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Bruno Oliveira

Maria Helena Cunha


Natacha Rena
[Orgs.]

uma situação política


do século XXI
A DUO Editorial tem um enorme prazer em apresentar, em meios digi-
tais, a publicação Arte e Espaço: uma situação política do século XXI, um
dos importantes resultados de organização do conteúdo do curso ho-
mônimo realizado em 2014. Tivemos a oportunidade de contar com três
alunos estrangeiros e com representantes de dezoito estados das cinco
regiões brasileiras, o que enriquece o debate com visões de diversas
realidades do País.

A Região Sudeste abarca um número considerável de inscritos (75%) em


função de estarmos sediados em Belo Horizonte (MG), e realizamos o
curso por meio da legislação municipal de incentivo à cultura, que nos
levou ao compromisso de considerarmos, em percentuais, um número
maior de vagas para a cidade e para o estado de Minas Gerais. No en-
tanto, já na construção inicial da ideia do curso, baseados na lógica da
educação a distância e na possibilidade de ampliação do espaço virtual,
prevíamos dentro dos critérios de seleção um percentual de vagas que
abarcasse pessoas de outras localidades e realidades diversas, incen-
tivando a discussão e a construção coletiva do conhecimento capaz de
gerar esta publicação ao final dos trabalhos.

Dessa forma, a própria estruturação deste curso já nasceu com a pers-


pectiva de publicar seus resultados, levando à organização dos conte-
údos produzidos pelos professores e pelo conteúdo gerado durante a
sua realização no fórum de discussão, ampliando exponencialmente
seu alcance e sua capacidade de multiplicação e reverberação para um
grande público. Esta iniciativa significa ampliar a capacidade de circu-
lação de conhecimentos específicos para além dos alunos que tiveram a
oportunidade de acesso gratuito ao curso, contribuindo para suprir uma
deficiência no campo editorial de arte e cultura na contemporaneidade.

Por fim, destacamos que, para a realização de projetos voltados para


a formação cultural, estruturada em um curso a distância e em uma
publicação on-line, de amplitude nacional, é preciso o desenvolvimento
de um trabalho articulado e cooperativo, o que leva à construção de
parcerias permanentes e propositivas. Por esse trabalho precisamos
agradecer a todos os parceiros, patrocinadores, apoiadores, produtores,
monitores, técnicos, professores, coordenadores e, principalmente, aos
alunos participantes, que justificam nosso empenho e nosso trabalho.

Maria Helena Cunha


DUO Editorial

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Reconsiderar as possibilidades da arte e sua relação com o espaço é
um importante desafio que nos apresentam a contemporaneidade e as
variadas faces do século XXI. Num tempo de contradições cada vez mais
latentes e alto desgaste de vários modelos institucionais estabelecidos,
estamos diante de uma sociedade que recusa os limites estabelecidos,
sejam eles físicos, geográficos, ideológicos ou de identidade.

Não por acaso, os movimentos sociais e culturais assumem, deliberada-


mente, inúmeros papéis, não apenas reafirmando sua posição histórica
de enfrentamento da ordem estabelecida. Ponto nevrálgico da crítica,
esses movimentos superam o lugar da oposição para se assumirem
como protagonistas estratégicos de uma reconfiguração espacial, eco-
nômica e criativa em andamento.

Nesse sentido, discutir as múltiplas dimensões, dissonantes ou não, da


estreita relação entre arte e espaço numa perspectiva política torna-se
fundamental para o entendimento da livre expressão neste século. E,
para além da reflexão, esta publicação se oferece como ponto de refe-
rência em que se estabelecem diálogos primordiais para esta e futuras
gerações.

Este livro apresenta o registro material das discussões entre artistas


plásticos, educadores, arquitetos e designers, durante o curso a distân-
cia Arte e Espaço: uma situação política no século XXI, da DUO Editorial.
No entorno das várias temáticas abordadas, direta e transversalmente,
a oportunidade de realimentar de forma contínua o sentido crítico, a
visão multidisciplinar e o fortalecimento da cultura por viés diferenciado
e transformador, que transcende o fomento como único fator relevante
à cadeia produtiva.

Solanda Steckelberg
Superintendente de Cultura do Banco Bonsucesso

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9 Apresentação

15 Prefácio
Reginaldo Luiz Cardoso | Ricardo Macêdo

22 Arte espaço e biopolítica


Natacha Rena

76
Arte, espaço e comunidade:
modos de endereçamento e
produção de singularidade
Simone Parrela Tostes

100 Arte e cotidiano:


aproximações táticas
Paula Bruzzi Berquó

128 Arte contemporânea,


texturas, território
Isabela Prado

154
Relações entre arte e
tecnologia: traços históricos
e desdobramentos atuais
Eduardo de Jesus

174 Artesanias do desejo


Marcela Silviano Brandão Lopes

Apontamentos sobre educação a distância

199
e construções coletivas de conhecimento:
a experiência do curso arte e espaço –
uma situação política do século xx
Patricia Faria | Maria Helena Cunha
arte, espaço e política

Este projeto Arte e Espaço: uma situação política do século XXI,


apresentado nesta publicação on-line, acontece em um mo-
mento de amplo desenvolvimento de práticas interdisciplinares
e indisciplinares no campo das artes e do ativismo urbano bra-
sileiro. Para abordar essa temática criou-se, primeiramente, o
uso de uma plataforma on-line que pudesse ativar discussões
envolvendo a arte em seu campo expandido, como um modo
constitutivo de espacialidades múltiplas, que possibilite a am-
pliação democrática do uso das cidades, assumindo a diversi-
dade como presença ética fundamental para a ampliação das
relações sociais e políticas territoriais.

Foi objetivo desta iniciativa, entre pesquisadores e professores


do Indisciplinar, profissionais da Inspire e outros parceiros, a
constituição de um campo teórico que abordasse a potência
presente no cruzamento da arte com ações políticas, produ-
zindo novos campos de conhecimento, assim como formas hí-
bridas de produção de modos de vida no território.  

Aposta-se que há  um novo sujeito político multitudinário (nem


povo, nem massa) que se recusa a participar como artista em
processos que, de forma neutra ou alienada, possam simples-
mente colaborar com a construção de espaços neoliberais pro-
duzidos pelo capitalismo global.  A ideia dessa proposta (que
agregou um curso a distância on-line e esta publicação digital
colaborativa) foi incentivar a constituição de uma cartografia
composta por ações artísticas, ou estéticas, fortemente atra-
vessadas por conteúdos políticos ativados por uma subjetivi-
dade que deseja explicitamente democracia real. Para traçar

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essa cartografia buscaram-se alguns eixos temáticos que pu- O conteúdo do curso Arte e Espaço: uma situação política do sé-
dessem criar platôs nos quais surgissem trabalhos e ações culo XXI foi estruturado de maneira transversal, assumindo-se
que fossem contaminados pelo desejo (do artista ou dos coleti- que a produção artística não está mais contida exclusivamente
vos) de produzir de maneira menos autoral e mais colaborativa, em uma esfera particular e limitada. Torna-se fundamental,
muitas vezes anônima, configurando intervenções espaciais portanto, perceber as práticas disciplinares e técnicas ante-
mais políticas ou, até mesmo, ativistas. Observa-se e experi- riormente associadas ao campo da arte que não mais compor-
menta-se a existência de uma condição criativa e de produção tam a produção multitudinária. O primeiro debate, proposto
em redes ubíquas que acontecem de forma mais horizontal, para a turma pela professora Natacha Rena sobre Arte, es-
produzindo espacialidades que possibilitam a existência de paço e biopolítica, tem como base a percepção da metrópole
resistências positivas e afetivas, configuradas por uma lógica como palco de disputa: seria nesses territórios, cujo controle
que não a das vanguardas combativas. Diferentemente das dos corpos e as ações biopolíticas se articulam de maneira
vanguardas, a grande maioria das referências cartografadas intensiva e estruturante, que se poderiam perceber expressões
existe muito mais como produção singular-plural performáti- potentes de resistência para além dos conceitos de represen-
ca, que contamina ou ativa o ato artístico-político e social por tação e identidade. O texto afirma, ainda, que “há uma constru-
meio de ocupações efêmeras, muitas vezes festivas, anônimas ção em tempos táticos e estratégicos de resistências mundiais
ou produzidas horizontalmente. contra o urbanismo neoliberal, que se configura performati-
camente nas ruas e nas redes, utilizando ao mesmo tempo
Esse processo, envolvendo participantes de todo o Brasil, aca- processos destituintes (via ação direta, manifestações, ações
bou por configurar uma cartografia realizada de forma colabo- judiciais) e constituintes (via ocupas e acampadas, produção de
rativa a partir de textos produzidos pelos professores do curso cultura, arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida)”.
e da plataforma EAD, o que possibilitou o diálogo cotidiano
entre professores e alunos. A cada momento em que um pro- O módulo seguinte, articulado pela professora Simone Parrela
fessor assumia um módulo do curso, a proposta era que todos Tostes sobre Arte, espaço e comunidade: modos de endereça-
lessem um texto produzido pelo professor, que o finalizava mento e produção de singularidade, se desenvolve a partir das
com três perguntas. Ao longo de 10 dias todos comentavam, noções de comunidade e diferença. É necessário perceber,
respondendo às perguntas, e isto era acompanhado por res- nesse ponto, como diversas ações desenvolvidas em prol de
postas e comentários de todos, inclusive do professor. Após uma ideia de comunidade são articuladas como estratégicas
a finalização dessa etapa, iniciou-se um trabalho de coleta para interesses corporativos e institucionais. A dimensão au-
dos comentários mais significativos aos olhos de cada um dos têntica, potente e livre do compartilhamento do comum é tanto
professores para que estes compusessem o conteúdo da pu- o vetor de desvio e subversão da lógica mercadológica quanto
blicação do livro digital. Todos os textos dos professores que o ponto de captura utilizado pelo capital. A ideia de participa-
foram usados como base para as discussões cotidianas estão ção, configurada como um processo com metas, propostas e
aqui presentes, assim como um prefácio redigido por alguns expectativas bem definidas, é um exemplo desse esvaziamento
alunos selecionados como mais ativos pelos professores e pos- da capacidade de criar e produzir diferença da comunidade,
teriormente convidados para escrever conjuntamente na orga- reduzindo a potência do outro a um receptor de comandos por
nização desta publicação. Também há um texto que finaliza o parte de uma determinada ordem e determinado poder. E sen-
livro e analisa todo o processo do curso EAD, que vem sendo do possível, ainda assim, operar nas brechas das estruturas
adotado pela Inspire ao longo dos últimos anos. de controle, a partir de reinvenção e reconstrução de novas
relações.

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Nesse sentido, a professora Paula Bruzzi, no texto Arte e coti- maiores, a experiência cotidiana se apresenta como um escape
diano: aproximações táticas, discorre sobre as práticas comuns a um sistema político-corporal conformado pelo capitalismo
e a dimensão política: o cotidiano, em contraponto a um do- cognitivo. “O que é produzido [...] não são apenas bens mate-
mínio estratégico da vida, se articula a partir de uma potência riais, mas relações sociais e formas de vida concretas” (NEGRI;
tática, sem limites de dentro e fora. Ao rastrear diversas ini- HARDT, 2005, p.135). Alerta, ao final, para os riscos de captura
ciativas de apropriação das superfícies urbanas, das ocupações por processos de capitalização da experiência e da vida: cons-
coletivas e graffitis anônimos à produção dos iconoclassistas, tituir linhas de fuga torna-se, portanto, um exercício essencial.
podemos encontrar iniciativas que não se reduzem a lógicas
de achatamento da pluralidade e das diferenças, e contribuem Em tempos de capitalismo cognitivo, criativo, flexível, conse-
para a ativação de redes de partilha de um mundo comum. guiu-se levantar, durante todo o processo, uma miríade de
ações potentes que constituem os espaços das cidades em seu
Em Arte contemporânea, texturas, território, a professora cotidiano. Acreditando-se que, principalmente nas metrópoles
Isabela Prado contextualiza o debate sobre especificidade e contemporâneas, detectam-se práticas biopolíticas glocais que
orientação aos sites no campo da arte. Nessa perspectiva tor- acabam por gerar ações portadoras de experiências biopoten-
na-se necessário considerar o território com suas dimensões tes e de estruturas que se instauram para além dos limites do
tanto simbólicas quanto materiais: ao apresentar obras de ar- público e do privado, ou seja, dentro de uma possibilidade de
tistas como Gabriel Orozco, Mona Hatoum, Cildo Meireles e imaginar-produzir o espaço passando pela produção intensiva
Francis Alÿs, pode-se perceber maior complexidade no debate do comum. A lógica seria a de um pensamento a partir de um
desse lugar da arte em relação às ordens de homogeneização ser-em-comum que não possui relação com o sentido de co-
do território e à crítica institucional. munhão ou com uma identidade que é única e exclusiva, mas
com a exata inexistência de um discurso homogeneizador e
O penúltimo módulo do projeto propõe uma discussão sobre o próprio compartilhamento da ausência deste fundamento.
as interações entre a tecnologia e o campo da arte. Relações Finalmente, incentivou-se pensar a importância da arte como
entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atu- vetor fundamental na configuração desses espaços contem-
ais, do professor Eduardo de Jesus, constrói um panorama porâneos a partir do encontro com temas envolvendo política,
dessas aproximações, desde os procedimentos fotográficos comunidade, modos de fazer do cotidiano (design e artesanias),
aos instrumentos de comunicação a distância e às redes so- tecnologia e território urbano.
ciais. Também relevante é o processo de subversão desses
instrumentos e seus usos como suportes artísticos por artistas Portanto, esperamos que esta publicação possa contribuir para
como Marcel Duchamp, Walter Ruttman e René Clair. Com os a ampliação do debate que intencione ativar e ampliar o caráter
novos suportes e processos artísticos, desestruturando-se as político e transformador da arte conectada ao território em
formas tradicionais das obras de arte, “tornou-se necessário constante disputa.
reivindicar outras formas de compreensão” para as mesmas:
provocavam outro tipo de experiência, ainda mais complexa, Bruno Oliveira
do mundo e da arte. Natacha Rena

Por fim, em Artesanias do desejo, a professora Marcela Silviano


Brandão discute as expressões menores das respostas coti-
dianas, “subversivas em relação àquelas designadas pela ci-
ência”. Em contraponto à técnica e às construções de saberes

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Querida imaginação, o que amo, em ti, é que não perdoas.
(André Breton)

Etimologicamente, prefácio vem do latim, praefatio, que sig-


nifica preâmbulo, prólogo, aquilo que se diz no princípio. Indo
mais longe, Otto Maria Carpeaux, em seu ensaio O artigo so-
bre os prefácios, chegou ao ponto de dizer que o prefácio tinha
alcançado foro de gênero literário independente. Isso é uma
verdade se formos ao Prefácio Interessantíssimo, que Mário de
Andrade fez, em 1921, para sua obra Paulicéia Desvairada. Lá,
um dos pais do modernismo brasileiro abre o prefácio decla-
rando que estava fundado o “desvairismo”. Isso em um mo-
mento em que ninguém compreendia bem o que era o dadaís-
mo, o surrealismo procurava seus rumos, o cubismo era visto
com espanto e inúmeros outros “ismos” ainda estavam por
se fazer. Mas, afinal, de que se tratava tal “desvairismo”? De
uma proposta de abordagem artística, a qual, rompendo com
as categorias aristotélicas da natureza — a matéria, a energia,
o espaço e o movimento —, procurava preencher as lacunas
do mundo de maneira sincrônica. Essa visão viria a estar mui-
to próxima daquela desenvolvida por Anne Cauquelin, já na
virada do segundo milênio, decupada dos estoicos — filósofos
pós-aristotélicos — e na qual define os incorporais: o tempo,
o lugar, o vazio e o exprimível. É através dessa abordagem
que Cauquelin acredita que possamos discutir, com melhor
chave de percepção, a Arte Contemporânea, toda aquela criada

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depois da década de 1970. Assim, frequentando um dos incor- des/reterritorialização que é o reposicionamento/deslocamen-
porais, seja ele qual for, estaremos abordando os outros, dada to do desejo: da subjetividade individual à subjetividade coletiva.
a sua sincronicidade. Dessa maneira, se abordarmos o vazio
contido em uma obra — por exemplo, nas pinturas brancas da Assim, política, economia e sociedade são termos facil-
última fase de Tomie Ohtake —, estamos também abordando, mente encontrados em boa parte dos textos sobre Arte
conscientes ou inconscientes do fato, o espaço, o exprimível e Contemporânea ou nas proposições de variados artistas da
o tempo. Essa era a proposta provocadora e avant la lettre do contemporaneidade. Escritas preenchidas por discursos infla-
Prefácio Interessantíssimo que, em seu final, conclama: “E está mados que alavancam críticas e instigam reflexões sobre os
acabado o Desvairismo”. problemas sociais do Brasil e do resto do mundo. Por meio de
uma variada gama de linguagens e procedimentos artísticos,
Assim sendo, falemos do espaço, tendo como linha de raciocí- as contradições do paradigma econômico atual — que se faz
nio aquela proposta por Cauquelin. A rigor, o espaço não é um “fazer” sem que se faça percebido — são esgarçadas, sofrem
lugar. A priori é uma dimensão física — uma categoria elemen- uma prospecção. A palavra prospecção designa em geologia a
tal da Física — que apresenta possibilidades de acomodar cor- busca em depósitos minerais na tentativa de descobrir filões
pos, mas não quaisquer corpos: somente os corpos políticos. e jazidas, um tesouro subjacente, escondido. Metaforicamente,
Para um corpo ser político presume-se que este seja pleno de uma prospecção, muito acima dos valores que pode revelar, é
desejos — wishful thinking. Desejos tornando-se práticas dis- um processo de escavar o solo, de debulhar, de procurar en-
cursivas procuram se realizar em ações, em ações concretas tender suas situações passadas, suas crises, seus colapsos e
sobre a realidade. Isso é o que nos diz o princípio do prazer: relacionar todo esse histórico com o tempo presente.
uma realidade pronta para ser moldada, criada de acordo com
o desejo de cada um. O desejo de cada um, sobreposto ao de- Olhando por esse ângulo, os termos que configuram o grupo
sejo de outros, cria uma esfera de interesses, por definição, de estudo Arte e Espaço: uma situação política do século XXI ad-
conflituosa. O que se segue ocorre, necessariamente, dentro vieram de uma prospecção, de demandas dos pesquisadores,
do princípio de realidade. Essa esfera de interesses e confli- coordenadores e alunos do grupo, mas, antes de tudo, advie-
tos estabelece um espaço, um território. Ou seja, um espaço ram também de uma percepção global de enfrentamento de
só passa a existir como território a partir de seu uso, de sua situações e categorias que, por vezes, reduzem e regulam a
possibilidade de ter alguma serventia aos interesses dessa vida de todos nós: a comunidade, o cotidiano, o território, a
gama de interesses difusos que é o que define o lugar. Bem, tecnologia e o design. Isso nos leva a uma questão: de que
se há interesses em jogo, estamos a falar de política que é o maneira a Arte Contemporânea e o pensamento contemporâ-
exercício de ações que buscam atenuar e, no limite, sobrepujar neo estão a lidar com a estrutura política, econômica e social
o interesse do outro. atual? De que maneira a arte e o pensamento atravessam as
situações postas dentro dessas esferas? A quais estratégias
Se há um lugar, há um território. Se for plural, territórios. Cada e espaços os cidadãos comuns hoje têm direitos (os quais não
território vai criando uma cultura política, econômica, social, acontecem no espaço, mas sempre no lugar)? Alguns pes-
etc., e este movimento cultural unitário, eventualmente, pode quisadores e artistas nos dizem que não cabe à arte inventar
lançar um olhar para uma determinada cultura alheia e, por proposições pragmáticas e/ou voluntaristas e que o lugar da
interesses — agora coletivos —, pode tentar sobrepor-se ao arte está em sua vacuidade, em seu fora, no invisível indispo-
interesse alheio. Estamos agora no campo do choque cultural, nível ao olhar. Isso implica uma problemática muitos graus
o qual, qualquer que seja o resultado do mesmo, provoca uma acima da complexidade descrita anteriormente: até que ponto
as proposições artísticas, que se prestam ao enfrentamento e

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ao trabalho colaborativo especificamente, que buscam dar voz imaginado: como obter lealdades de povos tão distantes, de
às demandas políticas, sociais ou econômicas nos territórios culturas tão díspares, sob a égide romana? Povoando o espaço
(bairros, comunidades, cidades, metrópoles, etc.), respondem, com símbolos arquitetônicos, alegorias, emblemas, tudo que
realmente, às necessidades de empoderamento do outro nes- imaginariamente levava a um centro. Com o fim do império
ses espaços onde se inserem? Romano, essa questão foi posta de lado, inaugurando assim a
‘mesmidade’ do mundo. Essa só foi quebrada no Renascimento,
Essas e muitas outras questões foram surgindo em nosso em que a questão do tempo e do espaço foi recolocada con-
grupo de estudo quando o solo da arte atual e seu contexto juntamente. Contudo, lentamente, a categoria tempo foi tor-
começaram a ser debulhados, revelando-nos evidências de nando-se hegemônica. Esse foi o mote da modernidade. Com
um colapso paradigmático que, a seu modo, é o retrato de a pós-modernidade, sob o cadáver do tempo, priorizou-se o
nosso tempo. Nesse sentido, compreender o que nos desvela espaço. E isso se fez através da compressão espaçotemporal
essas subcamadas torna-se uma postura de enfrentamento, e da invasão do conteúdo das Artes à forma da Arquitetura.
e nisso reside tanto o enigma quanto uma nova possibilida-
de de horizontalizar práticas (diferentemente das revoluções Como veremos nos textos apresentados nesta publicação, a
clássicas), desierarquizar o estatuto da obra individual, auto- arte tem naturalmente um conteúdo político, uma vez que
nomizar neogrupos e empoderar o indivíduo, estabelecendo este, obrigatoriamente, como disse o crítico Mário Pedrosa,
aproximações entre arte e cotidiano, na descoberta de espaços é condizente com a consciência social de cada época. Ou, se
festivos, mergulhado nas surpresas, nos convívios, vivências, quisermos ir mais adiante, com a cotidianidade, conceito caro
experiências, conflitos, vexames, ou seja, nos erros e acertos ao crítico Karel Kosik, que nos revela a especificidade, locali-
próprios do vivido. zação, identidade e, portanto, uma maneira de existir. No mun-
do contemporâneo há uma espécie de convergência entre as
É como se, aos poucos, fôssemos tomando consciência dos in- formas artísticas performáticas e formas propriamente políti-
corporais, uma vez que, como quer Cauquelin, viemos frequen- cas. É essa cotidianidade, como nos chama a atenção Jacques
tando-os há muito tempo, porém sem o saber. Isso nos coloca Rancière, que forma o comum, uma espécie de aparição de
diante de uma percepção de outras qualidades do espaço que uma democracia estética que se transforma, nas ruas, em
são de outra ordem. E, assim, se formos observando a cidade, democracia política. É só abrirmos os canais midiáticos para
qualquer que seja ela, há inúmeras camadas, hierarquias, etc., percebê-la: uma democracia estética que ainda não está con-
deste espaço, numa mescla contínua que vai além do público figurada porque é completamente nova, e que traz em seu bojo
e do privado. Essa, então, é a nossa problemática. E qual é a a ideia de que o espaço, o lugar, cabe a todos e não a alguns.
questão que ela guarda com a arte? Interrogar o lugar, a identidade, o pertencimento.

