You are on page 1of 9

Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva
Brasil

Fernandes da Silva, Patrícia; Waissmann, William


Normatização, o Estado e a saúde: questões sobre a formalização do direito sanitário
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 10, núm. 1, janeiro-março, 2005, pp. 237-244
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63010130

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
237

Normatização, o Estado e a saúde:

TEMAS LIVRES FREE THEMES


questões sobre a formalização do direito sanitário

Normatization, State, and health:


issues on the formalization of health laws

Patrícia Fernandes da Silva 1


William Waissmann 2

Abstract The actuality is a turbulent environ- Resumo A atualidade é um ambiente de turbu-


ment where the scientific basis have been rede- lência em que as bases científicas vêm sendo rede-
fined, according to the work of many authors who finidas, conforme demonstra o trabalho de vários
have proposed new ways to focus the issues aris- autores que propõem novas maneiras de enfocar
ing in today´s society. In this context, we describe as questões que surgem na sociedade de hoje. Nes-
health, as states by WHO and by the Brazilian te contexto, descrevemos a saúde, como concei-
Federal Constitution of 1988, as a transdiscipli- tuada pela Organização Mundial de Saúde e pela
nary subject, requiring an equally wide approach, Constituição Brasileira de 1988, como matéria
considering the current episthemological chal- transdisciplinar, que requer uma abordagem
lenges. Laws, as a modern science, has been chal- igualmente ampla e considera os desafios episte-
lenged in its foundations by this actuality which mológicos atuais. O direito, ciência da moderni-
imposes a quest for new solutions, according to its dade, é desafiado em seus fundamentos por esta
new ways. This article seeks to present issues on atualidade, que impõe uma busca de novas solu-
the State, normatization and health, proposing ções, de acordo com seus novos caminhos. Este ar-
an intake from authors coming from the sociology tigo busca apresentar questões sobre Estado, nor-
field, widening the range of analysis and seeking matização e saúde, ao propor uma leitura a par-
to cover the episthemological questions in a trans- tir de autores vindos da sociologia, ao ampliar o
disciplinary way. espectro de análise e ao abarcar as questões epis-
Key words State, Normatization, Health, Trans- temológicas de maneira transdisciplinar.
disciplinarity Palavras-chave Estado, Normatização, Saúde,
Transdisciplinaridade.

1 Escola Nacional de Saúde


Pública, Fiocruz.
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos, 21041-310,
Rio de Janeiro RJ.
pfernandes_adv@yahoo.com
2 Centro de Estudos
da Saúde do Trabalhador
e Ecologia Humana,
ENSP/Fiocruz.
238
Silva, P. F. & Waissmann, W.

