas mesmas leis como pa- esse grupo representativo como um órgão da
drão para toda a sociedade, inclusive para a sua sua gestão.
própria atuação. No dizer de Dallari (2001), Cria-se então uma relação indivíduo (pes-
podemos conceituar Estado como a ordem ju- soa física) / Estado (pessoa jurídica de direito
rídica que tem por fim o bem comum de um po- público), que é diferente da relação indivíduo
vo situado em determinado território. (uma pessoa) / grupo (comunidade de diversas
Não há um Estado-nacional na atualidade pessoas), sendo a primeira regulada primaria-
que não seja instituído por leis, e nem há os mente por normas escritas que vinculam as
que não utilizem algum tipo de ordenamento possibilidades de ação de ambas as partes, e a
legal, e que não busquem, pela normatização, segunda regulada pela própria relação de poder
estabelecer uma comunicação com os elemen- entre as partes. A relação entre indivíduo-grupo
tos que o constituem, e a expressão daquilo que pode e freqüentemente traz o Estado para sua
se acredita que é a nação que o apóia (Dallari, esfera, ao buscá-lo como terceira pessoa de uma
2001). disputa, tendo este o direito jurisdicional, isto é,
O Estado aparece como porta-voz, mas de dizer o direito dentro daquela lide.
também como projeção do caráter de determi- Hoje, a relação indivíduo-grupo se ampliou
nada sociedade. Este caráter é uma formulação enormemente em virtude das possibilidades de
geral, baseada em valores do grupo, que pelas trocas de informações, que permitiram que as
leis reafirmam e mesmo constroem um con- relações se multiplicassem e abrangessem temas
junto de práticas que o definem. e formas que antes não poderiam ser formula-
Assim, o Estado ganha uma personalidade das. A velocidade das trocas de idéias e de infor-
jurídica própria, isto é, ganha uma identidade mações pelos meios de comunicação e no cibe-
que, ainda que emane de um grupo formador, respaço trouxe uma nova dimensão para as re-
é diferente da multiplicidade de indivíduos que lações humanas e para as maneiras de se atuar na
compõem este grupo. Ainda que não seja um sociedade, que ao mesmo tempo propuseram
sujeito de direitos, como uma pessoa física se- diversas questões ao Estado. Conceitos como
ria, compartilha diversos de seus aspectos, con- local de consumação de uma transação comer-
forme afirma Dallari: Finalmente, com a obra cial, por exemplo, são redefinidos; conceitos co-
de Jellinek, a teoria da personalidade jurídica do mo propriedade intelectual, as garantias de seus
Estado como algo real e não fictício vai-se com- direitos de propriedade, também têm de ser re-
pletar e acaba sendo mesmo um dos principais definidos e colocados de maneira tal que pos-
fundamentos do direito público. Explica Jellinek sam ser efetivamente protegidos.
que sujeito, em sentido jurídico, não é uma es- Nesse espaço podemos observar que as re-
sência, uma substância, e sim uma capacidade lações se formam e se diluem, impossibilitando
criada mediante a vontade da ordem jurídica. O que haja uma forte cristalização de valores es-
homem é um pressuposto da capacidade jurídica, pecíficos, cabendo então questionar a existên-
uma vez que todo direito é uma relação entre se- cia de valores ou coisas que se queiram univer-
res humanos. Entretanto, nada exige que a qua- sais, sólidas e à prova de dúvida. Na verdade,
lidade de sujeito de direitos seja atribuída ape- assim como as relações não têm tempo hábil
nas ao indivíduo. E a elevação de uma unidade para se cristalizar, elas se diluem também rapi-
seja atribuída apenas ao indivíduo. E a elevação damente, gerando outras relações novas.
de uma unidade coletiva àquela condição não A normatização ou, para os efeitos deste ar-
tem o sentido de criação de uma substância fictí- tigo, o Direito tem um caráter normativo e,
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do, por seus órgãos e institutos administrativos revolta dos fatos contra o direito estoura periodi-
ligados à saúde, busca através de compromissos camente e periodicamente destrói, após mais ou
e metas dirimir estes empecilhos à consecução menos sangue derramado, as instituições que não
de seus objetivos fundamentais. Todavia, man- se adaptarem à nova face da sociedade (Barbo-
tém-se a mesma visão normatizadora e, ainda za, 2001).