O espaço não era uma questão para os gregos. A questão per- A questão é que a Arte Contemporânea passa pela cidade, pelo
tinente para os gregos era o tempo. Por que não o espaço? urbano, pelas influências que o ambiente urbano causa na arte
O controle do espaço na polis fazia-se pelo olhar. Até onde a e vice-versa. Uma vez perdida a crença ingênua na natureza, a
vista, o olhar, alcançasse, tudo era a polis. Isso fez com que os arte vai se amparar quase que exclusivamente no urbano. Se
gregos se tornassem presas fáceis para os invasores bárba- historicamente a cidade foi inventada, antes de dizer sobre os
ros, pois não passava em seu imaginário vivenciar um espaço problemas da cidade seria importante dizer: o que pode ser
imaginado, abstrato, puramente representacional. Esse foi um a cidade? Lugar dos desejos. Se desejos são tão subjetivos,
dos limites da democracia direta em seus primórdios. Com a por que não se pensa a cidade como o espaço dos sujeitos?
supremacia dos romanos, foi colocada a questão do espaço Ou melhor, como espaço de novos processos de subjetiva-

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ção e, consequentemente, de novas reconfigurações das
subjetividades?

* Reginaldo Luiz Constituição de zonas de desprogramação e chances de


Cardoso levante das pessoas, dentro dos gaps, das zonas autônomas
Graduado em
psicologia temporárias ou não, que liberam áreas físicas e/ou subjeti-
(FAFICH-UFMG), vas: contra-nets (Wikileaks, Pirate Bay, Hidden Wiki, 4chan,
mestre em ciência etc.), deep webs (Onion, Marina’s, Surface Web, Bergie
política (DCP-
UFMG) e doutor
Web, The Fog, etc.), espaços comuns (Espaço Comum
em planejamento Luiz Estrela - BH, Wig Nuts - EUA, Rede Aparelho - Belém,
urbano e regional Coletivo Puraqué - Santarém, Espaço Ystilingue - BH, Park
(IPPUR-UFRJ). Fiction - Hamburg, Ala Plástica - Argentina, etc.), estabe-
Paralelamente
às atividades lecendo atravessamentos nas bordas dos conflitos e no
acadêmicas núcleo da singularidade, aqui entendida como aquela que
desenvolve é indesculpável para a hegemonia, pelos ruídos que causa
trabalhos em
fotografia, tendo na superestrutura. Desprogramação do indivíduo a partir
participado dos estilhaços do solo prospectado e emergência do sujeito.
de diversas
exposições
Cintila dessa forma, em vários espaços urbanos, um ideário
coletivas no Rio
de Janeiro (RJ) e a ser divulgado, uma rebelião, uma refundação do “desvai-
em Belo Horizonte rismo”, não das massas e dos corpos, mas, acima de tudo,
(MG). uma “rebelião do pensamento”, como nos diria FW, rapper
e ex-detento do Carandiru.
** Ricardo Macêdo
Professor e Reginaldo Luiz Cardoso*
pesquisador de Ricardo Macêdo**
Artes Visuais.
Mestre em Arte
e Tecnologia da Belo Horizonte | Ouro Preto, 15 de abril de 2015
Imagem pela
UFMG, Design
de Interiores
pelo IFPA (antigo
CEFET) e Artes
Visuais pela UFPA,
além de curioso e
autonomista em
tempo integral.

20
Natacha Rena* aqui entendido como um amplo platô que envol-
ve as ações no espaço-tempo (públicos, privados,

arte, comuns), dissolvendo a noção dicotômica cidade X


campo, rua X rede, casa X trabalho. Segundo Hardt

espaço e e Negri (2009), num texto intitulado Metrópoles, a


metrópole é para a multidão o que a fábrica era

biopolítica 1 para a classe operária industrial, o que poderia


nos induzir a pensar nas metrópoles como terri-
tórios conectados nos quais as ações biopolíticas
e de controle dos corpos e das espécies se dão
com maior intensidade. Ao
INTRODUÇÃO mesmo tempo, poderíamos QUESTÃO 1
pensá-las como o lugar no Existe a possibilidade da sobrevivência de uma
qual a biopolítica das re- produção artística biopotente e transformadora
A metrópole é para a multidão o que a fábrica era sistências primeiras são quando esta pertence ao sistema da arte, partici-
para a classe operária industrial. também potentes, possibi- pando do esquema galeria, bienais e feiras, circu-
(Michael Hardt and Antonio Negri) litando encontros que, ape- lando como produto de colecionador e funcionando
sar de todas as estratégias como investimento dentro da lógica do capitalismo
* Natacha Rena: Graduada As políticas públicas neoliberais, impostas pelo para evitá-los, se dão com rentista? É possível fazer a arte potencializar um
em Arquitetura e Estado-Capital sobre o território urbano, configu- maior ênfase em processos discurso e uma ação política sem simplesmente
Urbanismo pela UFMG
ram evidências claras de como a cidade vem se constantes de contamina- naturalizar as lutas e estetizá-las dentro de um
(1995), mestre em
Arquitetura pela UFMG tornando um palco de disputa territorial. Se a fá- ção. A metrópole, para campo de elite próprio do capitalismo rentista,
(2000), doutora em brica configurava o campo de exploração do traba- Hardt e Negri, cognitivo e criativo?
Comunicação e Semiótica lho até os anos 1970, atualmente o Estado-Capital
pela PUC São Paulo (2006).
É professora adjunta da extrai a mais-valia em todo o espaço. Em tempos poderia ser consi- Ricardo Macêdo (24 de outubro de 2014)
Escola de Arquitetura da de capitalismo cognitivo, no qual a tendência da derada em primeiro Caros colegas, achei esse vídeo com 1h37min
UFMG e pesquisadora produção cotidiana no mercado vem construindo lugar o esqueleto e de fala do Antônio Negri no SESC Pompeia, em
dos grupos PRAXIS
e INDISCIPLINAR do
redes de trabalho voltadas para setores criativos a espinha dorsal da julho de 2014. Muito bom! Multitude - A demo-
Departamento de Projetos e sociais, as biopolíticas implementadas vão con- multidão, ou seja, o cracia da multidão Disponível em: https://www.
da Escola de Arquitetura solidando uma dinâmica de produção do espaço entorno urbano que youtube.com/watch?v=tPvSKiNKyds
da UFMG.
complexa, realizando processos de exclusão so- sustenta sua ativida-
cial em diversos níveis. Compreender essas novas de e o entorno social Reginaldo Luiz Cardoso (24 de outubro de 2014)
1. Parte deste artigo foi estratégias de políticas territoriais é fundamental constitui um lugar e Acho que primeiro deveríamos pensar a respei-
apresentada no texto: A para mapearmos os campos de luta mais impor- um potente repertó- to do papel da arte na sociedade. Pensando na
performance dos corpos
multitudinários em choque
tantes nas nossas cidades. rio de habilidades no aurora da humanidade, Hegel dizia que o ho-
com a propriedade privada terreno dos afetos, mem (a consciência de si mesmo), deparando-
do Estado-Capital, no O que está em disputa, a partir dos movimentos das relações sociais, se com obstáculos do mundo, criou esquemas
evento ENANPARQ e no
multitudinários detonados desde 1999 em Seatle dos costumes, dos de defrontamento e de superação dos mes-
projeto Escuela de Garaje,
do grupo Laagencia (USA), e que ganharam força no Brasil a partir de desejos, dos conhe- mos. Diante do enigmático, defrontou-se com
de Bogotá. junho de 2013, é, principalmente, o urbano. Urbano cimentos e dos cir- o crer e tentou (tenta) superá-lo com o mito,

22 23
cuitos culturais [...] a metrópole é a sede CAPITALISMO COGNITIVO
da produção biopolítica porque é o espaço E BIOPOLÍTICA NA METRÓPOLE
do comum, das pessoas que vivem juntas, CONTEMPORÂNEA
compartindo recursos, comunicando, inter-
cambiando bens e ideias. (HARDT; NEGRI, O sistema capitalista global contemporâneo, que
2009, p.255-256) conecta indissociadamente Estado e empresas,
pode ser também denominado de Império ou
2. Brasil maior no senti-
Mas sabemos que a metrópole é também o lugar, Neoliberalismo. Diferente do capitalismo fordista,
do de que é um país que
hoje é a sétima economia por excelência, da expropriação desse comum pro- no qual a mais-valia era prioritariamente explora-
do mundo e se opõe aos duzido no encontro e na criação das novas formas da via força de trabalho nas fábricas, atualmente
devires minoritários para de vida e de luta. Em tempos de Brasil maior2, séti- se dá via capital em expansão dirigindo a explora-
crescer.
ma economia mundial, celeiro para oportunidades ção para todo o território metropolitano, dentro e
de expansão do capitalismo global, torna-se cada fora das fábricas. Além disso, o tempo do trabalho
dia mais evidente que é nas metrópoles (para além envolvido na produção do capitalismo industrial
da exploração dos bens naturais comuns como referia-se ao tempo da jornada oficial das leis tra-
minérios e petróleos) onde há uma tentativa de balhistas. Atualmente, o tempo de expropriação
expropriação do comum pelo Estado-Capital com do capitalismo pós-fordista,
maior ênfase e violência. Rio de Janeiro, São Paulo, imperial, neoliberal ocupa à procura de satisfazer suas dúvidas. Assim
Belo Horizonte são exemplos de cidades globais todo o tempo de nossas vi- foi: diante do últil, defrontou-se com o fazer e
eleitas para sediar grandes eventos e para sofrer das. A exploração capitalis- tenta superá-lo com a técnica, a manipulação
grandes transformações territoriais via projetos ta atual passa pela captura do mundo; diante do inteligível, quis saber e
urbanísticos neoliberais em grande escala, e têm dos desejos e, neste sentido, superar esse obstáculo com a ciência. O maior
se tornado, ao mesmo tempo, celeiros de lutas todo um sistema simbólico obstáculo à jornada dessa consciência de si
urbanas e de resistências radicais, conformando abduz a subjetividade e nos mesmo (história) foi a lacuna, cujo esquema
corpos insurgentes multitudinários que vêm se ex- torna trabalhadores e con- de defrontamento ocorre através do criar e no
pandindo e contaminando, não somente os grupos sumidores obedientes, den- qual se tenta romper através do esquema de
políticos oficiais e não oficiais já existentes, mas tro de um sistema capitalis- superação que é a arte: o fazer algo novo no
trazendo para dentro das lutas artistas, pensado- ta financeiro. Assistimos ao mundo. A arte, portanto, é fruto dessa dialé-
res, professores universitários, grupos organiza- surgimento de um novo ho- tica, o fio condutor da história feita por e para
dos e desorganizados das favelas, advogados e, mem: o homem endividado. os homens. Marx, um hegeliano por excelên-
inclusive, políticos de esquerda que acabam por Além de vermos configurar cia, notou então que, no capitalismo, todas as
se verem pressionados para assumir lutas des- (via Estado-Capital) a cons- diferenças de qualidade entre as mercadorias
confortáveis politicamente. trução de sujeitos dóceis desaparecem diante do dinheiro, o que equi-
(próprios da sociedade dis- vale a dizer que o capitalismo faz da obra de
Nesta conjuntura política de revoltas conectadas ciplinar em que o controle arte uma mercadoria. Se a premissa de Marx
em rede, pergunta-se: o que pode a arte? incidia – e ainda incide – di- é verdadeira, então não há saída possível? O
retamente sobre os corpos), mesmo Marx tinha como lema preferido “du-
estamos imersos em práti- vidar de tudo”. Etimologicamente, estética
cas de controle mais sutis tem duas raízes: aisht, que significa sensação,
e flexíveis, uma tomada da sentir; e ethos, que signifca costume, moral.

24 25
subjetividade que nos torna controlados biopoliti- dualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras
camente. Segundo David Harvey, abertas e em expansão, já que o Império administra
entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas
o neoliberalismo é em primeiro lugar uma plurais por meio de estruturas de comando regula-
teoria das práticas político-econômicas que doras” (HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15).
propõe que o bem-estar humano pode ser Portanto, pode-se dizer que esté-
mais bem promovido liberando-se as liber- Mas esse sistema global enredado pelo tica significa a moral ou o costume
dades e capacidades empreendedoras indi- Estado-Capital, baseado na democracia da sensação e do sentimento. Entre
viduais no âmbito de uma estrutura institu- representativa, no qual nos deparamos 1789 e 1799, na França, tudo aquilo
cional caracterizada por sólidos direitos à com o Império, não deveria, de modo que estava indigesto transformou-
propriedade privada, livres mercados e livre algum, segundo esses autores, nos se em possibilidades inumeráveis,
comércio. O papel do Estado é criar e pre- deixar saudosos das antigas formas ‘possibilismo’, cenário onde tudo
servar uma estrutura institucional apropria- de dominação, porque esta transição parecia possível num grande ar-
da a essas práticas; o Estado tem de garan- para o Império e seus processos de remedo de suspensão da dúvida.
tir, por exemplo, a qualidade e a integridade globalização e mundialização conexio- Schiller estava lá. Em um fragmen-
do dinheiro [...] o neoliberalismo se tornou nista nos oferece novas possibilidades to, dizia: “no povo tudo jogo cênico”.
hegemônico como modalidade de discurso de redes insurgentes que possibilitam Naquele momento indigesto (cruel,
e passou a afetar tão amplamente os modos a ampliação das lutas pela libertação. crudelis, cru, não-digerido, daí indi-
de pensamento que se incorporou às manei- Essas singularidades globais que vão gesto) a ‘estética’ foi outra além da
ras cotidianas de muitas pessoas interpre- surgindo como resistência ao neolibe- representação. Tudo confuso e vago.
tarem, viverem e compreenderem o mundo. ralismo vêm tecendo uma nova forma Artaud, quando escreve o primeiro
O processo de neoliberalização, no entan- de luta que envolve o que chamam de manifesto do teatro da crueldade,
to, envolveu muita destruição criativa, não multidão. Para os pensadores, essas também é acusado de confuso e
somente dos antigos poderes e estruturas forças criadoras da multidão que sus- vago. “Se o signo da época é a con-
institucionais (chegando mesmo a abalar as tentam o Império são capazes também fusão, vejo na base dessa confusão
formas tradicionais de soberania do Estado), de constituir “um Contra-império, uma uma ruptura entre as coisas e as
mas também das divisões do trabalho, das organização política alternativa de flu- palavras, as ideias, os signos que
relações sociais, da promoção do bem-estar xos e intercâmbios globais. Os esforços são a representação dessas coi-
social, das combinações de tecnologias, dos para contestar e subverter o Império, sas” (ARTAUD). Voltando a Hegel:
modos de vida e de pensamento, das ativi- e para construir uma alternativa real, A consciência capta o mundo, ne-
dades reprodutivas, das formas de ligação terão lugar no próprio terreno imperial” gando-o, estabelecendo uma distin-
à terra e dos hábitos do coração. (HARVEY, (HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15). Os auto- ção. Não se confunde com o mundo
2012, p.12-13) res afirmam que é na metrópole que as porque se não houvesse diferencia-
novas configurações de resistência se ção não haveria nem um nem outro.
Para Hardt e Negri (2001), esse sistema neoliberal configuram com maior intensidade, e Esse é o campo de possibilidades
que atua na lógica imperial, em contraste com o em tempos de produção biopolítica em da arte. E da política.
imperialismo, não estabelece um centro territorial que as forças produtivas que movem o
de poder, nem se baseia em fronteiras ou barrei- capitalismo pós-fordista, trabalhando principalmen-
ras fixas, pois é um aparelho de descentralização te com ideias, afetos e comunicação, não estão mais
e desterritorialização global “que incorpora gra- simplesmente concentradas nas fábricas, mas, sim,

26 27
espalhadas por terreno social urbano, ou seja, por Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
3. Estatuto da Cidade - Lei toda a metrópole, lugar privilegiado onde as múl- Aproveitando que essa pergunta foi a que mais pessoas estão
10.257/00, que estabelece
diretrizes gerais da política
tiplas forças residem e interagem (HARDT; NEGRI, acompanhando, queria escrever algumas coisas sobre o texto
urbana. 2014). que a gente leu: “homem endividado”. Gostei dessa nova evo-
lução do homem. No final do século XIX começou a se falar do
4. Operação Urbana De qualquer forma, para pensar o urbanismo e a homo faver como o homem ligado à produção, e, por contrapo-
Consorciada - OUC é o produção do espaço no sistema neoliberal impe- sição, na década de 1930, Huizinga falou do homo ludens como
conjunto de intervenções
e medidas coordenadas rial, é preciso estar atentos à tomada do Estado resposta a esse homo faver. Um homem que vivia para o lazer,
pelo Poder Público pelo capital, que agora atua de dentro dos pro- um homem que nunca chegou a existir. É engraçado como hoje,
com a participação dos cessos políticos institucionais e por meio de me- embora esse homo ludens tivesse existido, do mesmo jeito vira-
proprietários, moradores,
usuários permanentes
canismos de gestão pública, gerando políticas e ria homo endividado devido à transformação do lazer em objeto
e investidores privados, instrumentos urbanísticos que fazem parte, muitas de consumo. O mercado da arte e o negócio da produção cultu-
com o objetivo de alcançar vezes, do próprio Estatuto da Cidade3 . Atualmente, ral transformam o lazer em um luxo. Assistir a um show ao vivo
em uma determinada
um dos exemplos mais claros disso é o instrumen- no Brasil é difícil para a grande maioria da população pelos
área transformações
urbanísticas estruturais, to denominado Operação Urbana Consorciada4 , uma preços dos ingressos, iguais aos dos ingressos nos museus ou
melhorias sociais e espécie de Parceria Público-Privada que determi- outros depósitos de cultura. “[...] no Brasil, tanto os arquitetos
valorização ambiental, na as regras do jogo para o uso e a construção e urbanistas [...] contribuíram e contribuem para a realiza-
podendo ocorrer em
qualquer área do do espaço, gerando territórios determinados por ção das Parcerias Público-Privadas e para a privatização dos
município. manifestações de interesse do próprio mercado, bens comuns”. No meu ponto de vista, os arquitetos foram os
5. É importante observar conformando territórios predefinidos para inves- grandes cúmplices da corrupção imobiliária (como arquiteto
que não é somente no
timentos e projetos que gerem mais-valia para o tenho vergonha disto), na Espanha. Para qualquer construção
universo do planejamento
urbano e dos grandes Estado através de títulos5 . Visivelmente uma pas- é preciso a assinatura de um arquiteto, então, embora a ideia
projetos nas metrópoles sagem das formas de exploração da mais-valia de muitos arquitetos não fosse ajudar para esse “boom imo-
que o neoliberalismo que se dava na fábrica em tempos de capitalismo biliário”, se transformaram em cúmplices das construtoras.
domina as políticas
públicas. Além disso, fordista, e agora se dá no território urbano geran-
essas políticas neoliberais do lucro via renda, dentro da lógica do capitalismo Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
ocuparam, no Brasil, o financeiro pós-fordista ou rentista. Muitas das pessoas no fórum falaram de alguns artistas que
Ministério da Cultura, por
exemplo. Não somente
produzem uma obra ligada ao ativismo, um jeito de se posi-
com as políticas das leis Do ponto de vista urbanístico, essas políticas pú- cionar frente ao mundo das galerias e ao mercado da arte,
de incentivo à cultura, que blicas se dão em diversos níveis e, mesmo quando mas inserido neste mesmo mundo. Pensei que tem algo a ver
partem do princípio de que
não há o uso explícito destes instrumentos neo- com parte do texto em que se fala da metrópole como figura
o mercado decide o que vai
ser financiado e produzido liberalizantes, a lógica das gestões das cidades perversa que aliena e transforma as pessoas em consumi-
culturalmente no País, contemporâneas, tanto no mundo quanto no Brasil, dores, mas ao mesmo tempo é o espaço onde surge a luta
mas também criando seja nos governos de esquerda, seja nos governos contra esse sistema. Esses artistas estão inseridos no mundo
políticas culturais que
entendem a cidade como de direita, é a lógica da cidade-empresa, da es- do mercado da arte, mas lutando desde dentro. Porém, achei
empresa e a produção peculação imobiliária, da gentrificação (enobreci- que a pergunta tinha mais a ver com uma arte produzida fora
cultural que acontece nela mento e expulsão dos pobres que não conseguem desses circuitos, uma arte ligada à multidão, que não tem um
como mercadoria através
da lógica das cidades
viver mais nas áreas valorizadas), das políticas de nome individual ligado à obra de arte, e como ela pode se in-
criativas e da economia revitalização (substituindo vidas pobres por vidas serir sem perder a qualidade de biopotente e transformado-
criativa. ricas e turismo), das intervenções utilizando equi- ra. Eu me lembrei, por exemplo, da acampada da “Plaza del