Introdução e justificativas cia, que não existisse antes e que se proclame co-
mo uma essência a que se una a ordem jurídica
O ordenamento jurídico é a interface que per- (Dallari, 2001).
mite a existência do estado democrático de di- Se o Estado age por via legal, age através de
reito. O Estado é uma pessoa jurídica de direito conjuntos de normas, que tendem a proporcio-
público, isto é, uma instituição pública que de- nar um ordenamento das relações, criando
tém determinadas atribuições definidas em lei uma realidade social unificada para todo o co-
ou atribuições por definições culturais. Um Es- letivo que a ele se submete. O Estado é um
tado nacional historicamente representa um agente criador das leis, ainda que estas sejam,
Estado relacionado à determinada organização em sua gestação no caso pátrio, advindas de
social confinada a um espaço geográfico. Um grupos representativos dos múltiplos elemen-
Estado de direito é aquele que é definido por tos da sociedade. A entidade “Estado” absorve
leis e que coloca estas mesmas leis como pa- esse grupo representativo como um órgão da
drão para toda a sociedade, inclusive para a sua sua gestão.
própria atuação. No dizer de Dallari (2001), Cria-se então uma relação indivíduo (pes-
podemos conceituar Estado como a ordem ju- soa física) / Estado (pessoa jurídica de direito
rídica que tem por fim o bem comum de um po- público), que é diferente da relação indivíduo
vo situado em determinado território. (uma pessoa) / grupo (comunidade de diversas
Não há um Estado-nacional na atualidade pessoas), sendo a primeira regulada primaria-
que não seja instituído por leis, e nem há os mente por normas escritas que vinculam as
que não utilizem algum tipo de ordenamento possibilidades de ação de ambas as partes, e a
legal, e que não busquem, pela normatização, segunda regulada pela própria relação de poder
estabelecer uma comunicação com os elemen- entre as partes. A relação entre indivíduo-grupo
tos que o constituem, e a expressão daquilo que pode e freqüentemente traz o Estado para sua
se acredita que é a nação que o apóia (Dallari, esfera, ao buscá-lo como terceira pessoa de uma
2001). disputa, tendo este o direito jurisdicional, isto é,
O Estado aparece como porta-voz, mas de dizer o direito dentro daquela lide.
também como projeção do caráter de determi- Hoje, a relação indivíduo-grupo se ampliou
nada sociedade. Este caráter é uma formulação enormemente em virtude das possibilidades de
geral, baseada em valores do grupo, que pelas trocas de informações, que permitiram que as
leis reafirmam e mesmo constroem um con- relações se multiplicassem e abrangessem temas
junto de práticas que o definem. e formas que antes não poderiam ser formula-
Assim, o Estado ganha uma personalidade das. A velocidade das trocas de idéias e de infor-
jurídica própria, isto é, ganha uma identidade mações pelos meios de comunicação e no cibe-
que, ainda que emane de um grupo formador, respaço trouxe uma nova dimensão para as re-
é diferente da multiplicidade de indivíduos que lações humanas e para as maneiras de se atuar na
compõem este grupo. Ainda que não seja um sociedade, que ao mesmo tempo propuseram
sujeito de direitos, como uma pessoa física se- diversas questões ao Estado. Conceitos como
ria, compartilha diversos de seus aspectos, con- local de consumação de uma transação comer-
forme afirma Dallari: Finalmente, com a obra cial, por exemplo, são redefinidos; conceitos co-
de Jellinek, a teoria da personalidade jurídica do mo propriedade intelectual, as garantias de seus
Estado como algo real e não fictício vai-se com- direitos de propriedade, também têm de ser re-
pletar e acaba sendo mesmo um dos principais definidos e colocados de maneira tal que pos-
fundamentos do direito público. Explica Jellinek sam ser efetivamente protegidos.
que sujeito, em sentido jurídico, não é uma es- Nesse espaço podemos observar que as re-
sência, uma substância, e sim uma capacidade lações se formam e se diluem, impossibilitando
criada mediante a vontade da ordem jurídica. O que haja uma forte cristalização de valores es-
homem é um pressuposto da capacidade jurídica, pecíficos, cabendo então questionar a existên-
uma vez que todo direito é uma relação entre se- cia de valores ou coisas que se queiram univer-
res humanos. Entretanto, nada exige que a qua- sais, sólidas e à prova de dúvida. Na verdade,
lidade de sujeito de direitos seja atribuída ape- assim como as relações não têm tempo hábil
nas ao indivíduo. E a elevação de uma unidade para se cristalizar, elas se diluem também rapi-
seja atribuída apenas ao indivíduo. E a elevação damente, gerando outras relações novas.
de uma unidade coletiva àquela condição não A normatização ou, para os efeitos deste ar-
tem o sentido de criação de uma substância fictí- tigo, o Direito tem um caráter normativo e,
239