que não se ignore a fluidez do tema, recorre-se a A solução aventada para este cul-de-sac se-
maneiras de administração dos conflitos que ria a busca na ética de um procedimento mais
apenas tem um efeito sinérgico com um arca- eficaz de resolução de conflitos, e de dinamiza-
bouço jurídico avesso à velocidade e transdisci- ção destes mesmos conceitos jurídicos. Assim
plinaridade. O SUS ainda é freado, por motivos para um biodireito, uma bioética como matriz
múltiplos, sem que se ataque ou se aceite a ma- referencial, e os dois formariam a base de um
neira como essa multiplicidade se organiza. direito legitimamente sanitário, isto é, um di-
Convém que se reforce que a necessidade de ca- reito da saúde.
tegorizar, purificar, estabelecer normas fechadas Porém, utilizar a ética como guia não resol-
até em suas aberturas, a sanha estruturante e ve a questão normativa, pois apesar de apresen-
conseqüentemente cristalizadora, pode ser um tar bases interpretativas mais maleáveis e con-
dos elementos que emperram um pensamento seqüentemente mais bem adaptadas a tempos
administrativo mais eficiente para o SUS. velozes, ela não ataca o problema que é uma
Outras áreas do direito sanitário, utilizando norma que em algum momento se torna um
uma terminologia ainda objeto de discussão, peso morto, atravancando a solução e a disso-
que demonstram o questionamento dos ins- lução das relações. Ainda que se argumente que
trumentos jurídicos, normalmente afetam a este é um processo natural e que para uma lei
maneira como o direito abarca as situações, ou obsoleta resta a revogação e a criação de uma
seja, impactam os conceitos jurídicos. nova lei, caímos de novo no problema de um
Como encarar, por exemplo, as relações de tempo que faz da obsolescência não um risco,
parentesco, no caso de um ser humano clona- mas uma certeza para o futuro quase imediato.
do ou de um ser humano gerado in vitro por Na verdade, a proliferação de normas atende à
um casal, e nascido do ventre da irmã de um necessidade de uma visão de mundo em “legal-
dos cônjuges ou da mãe de um dos pais? Como ilegal”, majoritária na medida em que a maior
encarar a troca de sexo civil se, apesar do sexo parte da doutrina jurídica se preocupa enor-
genético, vivemos na verdade a nossa identida- memente com a interpretação de fatos de acor-
de social e, ao mesmo tempo, como coadunar do com normas, isto é, buscando adequar a
isto com o direito que o outro tem sobre infor- realidade a um esquadro de legalidade/ilegali-
mações deste tipo numa relação conjugal? En- dade que permite seja dito o direito, isto é, seja
fim, a todo o momento, somos confrontados feita a justiça, que passa na sua rotina a ser uma
com situações que têm sido cruciais para a so- interpretação vinculada a um processo. A ética,
ciedade atual, em vista dos desenvolvimentos neste caso, não passaria de uma alternativa
biotecnocientíficos, e que têm encontrado fó- igualmente normativa, dicotômica, ainda que
rum para discussão no espaço ético, mas que, talvez mais flexível. Este raciocínio reafirma
no ordenamento jurídico, têm enfrentado re- sua característica moderna, que, como pude-
sistência. mos observar, não mais descreve a atualidade.
Porém, será esta resistência um fenômeno Cabe atentar que ao decidirmos que a nor-
social, no sentido de uma resistência de valores matização, da maneira como ela é feita ou ape-
sociais, ou será também esta resistência de na- nas por existir, não dá conta da atualidade, e
tureza epistemológica, isto é, há a pressão da sabendo que a normatização é característica
atualidade, há a pressão que vem das relações importante e definidora do estado de direito,
nas múltiplas redes que constituem o nosso estamos na verdade clamando por um questio-
ambiente, mas o arcabouço jurídico simples- namento deste estado, e ousando redefini-lo
mente não consegue dar conta disso por não em bases novas ainda não testadas.
saber como?
Tais questionamentos são importantes, atua-
líssimos, e vistos cotidianamente na prática ad- Conclusões
vocatícia na área sanitária e regulatória (rela-
cionada à saúde). Heloíza Helena Barboza O direito e o Estado se encontram em momen-
(Barboza, 2001) atenta para isso e diz que: A to de profundo questionamento perante os de-
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Colaboradores
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