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pamentos culturais (museus, bibliotecas, salas de
música e afins), do planejamento estratégico que
faz surgir novas centralidades urbanas para que o Esse contexto se deve ao fato de o poder Imperial abarcar
capital se expanda para novos territórios e possa tudo aquilo que representaria o comum numa estratégia
fazer circular recursos dentro do sistema emprei- biopolítica, ou seja, expropriando as linguagens, os símbo-
teiras-bancos. Essas lógicas encabeçam o eixo da los, as imagens, enfim, todos os meios compartilhados pe-
gentrificação de grandes regiões, principalmente los indivíduos, através dos quais
nos centros das cidades que já detêm meios de estes se tornam capazes de se Sol”, em Madrid, durante os movimentos
transporte e serviços abundantes. E, perversa- comunicar e de, assim, produzir do 15M na Espanha, que, quase um ano
mente, em muitos momentos, é utilizando o dis- algo em sociedade. Em tempos depois de ser tirada pela prefeitura, rece-
curso da arte e da cultura, da melhoria do espaço, de capitalismo cognitivo, criativo beu o Prêmio Europeu de Espaço Público
do embelezamento e da segurança que o Estado- e imaterial, a produção do comum Urbano 2012, um prêmio ligado ao mundo
Capital com seu biopoder (poder sobre a vida) baseia-se na colaboração e nos da arquitetura e do urbanismo convencio-
avança por toda a cidade, expropriando os bens processos criativos e afetivos nais. Isso me faz pensar que pode existir
comuns já existentes ou em processo de formação. que incorporam todos os níveis uma arte transformadora que pertence
da vida. Todo o tempo é produtivo ao sistema da arte, mas sem ter essa
Segundo Pelbart (2011), o biopoder está ligado à e o comum que compartilhamos pertença como um objetivo da obra, quer
mudança fundamental na relação entre poder e serve de base para a produção dizer, pode existir uma produção (artísti-
vida. Na concepção de Foucault, o biopoder se in- futura, numa relação expansiva. ca ou não) ligada à multidão, de autoria
teressa pela vida, pela produção, reprodução, pelo Para Hardt e Negri, isso talvez compartilhada, colaborativa ou inclusive
controle e ordenamento de forças. A ele compe- possa ser mais facilmente en- anônima, que a posteriori seja absorvida
tem duas estratégias principais: a disciplina (que tendido em termos da comunica- pelo sistema, como obra de arte, às vezes
adestra o corpo e dociliza o indivíduo para otimizar ção como produção, inclusive de tirando a ideologia da mesma e, outras,
6. Termo lançado por
Foucault, em meados dos suas forças) e a biopolítica6 (que entende o homem afetos, pois só podemos comuni- colocando valor nelas.
anos 1970, se referindo ao como espécie e tenta gerir sua vida coletivamente). car criativa e colaborativamente
momento em que a vida Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de utilizando linguagens, símbolos, João Paulo de Freitas Campos (23 de outu-
das populações e a gestão
desses processos são
maneira integral, a partir da captura, pelo poder, ideias que constituem novas ima- bro de 2014)
tomadas pelo poder como do próprio desejo do que dela se quer e se espera, gens, novos símbolos, ideias e re- Vou comentar uma coisa bastante pon-
objeto político. e assim o conceito de biopoder se expande para lações comuns. Para os autores, tual. A produção artística pode - e deve
o conceito de biopolítica. Há uma diluição dos li- hoje essa relação entre a produ- - proporcionar a construção conectiva de
mites entre o que somos e o que nos é imposto, à ção, a comunicação e o comum é novas potências e novas possibilidades
medida que o poder atinge níveis subjetivos pas- a chave para entender toda ati- de vida e expressão - à margem do mapa
sando a atuar na própria máquina cognitiva que vidade social e econômica pró- biopolítico oficial -, seja no circuito infor-
define o que pensamos e queremos. Segundo o au- pria do capitalismo pós-fordista mal das novas insurgências estético-po-
tor: “Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo (HARDT; NEGRI, 2005, p.256-257). líticas ou no sistema oficial de arte, entre
no cerne da subjetividade e da própria vida, como lutas simbólicas e materiais pela legiti-
nessa modalidade contemporânea do biopoder” A ampliação dessa acepção de midade propriamente artística em um
(PELBART, 2003, p.58), que podemos chamar de biopolítica adotada por Hardt e campo da arte mais amplo, com suas ins-
biopolítica. Negri situa o conceito como algo tituições específicas de consagração e re-
que acontece plenamente na produção do cânone artístico, seu sistema

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sociedade de controle, na qual o poder subsume
toda a sociedade, suas relações sociais e pene-
tra nas consciências e nos corpos. Sendo assim,
as subjetividades da sociedade são absorvidas no
Estado. Mas a consequência disso é a explosão dos
elementos previamente coordenados e mediados
na qual as resistências deixam de ser marginais e
tornam-se ativas no centro de uma sociedade que
se abre em redes (HARDT; NEGRI, 2001, p.44). Isso
significa que o poder desterritorializante que sub-
sume toda sociedade ao capital, em vez de unificar
tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade
e singularização não domesticáveis, incontrolá-
veis e incapturáveis. Assistimos a essa situação no
Brasil, efetivamente e em grande escala, a partir
de junho de 2013. A multidão que se formou, con-
taminando e hibridando diversas pautas libertá- simbólico específico (não imutável, obviamente), etc. Dou um
rias e progressistas, vem crescendo e tomando exemplo sucinto: no Brasil contemporâneo podemos encontrar
novas formas a cada dia. Para Pelbart (2003) ou cineastas “autorais” - Adirley Queirós, Cristiano Burlan, entre
para Hardt e Negri (2001, 2005, 2009, 2014), essa outros - que subvertem editais oficiais com propostas ousadas
inversão de sentido do termo foucaultiano “bio- e inovadoras - tanto na dimensão estética como na política -,
política” pode deixar de ser o “poder sobre a vida”, construindo uma nova estética colaborativa - com forte diálo-
para tornar-se o “poder da vida”, o que poderíamos go entre a equipe -, horizontal e, muitas vezes, experimental.
chamar também de biopolítica da multidão ou, se- Como o próprio Adirley Queirós afirmou numa entrevista sobre
gundo Pelbart (2003), biopotência. seu primeiro longa, A cidade é uma só? (que, inclusive, saiu de
um edital sobre os 50 anos da cidade de Brasília): “fazer um
O COMUM COMO filme é, primeiramente, um ato político”.
PROJETO POLÍTICO
CONSITUINTE DA MULTIDÃO Camila Vieira (23 de outubro de 2014)
Outro exemplo é a potência política trabalhada pelo artista
As políticas neoliberais (mencionadas anterior- Francis Alÿs. Só para citar uma ação: “Quando a fé move mon-
mente), incorporadas ao Estatuto da Cidade, que tanhas” (ver vídeos no Youtube), realizado em 2002, no Peru.
vem permeando todo o discurso político urbanís- Ele convocou quinhentas pessoas de branco para mover em
tico no Brasil, se fazem presentes desde propostas dez centímetros uma duna de areia; é a comunidade ativa, com
de revitalização de áreas centrais, passando pelo passos que movem o mundo, digamos (a duna moveu). O que
discurso da melhoria das condições de mobilida- essa comunidade sentiu com essa experiência, essa potência?
de urbana, e culminando na construção de novas Houve uma organização extrema nesse processo sem sim-
centralidades em regiões periféricas abandona- plesmente naturalizar as lutas, acredito. Não foi uma ação que
das historicamente pelo Estado. Em todo o mundo, teve resultados concretos em si, mas uma ação que perpassa
mais visivelmente em alguns países que recebe- a discussão aqui apresentada.

32 33
ram essa grande investida do capitalismo Imperial a princípio progressistas, Camila Vieira (23 de outubro de 2014)
como Espanha e Grécia, hoje podemos assistir ao promoveram grandes avan- Também acredito nessa potencialidade
estrago social e econômico dessas políticas, que ços sociais, ajudando vastos transformadora de ações políticas dentro
nada mais são do que formas de endividamento do contingentes populacionais e fora do sistema da arte. Chamou minha
7. Vídeo Se acabó la fiesta,
Estado e do cidadão7 . Com a promessa de desen- a sair da pobreza, abrindo atenção, agora que estou lendo alguns posts,
um documentário que
reflete o contexto da volvimento, obras de infraestrutura, projetos para possibilidades de participa- o da Maria Goretti quando ela fala sobre o
arquitetura neoliberal na megaeventos, construção massiva de habitação ção democrática e rompendo capitalismo rentista e suas manipulações,
Espanha. Entrevistas a criaram com eficácia um exército humano endi- relações externas de depen- principalmente em relação ao espectador.
Felix de Azua, Sir Richard
Rogers, Blanca Lleo, Emi- vidado e quebraram os caixas do Estado. Esses dência muito antigas, em Pode até haver essa limitação na participa-
lio Tuñon, y Luis Mansilla, movimentos multitudinários em todo o mundo, termos de economia global, ção intelectual do espectador, mas também
assim como os diretores como o que ocorreu a partir do Parque Gezi, na de mercado mundial e de não podemos engolir isto de pronto, visto
da Revista El Croquis e o
periodista Llazer Moix.
Turquia, contra a construção de um shopping cen- imperialismo norte-ame- que é um discurso favorável ao sistema
http://www.rtve.es/alacar- ter em lugar de uma praça pública, fazem surgir ricano. Entretanto, mesmo como um todo... Digo que devemos pensar
ta/videos/archivos-tema/ uma multidão enfurecida que percebe, de manei- quando esses governos es- na emancipação do espectador e, para isto,
archivos-tema-se-acabo-
ra muito evidente, os mecanismos imperiais do tão no poder e, em especial, refiro-me a Rancière, que fala exatamente
fiesta/1269406/; e vídeo
Españistan: https://www. Estado-mercado que vem expropriando direitos quando repetem as práticas dessa emancipação como forma de consti-
youtube.com/watch?v=UJ- garantidos constitucionalmente e transferindo os dos antigos regimes, os mo- tuição do sensível da coletividade. A questão
8-dJ5WCo4. bens comuns e a produção do comum para o uni- vimentos sociais continuam política é a capacidade de tomarmos mãos
verso do privado. Mas essas insurgências já pre- a luta, agora direcionada do nosso destino, afinal. E é exatamente
figuravam uma radicalização popular contra esse contra os governos que afir- nesse ponto que a arte mostra sua potência,
Estado-Capital globalizado desde Seattle, e alguns mam que os representam indo além do circuito fechado no sistema da
autores como Hardt e Negri, Lazzarato e Harvey (HARDT; NEGRI, 2014). arte, mas também agindo nele... A Natacha
vêm traçando uma cartografia dessas dinâmicas citou o Gordon Matta-Clark e logo pensei
do novo capital, e também da rebeldia popular que Dentro da própria lógica também na Rachel Whiteread, quando fez
insurge quando se retira radicalmente o bem-es- capitalista de produção co- um molde de concreto de uma casa progra-
tar social defendido como base constitucional de letiva, colaborativa e em mada para demolição num bairro operário
países democráticos. rede, que é própria da lógica do leste de Londres, em 1993. O trabalho se
do capitalismo pós-fordis- chama House. Infelizmente a obra foi des-
Em 2012, Hardt e Negri (2014), escrevendo sobre os ta, surgem também novas truída, talvez pelo fato mesmo de preservar
movimentos multitudinários a partir da Primavera formas de colaboração e de a cultura da classe operária no local, mas
Árabe em 2011, afirmam que desde a década de “fazer-com” que recusam os foi uma ação que conseguiu em certa me-
1990 esse movimento neoliberal Imperial avançou mecanismos representati- dida criticar o desenvolvimento voraz ali na
inclusive sobre as democracias de esquerda dos vos da democracia burguesa, região.
governos de alguns dos maiores países da América mesmo quando sob as siglas
Latina, mesmo quando estes governos tinham de esquerda. Essas resistências assistem à expro-
chegado ao poder graças ao apoio de poderosos priação do comum, desde os bens comuns como a
movimentos sociais – movimentos contra o neoli- água, as florestas, as praças e os parques, ou até
beralismo e a favor da autogestão democrática do mesmo a expropriação da produção do comum em
comum (o que para nós, no Brasil, fica mais cla- processos informais dos novos modos de vida que não
ro a cada dia). Em muitos casos, esses governos, cabem na lógica do Estado-Capital. Para essa nova

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geração conectada em redes múltiplas que se super- Flávio Pinto Valle (22 de outubro de 2014)
põem globalmente, a democracia representativa não Sim. Penso que é possível uma produção artística fora
corresponde mais à produção dos desejos por mais da lógica do capitalismo rentista. Para isso, acho que
direitos, ou por uma vida na qual não apenas se par- é preciso pensar mais em ações artísticas que em
ticipa de processos eleitorais garantindo plenos-po- produtos artísticos. Ações que ajam de maneira opor-
deres aos governantes. A crise da representatividade tuna frente às estratégias do capital, por isso estão
abarca uma crescente necessidade por participação sempre em (re)configuração, e que tenham como táti-
direta, por democracia real, por participação-decisão ca a (re)apropriação simbólica dos produtos do capital.
como palavras inseparáveis. Portanto, independen-
temente da crise do capitalismo global, assistimos Carlos Dalla Bernardina (22 de outubro de 2014)
ao surgimento de uma nova ontologia do precariado Acho que o Bruno Dorneles tocou no ponto central: é
própria da multidão, configurada ao mesmo tempo: impossível pensar numa arte biopotente em si mes-
(a) por um homem endividado (LAZZARATO, 2014 ou ma... Por mais que ela seja forjada a partir de um
HARDT; NEGRI, 2014) completamente imerso no ca- campo biopotente, é em seu processo de comunica-
pitalismo financeiro, que tem a sua riqueza criativa çao com o outro que ela definirá seu destino e seu
expropriada constantemente pelo fluxo econômico; (b) impacto sobre o meio. Nesse sentido, o artista vê-se
por um homem constituído pela lógica do fazer-junto, atado a uma rede global, da qual sua arte depende
do fazer-com, criativa e colaborativamente. para existir de fato. É através de sua interação com a
rede que ela se tornará, ou não, biopotente. Vejo isso
Para Negri (2010), essa multidão possui também um ao mesmo tempo como um bálsamo e uma tragédia.
nome de singularidades não representáveis, que, as- Acredito que o processo de interação em redes não
sim como um conceito de classe, é sempre produtiva reguladas oferece o único campo possível para a exis-
e está sempre em movimento. A multidão seria, então, tência de uma produção artística que nos (re)conecte
um ator social ativo, uma multiplicidade que age; se- ou nos (re)ligue com a vida. Acredito que é cada vez
ria também o conceito de uma potência que descon- mais difícil obras criadas dentro de um sistema capi-
fia da representação e em contraste com o de povo, talista cognitivo carregarem a força necessária para
porque é uma multiplicidade singular, um universal cumprirem um papel efetivamente transformador,
concreto. O povo constituía um corpo social; a multi- mas ainda acho possível. À medida em que o tempo
dão, não, porque ela é a carne da vida e, ao contrário passa parece que vai ficando mais difícil, como se o
da pura espontaneidade, é como algo organizado num cerco fosse se fechando e as contradições, estrangu-
corpo sem órgãos, fora da organização do Aparelho lando os processos vitais da sociedade. Nesse sentido,
de Estado, ou seja, é um ator ativo de auto-organi- acredito que, pelo menos para as novas gerações do
zação, nos introduzindo num mundo completamente Brasil, o caminho da produção não profissional em
novo, dentro de uma revolução que já está acontecen- rede tende a ser a saída no curto prazo para a exis-
do. A multidão é para o autor, ao mesmo tempo, sujei- tência de processos artísticos biopotentes (capazes
to e produto da praxis coletiva, assim como também de reprogramar nossos afetos). Mas isso coloca em
cada corpo é multitudinário, ou pode tornar-se uma xeque a figura do artista profissional. É uma questão
multidão, formando redes e potencializando contami- complexa que abordei em dois textos: http://roadto-
nações que desejam liberdade na coletividade. A mul- cydonia.com.br/quase-samba-5-ser-independente/
tidão é um monstro híbrido, uma legião, e um projeto e http://gvcult.blogosfera.uol.com.br/2014/04/27/chi-

36 37
que se faz cruzando-se multidão com multidão,
misturando corpos, operando a mestiçagem e a
hibridação, já que o próprio corpo é trabalho vivo e
recusa, maquinicamente, a organização constante
operada pelo sistema capitalista, portanto, expres- co-buarque-se-tornaria-musico-profissional-se-
são e cooperação. Enfim, o poder constituinte da tivesse-nascido-em-1990/. Ao mesmo tempo, não
multidão é algo diferente, não é apenas uma ex- concordo com a bandeira da desmonetização da
ceção política, mas uma exceção histórica; é um arte como única possibilidade de preservá-la em
produto de uma descontinuidade temporal, radi- sua dimensão ativa, transformadora, vivificadora.
cal, metamorfose ontológica, ou seja, a multidão Não acho justo que os artistas sejam sacrificados
é um nome ontológico de produção de resistên- em nome de um “enxergar primeiro” a decadência
cias ativas contra sobrevivências parasitárias que de nosso sistema de vida “sociopolíticoeconômico-
constituem a engrenagem da máquina capitalista cutural”. Acredito que fomen-
contemporânea (NEGRI, 2010). tivos e instituições que sejam capazes tar a relação direta, em todos
de desenrolar novas possibilidades de os níveis (econômico, simbó-
Toda a estrutura política da modernidade ociden- vida. (LAZZARATO, 2006, p.36) lico e afetivo), entre o artista
tal se construiu como política da totalidade e da e o indivíduo tocado por sua
universalidade, mesmo as esquerdas marxistas Neste texto, nos interessa pensar, portan- arte é a única saída no curto
que pretendiam uma crítica radical ao projeto to, junto com Lazzarato, que é possível sair prazo. E em relação a isso,
burguês. Ou seja, o movimento de Seattle abriu dessa lógica binária entre socialismo esta- me lembro de uns versos de
uma nova possibilidade de criação de uma polí- tal totalitarista-universal ou neoliberalismo um grupo inglês que costu-
tica da multiplicidade multitudinária. Segundo o generalizado do Estado-Capital financeiro. ma circular nas intercessões
pensador, o êxito do livro de Negri e Hardt deno- Para compreender as relações de força na entre o mainstreaming e os
minado Multidão, “seguramente está relacionado sociedade contemporânea e realizar um espaços de transformação, o
com esta direção, indicada não sem ambiguidade: diagnóstico mais próximo da realidade das Radiohead:
sair do conceito de povo, categoria que aponta ao lutas globais, seria preciso investir em um
I will shake myself into your
uno, reivindicando ao mesmo tempo uma fundação pensamento-ação, através da filosofia-prá-
pocket
marxista desta transição” (LAZZARATO, 2006, p.17). xis, que possa nos abrir um campo teórico
Invisible
mais complexo fora do universo da totalida-
Do what you want
Com as jornadas de Seattle tem se criado de e que nos permita “entrar no mundo do
Do what you want
um novo campo de possibilidades (que não pluralismo e da singularidade, em que as
existiam antes do acontecimento, chegou conjunções e as disjunções entre as coisas I will sink and I will disappear
com ele). O acontecimento dá a ver o que são em cada momento contingentes, especí- I will slip into the groove
uma época tem de intolerável, mas tam- ficas e particulares e não remetam a nenhu- And cut me off
bém emergir novas possibilidades de vida. ma essência, substância ou estrutura pro- Cut me off
Esta nova distribuição de possíveis e de funda que as possam fundar” (LAZZARATO,
We will shake and we’ll be quiet
desejos abre por sua vez um processo de 2006, p.19). Esse pensamento-ação nos per-
as mice
experimentação e de criação. Há que se ex- mite compreender-experimentar a realidade
And while the cat is away
perimentar o que implica a mutação da sub- política atual a partir das relações exteriores,
Do what we want
jetividade e criar os agenciamentos, disposi- fora dos fundamentos, das raízes profundas,
Do what we want