Ciência & Saúde Coletiva, 10(1):237-244, 2005


conseqüentemente, formador de uma idéia ou to a radical change, a scientific revolution, or a
conceito sólido e delimitado. Apreende-se uma major discovery, conseillers du gouvernement
determinada idéia ou relação e retira-se dela invariably present their innovations as the ex-
um modelo que deve ser reforçado pelo apara- pression of a principle that was already in exis-
to estatal, que a principio diz-se representar tence, so that even when it is transformed com-
uma vontade social, isto é, um valor, um an- pletely the corpus of administrative law is “even
seio, uma vontade manifestada por toda a so- more” the same than it was before (…).
ciedade através de seus representantes nos po- As formas de se interpretar, ainda que dêem
deres constituintes do Estado. Entretanto, co- a impressão de liberdade, representam um pre-
mo a atualidade é extremamente veloz, ao tem- condicionamento induzido pela solidez de cam-
po em que algo se cristaliza e entra em opera- po. Assim propagamos todos ao aceitarmos es-
ção, já existe um movimento que empurra essa te precondicionamento, um conceito tipo “cai-
norma para a fluidificação e para a mudança. xa-preta”, que é tomado por inteiro, como fato,
Na realidade, a rigidez ocorre apenas na letra sem que haja realmente um questionamento de
da norma publicada, mas tem a sua solidez de- sua composição. De acordo com Latour (2000),
safiada na vida cotidiana pelas práticas que as a propagação das caixas-pretas no tempo e no es-
pessoas estabelecem nas suas relações. paço é paga por um fantástico aumento no nú-
A solidez, neste caso específico, mais do que mero de elementos que devem ser interligados, de
uma cristalização de norma representa uma so- maneira que vivemos a “caixa-preta” da nor-
lidificação de campo, isto é, ao admitir uma matização sem que possamos realmente enten-
certa elasticidade nas condições específicas de- der os elementos que a compõem. A crise se es-
terminadas pela técnica interpretativa consa- tabelece quando as caixas-pretas não atendem
grada pela doutrina, a norma incorpora a elas- a contento os desafios da realidade e pode-se
ticidade como parte do que ela representa. A observar claramente que elas existem e que po-
intenção da lei não é meramente orientar uma dem ser questionadas ou devolvidas, isto é, a
decisão, mas determinar, daí a especificidade construção de conceitos e visões mais passíveis
desejável do seu texto e a necessidade de que de investigação e conseqüentemente mais flexí-
um juiz, ao proferir a sua interpretação quanto veis. Isto se manifesta mais claramente em
à aplicação da lei, o faça fundamentado nos áreas que se beneficiam de uma abordagem
princípios jurídicos aceitos, sem que isso repre- transdisciplinar.
sente vício do seu livre convencimento. Há que O que se apresenta, a seguir, são questões
se atentar para o papel que a estrutura do siste- para o direito que surgem nesse ambiente de
ma judiciário tem na manutenção de si mesmo, turbulência, em relação à normatização, ao Es-
uma vez que os tribunais superiores agem de tado, e à saúde, utilizando, como base, teorias e
maneira a resguardar essa forma de pensar autores vindos da sociologia, trazendo a neces-
doutrinária. Comentando o ordenamento jurí- sidade da discussão sobre a produção de co-
dico na perspectiva de Norberto Bobbio, Rogé- nhecimento em direito na área da saúde.
rio Gesta Leal (2002) argumenta que criam-se
ao longo da história ocidental mecanismos e ins-
trumentos de controle/ordem social, advindos Modernidade, Estado,
tanto do processo de desenvolvimento das forças norma e atualidade
sociais (mercado e grupos de pressão), como das
próprias institucionais estatais (Executivo, Legis- O Estado moderno é uma criação moderna, is-
lativo e Judiciário), dando-se destaque aqui para to é, a noção de lei como algo justo, aquilo que
o processo legislativo, onde conforme se vai su- é ajustado em sociedade, e que para esta socie-
bindo na hierarquia das fontes, as normas tor- dade é dado como que natural no sentido de
nam-se cada vez menos numerosas e mais gené- inquestionável; é uma criação do pensamento
ricas e, descendo, ao contrário, tornam-se cada moderno, nascida no jusnaturalismo de Hob-
vez mais numerosas e específicas. (...) Em outras bes e formada por pensadores como Locke,
palavras, a norma fundamental se apresenta co- Kant, que impõem uma visão racionalista, pro-
mo o fundamento subentendido da legitimidade fundamente idealista, do direito e que, mais
de todo o sistema. Em La fabrique du droit, Bru- tarde, é revista por Hans Kelsen em seus traba-
no Latour (2002,) observa este comportamen- lhos sobre a norma jurídica (Leal, 2002).
to e diz que (…) unlike scientists, who dream of A revolução industrial e a democrática, e as-
overturning a paradigm, of putting their names censão do Ocidente à hegemonia global produzi-
240
Silva, P. F. & Waissmann, W.