38 39
dos modelos arborescentes nos quais cada rela- ção em tempos táticos e estratégicos de resistências
ção só expressa um dos aspectos de alguma coisa. mundiais contra o urbanismo neoliberal, que se con-
Aqui uma escolha pela teoria pós-estruturalista da figura performaticamente nas ruas e nas redes, uti-
multiplicidade, que afasta as relações binárias para lizando ao mesmo tempo processos destituintes (via
compreensão do mundo político, social e econômi- ação direta, manifestações, ações judiciais) e consti-
co, nos lança num campo de pensamento complexo tuintes (via ocupas e acampadas, produção de cultura,
e configurado em múltiplos platôs que se conectam arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida).
transversalmente. Aponta-se para um pensamento da
imanência através do qual possamos constituir uma Hardt e Negri, em um pequeno e precioso livro deno-
ontologia pluralista formada por singularidades que minado Declaração, escrito após a jornada de acam-
compõem as resistências ao Império neoliberal do padas que ocorreram por todo o mundo em 2011, dão
capitalismo financeiro que, segundo Negri e Hardt, continuidade ao projeto de mapeamento da multidão
poderia ser chamado de processos multitudinários, e nos ofertam uma sintética e potente análise dos
construindo um projeto político de produção do co- processos revolucionários, ressal-
mum. Assim como Lazzarato, Hardt e Negri nos apon- tando que a estrutura rizomática Maria Goretti Gomide Pinheiro (22 de ou-
tam a resistência em Seattle no ano de 1999 como um multitudinária é coletiva e recusa tubro de 2014)
primeiro indício claro dessa nova formação popular toda forma de ordenação vertical, O que ainda estamos vendo hoje é um
insurgente. Segundo os autores, o que diferencia a assim como, o processo biopolítico puro capitalismo rentista, uma manipu-
multidão de povo (diretamente relacionado ao esta- não se limita à reprodução do ca- lação e monopolização intelectual dos
do-nação) ou de massa (diretamente relacionado ao pital com uma nova relação social, interesses da sociedade. A arte vem
mercado) é que ela é um conjunto de singularidades mas, sim, apresenta também o sendo tratada apenas como objeto de
que possui a potência da construção do comum, fora potencial de um processo autôno- mercadoria, sujeita às leis de procura
da lógica socialista ou capitalista. Para eles “quando mo que poderia destruir o capital e oferta do mercado que, de certa ma-
você se tornar uma singularidade, jamais será um eu e criar algo completamente novo neira, afeta a criatividade, as formas
integral. As singularidades são definidas por meio de (HARDT; NEGRI, 2014). de fazer e suas múltiplas linguagens,
um ser múltiplo internamente e de um descobrir a si não permitindo a partiticipação intelec-
mesmo externamente apenas em relação aos outros” É interessante observar que, des- tual dos espectadores, impedindo-os
(HARDT; NEGRI, 2014, p.57). de 2011, os movimentos multitudi- de compartilhar, recriar, refazer para
nários (em todo o mundo) ocupam que, desta forma, possam alcançar o
Sem um delineamento preciso dessas insurgências praças e ruas, reforçando a luta território dos pensamentos. O capi-
que formam grupos de singularidades não mais ba- contra projetos neoliberalizantes talismo rentista manipula produzindo
seados nas identidades de classe, de gênero, de raça, de privatização do espaço públi- uma padronização da cultura em bus-
fora da lógica dos sindicatos e dos movimentos or- co e, nestes processos de ocupas, ca do lucro, reproduzindo ideias que
ganizados, amplia-se a impossibilidade de desenhar apesar dos curtos espaços de tem- servem apenas para a própria perpe-
com maior clareza a nova classe multitudinária con- po, surgem múltiplos processos tuação e legitimação, e por extensão a
figurada nas resistências ao neoliberalismo. Essas constituintes de outra sociedade sociedade capitalista como um todo. As
insurgências vêm se expandindo e ganhando as ruas que pode se organizar independen- classes exploradoras não assimilam
de todo o mundo, não necessariamente em países em temente da lógica Estado-Capital as mensagens veiculadas, tornando-se
crise econômica, mas também no Brasil, em pleno da democracia representativa, for- receptáculos vazios. A interpretação da
processo neodesenvolvimentista. Há uma constru- mando novas redes afetivas e no- mensagem está relacionada com sua

40 41
vas formas democráticas, novos modos de vida ba- Nesses movimentos multitudinários globais, a polí-
seados na produção do comum (em defesa dos bens tica é uma ontologia plural: o pluralismo das lutas,
comuns e em processos constituintes de modos de que emergem das tradições divergentes e expres-
organização “em-comum”). Os acampamentos são sam objetivos diferentes, combina-se com a lógica
uma grande fábrica para a produção dos afetos so- cooperativa e federativa da assembleia para criar um
ciais e democráticos, constituindo-se uma platafor- modelo de democracia constituinte, em que estas di-
ma para o desenvolvimento de novas formas políticas ferenças são capazes de interagir e se conectar umas
nas quais o autodidatismo possa ser organizado como com as outras, for-
um exemplo de acesso livre ao comum, incluindo in- mando uma compo- consciência e com os valores que só podem ser com-
formações, conhecimentos, livres de obstáculos fi- sição compartilhada. preendidos com base na análise de seu modo de vida.
nanceiros e também dos obstáculos provenientes do Essa pluralidade de Percebo, hoje, uma tentativa de sair das entranhas
dogmatismo e da censura. Sendo assim, a produção movimentos contra o dessa produção capitalista. Tenta-se alcançar no-
do conhecimento se torna um comum por excelência. capital global, contra vos espaços e meios para criar uma nova existência
Para os autores, tornar-se comum é uma atividade a ditadura das finan- fora das formas de capitalismo de Estado, mercado,
contínua, orientada pela razão, vontade e pelo dese- ças, contra os biopo- regulados pelo poder. Estamos ainda numa fase de
jo da multidão, que deve passar por uma educação deres que destroem transição para uma nova sociedade, todavia, pro-
de seu conhecimento, pela criatividade, pelos afetos o planeta surge em gressivamente devemos nos afastar, ir alcançando
políticos inovadores, para que as decisões sobre o busca do acesso li- uma economia mista, heterogênea, com múltiplas
comum sejam tomadas por meio da participação-de- vre e compartilhado formas de propriedade estatal, pública, privada, in-
cisão democrática, e não por meio de representantes do comum e de sua cluindo vários tipos de empreendimentos. Acredito
eleitos (HARDT; NEGRI, 2014). autogestão; discutir, que existirá uma produção artística transformadora,
aprender, ensinar, mesmo pertencente ao sistema de arte. Será possível
Na esteira desses movimentos insurgentes globais, estudar, comunicar- fazer uma arte potencializando um discurso dentro
a ocupação massiva das ruas no Brasil em junho de se e participar das da lógica do capitalismo rentista e existirá outra arte
2013 fez parte de um processo mundial de resistên- ações: estas são al- fora dos padrões impostos que forçará o avanço e um
cia ao neoliberalismo, que se destacou com muita gumas das formas de diálogo cognitivo e criativo. Estamos num processo
evidência nos processos de construção de grandes ativismo, constituin- de constante contaminação e o entorno social consti-
obras para a Copa do Mundo. Compreender que esse do o eixo central da tui um lugar e “um potente repertório de habilidades
novo movimento faz parte de um processo global é produção de subjeti- no terreno dos afetos, das relações, dos costumes,
fundamental para compreender tanto os processos vidade numa ontolo- dos desejos, dos conhecimentos e cicuitos culturais”.
destituintes quanto os constituintes que estão sendo gia plural da política Num espaço comum as ideias são compartilhadas e
realizados no País desde junho de 2013. Isso também que é colocada em absorvidas de forma mais intensa, porque também
amplia a discussão para fora da simples lógica na- prática por meio do ocupam espaços em nossas vidas. Dessa forma o dis-
cional envolvendo partidos políticos definidos e go- encontro e da com- curso afetará os modos de pensamento, o que pode-
vernantes específicos. Perceber que, no Brasil, tanto posição de subjetivi- rá modificar os indivíduos, a maneira de interpretar,
os arquitetos e urbanistas quanto os políticos de es- dades militantes. viver e compreender o mundo, destruindo o bloqueio
querda contribuíram e contribuem para a realização criativo, promovendo o bem-estar social, com o uso
das Parcerias Público-Privadas e para a privatização É no território me- das combinações tecnológicas, formas de ligação à
dos bens comuns nos auxilia no entendimento das tropolitano que es- terra e dos hábitos do coração, oferecendo novas pos-
revoltas locais. sas lutas multitudi- sibilidades e ampliação das lutas pela libertação. A

42 43
nárias geram um contorno plural, singular e coletivo
de forma espacial, ganhando visibilidade e forçando
o Estado a repensar as formas burocráticas e pou-
co participativas que vêm imperando na construção
dos planos via parcerias público-privadas. Ou seja, a arte é, nas palavras de Adorno (1970,
produção do comum é o que já acontece no trabalho p.117), “protesto constitutivo contra
biopolítico imaterial do cotidiano, a metrópole é onde a pretensão à totalidade do discur-
esta biopotência ativa da multidão ganha intensida- sivo [...]”. Um protesto radical contra
de e dimensão, e, portanto, a constituição do comum todo o poder, inscrito não em seu
nos processos insurgentes contra o Estado-Capital conteúdo, mas em sua forma. É na
faz crescer novas formas de vida que vão se tornando forma que se encontra o verdadeiro
desejo de uma ampla gama de jovens e minorias até elemento de protesto. Para ter forças
então excluídas dos processos democráticos, tanto no contra uma sociedade gananciosa e
Brasil quanto no mundo. e surgem das conexões multitudinárias de concorrência, a arte precisa ser
redes-ruas. Atitudes antidemocráticas inútil em sua forma, uma inutilidade
Em meio a esse caldo biopolítico da multidão, vemos envolvendo a expropriação do comum, radical para resistir ao poder da falsa
também o cruzamento de grupos e sujeitos antes que até 2013 eram decisões políticas integração.
isolados e marginais ao processo das lutas urbanas tomadas somente pelo poder público,
organizadas, como: pixadores, funkeiros, rapeiros, agora vêm sendo sistematicamen- Natacha Rena (22 de outubro de 2014)
prostitutas, população de rua, skatistas, vendedo- te denunciadas ao Ministério Público. Bingo, Ricardo Macedo! Se pararmos
res ambulantes, estudantes. Essa mistura maluca, Mecanismos de participação popular, pra observar o modo como todo o es-
híbrida, biopolítica também vem assumindo formas até então abandonados pela sociedade paço vem sendo privatizado, não so-
inusitadas, que fogem ao simples ato de marchar en- de maneira geral como os espaços das mente as instituições (exemplo: BH
fileirados nas ruas guiados pelos carros de sons dos Câmaras do Legislativo, têm sido dia- hoje tem suas Escolas Municipais
sindicatos e partidos, mas se envolvem cada vez mais riamente ocupadas por movimentos so- geridas por uma empreiteira!), mas
numa estratégia tática afetiva, gerando heterotopias ciais que trazem debates fundamentais toda a cidade: praças, parques, ruas,
através de festas, carnavais, atos artísticos, inter- para a construção da cidade, envolven- passeios, espaços aéreos, etc. A lógi-
venções nas redes de forma ubíqua, fazendo cruzar o do principalmente o tema do transporte ca da privatização vem sendo incor-
espaço topológico das redes com o espaço físico das público via movimento Tarifa Zero, ou a porada e a arte tem grande potencial
ruas. Também surgem novas formas de construção Reforma Urbana e a luta pela moradia crítico para atuar também nesses
de novas subjetividades políticas que passam pelas via movimentos organizados e em ex- espaços, em grande escala. Eu sem-
assembleias populares em praças e parques, ou ocu- pansão como MLB, Brigadas Populares, pre penso no Coletivo Projetação (Rio)
pas que vão ocupar tanto o espaço público (do Estado) grupos de pesquisa das universidades em como eles vêm participando ativa-
quanto o espaço privado (do Mercado) através de e ativistas de diversos setores. Esse mente de todo esse processo. Em São
ações diretas de diversas ordens, gerando situações conjunto destituinte dos poderes tradi- Paulo também coletivos como Cobaia
territoriais autônomas (temporárias ou não). Mas não cionais se soma ao conjunto de ações e Frente 3 de fevereiro são exempla-
é somente através de atos curtos e de instantes de constituintes que vêm tomando forma e res nessas atuações junto de pretos
lutas que se veem crescer as resistências positivas, dimensão, como é o caso da ocupação e pobres, de ocupas de edifícios, etc.
diversas ações que envolvem o aparato jurídico e po- cultural Espaço Comum Luiz Estrela, Mas acho também que os artistas e
lítico oficial estão sendo construídas cotidianamente

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em Belo Horizonte (MG), que tem sido referência intelectuais precisam ocupar as instituições, participar de con-
para diversos grupos minoritários de loucos a femi- selhos, atuar politicamente também... Porque esses espaços
nistas, de sem teto à população de rua, de estudantes vazios deixados por todos nós são constantemente ocupados
a artistas. pelos que vivem disto: interesse financeiro. Precisamos reto-
mar o gosto pela política dentro e fora da arte. Na vida coti-
A multidão, na defesa do comum, performa novos diana e principalmente atuando nos processos constituintes
modos de vida e questiona, com ênfase poética e po- de novas formas de vida. Isso requer mais articulação e um
lítica, a propriedade privada. Sabe-se que as formas tempo para isto...
de representação estão em crise, mas é a democra-
cia gerida pelo Estado-Capital que mais sofre com a Ricardo Macêdo (22 de outubro de 2014)
radicalidade das novas lutas, porque é nela que se Eu gostaria muito de ter de volta aquilo que um dia foi meu:
escondem todas as redes de perversidades do poder as áreas de recreação na cidade, praças com eventos sem
instituído (governos com seus legislativos, executi- grades, etc. Acho que o texto sensibiliza o olhar nesse tocante,
vos e judiciários, mercado, mídias, igrejas, sindicatos, estamos a viver uma privatização do que deveria ser público,
etc.). A propriedade privada é a forma mais evidente às vezes sem perceber. Nesse caso, a experiência também se
da democracia burguesa e foi criada para garantir a torna objeto de consumo. Gilles Lipovetsky diz que estamos
eternidade das elites no poder. O que se explora é a vivendo uma mercantilização da experiência. Reconstruir a
vida, a vida dos pobres, que somos, em tempos pós- metrópole nesse sentido mais coletivo e geral, sem centro,
modernos, todos nós, os precarizados. Acontece que parece ir para além dos já conhecidos discursos primitivistas
é nos processos colaborativos em rede que essa nova (John Zerzan), niilistas (anarco-punks, cyber punks), apocalíp-
classe precariada avança insurgente, exigindo demo- ticos e distópicos (K. DicK, J. Baudrillard), ninjas (H. Bey) e ir
cracia real e a construção do comum urbano, livre do numa outra direção, porque ampara todos eles e muitos outros,
Estado e do mercado. mas não fecha em um só. Acho que esse é um dos sentidos das
conexões que formam outras conexões, como proposto pelo
Se desde Seattle, mas, com muita intensidade, desde autor dentro da ideia de multitude. Tô achando bem legal o
a crise econômica de 2008 nos EUA e na Europa, vive- estudo aqui com vocês, contudo, ainda caminhando e tentando
mos uma crescente revolta global conectada contra assimilar as concepções.
os processos de expropriação do comum em diversos
níveis, experimentamos neste último ano no Brasil: Natacha Rena (20 de outubro de 2014)
do Parque Gezi, em Istambul, passando pela revolta Vou fazer um documento aqui pra gente ir cartografando junto
em Gamonal, na Espanha, pelo movimento Fica Ficus, exemplos de artistas e projetos citados por todos nós para que
em Belo Horizonte, pelo Parque Cocó, em Fortaleza, possamos ter este conjunto de referências para avançarmos
ou pelo Parque Augusta, em São Paulo, vemos surgir no debate. O conhecimento livre, a ideia de autoria comparti-
uma multidão de singularidades e grupos artísticos, lhada, o copyleft, processos mais horizontais, configurados co-
de ativistas, moradores locais e vizinhos, população laborativamente, podem, sim, auxiliar na constituição de novos
de rua e comerciantes interessados em recuperar modos de vida e de produzir arte e cultura. Empoderamento do
o debate político sobre a cidade e a construção do outro via estratégias (institucionais públicas ou privadas e polí-
ambiente que pertence às suas vidas cotidianas. A ticas públicas) e táticas (envolvendo processos multitudinários)
democracia representativa já não mais representa o acontecem em diversos campos do conhecimento, mas a arte
cidadão comum e vem deixando de lado os interesses possui uma potência de atuação subjetivante, construtora de

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de todos para garantir o interesse do mercado que militantes de todas as ordens, idosos, comerciantes,
financia o Estado e suas campanhas políticas que ga- gays, lésbicas, bis, trans, queers, e muitas outras ca-
rantem a permanência de grupos no poder. Contudo, tegorias e outros gêneros que representam uma nova
a sociedade se rebela. O espírito de multidão que en- sociedade ativa e plural.
cara o Império de frente e exige democracia real e,
em muitos casos, o direito de ter seus bens comuns Fora da lógica dos movimentos viciados da esquer-
administrados autonomamente fazem parte dessas da clássica, que acredita na ideia unitária de povo, e
novas organizações ativistas que trazem o frescor da fora da lógica do mercado, que só pensa nos cidadãos
coleção subjetiva das diferenças e a pauta ampliada como massa, a multidão é plural e atua no trabalho
das lutas. vivo e imaterial produzido em rede coletivamente e
criativamente. Portanto, estancar a força motriz que
Seria também interessante notar que esses movi- move esses movimentos não vai ser tarefa fácil para
mentos são horizontais, sem lideranças definidas, e o Estado-Capital, já que o que os move é o amor e o
possuem uma dinâmica de articulação, que, por ser afeto e o próprio sentido ativo da vida.
rizomática, é impossível de cooptar. Vemos o Estado-
Capital na tentativa desesperada de se aproximar des-
ses movimentos para capturar a sua dinâmica que se
recusa a pertencer à lógica do Aparelho de Estado, afetos que poderiam se expandir na vida cotidiana, não per-
pois são máquinas de guerra configuradas por maltas tencendo apenas a um círculo fechado envolvido no sistema
híbridas. A autonomia e a autogestão é tudo o que o da arte. Essa é uma grande questão, né? Como expandir a
Estado-Capital não pode suportar. bipotência ativadora de novos desejos pra toda a sociedade?
Como fazer com que essa sensibilidade crítica, corporal,
A construção da subjetividade via mecanismos oficiais afetiva da arte possa ser um modo de constituir um mun-
do poder imperial (grandes mídias) já não convence do mais democrático? Muitos artistas em todo o mundo
mais a sociedade com tanta facilidade, e assistimos vêm tentando construir novas plataformas de trabalho fora
a uma ampliação dos campos de luta pela constru- desse sistema... Mapear esses exemplos pode realmente
ção do comum, seja nas ruas, seja nas redes. Não nos ajudar a pensar melhor sobre isso. Fico imaginando
se trata somente do território verde dos parques e também que muitos de vocês têm razão, não podemos di-
praças, mas também da exigência de função social zer de forma simplificada que se algum trabalho de arte
para a propriedade e o direito de ir e vir via tarifa zero está inserido no sistema da arte (Estatal ou mercadológico)
nos transportes, direito de morar. Pode-se detectar perde sua potência tranformadora. E, pra isso, penso que
essa demanda nos movimentos pró-habitação; a for- pode ser interessante criarmos indicadores qualitativos que
ça política dos movimentos pela mobilidade; a força possam dizer da multitudinariedade da produção artística
estética e afetiva dos movimentos de ocupas culturais. em termos de intensidade; de que projetos, obras, ações
Sabemos que esse é um movimento muito maior que sejam mais ou menos intensas dependendo do conjunto de
possui relações com o fim do esplendor do capitalis- qualidades multitudinárias que eles tenham. Vamos pensar
mo neoliberal e a chegada de um novo mundo biopo- juntos nesses indicadores qualitativos? Bom, aqui inician-
tente, mundo no qual o poder sobre a vida é substituí- do um resumo de alguns processos já citados por colegas
do pelo poder da vida. Esses novos espaços do comum aqui e outros que já podemos antecipar de outros textos e
são habitados por jovens, crianças, artistas, ativistas, espaços de debate:

48 49
Referências Presente
Huit Facettes (África),
FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São Ala Plástica (Argentina)
Paulo: Editora n-1, 2013. Bijari (Brasil)
HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, Kaprow
2001. Guerrilla Girls
Frozen (Chris Buck, Jennifer Lee, 2013)
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Rio de Janeiro: Paulo Bruscky
Record, 2005.
 _________
HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El projecto de Gordon Matta-Clark
una revolución del común. Madrid: Akai, 2009. Hélio Oiticica
Lygia Clark
HARDT, M.; NEGRI, A. Declaração. Isto não é um ma- Hans Haacke
nifesto. São Paulo: Editora n-1, 2014.
HARVEY, D. O neoliberalismo. História e implicações. Natacha Rena (20 de outubro de 2014)
São Paulo: Edições Loyola, 2012. Outras questões como o sistema da arte indissociado da
lógica do mercado talvez não exclua a potência de projetos
LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São
e ações artísticas que trazem críticas, temas, pautas e pro-
Paulo: Editora n-1, 2014.
postas constituintes. Intuo que é possível, sim, transformar
LAZZARATO, M. Por una política menor. de dentro dos sistemas, ocupar as instituições com novas
Acontecimiento y política en las sociedades de control. propostas e práticas. Na verdade, se pensarmos bem, a
Madrid: Traficantes de sueños, 2006. democracia deveria ser um tema constante em todas as
disciplinas, em toda a vida, e a forma como as instituições
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da
agem são, sim, direcionadas pelo capital que investe todo
multidão. In: DIAS, B.; NEVES, J. (org.). A política dos
o seu tempo e grande parte do seu recurso produzindo de-
muitos. Povo, Classes e Multidão. Lisboa: Tinta da
sejos e processos de expropriação do comum. Mas, pode-
China, 2010.
mos também participar mais ativamente dos processos e
PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. das instituições. Sempre me pergunto o quanto todos nós
Iluminuras: São Paulo, 2003. fazemos para disputar sentido com o Estado-Capital. Será
que não poderíamos ser muito mais ativos e atuarmos mais
RENA, Natacha; BERQUÓ, Paula. As Ocupações cul-
inventivamente, deslocando, desviando e constituindo novos
turais em BH: biopotência estética e performativa da
mundos, tanto politicamente participando de debates sobre
multidão. In: CAVA, Bruno; COCCO, Giuseppe. Amanhã
políticas públicas quanto autonomamente, atuando em rede
vai ser maior. São Paulo: Annablume, 2014.
e construindo novas formas biopotentes pra atuar junto ao
RENA, N. Neves-Lacerda declara guerra à multidão. Rio mundo?
de Janeiro, 30 de abril de 2013. Disponível em: http://
uninomade.net/tenda/neves-lacerda-declara-guerra
-a-multidao/. Acesso em: 06 dez. 2013. Thaís Mor (19 de outubro de 2014)
A arte deve potencializar e gerar uma reação dos padrões
neoliberais do Estado-Capital, do Império. Talvez a Arte
Multitudinária seja essa nova “plataforma” de criar contex-

50 51
tos biopolíticos com uma biopotência autônoma. Essa nova fase ros, Peter Pál Pelbart). Nessa editora já existem muitos livros
retoma conceitos simplistas afetivos e simplistas da vida. Vejo importantes para esse debate mais conceitual sobre arte e po-
um pouco como o movimento dos anos 1960/70, dos movimen- lítica. Citei isso num post anterior, mas, repetindo aqui, temos
tos artísticos de Hélio Oiticica e outros que criavam encontros no Brasil um grupo de investigadores da Universidade Nômade
“de vida” em praças e locais públicos, onde relações sociais, que vem trabalhando esses conceitos já incorporados de ques-
afetos e criatividade criavam essa biopotência”. A “antiarte”, tões que são mais próprias ao nosso contexto local brasileiro:
proposta com que Oiticica pretendeu radicalizar a situação, é http://uninomade.net/lugarcomum/. Há um texto escrito por
exemplar. Não visava à criação de um “mundo estético”, pela mim, pela Nanda Chagas e pela Paula Bruzzi nessa revista
aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano, nem que faz um apanhado mais detalhado de temas envolvendo o
simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os urbanismo e seus processos gentrificadores e também as ma-
participantes, “proporcionando-lhes proposições abertas ao nifestações estéticas biopotentes ocorridas em Belo Horizonte
seu exercício imaginativo”, visando a “desalienar o indivíduo”, nos últimos anos:
para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”.
Apontando para outra inscrição do estético, Oiticica visualiza http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111404140911Bio-
a arte como intervenção cultural e o artista como “motivador pol%C3%ADticas%20espaciais%20gentrificado ras%20
para a criação” (citação retirada do texto: Inconformismo es- e%20as%20resistências%20estéticas%20biopotentes%20
tético, inconformismo social, Hélio Oiticica - por Celso Furtado). -%20Natacha%20Rena%20e%20Paula%20Berqu ó%20e%20
Apoderar-se das próprias possibilidades empreendedoras do Fernanda%20Chagas.pdf
neoliberalismo com um pensamento coletivo, estruturado, es-
tético e conscientizador multitudinário. Questionar a gentrifi- Natacha Rena (18 de outubro de 2014)
cação e essa “descontrução de uma metrópole bioconstrutiva Concordo com quem respondeu que sim a esse primeiro ques-
do pensamento”. Acredito numa arte biopotente organizada. tionamento! Acredito que seja possível deslocar/desviar o sta-
A estética X falta de planejamento urbano, o encontro X falta tus quo normatizante que envolve as capturas de subjetividade
do espaço coletivo, os afetos e relações sociais X estrutura do pelo Estado-Capital, produzindo novas subjetividades estéticas
pensamento neoliberalista = contra-Império. políticas e transformadoras. Artistas, coletivos, curadores e
até mesmo eventos de grande porte como as bienais estão
Natacha Rena (18 de outubro de 2014) ampliando esse debate que relaciona arte e política em todo
Ricardo Macedo, você tem razão, realmente estamos aqui o mundo. Acho importante citar o exemplo de duas Bienais de
adentrando num campo teórico que envolve alguns pensadores São Paulo que anteciparam (e a arte quase sempre antecipa)
como Foucault, Deleuze e Guattari, Hardt e Negri, Lazzarato, temas multitudinários que surgem e desaparecem desde 1968:
dentre outros. Hardt e Negri possuem uma trilogia importan- Um e/entre Outro/s, curadoria de Paulo Herkenhoff (http://is-
tíssima para a compreensão da nossa situação contempo- suu.com/bienal/docs/name423574) e também a Bienal Como
rânea: Império, Multidão e Commonwealth. Sugiro, pra quem viver junto, organização de Adriano Pedrosa e Lisette Lagnado
quer começar a adentrar nesse universo teórico, a leitura do (http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11068/Como-
livro Multidão, pois é simples e direto e faz uma boa análise viver-junto---Catálogo-da-27a-Bienal-de-São-Paulo.as px). A
conjuntural do capitalismo atual numa primeira parte, depois primeira consegue trazer e apresentar temas e obras poten-
descreve e caracteriza o conceito de multidão, e numa terceira tes, já a segunda tem um caráter mais conceitual e político
parte fala sobre democracia real. Outro bom livro, pequeno e no sentido de revelar novas práticas coletivas e colaborativas
muito direto dos dois autores, é o Declaração, da Editora n-1 (como viver juntos?) envolvendo grupos e artistas nacionais
(que curiosamente é de um dos grandes pensadores brasilei- e internacionais em residências artísticas pelo Brasil afora,

52 53
gerando uma relação mais fecunda entre a produção da arte e Bruno Dorneles (16 de outubro de 2014)
as políticas envolvendo situações singulares brasileiras (pas- O que nos leva a perguntar: Quem imbui na cabeça das novas
sando pelas comunidades ribeirinhas no Amazonas ou favelas gerações mais ideais feministas, as já citadas Guerrilla Girls
paulistas), além de criar um ambiente para um debate teórico ou Frozen (BUCK, Chris; LEE, Jennifer, 2013)? A dilatação das
importantíssimo para qualificar as ações que envolvem o tema nossas ideias sobre biopotência e todas as micropolíticas que
transversal entre arte, política e vida. No caso dos coletivos, a ela se associam tendem a se ligar a essa ordem de mensa-
como citaram alguns de vocês, estes vêm se multiplicando gem recebida como mensagem dada, conotação via denotação.
em todo o mundo, o que já demonstra como o fazer-junto, co- Acreditando que essa arte institucionalizada, parte dela, se
laborativamente, é uma tendência ao mesmo tempo produzi- preocupa em propor ação política, seria contraditório (para
da pela precarização e por processos próprios do capitalismo dizer o mínimo) presumir que artista e público dividem as mes-
cognitivo e como táticas desejantes já entranhadas em nos- mas perspectivas de vida, tanto quanto as mesmas ferramen-
sa ontologia multitudinária. Acho interessante pensar mais tas e habilidades para interpretá-las, cruzá-las e armazená-las
uma vez nos anos 1960 e 70, décadas nas quais artistas como de forma a fazer reverberar esta mensagem para fora do espa-
Gordon-Matta-Clark já desenvolviam uma infinidade de traba- ço museológico em que se encontra. Dito isso - a dependência
lhos introduzindo fortes críticas aos processos de gentrificação da mensagem pelo sistema que a legitimiza e a valoriza e o
territorial, tanto em Nova Iorque (ver trabalhos como: Blowout, fato de que nenhuma mensagem comunica simplesmente o
Splitting) como em Paris com a intervenção Interseção Cônica/ que pretende comunicar - é de se esperar que qualquer tenta-
Conical Intersect (http://vimeo.com/10617205), realizada ao lado tiva de produção artística biopotente se veja, impreterivelmen-
do Museu Pompidou (projeto de arquitetura realizado clara- te, modificada no ato de seu consumo; seja pela reformulação
mente para gentrifcar a região do Les Halle, território central que sofre pelas vontades daqueles que adquirem direito sobre
da cidade habitado por afrodescendentes). Ver texto de apre- sua exibição, seja por aqueles que a podem consumir.
sentação de uma das melhores exposições que tive a chance
de visitar no MAM sobre esse artista americano: http://mam. Maria Caram Santos de Oliveira (14 de outubro de 2014)
org.br/exposicao/gordon-matta-clark-desfazer-o-espaco/. É Acredito que possamos pensar numa arte crítica mesmo den-
claro que nesse caminho, já apontado no texto de apresentação tro das galerias. Um exemplo interessante para mim é Hélio
dessa exposição de Matta-Clark no MAM citada anteriormente, Oiticica. Começando como pintor, quanto mais questionadora
temos Hélio Oiticica, que já trazia naquele momento a potên- e urbana se tornou a obra de Hélio, mais “invendável” e “in-
cia da pobreza como vetor de criação de novos mundos, mais colecionável” ela foi se tornando, uma vez que as peças se
sensíveis. Outros exemplos e um debate mais profundo sobre o tornaram maiores, mais interativas, mais questionadoras e
tema aqui tratado podem também ser lidos no artigo Processos intransportáveis. As obras de Oiticica, mesmo em galerias,
criativos biopotentes constituindo novas possibilidades de pro- questionam os limites do espaço público, do coletivo X indivi-
dução do comum no território urbano, meu e da Paula Bruzzi, dual. Além disso, dentro do trabalho do artista é sempre pos-
também professora deste curso. Esse artigo foi escrito para a sível trazer a reflexão sobre o artista e o real executor da obra.
revista Lugar Comum, também outra fonte de pensamento ético Outro exemplo interessante é Hans Haacke, artista alemão que,
e estático envolvendo o tema do comum como projeto multidão em 1971, na obra Shapolsky et al. Manhattan Real Estate Holdings,
(http://uninomade.net/lugarcomum/) e deve ser publicado num A Real Time Social System, documentou e trouxe a público do-
próximo número da revista. cumentos que provavam o envolvimento de um empresário
com a especulaçao imobiliária na maior favela nova-iorquina. A
exposição que aconteceria no Solomon R. Guggehein Museum

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foi cancelada seis semanas antes de seu início e o curador que Bishop. Não me refiro à instrumentalização do Outro, mas ao
a selecionou, demitido. empoderamento do Outro; instrumentalizar é despontenciali-
zar o conhecimento do Outro e cair no paradigma hierárquico
Ricardo De Cristófaro (14 de outubro de 2014) (isso pode ser acessado nos textos de Grant Kester – The one
Gostei do texto, Natacha, principalmente quando aborda, faz and many, ou de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano).
um diagnóstico e analisa a situação social e política contem- Contudo, como propor mudanças de paradigma se aquilo que
porânea (claramente sentida pelos cidadãos das grandes ci- propomos ao Outro não é evidenciado em nossa prática diária?
dades). Entretanto, acho que o texto pouco aborda a maneira Não falo de autoajuda (risos), não é isto! É poder nos rever
como os artistas estão respondendo a essas situações. Mas como pessoas que se esforçam por ser educadores ou artis-
não vejo isso como um problema, uma vez que muitas das tas críticos da realidade, despertando isto nos participantes.
afirmações são polêmicas e provocadoras, levando a refle- Esse despertamento tem ocorrido via lúdico (se lembrarmos
xões importantes que precisam ser levadas em consideração, das atividades de Kaprow ou das participações nas obras de
quando nos propomos a pensar o que seria efetivamente uma Lygia Clark), e parece estar sendo entendido como dispositivos
produção artística com “teor político” - não desconsideran- (estratégia e táticas) novos para ativar a participação crítica e
do a possibilidade de pensar a “dimensão política” que pode menos fria na obra convivial. Acho que isso quebra o valor das
existir em qualquer proposição artística. Eu me refiro especi- obras mercadológicas dentro do sistema (ou, por um lado mais
ficamente a proposições artísticas com intenções, motivações perverso, cria uma nova praia pra curadoria: mercantilização
e estratégias que perpassam questões de identidade e força das obras conviviais, mercantilização do outro, isto é horrível!),
política dos movimentos sociais. Nesse sentido acredito que pois se negam a ser apenas obras, e passam a ser vivências
o “mercado” e, muitas vezes, a necessidade de sobrevivência que transformam o Outro na ação, no processo da oficina ou
dos artistas e grupos de artistas irão corromper a capacidade processo colaborativo. Contudo, se isso fica apenas no texto
de “transformação”. Considero que você tem razão ao citar o (pois agora é moda) e no discurso, acaba ocorrendo um simu-
método cartográfico “como um dos meios para produção ar- lacro, um pastiche, como ocorre nas proposições encabeçadas
tística enquanto resistência positiva, primeira e ativadora de pelo Nicolas Bourriaud, uma teatralização do convívio sem
afetos revolucionários”. Também concordo com seu diagnós- participação política e esforço para mudar a própria mentali-
tico que coloca a cidade como “lugar no qual a biopolítica das dade (Quem ensinará aos educadores, Edgar Morin?). Enfim,
resistências primeiras são potentes, possibilitando encontros desculpem a enxurrada de palavras e os cacoetes acadêmicos,
que, apesar de todas as estratégias para evitá-los, se dão com mas isto tem tomado muito do meu tempo. Já fui artista uni-
maior ênfase em processos constantes de contaminação”. Na camente de galeria um dia e hoje procuro as brechas desse
cidade contemporânea essa “cartografia” não é mais topográ- sistema para agir dentro dele, ainda não sabendo bem como
fica e, sim, topológica. fazer isto...

Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014) QUESTÃO 2


Em termos mais práticos, o trabalho de grupos que não se Não seria necessário às lutas uma produção estética como ação
configuram nem como artistas e nem ativistas, mas estão na fundamental na disputa pelas subjetividades? Onde estão e quais
fronteira, como Huit Facettes (África), Ala Plástica (Argentina) são as manifestações estéticas e artísticas que surgiram nos últi-
e Bijari (Brasil), que propõem oficinas e workshops e têm na si- mos anos e que fazem parte de um movimento maior, glocal, de
tuação ou no acontecimento estopins para processos artísticos produção de novas subjetividades, multitudinárias, atuando no
críticos, que eu entendo como obras de arte contemporâneas, território e produzindo novos espaços mais democráticos?
no fim das contas. A situação hoje é obra, como nos diz a Claire

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Fred Triani (31 de outubro de 2014) ciadas pela internet, são criadas novas formas de se relacio-
Já que várias pessoas falaram das ocupas, do Piolho, guerrilla nar com espaços comuns, amplia-se o acesso e se exige a
girl, vou citar o grupo Voinahttps://www.youtube.com/watch?- constante renovação e experimentação nas lutas multidinárias.
v=pUu5GkXiOfM. Este projeto aqui também é interessante: Exemplos disso, como já citado por aqui: o Espaço Comum Luiz
http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html Estrela, a Praia da Estação, entre outros. Destaco também
o movimento Tarifa Zero BH, que apostou em uma estética
Reginaldo Luiz Cardoso (26 de outubro de 2014) diferente das que são geralmente realizadas nas expressões
Os movimentos multitudinais, embora presentes desde sempre artísticas/políticas por movimentos tradicionais (ou não) de
nas vanguardas modernas, foram inaugurados simbolicamente esquerda. Mas confesso minha inquietação para o pouco que
em 30 de novembro de 1999, na cidade de Seattle. Todos eles isso é discutido e trabalho em certos movimentos, coletivos
apontam, sem dúvida alguma, para novas práticas da subje- artísticos, etc. Considero fundamental uma produção estética
tividade e, consequentemente, da política. São formas de ati- estritamente ligada com os objetivos das lutas. Há um poder
vismo que propôem uma redefinição das relações de poder forte e transformador nisso, que ainda é pouco explorado ou
no território, que é o que, afinal de contas, define o território. não é dada tanta atenção.
Inúmeras dessas práticas foram citadas aqui pelos colegas.
Esses momentos de ação contribuem à criação momentânea Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
de situações em que tudo parece possível, em que a ordem Respondendo a muitos dos comentários que falam da arte ur-
balança, em que a cidade parece reapropriada, “liberada” em bana como essa nova arte ligada à cidade, acho que ainda há
alguns pontos. Essas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) são um caminho pra fazer. Explico: sempre entendi o graffiti (pixa-
muito importantes: trata-se de toda uma ação sobre o terri- ção no Brasil) como arte involuntária, sem intenção artística,
tório, sobre as possibilidades que ela deixa entrever às pes- mas com uma carga importante de estética. Quando era mais
soas - o fato de que outra coisa é possível, de que o cotidano novo já fui graffitero na Espanha, e me lembro como passava
vai além da fatalidade. Esses instantes de exaltação - quando tardes e tardes tentando melhorar minha assinatura pra ela
o mundo todo parece desmoronar - estão certamente deslo- ser a melhor da minha cidade. Inclusive hoje, quando ando pela
cados em relação à realidade, que em geral logo restabelece rua, vou vendo os diferentes nomes escritos nas paredes e vou
a ordem, mas são indispensáveis e imprescindíveis (portanto, analisando. Dá pra ver quem está começando, quem já tem um
não concordo quando a Natacha diz que a dinâmica desses mo- tempo no mundo do graffiti, quem se preocupa mais pelo lugar
vimentos “é impossível de cooptar”). Porém, são as pequenas (por exemplo, na parte alta dos prédios) do que pela estética.
ocasiões que dinamizam, dando essa impressão de que nada Mas, no final das contas, a porcentagem de pixadores que têm
será mais como antes, podendo ser catalisadoras de energias, uma intenção artística na ação de pixar é pequena. Eu acho que
pontos de partida de iniciativas, de criações e de ações. Nos a arte urbana tem que pegar todo o desenvolvimento crítico
muros de Seattle lia-se: “We are winning!”. feito pelos artistas de Land Art, mudando essa ideologia até as
cidades. Richard Long, em obras como A line made by walking,
Cristiano Araújo (23 de outubro de 2014) transforma o ato de caminhar numa obra de arte, levar isto
Movimentos que subvertem (ou pelo menos tentam) institui- até as cidades tem como resultado ações como as derivas fei-
ções e o mercado da arte, que segrega e impõe limites, con- tas pelos situacionistas, ou, mais recentemente, o movimento
sequentemente produzem espaços mais democráticos. A ex- Jane’s Walk, que organiza passeios pelas cidades mantendo viva
pressão artistica é, por si só, política. A produção da estética a luta de Jane Jacobs pra usar o espaço público. Além disso,
está, sem dúvida, relacionada a essa potência na disputa pelas na Espanha vem aparecendo a cada ano um monte de propos-
subjetividades, porém não mais como antes. Talvez influen- tas de novos coletivos. Arquitecturas Colectivas foi criada em

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2007 para dar suporte a alguns coletivos que trabalhavam com ancorado no afeto que o une aos outros de modo mais genuíno
metodologias e ideias parecidas, mas, depois do início da crise, do que qualquer ideal ou interesse comum. A partir disso ele
o número de coletivos cresceu exponencialmente. Propostas pode, de um modo mais descomplicado, entrar no fluxo cita-
como LaFábrika detodalavida estão criando um espaço para do pela Júlia Nascimento, agrupando-se em rede, forman-
práticas abertas e o estudo do bem comum num âmbito rural do novas redes a partir do encontro desses agrupamentos, e
de uma das regiões mais pobres da Espanha, concretamente produzindo então, “fora da guerra”, novas subjetividades que
em Los Santos de Maimona. A facilidade que oferece a internet não têm mais o tempo e a energia para cultivar qualquer pro-
hoje permite estar ligado com o mundo, embora seu projeto cesso de persuasão, além daquele engajamento espontâneo
esteja num entorno afastado das metrópoles. Algumas res- que surge pela vitalidade que a própria rede emana para fora
postas da anterior pergunta falaram dos problemas de uma de seus domínios.
cidade pequena. Eu não acho que de fato seja um problema,
não agora, com a facilidade e a velocidade de conexão com Taís Freire de Andrade Clark (23 de outubro de 2014)
qualquer parte do mundo. Acredito que não só uma forma alternativa de produção esté-
tica é fundamental para dar voz às lutas, como é natural que
João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014) isto ocorra, já que a arte se configura como um ótimo meio
A arte possui uma potência - manifesta e, principalmente, de diálogo. Em Belo Horizonte, nos últimos anos, surgiu um
latente - de transformar nossa experiência - para lembrar movimento muito representativo nesse sentido que foi o Duelo
Gilbert Simondon, estamos em um constante processo de de MCs que ocorria toda sexta-feira embaixo do viaduto de
transducção, ou transformação de sistema, em diversos ní- Santa Tereza. No Duelo, uma forma de disputa consiste na
veis, através da troca de vetores informacionais. Assim, a arte utilização de recursos de autoafirmação para ganhar adesão
exerce, no mundo contemporâneo, um papel importantíssimo do público. O outro tipo de duelo é o temático, no qual os MCs
nesse constante movimento de reinvenção da vida. Através devem desenvolver rimas que se relacionam a um determi-
dela nós ressignificamos nosso cotidiano criativamente, trans- nado tema sorteado. Aqui assuntos que envolvem questões
formamos estética e discursivamente nosso eu e nosso am- sociais são abordados e expressos pelo viés dos MCs, sempre
biente - no caso, a cidade. ressaltando a cultura Hip Hop. Além disso, durante o Duelo
de MCs, há também a prática do Street Dance e do Graffiti.
Carlos Dalla Bernardina (23 de outubro de 2014) Apesar de não acontecer mais semanalmente (já que o viaduto
Acredito num caminho mais afirmativo e criativo, baseado no de Santa Tereza foi fechado para uma reforma-surpresa), o
afeto, no amor, que sempre foi e sempre será o grande tabu Duelo atingiu seu grande objetivo, que era levar ações da cul-
da sociedade. Pessoas sempre foram assassinadas por pra- tura Hip Hop de Belo Horizonte para a rua. Mas, mais do que
ticarem a inteligência afetiva, o amor, em suas formas mais isso, ele configura um movimento de resistência do Coletivo
radicais. Esse caminho, para mim, envolve o que o Bernardo Família de Rua, que, através da transformação de um espaço
colocou lindamente em seu texto, “a disposição em arriscar a público esquecido em um grande palco, se transformou em
própria identidade para podermos escutar o outro e comunicar um marco de resistência para as juventudes de Belo Horizonte,
efetivamente, pela arte ou não”. Porque nesse caminho criati- mostrando que a construção de espaços mais democráticos
vo e carregado de inteligência afetiva o ser humano sente-se através de uma produção cultural alternativa é, sim, possível.
nutrido e forte o suficiente para não precisar valer-se dos mo- Para mais informações sobre o Duelo de MCs: https://twitter.
delos de identidade herdados e impostos pelo meio social... Ele com/familiaderua; http://duelodemcs.blogspot.com.br/; http://
tem uma relação criativa com a construção da própria identi- variavel5.com.br/blog/caps-lock-duelo-de-mcs/.
dade... E ele pode fazer isso sem surtar ou deprimir, pois está