ram as concretas concomitâncias tecnológicas, Bruno Latour (1994) vê essa busca de um


econômicas, sociais e políticas dessa visão de ordenamento perfeito como um movimento de
mundo, que assim se afirmou e se elevou em sua purificação característico da modernidade. Ao
soberania cultural. E o triunfo apoteótico da ciên- observar algo que não pode ser definido em
cia moderna sobre a religião tradicional, a teoria um conceito já existente e que apresenta ele-
da evolução de Darwin, trouxe a origem das es- mentos de outras categorias, a atitude moder-
pécies da Natureza e a do próprio homem para na é criar uma nova categoria. Ou seja, o movi-
dentro do círculo de abrangência da ciência natu- mento moderno é transformar aquilo que é hí-
ral e do panorama moderno (Tarnas, 2000). O brido em algo sólido, em uma entidade absor-
racionalismo, a vitória da razão, das luzes sobre vida pelo ordenamento. Na sociedade, o Estado
as trevas, estende-se ao estudo das relações so- é um elemento cristalizador de híbridos, crian-
ciais e o Estado passa a ser objeto de intenso es- do novas categorias na letra da lei, e assim in-
crutínio, sendo o direito (leis, normas, judiciali- corporando-as na sua linguagem. Exemplos
zação) matéria de especial interesse. Assim nas- deste comportamento podem ser os movimen-
ce o Estado Moderno, estruturalmente monista, tos de minorias e sua gradual ascensão repre-
concentrando em si todos os poderes e mono- sentativa, à margem do Estado, e na verdade
polizando a produção jurídica (Leal, 2002). muitas vezes contra os estatutos dele. Para se-
Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman rem absorvidos transformaram-se em catego-
(1999), a principal característica da atitude rias fixas.
moderna é uma busca incessante da ordem e A atualidade pode então ser reconhecida
da estruturação, operando o estabelecimento como um emaranhado de ordenamentos múl-
de fronteiras que fixa o que é, e deixando de fo- tiplos que se interpenetram, eliminando a pos-
ra aquilo que não é. O pensamento moderno é sibilidade da existência de um elemento que es-
um pensamento de dentro-fora, de amigo-ini- teja apenas em um único sistema. Todos esta-
migo, sendo o inimigo um erro, um amigo mos simultaneamente em vários sistemas, em
mal-acabado e, em si, mais uma entidade que ordens que nos definem, e que como são múl-
por conceito é rígida. Na sanha ordenadora, a tiplas nos conferem múltiplas definições.
modernidade estabelece todo tipo de normas,
dentre elas, talvez as mais emblemáticas e po-
derosas, as normas que regulamentam uma re- Saúde como um quase conceito
lação com a coletividade e com o indivíduo si-
multaneamente. Dentre as áreas de interesse do Estado brasilei-
A norma representaria uma verdade de na- ro, definidas em sua Constituição, temos o di-
tureza quase transcendental, justificando estru- reito à saúde como um direito social. Pela carta
turas de poder e pensamento, que acabam por magna a saúde é um direito de todos e dever do
se manifestar em imperativos formais, justos, Estado; a Carta indica que a saúde ultrapassa o
por que legitimados pelo próprio sistema que entendimento comum de simples ausência de
compõem. doença, impondo ao Estado o dever de por
É Kelsen quem admite a impossibilidade de meio de políticas sociais e econômicas não ape-
uma norma que seja em si uma verdade abso- nas a redução do risco de doenças, mas tam-
luta, representando a sua interpretação não um bém a recuperação, proteção e promoção de
conhecimento, mas a manifestação de vontade saúde. Desta maneira, o legislador trata saúde
daquele que detém o poder de interpretá-la como algo de definição complexa, infraconsti-
(Leal, 2002) e, assim, antecipa uma contradi- tucionalmente definida na lei 8.080/90, que de-
ção que vem desafiar a modernidade em seus fine mais detalhadamente o que seria esta “saú-
fundamentos. de”, que implica um direito ao bem-estar eco-
A grande dificuldade do processo normati- biopsicossocial do indivíduo. A saúde é um es-
vo seria a ambivalência, que segundo Bauman é tado de completo bem-estar físico, mental e so-
“a possibilidade de conferir a um objeto ou cial, e não consiste apenas na ausência de doença
evento mais de uma categoria” (Bauman, 2001). ou de enfermidade (Organização Mundial de
Este elemento traz a incerteza da correção dos Saúde, 1946). Tal definição coloca na área de
ordenamentos, denunciando a impossibilidade atuação das estruturas estatais, que visam ga-
de uma norma unificada, ainda que se pretenda rantir o acesso a este bem-estar, toda uma va-
que ela seja este monólito lógico após a sua, in- riedade de assuntos e áreas antes não vistas. A
dubitavelmente penosa, construção. Constituição brasileira, ao tutelar esta saúde
241