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Victor Hugo Tozarin dos Santos (23 de outubro de 2014) simplista, ao reduzir-nos a categorias (povo, burguesia), a arte
Como manifestações estéticas e artisticas atuais pode-se citar faz-se opressora ao insistir na exclusividade do belo, da erudi-
a Ocupação Luiz Estrela, que gerou como resultado o Espaço ção e em uma língua reservada. As lutas não necessitam so-
Comum Luiz Estrela, um lugar público, aberto a todos, que mente de uma estética para nos dar mais alento. As lutas ne-
oferece oficinas, exposições, apresentações, debates e muitas cessitam de uma estética que seja flexível, moldável, que faça
outras interações artístico-político-sociais, trazendo à tona a sentido às pessoas. E aqui entram a selvageria, a rugosidade,
democratização da arte e a dominância de um novo uso, mais a aspereza das subjetividades como elas estiverem sendo, sem
pertinentes à comunidade local, a edifícios abandonados pelo ter que caber em moldes. Não se trata de criar novos fetiches
governo. Pode-se citar também o Occupy Wall Street, um mo- da forma, pois é exatamente na estética que o valor da mer-
vimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, cadoria é cultuado. Fica marcada a produção estética de um
a corrupção, a especulação imobiliária indevida, proveniente da shopping, onde rolezinhos devem ser proibidos, diante da obra
influência gananciosa das grandes empresas. Tal movimento do Paulo Nazareth, artista mineiro que andou a pé da América
entra em concordância com a lógica de que a multidão, quando Latina até Nova Iorque e tem o cabelo crespo. Vejo uma cons-
em rede, através de táticas estéticas, atua na discussão políti- telação guerreira que parte das vanguardas no início do século
ca e ataca o capitalismo contemporâneo. XX, passando pelos anos 1960 e 1970, chegando hoje em um pú-
blico, um espectador, um leitor que pode ecoar ou mesmo ser
Claudia Laport Borges (22 de outubro de 2014) ator do que ele vê. Desde nossos antepassados que não deve-
Movimentos como o RAP (que envolvem aí dança de rua, por mos mais explicações na língua de quem nos oprime. Surgem
exemplo), valorização de festas e danças populares (maraca- diversas vozes: os negros, os índios, os LGBTs, as mulheres, os
tu, samba de roda, dança do coco, etc.); grafites; poesias em usuários de drogas, as novas e as antigas espiritualidades. A
espaços públicos; tricô nas ruas; democratização de livros/ estética aí é fundamental, pois o silêncio recai historicamente
conhecimento, como as paradas culturais (em Brasília várias sobre essas vozes assinalando-as justamente pela forma, pela
paradas de ônibus possuem livros que podem ser emprestados cor, pelo modo, pelo espaço que produz subjetividades, modos
- esta é uma ação promovida pelo Açougue Cultural T-Bone); de vida. Na dança contemporânea não temos mais o bailarino
estátuas vivas; circo no trânsito; le parkour, entre outros. Na ou a bailarina como seres superiores, fechados em mundos
minha cidade, por exemplo, os espaços públicos, geralmente etéreos inatingíveis. Pede-se que façamos a nossa dança, com
utilizados pelo governo, hoje são “invadidos” por atividades o nosso jeito. Podemos encontrar uma forma própria de mover
culturais gratuitas, promovidas ou não pelo governo distrital. O sem a viagem de que é preciso ser magro, branco e perfeito,
Museu da República, por exemplo, localizado na Esplanada dos e sem a viagem de que o corpo tem que caber num espelho. O
Ministérios, é ponto de encontro de skatistas, rappers, shows corpo tem a oportunidade de se fazer corpo e de conviver com
de bandas da cidade, etc. Ou seja: a arte tomando conta de outros que se fazem corpos à sua maneira. Não está pronto
espaços que, no dia a dia, são direcionados às questões pura- em um espelho do ego ou da identidade tão bem construída
mente políticas e econômicas. que não possa se deformar. O ser dançante vai para os es-
paços urbanos gentrificados, para os prédios abandonados,
Bernardo Romagnoli Bethonico (21 de outubro de 2014) para a cidade onde as pessoas não têm corpo e não podem se
A produção estética das lutas viraliza desejos de outros mun- olhar. O coletivo Centro em Movimento (c.e.m), de Lisboa, está
dos. Coloca os temas de reivindicação política na ordem do dia aprofundando esse trabalho de criar outros corpos para estar
ao mesmo tempo que aponta para lá deles, para modos de vida na cidade, partindo da união entre quem dança e quem não
e para o coração, para o singular como ponto de enunciação. dança. Torna-se possível arriscar a própria identidade. Sair do
Da mesma forma como a antiga esquerda torna-se redutora, próprio script. E aí entram também a ética e a solidariedade

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com formas de vida distantes, inclusive práticas que não têm a com diversas ações que deram visibilidade às pautas principais
ver com o campo da arte. Eu me lembro da foto “To Change Art de diversas ocupações culturais, realizando inclusive links en-
Destroy Ego” (1965), de Ben Vautier (http://tongueoftheworld. tre os movimentos multitudinários de BH, SP, Rio e Brasília
tumblr.com/post/55264410691/to-change-art-destroy-ego- através do Bandeirão “Unfair Players”. Vale a pena dar uma
1965-by-ben-vautier). Para um mundo mais democrático, onde passeada pela fanpage desse grupo.
a multidão seja capaz de produzir subjetividades, é essencial
que estejamos dispostos a arriscar a própria identidade. Só as- Desde os corações que integraram artisticamente a ocupação
sim podemos escutar o outro e comunicar efetivamente, pela da Câmara Municipal de BH até a intervenção que eles utiliza-
arte ou não. ram no MAR (museu que fez parte de um dos mais perversos
projetos de gentrificação ocorridos no Brasil nos últimos tem-
Natacha Rena (21 de outubro de 2014) pos - https://www.facebook.com/pages/Nós-Temporários/5
Pensando na importância da estética como dispositivo afetivo 05720246182481?fref=tsE), a atuação dos banhistas junto aos
das lutas multitudinárias na cidade estética e na importância movimentos sociais quando fecharam o Viaduto Santa Tereza,
da arte para os movimentos multitudinários no Brasil nos últi- novo QG da Assembleia Popular Horizontal que surge durante
mos anos, vou fazer aqui uma contextualização breve pra quem as manifestações de junho de 2013 (esta ocupação durou uma
não é de Belo Horizonte. Desde a origem do Duelo de MCs sob semana, envolvendo diversos grupos artísticos e culturais da
o Viaduto Santa Tereza em 2007, mas, principalmente, desde cidade numa programação cultural de 24h).
2010, com o surgimento da Praia da Estação em manifestação
contra um decreto do prefeito Márcio Lacerda proibindo o uso Movimento #ViadutoOcupado, criado provisoriamente agluti-
livre das praças. Depois surge o Fora Lacerda (movimento la- nando vários movimentos sociais e culturais numa luta comum
ranja), depois o carnaval quase inexistente de Belo Horizonte (https://www.youtube.com/watch?v=IQ_61bPbdX4).
surge e vem crescendo exponencialmente por toda a cidade
com suas marchinhas ativistas e ocupando sem alvará ou di- Aqui também é interessante observar o surgimento do
recionamento determinado espaços inusitados da cidade. Vou Carnaval de rua de BH empoderado pelas pautas política e
postar aqui alguns vídeos dessas manifestações e também ativista. Podemos dizer que é um carnaval ativista de ocupa-
um link do Indisciplinar, contendo um Atlas das Insurgências ção massiva das ruas durante 10 dias (vídeo com vários blocos,
Multitudinárias (http://blog.indisciplinar.com/) que fez parte mas observem no segundo vídeo como há uma construção
do evento Cartografias do Comum (https://www.facebook.com/ híbrida de sentido envolvendo cultura oriental indiana, carna-
pages/Cartografias-do-Comum/241739899361022?fref=ts), que val, Caetano Veloso, outros instrumentos, bicicletinha que leva
realizamos no Espaço do Conhecimento da UFMG. adereços e caixas de som, ocupando em 2014 uma favela des-
locada do centro/Zona Sul de BH). Segundo Negri, na segunda
• Duelo de MCs de BH: http://duelodemcs.blogspot.com/; parte do livro Multidão, a multidão é queer, o carnaval-perfor-
mance, ao contrário das vanguardas enfileiradas em linha com
• Praia da Estação: https://www.youtube.com/watch?v=Xv3a- caminhão e microfone na frente, e fazem das ruas um verda-
07FG9OQ, https://www.youtube.com/watch?v=F-ZjyReKO6I, deiro festival estético (https://www.youtube.com/watch?v=U-
http://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07EO SoICaoXCvU, https://www.youtube.com/watch?v=pgAjDlgFT1g).

O Coletivo “Nós, temporários”, de Belo Horizonte, vem atuando Espaço Comum Luiz Estrela e o teatro como forma de ocupar
desde as manifestações de junho de 2013, incluindo a mudança com afeto e convencer a cidade da importância de espaços
do nome da Praça da Estação para Praia da Estação e também democráticos para a cultura, fora da lógica do mercado e do

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Estado (https://www.youtube.com/watch?v=Z7ftnoW0gzQ e somos profissionais, queremos ser amadores, amadores da
https://www.youtube.com/watch?v=KgFhTfp4GFQ), incluindo arte do ofício da palavra”.
negociação com PM e com advogado das Brigadas Populares
e o Coletivo Margarida Alvez, Joviano Mayer, vestido de mulher. Vanessa Camila da Silva (15 de outubro de 2014)
Acho que todas as obras, principalmente aquelas de interven-
A multidão é queer (https://www.youtube.com/watch?v=lj1hN- ção urbana, ajudam tanto num novo olhar estético quanto na
Fo22rs) e, no carnaval, o Espaço Comum Luiz Estrela também reflexão para a utilização do espaço público, não como disputa,
cria seu bloco e sai junto com o Tarifa Zero, outro movimen- mas como um local de apropriação e reconhecimento. Bons
to com fortes tendências estéticas. Vale também um passeio exemplos são Os Gêmeos, Eduardo Srur e tantos outros que
pela fanpage do movimento (https://www.youtube.com/watch?- fazem trabalhos artísticos fantásticos com propostas que am-
v=EuKZSqXUsN0&list=PLQuZp9VAKTuRNZ3MEtZTaGr50gmUr- pliam o olhar.
ZzHH&inde x=8).
Dalba Roberta Costa de Deus (14 de outubro de 2014)
• Tarifa Zero (https://www.facebook.com/tarifazerobh?fref=ts). Concordo que seria necessária às lutas uma produção esté-
tica como ação na disputa pelas subjetividades e isso já vem
Maisa Cristina da Silva (19 de outubro de 2014) acontecendo. No Brasil, desde a década de 1970, despontam
Compreendo que as produções estéticas sempre foram fun- grupos de artistas e artistas que tomam a cidade como campo
damentais na luta da subjetividade. Podemos perceber essas de investigação, procurando expandir o circuito e mesmo a
manifestações no conceito de Pop Art, que torna a arte um noção de obra de arte. Um exemplo em Belo Horizonte, na dé-
produto de massa; em Duchamp, que confunde o mercado cada de 1970, foi a artista Teresinha Soares, cuja participação
das artes com a Fonte. Indo mais atrás na história, notamos em salões era sempre aguardada com interesse, com seus
a subjetividade na poética do cotidiano captado por Vermeer. trabalhos originais e suas performances provocativas.
Na atualidade as manifestações estéticas e artísticas também
produzem novas formas de subjetividade como os objetos de Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)
Nelson Leirner que discutem a sociedade de consumo; inser- Acho que rever as posturas, estratégias e táticas de grupos
ção no mercado ideológico de Cildo Meireles; Néle Azevedo artísticos anteriores em situação de mudança de paradigma é
voltado para o consumo dos recursos naturais do planeta; no um bom começo para não se pensar que se está descobrindo
Cristo de Alexander Kosolapov ou no de León Ferrari, até mes- a pólvora (rsrs). Tem uma série de artistas no passado que
mo nos objetos de Renato Vale, ou nas crianças crucificadas decidiram rever a arte como ela era entendida em suas épo-
de Erik Ravelo, na banana de Luciana Rondolini coberta de cas, repensar a arte fora da arte, aceitar com humildade que
diamantes. precisamos nos rever. Isso acaba caindo na interdisciplinari-
dade: estudar política, cultura atual local e global, assimilar
Adriana Covolan (15 de outubro de 2014) as culturas de margem popular (como referenda Paulo Freire
Com essa pergunta veio à memória recente o Parada Poética, e N. G. Canclini), educação (mediação, métodos), filosofia, etc.
que surgiu através do poeta, escritor e cantor Renan Inquerito. Isso, como falaram a Raissa Leão e a Luiza Alcântara, acaba
Não se restringiu a Nova Odessa (SP), ganhou espaço e vem desembocando nos movimentos de rua, ocupações e coletivos,
circulando por várias cidades do interior de São Paulo. Nas como o trabalho lindo e crítico do Espaço Comum Luiz Estrela,
palavras de Renan: “Um lugar para recitar textos, versos, fra- a galera do Estilingue, do Piolho Nababo, o Lotes Vagos e, fora
ses, poemas e revoltas. Seus e dos outros. Lendo, decorado, de BH, tem o GIA (Bahia), o Capacete Entrenimentos e vários
de improviso, não importa a forma, nós não temos fôrma. Não espaços autonomistas de arte. Acho que a democracia aí vem

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de ações fora do sistema de arte atual, mas com um pé, por Não é chamada de arte por esse sistema, até o momento em
vezes, dentro dele, criando ruídos, como foi o leilão 1,99 do que esse mesmo sistema decide chamá-la de arte. Gosto de
Piolho Nababo no Palácio das Artes. Vocês foram? Foi ótimo! pensar na arte em seu campo expandido. A arte que simples-
Tem muita coisa legal também de ler no livro Escavar o Futuro, mente acontece.
resultado de uma exposição em 2014 no Palácio das Artes.
Reginaldo Luiz Cardoso (27 de outubro de 2014)
QUESTÃO 3 Achei interessantes as questões levantadas em torno do “ego”,
Seria possível falar em uma arte multitudinária trabalhada via pro- da “individualidade”, etc. A possibilidade da arte multitudinária
cessos criativos, colaborativos e horizontais atuando na constitui- passa necessariamente pela existência de sujeitos que desper-
ção do comum contra a prática própria do capitalismo pós-fordista tem a(s) subjetividade(s) alheia(s). E isso independe, a meu ver,
também chamado de Império? Uma arte que transite junto com de que a iniciativa seja coletiva ou individual, já que há espaço
os processos de resistência aos avanços do capitalismo finan- para ambas as ações. Uma experiência muito bem-sucedida foi
ceiro? Uma arte que estimule a liberdade de pensamento e que a que se deu na longa discussão em torno do que seria feito do
esteja envolvida com a ideia da criação de novas formas de vida? aeroporto Tempelhof, em Berlim. Demolição pura e simples?
Uma arte que crie conexões e insira cada vez mais pessoas nos Um shopping center em seu lugar? Um conjunto habitacional
processos de criação? Uma arte menos autoral e mais coletiva (Condomínio fechado) que atenderia ao mercado especulativo?
e copyleft? Uma arte como agenciadora de processos criativos, E assim foi... Até que, para dar um fim ao quiproquó, o prefeito
colaborativos e horizontais da multidão que se constitui contra a de Berlim resolveu criar um concurso público para projetos
expropriação do comum? Poderíamos imaginar uma produção arquitetônicos. E então surgiu Jakob Tigges, um arquiteto e
biopotente, fora da lógica do sistema da arte como riqueza da vida professor da Universidade Técnica de Berlim, que, para de-
que excede, transborda e torna-se também processo constituinte marcar a sua crítica à proposta do Poder Público, fez um pro-
de produção do comum? Fazer arte de forma autônoma, desvin- jeto irrealizável ao qual chamou de The Berg. Bem, a história
culada do Estado-Capital e das instituições tradicionais de arte? é comprida e muitíssimo interessante. O fato é que essa ideia
Uma arte que estimule o afeto, a criatividade e a sensibilidade? reacendeu o imaginário dos berlinenses (que já andava meio
Uma arte que produza verdadeiros espaços heterotópicos? Uma apagado) e uma nova discussão foi retomada por toda a cida-
arte do encontro e da festa? de. The Berg provou ser a própria concretude da profanação,
conceito caro ao filósofo político Giorgio Agamben. Assim, o
Greice Teixeira de Souza (13 de dezembro de 2014) território transformou-se em Feld Tempelhof, o maior parque
Todo artista vive pouco ou muito as consequências dos avan- público de Berlim, inaugurado na primavera de 2012.
ços do capitalismo financeiro. A arte, na maioria das vezes,
transita junto com os processos de resistência, estimulando Thais Mor (26 de outubro de 2014)
a liberdade de pensamento e agenciando os processos ino- A busca por novos caminhos autônomos e independentes do
vadores, criativos. Contudo, para que a arte consiga ganhar poder Estado-Capital tem tornado a web e as redes sociais fer-
espaço apropriado para se proliferar, é necessário vencer as ramentas para o encontro de ideias comuns e detecção de ri-
tendências do capitalismo e, muitas vezes, ela se esgota nes- zomas. O uso desses meios de forma estruturada em benefício
sas fronteiras. do bem comum vem buscando unir pessoas e gerar biopotên-
cias. Um exemplo disso são as Crowdfunding, plataformas que
Fred Triani (31 de outubro de 2014) captam recursos para projetos através de incentivo de pessoas
Arte fora da lógica do sistema. Ela existe, está aí, por toda físicas. Ideias e projetos independentes são apresentados e as
parte, subterrânea e marginal, mas não é chamada de arte.