Ciência & Saúde Coletiva, 10(1):237-244, 2005


ampla e visceralmente múltipla, não apenas re- Diz a lei 8.080/90:
conhece a complexidade do tema, mas coloca o Art. 3o - A saúde tem como fatores determi-
Estado como porta-voz nesse espaço, por defi- nantes e condicionantes, entre outros, a alimen-
nição, interdisciplinar. O entendimento e a tação, a moradia, o saneamento básico, o meio
abordagem interdisciplinar em matéria de saú- ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o
de pelo Estado, pessoa jurídica de direito pú- transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
blico, implica criar mais uma disciplina no essenciais; os níveis de saúde da população ex-
campo normativo, reconhecendo elementos pressam a organização social e econômica do
que devem ser agregados para sua formação. País.
Entretanto, há de se questionar se essa unicida- Parágrafo único. Dizem respeito também à
de, dada a amplitude da definição proposta, saúde as ações que, por força do disposto no arti-
pode ser alcançada ou se, encarada como trans- go anterior, se destinam a garantir às pessoas e à
disciplinar pelo reconhecimento da insuficiên- coletividade condições de bem-estar físico, men-
cia de uma única disciplina para seu esgota- tal e social.
mento, a produção de conhecimento não seria Normatizar sobre saúde torna-se, assim,
mais eficaz levando em conta os objetivos pro- uma tarefa inglória sob o prisma moderno,
postos na Constituição Brasileira de 1988. uma vez que tanto em perspectiva, quanto nu-
Tema prenhe de ambivalências é a saúde ma visão microscópica, o tema se expande em
conforme vista pela OMS e adotada pelo siste- multiplicidade.
ma brasileiro. A saúde é uma coleção de “bem- Veja-se o caso do Sistema Único de Saúde
estares”, ou seja, chegou-se a uma percepção de (SUS), no tocante à maneira como os municí-
saúde que ultrapassa o conceito de não-doente, pios são tratados. Os potenciais financeiros dos
para o conceito de bem-estar, que não pode ser municípios variam enormemente, inclusive en-
abarcado por critérios quantitativos e qualita- tre municípios de mesma população, sendo
tivos fixos e predeterminados (Conselho Na- verdade que cada município apresenta caracte-
cional de Saúde, 2002). Saúde se torna tudo rísticas próprias relativas à necessidade assis-
que afeta a forma como o indivíduo e o seu tencial, à sua geração e necessidade de recur-
grupo experimentam a sua existência em de- sos, sendo ainda variável sua estrutura dedica-
terminada circunstância. Para os institutos es- da à gestão do sistema operante. Utilizar parâ-
tatais relacionados a este assunto, é saúde a ma- metros numéricos ou mesmo qualitativos, dis-
neira como se planeja a família, se organiza o tintamente, para encaixar determinado muni-
ambiente de trabalho e seu entorno; é saúde o cípio na estrutura administrativa do SUS, pode
estado psicológico do indivíduo e, portanto, a ser contraproducente para este município, pois
segurança pública, que, como exemplo, se trans- ele pode, e freqüentemente ocorre isto com
forma em dados epidemiológicos importantes, municípios pequenos ou depauperados, não se
não apenas por morbidade e mortalidade afe- encaixar, na prática, no modelo imposto; não
ridos diretamente pelos dados obtidos na rede conseguir gerir da maneira preconizada os re-
assistencial hospitalar, mas também pelo mal- cursos; não oferecer, por esta e outras razões,
estar psíquico que a falta de segurança causa. os serviços mínimos a que se obriga por lei; en-
São saúde, também, todas as descobertas da fim, há um emperramento da obtenção do be-
biotecnologia que possam afetar direta ou in- nefício final do SUS que é este bem-estar eco-
diretamente este bem-estar, seja físico, psicoló- biopsicossocial. Isto se não considerarmos ou-
gico ou social. Assim, é de interesse da saúde tros obstáculos que se referem às estruturas de
assuntos como clonagem, produtos transgêni- poder local, de interesses e formas de atuação
cos, técnicas eugenéticas, trocas de sexo fenotí- próprias de cada localidade; estas estruturas
pico, entre outros temas. tendem a procurar manter o status quo inicial;
O interesse pela saúde, afeta, também, a in- a sua unidade e a relação imposta pelo SUS im-
dústria, a agricultura, a construção civil. “Saú- plicam diretamente uma troca de idéias e aber-
de” se torna um conceito amplo, que a cada tura de mão de poderes para a consecução de
momento agrega novos significados e atribui- outros. Esta troca e disposição para aceitar mo-
ções, e que por isso não pode ser fixado no es- vimentos que possam alterar o status original
paço (em uma área de atuação) ou no tempo. pode ser inexistente e sua imposição pode não
ser feita de modo atraumático.
Esta dificuldade vem se expressando no de-
senvolvimento do SUS de maneira que o Esta-
242
Silva, P. F. & Waissmann, W.

do, por seus órgãos e institutos administrativos revolta dos fatos contra o direito estoura periodi-
ligados à saúde, busca através de compromissos camente e periodicamente destrói, após mais ou
e metas dirimir estes empecilhos à consecução menos sangue derramado, as instituições que não
de seus objetivos fundamentais. Todavia, man- se adaptarem à nova face da sociedade (Barbo-
tém-se a mesma visão normatizadora e, ainda za, 2001).
que não se ignore a fluidez do tema, recorre-se a A solução aventada para este cul-de-sac se-
maneiras de administração dos conflitos que ria a busca na ética de um procedimento mais
apenas tem um efeito sinérgico com um arca- eficaz de resolução de conflitos, e de dinamiza-
bouço jurídico avesso à velocidade e transdisci- ção destes mesmos conceitos jurídicos. Assim
plinaridade. O SUS ainda é freado, por motivos para um biodireito, uma bioética como matriz
múltiplos, sem que se ataque ou se aceite a ma- referencial, e os dois formariam a base de um
neira como essa multiplicidade se organiza. direito legitimamente sanitário, isto é, um di-
Convém que se reforce que a necessidade de ca- reito da saúde.
tegorizar, purificar, estabelecer normas fechadas Porém, utilizar a ética como guia não resol-
até em suas aberturas, a sanha estruturante e ve a questão normativa, pois apesar de apresen-
conseqüentemente cristalizadora, pode ser um tar bases interpretativas mais maleáveis e con-
dos elementos que emperram um pensamento seqüentemente mais bem adaptadas a tempos
administrativo mais eficiente para o SUS. velozes, ela não ataca o problema que é uma
Outras áreas do direito sanitário, utilizando norma que em algum momento se torna um
uma terminologia ainda objeto de discussão, peso morto, atravancando a solução e a disso-
que demonstram o questionamento dos ins- lução das relações. Ainda que se argumente que
trumentos jurídicos, normalmente afetam a este é um processo natural e que para uma lei
maneira como o direito abarca as situações, ou obsoleta resta a revogação e a criação de uma
seja, impactam os conceitos jurídicos. nova lei, caímos de novo no problema de um
Como encarar, por exemplo, as relações de tempo que faz da obsolescência não um risco,
parentesco, no caso de um ser humano clona- mas uma certeza para o futuro quase imediato.
do ou de um ser humano gerado in vitro por Na verdade, a proliferação de normas atende à
um casal, e nascido do ventre da irmã de um necessidade de uma visão de mundo em “legal-
dos cônjuges ou da mãe de um dos pais? Como ilegal”, majoritária na medida em que a maior
encarar a troca de sexo civil se, apesar do sexo parte da doutrina jurídica se preocupa enor-
genético, vivemos na verdade a nossa identida- memente com a interpretação de fatos de acor-
de social e, ao mesmo tempo, como coadunar do com normas, isto é, buscando adequar a
isto com o direito que o outro tem sobre infor- realidade a um esquadro de legalidade/ilegali-
mações deste tipo numa relação conjugal? En- dade que permite seja dito o direito, isto é, seja
fim, a todo o momento, somos confrontados feita a justiça, que passa na sua rotina a ser uma
com situações que têm sido cruciais para a so- interpretação vinculada a um processo. A ética,
ciedade atual, em vista dos desenvolvimentos neste caso, não passaria de uma alternativa
biotecnocientíficos, e que têm encontrado fó- igualmente normativa, dicotômica, ainda que
rum para discussão no espaço ético, mas que, talvez mais flexível. Este raciocínio reafirma
no ordenamento jurídico, têm enfrentado re- sua característica moderna, que, como pude-
sistência. mos observar, não mais descreve a atualidade.
Porém, será esta resistência um fenômeno Cabe atentar que ao decidirmos que a nor-
social, no sentido de uma resistência de valores matização, da maneira como ela é feita ou ape-
sociais, ou será também esta resistência de na- nas por existir, não dá conta da atualidade, e
tureza epistemológica, isto é, há a pressão da sabendo que a normatização é característica
atualidade, há a pressão que vem das relações importante e definidora do estado de direito,
nas múltiplas redes que constituem o nosso estamos na verdade clamando por um questio-
ambiente, mas o arcabouço jurídico simples- namento deste estado, e ousando redefini-lo
mente não consegue dar conta disso por não em bases novas ainda não testadas.
saber como?
Tais questionamentos são importantes, atua-
líssimos, e vistos cotidianamente na prática ad- Conclusões
vocatícia na área sanitária e regulatória (rela-
cionada à saúde). Heloíza Helena Barboza O direito e o Estado se encontram em momen-
(Barboza, 2001) atenta para isso e diz que: A to de profundo questionamento perante os de-
243