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pessoas que acreditam nas propostas podem contribuir para colaboratividade e na coletividade, utilizando principalmente
viabilizar as ideias. O que conta, nesse caso, é uma análise as formas de articulação em rede como vias paralelas aos
pública, de cidadão X cidadão para um financiamento coletivo. circuitos privilegiados. Correndo “por fora” dessa lógica, mo-
vimentos multitudinários agem numa concepção de mundo
Eliane Maris da Silva (23 de outubro de 2014) diferenciada, implementando diversos campos de saber e cul-
Ou admitimos que tudo é arte, e então a criação artística é tura, como a Arte, numa perspectiva dissonante dos processos
um OFÍCIO/TRABALHO como o de um marceneiro, pedreiro, burocráticos do Estado-Capital, fazendo emergir atitudes au-
vendedor, etc., ou admitimos que a arte não deve ser fator de tônomas e espontâneas comprometidas apenas com sua es-
sobrevivência, daí (perdoem-me os artistas) temos que assumir sência, sua expressão e sua filosofia estética sem, no entanto,
uma segunda atividade para sobreviver. A arte assim deve- se dissociar do diferente e do comum coletivo.
rá ser sempre doada ou podemos voltar ao escambo em que
comprador e vendedor se entendem na determinação do preço. Janaina Faleiro Lucas Mesquita (23 de outubro de 2014)
Acredito que é possível, sim! Uma arte que estimula o afeto, a
Murilo Cesar Silva de Andrade (23 de outubro de 2014) criatividade e a sensibilidade, ao mesmo tempo que é colabo-
Se primeiro pensarmos a Arte e os movimentos artísticos fora rativa e libertadora.
dos esquemas de cooptação capitalista, que muitas vezes os
capturam e alimentam uma produção seriada ou os trans- Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)
formam em verdadeiros produtos de acesso privilegiado e Outra das coisas a mudar é o que Ricardo Macêdo falou na sua
comprometidos com a manutenção de um status e uma se- resposta, os egos. A ideia do artista individual está obsoleta.
gregação com relação ao que se pode considerar Arte ou não, Sem se esquecer de si mesmo, tem que passar de ser individu-
teremos que visualizar também o papel do artista nesse con- al pra ser um indivíduo dentro de uma coletividade. Um exem-
texto, o entendimento do que vem a ser um artista nos tempos plo é o coletivo Boa Mistura, depois de um tempo trabalhando
atuais e como ele se articula e interpreta a si próprio como juntos, assinando os projetos com os cinco nomes dos artistas
tal. Nesse sentido, o artista, dissociado dos mecanismos do que formam o coletivo, eles passaram a assinar com o nome
Estado-Capital, provavelmente tentará dar um sentido à sua do coletivo, esquecendo-se dos egos pessoais.
Arte e se representar e representar a sua Arte num movimento
e numa concepção de mundo maior ou diferente das impostas Ártemis Garrido (23 e outubro de 2014)
pelo sistema capitalista. Nesse ponto ele terá condições de se Sim, vem se tornando possível. Tomemos como exemplo a per-
reconhecer e interpretar, como artista, não como profissional, formance, prática artística que vem sendo descoberta e estuda-
no sentido do desempenho de uma função institucionalizada no da a cada ano. Os artistas performers, quando não pretendem
Estado-Capital, mas como a(u)tor de sua política e sua relação dialogar com o espaço (ou criar outro espaço dentro do espa-
com o mundo. Nesse sentido, os movimentos artísticos críticos ço), pretendem dialogar com o outro, o que vê e/ou participa da
de seu tempo poderão estar, mesmo em alguns momentos, ação. O artista pode propor ações performáticas gratuitamente
circulando dentro dos circuitos tradicionais, comprometidos ou pode ser pago, quando há uma instituição que promove um
com outra dinâmica e outros conceitos, agindo também den- festival ou um projeto de curadoria em performance, como é
tro do próprio discurso institucionalizado. A mudança, nesse o caso do Memorial Minas Gerais Vale que, periodicamente,
sentido, caminha então para a reestruturação de conceitos contrata artistas convidados pelo curador Marco Paulo Rolla
tradicionais e, consequentemente, para formas de criação e de para se apresentarem no espaço.
experiências estéticas novas e a partir de modelos inéditos ou
marginalizados, utilizando parâmetros criativos baseados na

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João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014) processos criativos e transformadores que temos presenciado
Penso que redes de produção, distribuição e apreciação da arte ao longo dos últimos anos.
que “escapam” da lógica do capitalismo rentista e da “nova
indústria cultural” (criativa) não só são possíveis como já são Maria Goretti Gomide Pinheiro (23 de outubro de 2014)
um fato - como exemplos podemos citar os diversos saraus, Acredito, sim, em uma arte multitudinária, que transita junto
filhos dos vira-latas nômades e insurgentes (e, obviamente, os com os processos de resistência aos processos do capitalis-
próprios vira-latas). Essas redes se espalham a partir de uma mo. Por ser livre, a arte estimula os pensamentos e pode nos
lógica colaborativa e desterritorializada - principalmente as ajudar a criar novas formas de viver, pensar e relacionar com
mobilizações nômades -, construindo um espaço de inovação a vida. A demonstração artística social existe há muitos anos e
estética e crítica política contundente. Porém, uma questão aos poucos veio ganhando terreno. Tinha a função de envolver
que esquecemos é que, apesar de ser praticamente a mes- os transeuntes, pelos movimentos do artista e o sentido das
ma, a indústria cultural transformou também a sua lógica, se falas. Lentamente foi crescendo e hoje ganhou muita força em
desterritorializando. O foco da nova indústria cultural - além função da resistência contra o Estado-Capital. É uma arte que
da criação de criadores empreendedores - é a circulação dos dialoga diretamente com os indivíduos e vai além da criação.
bens culturais e, neste ponto, ainda nos encontramos inseri- É a democratização da arte, uma valorização da expressão e
dos na lógica industrial. Não obstante, acredito que podemos relaciona o conceito do espaço público comum, fazendo uma
“jogar” esse jogo entre processo produtivo e circulação - nas interação, um diálogo, construindo uma convivência mútua
redes sociais virtuais, por exemplo, com seus gate keepers e entre arte e pessoas, e isto dá legitimidade às cidades. É uma
agentes com papéis específicos - para construir novos pro- arte de diálogo íntimo e cúmplice com a cidade, e está carrega-
cessos constituintes através da produção artística, constru- da de força e significados. Isso faz com que a arte de rua deixe
ção híbrida: ao mesmo tempo horizontal e hierarquizada (pois, de ser uma arte marginalizada e passe a ser reconhecida como
como constato na minha pesquisa sobre os vira-latas, esses Arte Contemporânea. Significa possibilidades, os artistas con-
movimentos insurgentes horizontais também constroem, natu- seguem uma ascensão e passam também a ocupar os espaços
ralmente, hierarquias e constrições, porém estas seguem uma das galerias, fazendo parte também do sistema da arte tradi-
lógica incrivelmente díspare em comparação com as amarras cional. Isso nos mostra o quanto a arte urbana se desenvolveu
canônicas dos mundos da arte oficiais). e a quantidade de artistas que foram surgindo ao longo destes
últimos anos, sem contar que é também uma ferramenta capaz
Taís Freire de Andrade Clark (23 de outubro de 2014) de educar. É uma arte em que o artista desenha sua verdade,
Sim, é possível! E somente é possível a arte multitudinária uma atitude que leva a sociedade a refletir e se transformar.
existir dentro de um sistema que a todo momento tenta se
apropriar dela. Ou seja, esse tipo de liberdade, ou de resistên- Júlia Nascimento de Oliveira (22 de outubro de 2014)
cia só existe porque se consolida em uma afronta direta a uma Sim, as manifestações de arte multitudinária não só são fac-
produção estética já mercantilizada, ou cooptada pelo mercado. tíveis, como estão ganhando força no cenário da resistência
O mais interessante é que as características e os questiona- contra o Estado-Capital através da conexão de redes (coletivos,
mentos próprios desse tipo de movimento criativo que pre- ocupações, correntes artísticas autônomas). Essa arte che-
senciamos são o que o torna tão difícil de ser apropriado pelo ga à cidade com propostas de ocupações mais espontâneas
mercado, a horizontalidade do processo, a coletividade das e democráticas, questionando os processos de gentrificação.
criações, tudo isto dificulta, para não dizer impossibilita, essa Tudo isso é feito através da aglutinação de ideias comuns, in-
apropriação. Portanto, não acreditar nesse papel desempe- satisfações e desejos compartilhados, que se orientam para
nhado pela arte é o mesmo que fechar os olhos para todos os uma trajetória de alcance exponencial, como é o caso de Belo

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Horizonte, onde encontramos o Salve Santaterê, Duelo de MCs,
Fora Lacerda, dentre outros citados aqui.

Dalba Roberta Costa de Deus (20 de outubro de 2014)


De todas essas questões, um movimento que venho notando
dos artistas contemporâneos é a expressão através da coleti-
vidade e menos autoral. Cada vez mais parece se buscar uma
arte de encontro, estimulante da liberdade de pensamento
e cheia de conexões. Não encaro muito a arte apenas como
processo de resistência, mas, principalmente, como processo
criativo e colaborativo nos tempos atuais...

Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)


Acredito que sim! Contudo, os modos de se ativar isso ainda
estão caminhando, penso que a fronteira a ser ultrapassada
ainda é a do ego, da disposição e abertura de espírito para tra-
balhar com o Outro. Sair de uma postura mental e emocional
de autoria para outra de coautoria, de preocupação com a pró-
pria cidade, com o país ou o mundo é lento, acho que qualquer
mudança neste sentido é lenta, um ativismo lento. Começar a
fazer obras fortes que questionem o sistema facilmente cha-
ma a atenção dos curadores e editais, daí o embate do artista
consigo mesmo: é difícil resistir aos holofotes, bajulações e à
grana, pra quem vive de editais. Acho que é preciso uma vonta-
de muito grande interna (e um molejo pra falar coisas sem se
queimar no circuito - rsrs), de acreditar mais na necessidade
de mudança urgente do que nas cifras. Ganha-se muito dinhei-
ro hoje com bons projetos.

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Simone Parrela Tostes*

Arte, espaço atuais condições de desenvolvimento do capital, este


não se reduz mais aos domínios econômicos e a pró-

e comunidade: pria produção transborda os espaços estritamente


industriais e se propaga por todo o território. De fato,
como observam Guattari e Rolnik (1986), há um axio-
modos de endereçamento ma operatório do capital que consiste num sistema

e produção de de equivalência generalizada, presente tanto nos do-


mínios da produção econômica como cultural: “Desse
singularidade ponto de vista o capital funcio-
na de modo complementar à Questão 1
cultura enquanto conceito de É possível pensar relações entre arte e cultura
equivalência: o capital ocupa- com a comunidade que se contraponham às
* Simone Parrela Tostes: Cada época é caracterizada pelo aparecimento de se da sujeição econômica, e a relações e aos interesses ditados pelos vetores
Arquiteta pela UFMG, novas possibilidades que modificam relações de cultura, da sujeição subjeti- econômicos e mercadológicos na atualidade?
Mestre em Teoria e
Crítica da Arquitetura e
forças anteriormente existentes. A interdependên- va” (GUATTARI; ROLNIK, 1986,
Urbanismo pela mesma cia, em escala global, dos processos que regem a p.16). Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro
instituição. Doutoranda produção dos espaços-tempos na atualidade, in- de 2014)
em Geografia no Instituto
dissociáveis do funcionamento e das condições do Com efeito, o funcionamento Acredito que a grande armadilha reside em
de GeoCiências da UFMG.
Professora do curso de Capitalismo Mundial Integrado, faz do espaço hoje da máquina financeiro-produ- se contrapor. Estar contra os interesses
Arquitetura e Urbanismo um campo de forças complexo no qual coexistem tiva nos quadros da economia econômicos e mercadológicos que regem o
da Universidade de tanto tendências de especialização como de inter de mercado comporta meca- mundo hoje não significa que a nossa arte
Itaúna. Tem experiência
em projeto, ensino -relação dos seus diversos componentes, em uma nismos de regulação das de- não possa virar mercadoria e publicidade.
(graduação e pós- nova tensão entre o local e o global. Menos que sigualdades e dos excessos Penso que a arte tem que exercer o seu
graduação) e pesquisa em uma oposição, trata-se de uma interdependên- próprios de seus modos de olhar adicionando dimensões, atuando no
Arquitetura e Urbanismo.
É pesquisadora dos
cia entre essas duas instâncias, a partir da qual operação, elegendo popula- que existe: se tivermos que esperar deter-
grupos de pesquisa abrem-se novas potencialidades com a criação de ções e lugares afetados dire- minadas condições para só então podermos
INDISCIPLINAR (no qual novas comunidades e localidades e de novas rela- ta ou indiretamente por suas fazer, ficamos velhos. A luta com o grande
é co-editora da revista
ções entre ambas. ações como alvo de atuação. capital não é para ser vencida, pois a lógica
homônima) e PRAXIS, da
Escola de Arquitetura da Seja como cláusula imposta da competitividade elimina muitas possibili-
UFMG. Diante dessas novas possibilidades, a noção e a nos contratos de empréstimos dades de “estar com”. No plano micro, quan-
experiência da comunidade têm constituído um ou repasses de recursos entre do no dia a dia nos permitimos nos comparar
foco importante nas atuais rearticulações de for- agências de fomento e finan- menos e estar mais, outras comunicações se
ças. Menos que uma dimensão originária e au- ciamento em escala global, fazem. Não há como atuar no plano macro se
têntica a ser protegida ou resguardada da vora- nacional ou local e os diver- não for a partir do que está ao meu alcance.
cidade dos interesses capitalistas aos quais seria sos níveis da administração Dessa forma, as relações comunitárias são
supostamente anterior, a comunidade é também estatal no estabelecimento de por excelência revolucionárias, quando eu
ativamente investida e produzida por eles. Nas contrapartidas sociais; seja no me permito me relacionar e me desconstruir.

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Marina Annes Duarte (1 de novembro de 2014)
Acho que é possível, em todos esses aspec-
tos que foram citados - direitos autorais e
setor privado como adesão a práticas afinadas a tal fun- copyleft, open source, produção coletiva, fi-
cionamento, em que grandes e médias empresas têm sua nanciamento coletivo. A própria economia
reputação atrelada a ações no domínio da responsabilidade solidária tem muito a ver com isso tudo, né?
social e passam a dedicar quantias consideráveis de seus Cooperativismo... Acho que são outras for-
orçamentos a tal finalidade (ou mesmo são impelidas a fa- mas de organização com outros raciocínios
zê-lo por meio de incentivos fiscais e tributários); seja ainda que já estão rolando, não só na arte e cultu-
no terceiro setor, a demanda reguladora de práticas com ra, aliás, e realmente cada vez mais eviden-
responsabilidade social implica e assim produz a comuni- tes e conectados - imagino que um pouco
dade como objeto privilegiado de políticas e intervenções por conta dessa facilidade das redes e da
dos mais diversos matizes. internet.

Sem prejuízo dessas obrigações, empresas e instituições Reginaldo Luiz Cardoso (31 de outubro de 2014)
se inserem nas comunidades e localidades movidas tam- Essa possibilidade passa, a meu ver, pela
bém por seus interesses e lógicas particulares: enquanto afirmação de uma democracia radical (nos
algumas pautam suas estratégias nos quadros da ação fi- sentimentos, nos pensamentos e nas ações).
lantrópica, reatualizando certa tradição do paternalismo e Pois o que vemos, hoje, são mecanismos
do assistencialismo do século XIX, por sua vez tributária das cada vez mais “democráticos” (naturali-
práticas e dos objetivos da ação doutrinária que acompa- zados) de controle, conforme prenunciou
nhou o projeto colonizador, outras orientam seus projetos etc., e que, não obstante sua Deleuze. Do panóptico (vigilância) passamos
em direção a populações diretamente afetadas por suas aparente diversidade, compar- para o sinóptico (controle). Lembro aqui o
atividades, numa espécie de reparação de danos. No mais tilham o ponto de vista privi- arquiteto Sérgio Ferro que, no momento em
das vezes as ações são concebidas visando à gestão e ao legiado de centro de comando que todos teciam loas e boas à arquitetu-
controle estratégicos da imagem das instituições. Ademais, a partir do qual algum tipo de ra moderna desenvolvida por Niemeyer (e
quando não são gerenciadas por fundações atreladas às intervencionismo se exercerá ele foi uma unanimidade), ousou criticar o
corporações, grande parte das verbas destinadas para pro- sobre as comunidades. mito. Para Ferro, não é possível construir
jetos em comunidades acaba sendo gerida por agências de uma cidade emancipada sem emancipar o
publicidade que detêm as contas das empresas que inves- Entrincheirada por corpora- canteiro de obras. Se aí acontecesse isso, aí
tem neste setor ou por produtores profissionais que transi- ções e instituições diversas teríamos arquitetura emancipadora. Com
tam com maior desenvoltura pelos meandros burocráticos como beneficiária de ações
dos programas e projetos existentes. Há também todo um reparadoras, objeto de marketing empresarial, de
universo de atuação conduzido pelas instituições de ensino contrapartidas contratuais ou ainda objeto de inves-
que veem na comunidade um universo leigo a ser trabalha- timento e experimentação de toda uma pedagogia de
do ou instruído. Assim o incremento de programas, proje- inclusão/ajuste à ordem social, à comunidade, como
tos e ações destinados a comunidades tem aberto todo um finalidade estratégica ou nicho de mercado, não res-
campo de atividades a profissionais e organizações da so- tam muitas alternativas fora da reprodução do poten-
ciedade civil ligados aos setores mais diversos, da saúde à cial alienante da sociedade capitalista em sua verten-
habitação, passando por educação, cultura, esportes, artes, te liberal contemporânea.

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Entretanto, sem desconsiderar as implicações dessas mo- isso, para se chegar aos gaps (frestas) do
dalidades de produção instrumentalizada de comunidade, há sistema - conceito caro a H. Arendt - os
que se ampliar o entendimento do que a comunidade pos- atores sociais devem, necessariamente,
sa vir a ser e realizar. A produção de relações desviantes começar observando minuciosamente
das pautas e dos interesses mercadológicos é um possível se suas práticas cotidianas são, de fato,
que se anuncia, e, por curioso que pareça, incrementado democráticas. Caso contrário, tudo aqui-
precisamente a partir das mesmas condições que propi- lo que se almeja cai na vala comum de
ciam essas capturas. Um direcionamento que parta das uma comunidade homogênea, calcada em
comunidades e dos grupos sociais não hegemônicos pode identidades, sobrepujando as subjetivida-
fomentar outras modalidades de criação e afirmação da des. Isto é, aquilo que se pensava como
vida e há vários indícios que apontam para tal possibilidade. um avanço transforma-se em um lugar
De fato o alcance e a viabilização de ações e iniciativas pro- que em nada se revaloriza como espaço
tagonizadas pelas próprias comunidades, inventando novas de sociabilidade e de vida. Enfim, se não
maneiras de estar junto, de viver, de criar, de trabalhar, de houver um novo homem, não haverá uma
se relacionar e de produzir as próprias existências, têm nova compreensão e, logicamente, uma
adquirido consistência cada vez maior. nova interpretação da realidade.

O maior dinamismo das trocas e relações sociais devido à Yuri Amaral (30 de outubro de 2014)
grande mistura de povos, raças e culturas em todos os con- Acredito que um dos melhores caminhos
tinentes e aos progressos da comunicação e da informação seja usar as regras do jogo contra o pró-
possibilita a mistura de filosofias e modos de vida em detri- zação feita de novas relações e prio jogo. Não há como nos isolarmos do
mento da referência predominante baseada no racionalismo de reenvios a uma multiplicidade mundo, muito menos como nos desvincu-
europeu, propiciando, de modo inédito no momento atual, de outras questões. larmos da maneira que ele funciona. No
condições de uma rica sociodiversidade, conforme observa o entanto, criamos nossos meios de reor-
geógrafo Milton Santos (2010). A rapidez dos processos leva Vivemos hoje uma comunhão glo- ganizar e reconfigurar às nossas neces-
a uma rapidez das mudanças, e tanto do ponto de vista da bal dos lugares com o Universo, sidades. Como já foi citado aqui, o finan-
ordem material quanto na ordem intelectual, este dinamis- a partir da qual se pode falar de ciamento coletivo é um desses caminhos,
mo característico das condições atuais é capaz de ensejar uma interdependência universal copyleft, creative commons, a internet em
novas possibilidades de compreensão “do mundo, do lugar dos lugares, conforme salienta si se alimenta dessas “regras antigas” e
e da respectiva posição de cada um, no mundo e no lugar” Milton Santos (2008). Trata-se, corrobora com a quebra delas, fornecen-
(SANTOS, 2010, p. 167), assim como novos processos de sin- segundo o autor, de um proces- do meios de se [re]programar o mundo e
gularização em prol de modos de vida mais ricos. so que altera o arranjo anterior as comunidades. A descentralização da
baseado no Estado-Nação e sua emissão, as possibilidades de produção
E são essas novas condições que hoje demandam um empe- noção jurídico-política de terri- (qualquer indivíduo hoje pode produzir,
nho de redefinição radical do entendimento da comunidade tório. Tal noção desenvolve-se a independentemente de sua localidade e
e de suas implicações e possibilidades. Empenho que, por partir do conhecimento e da con- de seus atributos identitários) e a con-
sua vez, não passará aqui pela busca ou circunscrição de quista do mundo desde o Estado sequente reconfiguração do mundo e da
atributos fundantes capazes de conferir um quadro estático Moderno e o Século das Luzes maneira com que se dialoga com ele. Já
de referências, mas será desdobrado em uma problemati- até a era da valorização dos cha- vivemos essas novas relações, de manei-
mados recursos naturais. O terri- ras sutis ou em escala global, a favor do

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tório foi a base e o fundamento do Estado-Nação, instância Seria preciso agora determo-nos um pouco mais
que efetivamente definia os lugares, ainda que nem todo no entendimento desse comum, base da palavra
território fosse subordinado a um comando estatal. Hoje os comunidade e que se refere precisamente ao que
lugares são solicitados por novas dinâmicas que, não sen- é compartilhado - linguagens, símbolos, ideias, va-
do mais exclusivamente derivadas do comando de Estados lores e relações – e também ao resultado de tal
Territoriais, permitem que se fale de uma transnacionaliza- compartilhamento. Antonio Negri e Michael Hardt
ção dos territórios, ainda que, mais uma vez, não se possa (2005) associam a produção do comum ao conceito
afirmar que todos os territórios sejam transnacionalizados de hábito herdado do pragma-
ou que os que o são o sejam completa e totalmente. tismo americano, associado mercado ou contra ele (usando suas regras e
menos a uma instância sub- seus meios). A dificuldade reside, justamen-
Esse novo funcionamento do território cria novas relações, jetiva e internalizada do que te, no entender o papel do outro em relação
estudadas por Milton Santos a partir de duas categorias, a relações com a experiên- ao seu, em se reposicionar no mundo como
as horizontalidades e as verticalidades (2006, 2008). As ho- cia, com as práticas e com “nós” e não mais apenas “eu”. Seria entender
rizontalidades são os domínios da contiguidade e de vizi- os comportamentos diários. que nós somos comunidades. Acredito que
nhanças definidas por uma continuidade territorial ou de Nessa constelação, o hábito estamos em um processo de mudança, lento,
superfície, própria do vínculo que une os seus membros. seria o comum na prática: o porém sem volta.
Já as verticalidades referem-se a uma vinculação que se que estamos constantemen-
dá por todas as formas e todos os processos sociais que te produzindo e que serve de Elton Monteiro (30 de outubro de 2014)
ligam pontos distantes uns dos outros. Mas são os mesmos base para nossos atos. Nesse Pensar nesse movimento cultural indepen-
lugares que se relacionam horizontalmente e verticalmente, sentido, hábitos e condutas dente das relações capitalistas requer um
caracterizando o que Milton Santos denomina de acontecer são sociais e compartilhados, olhar contrário ao que se tem normalmente
simultâneo (SANTOS, 2008, p.139). “[...] nunca são realmente indi- realizado. Quando se procura nas comunida-
viduais ou pessoais. [...] só se des algum tipo de valor cultural existente à
Embora não coincidam, território e comunidade se im- manifestam com base na con- parte de qualquer instituição, podemos en-
plicam mutuamente, ainda que o vínculo de contiguidade duta social, na comunicação, contrar vivas – ainda que muitas vezes sutis
territorial não seja uma condição para a constituição da no agir em comum. Os hábitos – manifestações pulsantes de algum tipo de
comunidade: se, por um lado, ele está implícito quando se constituem nossa natureza manifestação de cultura, de arte popular. A
trata de agrupamentos do tipo associações de bairro, de social” (HARDT; NEGRI, 2005, questão está na tendência que ativistas cul-
moradores, de vizinhos, etc., pode haver o compartilha- p. 257), e, longe de serem um turais têm de trazer formatada a produção
mento de vínculos de outra natureza, como no caso de um obstáculo à criação, são sua da arte. Quase sempre, essas ações vêm
credo religioso, uma afinidade musical e uma série de ou- base, o lugar da criação e da de fora para dentro. Quase sempre ideias
tros exemplos possíveis, em que sequer a presença física inovação: a ação comum é o formatadas. Formatação de pré-valores, de
e compartilhada dos membros é necessária. Nesse caso, próprio motor da produção. pré-conceitos. Atuar nessas comunidades de
ainda que a contiguidade territorial não seja o ponto co- Para os autores, a experiên- forma marginal aos valores mercadológicos
mum, o território ainda está presente, uma vez que são os cia de produção do comum e econômicos exige lidarmos, entre outras
mesmos elementos que se vinculam por meio de uma e/ou tenderia, ademais, a deslocar coisas, com uma acepção mais ampla do
outra modalidade numa simultaneidade possível e passível as coordenadas tradicionais conceito de sustentabilidade aplicado à arte
de produzir laços comuns. que criam divisões entre indi- e à cultura.