Ciência & Saúde Coletiva, 10(1):237-244, 2005


safios de uma atualidade veloz, que cada vez dos, como seria o escopo das idéias que o Esta-
mais se constitui como redes de relações que se do propôs a si mesmo. Assim vemos políticas
interpenetram, multiplicando ambivalências, excelentes voltadas para esta ou aquela molés-
exibindo uma universalização do estranha- tia importante, sem que haja nisso uma melho-
mento, liquefazendo a modernidade e desta ria estrutural de todo o sistema de saúde, sen-
maneira impondo uma modificação na forma do a importância das moléstias caracterizada
como se entende e se produz conhecimento. tecnicamente, mas também politicamente, e es-
A atuação do Estado, via normatização, é te talvez seja um dos elementos mais importan-
então colocada em xeque, e tem de ser reavalia- tes a considerar.
da, sob pena de seus objetivos não serem alcan- Podemos ainda ver este tema como similar
çados com uma mínima sensação de contento. ao apresentado por Urry & Law (2002), relati-
O próprio Estado reconhece isto e propõe gru- vamente ao papel das ciências sociais e dos mé-
pos interdisciplinares para solução de suas ques- todos em pesquisa social, e questionarmos que
tões administrativas de políticas públicas. To- Estado queremos, que leis, que processo nor-
davia, o arcabouço normativo, da maneira co- mativo, se é que este poderá ainda ser com-
mo é pensado, continua ineficiente, pois, pela preendido da mesma maneira? O método, no
interdisciplinaridade, ainda se busca concei- caso das ciências sociais, assim como para o di-
tuar matérias como unas, isto é, como instân- reito, e no caso específico objeto deste artigo, é
cias não mais híbridas e sim solidificadas em fundamental, mas não é inocente: If methods
categorias, reduzindo a adaptabilidade a novas are not innocent then they are also political.
situações e contribuições. They help to make realities. But the question is:
O campo da saúde apresenta o desafio vivo which realities? Which do we want to help to ma-
de uma transdisciplinaridade, que no dizer de ke more real, and which less real? How do we
Pedro & Nobre (2002). Segundo D’ Amaral é um want to interfere (because interfere we will, one
comunicar intercientífico que parte de uma con- way or another)? (Urry &Law, 2002).
cepção a priori do real como múltiplo (...) e que Assim vemos que o método cria as realida-
podemos trabalhar a partir de um conceito am- des que ele descobre, e assim, ao pensarmos o
pliado de transdisciplinaridade, pois (...) se a Estado, a normalização e a saúde e buscarmos
concepção de rede entende a multiplicidade como ferramentas teóricas para lidarmos com ques-
uma amarração que envolve governos, ciências, tões relativas a estes assuntos, estamos recrian-
empresas, pessoas comuns, etc., parece-me que es- do-os. O momento impõe, portanto, uma rede-
tamos diante da possibilidade de transdisciplina- finição também de fontes, de métodos, de alter-
ridade ampliada. Não são mais apenas discipli- nativas; demanda um maior dinamismo e prin-
nas científicas que se comunicam no sentido de li- cipalmente maior crítica daquilo que se pesqui-
dar com a pluralidade irredutível, mas sobretudo sa, de quem pesquisa e da disciplina que pes-
outras de conhecimento e ouros saberes. quisa. O campo da saúde, com a sua tendência
A aceitação da multiplicidade e do estra- ao escape, dada a sua transdisciplinaridade, é
nhamento, considerando a existência de redes um desafio ao pensamento jurídico, não está
de coletivos que se interpenetram, poderia ser alheio a este movimento de redefinições e, ain-
o ponto de partida para a redefinição da nor- da que lentamente, assaltado pelas próprias am-
ma, e conseqüentemente do Estado, seu papel e bivalências, tende a participar dele ou reconhe-
sua atuação. cer a sua aderência involuntária a ele.
Sem isso, não parece possível atingir os ob- A saúde e o direito sanitário, como nova
jetivos de políticas públicas de saúde, em uma vertente de pesquisa, é campo fértil para este
atualidade dinâmica e de alcance ampliado. Os debate, que precisa ser intensificado, pelo bem-
objetivos atingidos seriam tópicos, e freqüente- estar que o Estado se comprometeu a alcançar
mente desconectados de efeitos mais difundi- ou disponibilizar.
244
Silva, P. F. & Waissmann, W.

Colaboradores

PF Silva e W Waissmann participaram igualmente da for-


mulação do artigo.

Referências bibliográficas

Barboza HH 2001. Bioética x biodireito: insuficiência dos Latour B 2000. Ciência em ação. Editora Unesp, São Paulo.
conceitos jurídicos, pp. 1-40. In HH Barboza & VP Latour B 2002. La fabrique du droit. Disponível em
Barretto (orgs.). Temas de biodireito e bioética. Ed. <http://www.ensmp.fr/~latour/livres/ix_chap5.htm>.
Renovar, Rio de Janeiro. Acesso em 5 de fevereiro de 2004.
Bauman Z 1999. Modernidade e ambivalência. Jorge Zahar Law J &Urry J 2002. Enacting the social. Centre for Science
Editor, Rio de Janeiro. Studies and Sociology Department, Lancaster Uni-
Bauman Z 2001. Modernidade líquida. Jorge Zahar Editor, versity. Disponível em <http://www.comp.lancs.
Rio de Janeiro. ac.uk/sociology/soc099jlju.html> acesso em 3 de Ju-
Brasil 1988. Constituição (1988). Constituição [da] Re- lho de 2003.
pública Federativa do Brasil. Senado Federal, Brasília. Leal RG 2002. Hermenêutica e direito. Edunisc, Santa Cruz
Brasil 1990. Lei 8.080 (Lei Orgânica da Saúde). Senado do Sul.
Federal, Brasília. OMS (Organização Mundial de Saúde) 1946. Constitui-
Conselho Nacional de Saúde 2002. O desenvolvimento do ção. Disponível em <http://www.onuportugal.pt/
Sistema Único de Saúde. Relatório. Disponível em oms.doc>. Acesso em 11 de junho de 2003.
<http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/livros/2002 Pedro RMLR & Nobre JCA 2002. Dos sólidos às redes: al-
%200574%20O%20desenvolvimento%20do%20sis- gumas questões sobre a produção de conhecimento
tema%20%FAnico%20de%20sa%FAde%20(mio- na atualidade, pp. 43-56. Série Documental. Pós-gra-
lo).pdf>. Acesso em 5 de fevereiro de 2004. duação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia
Dallari DA 2001. Elementos de teoria geral do Estado. Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Saraiva, São Paulo. Janeiro.
Latour B 1994. Jamais fomos modernos. Editora 34, São Tarnas R 2000. A epopéia do pensamento ocidental.
Paulo. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro.

Artigo apresentado em 10/10/2004


Aprovado em 15/11/2004
Versão final apresentada em 16/12/2004

You might also like