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víduo e sociedade, público e privado, subjetivo e objetivo. a heterogeneidade e a diferença a relações
Por outro lado, é precisamente essa potência do comum em rede, em que os membros que se conec-
que é interditada pelo sentido tradicional de comunidade tam não estabelecem entre si relações de
como instância moral e unitária “que se posiciona acima da vizinhança ou contiguidade, havendo uma
população e de suas interações como um poder soberano” heterogeneidade que é mesmo constitutiva
(HARDT; NEGRI, 2005, p. 266). deste vínculo. Por outro lado, imagina-se
com bastante frequência que tudo se dá de
Essa ressalva com relação ao sentido tradicional de co- maneira diferente quando o vínculo é o lugar,
munidade aproxima-se das formulações de muitos outros imaginado como portador de uma identidade
autores que têm se dedicado a compreender seus desdo- calcada em uma história e uma herança par-
bramentos diante de uma aparente crise, em que modos de ticulares, muitas vezes consideradas como
associação que outrora pareciam garantir certo contorno um atributo referencial de identidade exten-
comum parecem ter perdido sua coesão na atualidade. O fi- sivo a seus habitantes. Entretanto, será ne-
lósofo Peter-Pál Pelbart (2011) retoma as críticas do filósofo cessário desconfiar também dessa aborda-
Jean-Luc Nancy dirigidas à tradição teórica segundo a qual gem internalizada e identitária do território
a comunidade, em seu sentido de intimidade e comunhão e do lugar, como observa a geógrafa Doreen
orgânica com a própria essência, seria precisamente o que Massey, para quem o lugar é
o advento da sociedade destruiu. Começando por apresen- um processo dinâmico que Carlos Muñoz Sánchez (30 de outubro de 2014)
tar as formulações de Nancy, para quem seria necessário se constrói “a partir de uma No mundo da informática trabalham com
recusar essa consciência de perda da comunidade e de sua constelação particular de re- conceitos de autoria coletiva há um tempo.
identidade, assim como a nostalgia de uma fraternidade e lações sociais que se encon- O software livre permite compartir e modi-
de uma convivialidade perdidas, Pelbart prossegue afir- tram e se entrelaçam num lo- ficar, licenças como creative commons per-
mando que, diferentemente de uma perda a ser lamentada, cus particular” (MASSEY, 2000, mitem que uma banda coloque sua música
a inexistência da fusão e da homogeneidade na comunida- p.184). Cada lugar é um lugar na internet e escolha se o usuário pode só
de é antes positiva e constitutiva: “A comunidade tem por de encontro, ponto único de ouvir, ou baixar, ou lucrar com ela. Outros
condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a uma interseção de redes de conceitos como as redes P2P, em que a pro-
distância” (PELBART, 2010, p.33). A comunidade seria mais relações sociais, de movimen- dução é entre pessoas, ou copyleft já estão
bem definida, então, a partir do compartilhamento de uma tos e de comunicações, das no vocabulário comum do mundo hacker. A
separação dada pela singularidade, e não pela identidade quais grande parte se constrói extrapolação dessas ideias para o mundo
fusional. Fora de qualquer anseio de pertencimento ligado e se reconstrói em uma esca- tangível pode trazer não só um novo mode-
a atributos de substância e interioridade, talvez a distância la que implica um contexto lo de autoria para obras artísticas, mas um
e a diferença sejam o que possa ser colocado em comum; geográfico muito mais amplo novo modelo de vida mesmo.
a inexistência de fechamento identitário talvez seja condi- que o do lugar em questão.
ção afirmativa e de abertura para a criação do comum e da Por tal motivo não se sus- Maria Goretti Gomide Pinheiro (30 de outubro
comunidade. tenta o entendimento de que de 2014)
o lugar seria aquele recorte Penso que sim, rompendo com as estruturas
Ao cotejarmos essas observações com as categorias ter- do território isolado e isolável do passado. Podemos pensar o urbano toma-
ritoriais de horizontalidade e verticalidade anteriormen- do mundo, portador de uma do pela reflexão, pela crítica e pela liberdade
te descritas, poderemos avançar um pouco mais em sua identidade particular extensi- de pensamento. Tomar esse espaço como o
compreensão. Por um lado, não parece difícil associarmos va a seus ocupantes e exclu- lugar da experiência, da ação social que faz

84 85
siva deles. A noção de identidade, apoiada em um conjunto um inventário de vivências, percepções e sensações, como
de atributos fixos que serviriam de referências, mostra-se seres interpretativos e instituidores de sentido, criando-se
como abordagem não só insuficiente, mas incapaz mesmo assim um vínculo de confiança com diferentes indivíduos
de sustentar as potencialidades da comunidade e de seus que impactam e que são impactados por suas atividades e
lugares de ação. Mais rico que o conceito de identidade, o dão legitimidade a partir da formação de identidades cul-
conceito de singularidade não passa pela circunscrição da turais. Assim mudam-se as condições de existência das
realidade a quadros de referência, implicando, pelo contrá- organizações e, com isto, mudam também as condutas. A
rio, a possibilidade de ruptura com tais enquadramentos. A arte, a cultura e a comunidade precisam recusar os modos
singularização será precisamente o processo de criação de de manipulação para construir a sensibilidade, modos de
movimentos desviantes por meio da afirmação de outras relacionar com o outro, modos de produção e de criativida-
maneiras de ser, de outras sensibilidades e percepções de que produzam uma subjetividade singular.
(GUATTARI; ROLNIK, 1986). Assim, a singularidade de um
lugar e de uma comunidade se construiria em sua relação Carlos Muñoz Sánchez (28 de outubro de 2014)
com o que lhe é exterior e desconhecido, não sendo um Acho possível, sim, mas difícil. Concordo com Ricardo na
atributo fixo e preexistente a tal relação. Trata-se de um questão de que o importante é uma mudança de mentalida-
processo aberto, em constante transformação e refratário de mesmo, mas não concordo em colocar um problema em
a qualquer fundamentação estacionária. Ademais, a consi- cobrar pelo trabalho feito com uma comunidade. Quer dizer,
deração desse caráter sempre aberto à alteração permite se um coletivo é chamado para trabalhar numa comunidade,
refutar a defesa de uma pretensa pureza das identidades, e doa este trabalho, no final das contas está agindo igual a
seja dos lugares, seja das comunidades, pretensão esta uma ONG, inclusive a recepção deste trabalho vai ser vista
que fundamenta violências, sectarismos e preconceitos de como um presente e não como um trabalho que tem um
cunho segregador, cujo objetivo é sempre o de proteger custo. Referente ao texto, também não concordo com ligar a
uma identidade idealizada dos riscos de descaracterização. participação com uma liderança do projeto, ou, se for assim,
não necessariamente isto é uma coisa ruim. Se o projeto é
Por outro lado, não se trata apenas de ampliar o raio de um projeto surgido de uma iniciativa própria, que chama
abrangência do recorte geográfico ao qual se ligam as co- uma equipe, um coletivo ou um indivíduo pra fazê-lo, e este
munidades. Grandes ou pequenos, tais recortes extensivos coletivo (por exemplo) escolhe uma metodologia participa-
do território dizem respeito a um regime macropolítico de tiva como processo de trabalho, acho que essas questões
funcionamento que distribui as grandezas de uma mesma ficam mais diluídas. Esse coletivo vai dirigir o trabalho, mas
natureza, como é o caso da escala geográfica, mas que in- o projeto é um projeto de um cliente, não uma iniciativa
cide também sobre as pessoas, transformando-as em in- própria em que você impõe uma participação.
divíduos aptos a serem classificados e agrupados segundo
sistemas hierárquicos e de submissão. A comunidade deve Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014)
ser pensada então fora desse regime que a reduz a agrupa- O Maximiliano tocou num ponto fulcral: muitas vezes as
mento unitário de sujeitos individuados e normalizados, tri- ações de projetos não buscam resultado monetário, mas
butário dos sistemas de pensamento que se desenvolveram, buscam por notoriedade, e acaba sendo, no fim das contas,
com a modernidade ocidental, como esteio da ordem social lógica de mercado também, pois isto tem valor simbólico
capitalista e como condição e efeito de Estados, empresas dentro dos sistemas (na arte, na mídia, etc.). Ontem mes-
e mercados. É assim que por meio desses sistemas, base mo participei de uma aula gratuita on-line sobre produção
do desenvolvimento das ciências do homem, construiu-se de projetos para lei de incentivo, o professor é catedrático

86 87
uma abordagem antropocêntrica que pensa o mundo como Assim, sujeição e servidão definem as mo-
domínio de indivíduos racionalmente organizados em sin- dalidades de captura e de funcionamento em
tonia com um contrato social responsável pelas garantias cuja interseção se dá a produção de subjeti-
aos direitos humanos, individuais e coletivos, adequados às vidade. Essa é uma questão política incontor-
demandas do capital (como é o caso dos direitos de proprie- nável, para a qual não há caminhos prontos.
dade privada) em detrimento de outros seres vivos. Como criar franjas de singularização capazes
de desvio com relação às cadeias de metas,
Maurizio Lazzarato (2014) observa, desdobrando o pensa- objetivos e interesses já dados de antemão,
mento de Michel Foucault, Felix Guattari e Gilles Deleuze, para que se produzam novas singularidades
que somos equipados com uma subjetividade individual a no trabalho com comunidades? Se é possível
partir de atributos de identidade - um sexo, uma profissão, já afirmar certas recusas, há que se ir mais
uma nacionalidade, etc. - que nos constituem como sujeitos longe, para além da recusa e da mera enun-
individuados reagrupáveis em todos os níveis da produção ciação de intenções, de modo a produzir uma
e do consumo, enquadrados em papéis e lugares dentro diferença com – e não para - a comunidade,
da divisão social do trabalho. Trata-se de um processo de em um encontro que escape dos protocolos
sujeição social de personificação e também de equivalên- de sujeição e de servidão.
cia, no nível dos indivíduos, das relações hierárquicas de
trocas capitalistas, “[...] um modo de comando, de regula- Sem pretender encaminhar respostas ou
ção e de governo ‘assistido’ pela tecnologia, constituindo, prescrever métodos, essas questões têm
como tal, uma especificidade do capitalismo” (LAZZARATTO, por objetivo instigar um
2014, p.29). Esse processo fabrica um sujeito a ser vincula- trabalho de criação e em formatação de projetos. Vi que isso virou um
do a um objeto externo (entendido num sentido amplo, de problematização de ex- mercado, que cobram R$370,00 por pessoa para
um serviço público, por exemplo) que funciona como meio periências com comuni- participar, todos pagam (menos eu - rsrs) e a lógi-
numa lógica sujeito-objeto ou sujeito-sujeito, referenciada dades, e neste sentido ca é esta mesma: ganha-se por conta do dinheiro
no indivíduo. uma primeira questão do edital, mas ganha-se também pela notoriedade
talvez seja o abandono que o projeto oferta. Se o comprometimento fosse
Ainda segundo o autor, paralelamente a esse processo de da própria denominação com as demandas de uma comunidade (por exem-
sujeição a partir da fabricação de indivíduos (e de grupos plo) e não somente com a grana do edital (R$100
deles derivados, poderíamos acrescentar) moldados para mil, 200 mil), acho que a coisa engrenava. Acho
determinadas ações e, portanto, efeito e condição das de- que realmente, acima do lucro e da boniteza do
mandas do capital, ocorre outro, de servidão, por meio do projeto, deve-se ter em mente outro paradigma...
qual o indivíduo é despossuído de seu papel de referente, Este é um desafio foda: mudança de mentalidade.
numa desarticulação dos componentes de sua subjetividade.
No processo de servidão a síntese subjetiva não mais reside Maximiliano Barbosa (28 de outubro de 2014)
ou se referencia na pessoa, mas em um funcionamento Possível, porém, mais difícil. Acredito que, para
coletivo de máquinas, objetos, signos e fluxos. Nesse pro- atingir a autonomia necessária para tal, é neces-
cesso de servidão desumanizante, a subjetividade é ativada sário um sistema de produção fora dos padrões
e posta para funcionar a partir de seus componentes in- habituais. Note-se aqui que, mesmo em ações co-
fraindividuais no interior de complexos de relações que não munitárias, coletivos, etc., ainda que com grau re-
fazem distinção entre humano e não humano. duzido de comprometimento com a lógica de mer-

88 89
ferença do outro, sempre reduzido a receptor de um comando
de comunidade como agregado unitário ou como conjunto por parte de um poder que primeiramente exclui e depois re-
circunscrito de pessoas. Os processos de singularização cupera por meio de uma inclusão feita de vínculos desfavorá-
que permitem declinar dos recortes identitários das comu- veis. Entretanto, sempre permanecem brechas por onde pode
nidades deverão ser produzidos na hibridização dos seres se dar todo um outro modo de existência a partir de uma rein-
vivos: as conexões envolvem relações entre seres humanos, venção e reconstrução de novas relações. A inserção nas fres-
não humanos e o meio ambiente. Ademais tais conexões tas pode permitir a subversão ou a suspensão temporária dos
devem ser construídas fora dos modos tradicionais de en- modos tradicionais de endereçamento em prol da constituição
dereçamento que estabelecem o outro como alvo de uma de encontros feitos de outras forças e matérias. A exposição ao
ação intervencionista conforme aos interesses dos centros fora, o compartilha-
de comando, sejam tais interesses de natureza epistemoló- mento e a diferença cado, podemos nos deparar com agendas de interesse
gica, disciplinar ou empresarial. Assim, o outro constituído são apostas a serem nesse sentido (por exemplo: uma ação pode não ter
em público, habitante, consumidor, beneficiário, usuário, acolhidas. De modo objetivos financeiros diretos, mas ter um agendamen-
cliente, leitor ou espectador já é efeito de um poder que semelhante ao que to de busca de notoriedade - outra forma de geração
primeiramente exclui e depois recupera por meio de uma ocorre com o lugar, de valor ligada à lógica de mercado).
inclusão em tudo ambígua. entendido como pon-
to singular de rela- Rafael de Araújo Teixeira (26 de outubro de 2014)
Essa problematização não é propriamente nova, embora ções com o que está Também tentei pensar em alguns exemplos de que
marginal ou secundária se comparada com o funcionamen- fora dele, também a é possível e de que na verdade sempre existiu, ain-
to majoritário da própria racionalidade ocidental. Nas artes comunidade se defi- da que de modo underground... O ato mais clássico e
plásticas, por exemplo, desde os anos 60 do século XX tem ne pela singularidade simplório de passar o chapéu após intervenções ar-
sido comum certa reivindicação de ruptura com a noção de tísticas já coloca na relação artista-expectador um
obra como produto acabado derivado da ação de um sujei- valor para além das cifras das moedas colocadas no
to privilegiado – o artista – a ser admirado por um público próprio chapéu. Atualmente têm crescido os financia-
que não interfere em tal produto. Também os situacionis- mentos coletivos ou colaborativos através dos sites
tas, grupo de artistas e arquitetos, desenvolveram desde de crowfundind em que a multidão tem na rede vir-
os anos 1960 toda uma crítica ao urbanismo racionalista tual uma ferramenta importantíssima de construção
como produção especializada do espaço afinado com as do comum. Outras formas de geração de renda ou
demandas alienantes da sociedade capitalista. Também na mesmo de levantamento de fundos para viabilizar a
filosofia das ciências e na epistemologia há todo um campo cultura e a arte via economia criativa têm se mostra-
de problematização das posições e dos papéis atribuídos do possíveis, enfim, é um trabalho árduo para atuar
às figuras do leigo e do especialista, por meio das quais se dentro do sistema.
perpetuam hierarquias e distribuições assimétricas de ação
nos modos de endereçamento prevalentes. Bruno Dorneles (24 de outubro de 2014)
Algumas semelhanças com a questão abordada na
Sequer a noção bastante em voga de participação é suficien- aula anterior. Sim, é possível pensar em exemplos
te, já que, surgida de uma convocação, mantém o controle teóricos e práticos que debatem as relações de mer-
dos processos, metas e posições em jogo, fazendo com que cado e arte e que, por vezes, podem negar o primeiro
este outro com o qual se relaciona permaneça como alvo a fim de potencializar (ou simplesmente permitir) o
enquadrado de uma concessão. Todas essas modalidades segundo. A cultura, porém, como sistema de produ-
esvaziam a potência e a capacidade de criar e produzir di- ção e legitimação simbólica, na atualidade, tornou-

90 91
de relações que estabelece com o que está fora dela. E fora se uma moeda de troca de valoração específica
aqui, sublinhe-se, não equivale a uma exterioridade empí- bastante própria, especializada em um modo de
rica calcada em delimitações estacionárias de um regime especulação de lucro como se vê em poucos ou-
de distribuição de posições, mas a uma diferença intensiva, tros sistemas econômicos. Esse sistema, por si só,
capaz de romper contornos e segmentações e assim pro- permitiu e continua permitindo que toda a globa-
duzir o novo. lizada lógica de produção, distribuição e consumo
de produtos culturais (do seriado de TV ao imã de
geladeira com a reprodução da Mona Lisa na loji-
nha do Louvre) adquira um valor de mercado que
monetariza e intercede na experiência não apenas
Referências do observador com o objeto que compra, como do
observador com todos os objetos multimídia que
GUATTARI, Felix. Caosmose Um novo paradigma estético. São envolvem o produto cultural (ou seja, da compra
Paulo: Editora 34, 2012 (Coleção TRANS). da edição de colecionador do box com todas as
temporadas de Breaking Bad à própria pintura
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias da Mona Lisa). Se então partirmos do axioma de
do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. que existe uma parcela da arte e dos produtos
culturais que não pretende ser monetarizada por
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Guerra e demo- vetores macroeconômicos, estes precisam estar
cracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. atentos a formas outras de produção, distribui-
ção e consumo do resultado de seus esforços em
LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São construir propostas estésicas - tais como finan-
Paulo: Edições SESC/ n-1 edições, 2014. ciamento público via editais de cultura, fomentos
e produções coletivas...
NANCY, Jean-Luc. La comunidad inoperante. Santiago de
Chile: LOM Editores/ Universidad ARCIS, 2000.  Questão 2
A consideração da comunidade como conjunto he-
PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Paulo (Org). O terogêneo composto de humanos e não humanos
trabalho da multidão. Império e Resistências. Rio de Janeiro: traz alguma problematização para a arte e a cultura?
Gryphus/Museu da República, 2002. Justifique.

PELBART, Peter-Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Gustavo Wolff (3 de novembro de 2014)
Paulo: Iluminuras, 2011. Uma problematização no bom sentido, acredito. A
diferença é sempre uma força de movimento tanto
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, para a comunidade quanto para a arte e a cultura.
Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2006 (Coleção Milton Santos; 1). Carlos Dalla Bernardina (3 de novembro de 2014)
Traz, sim, muitas problematizações, no melhor
____________. Da Totalidade ao Lugar. São Paulo: EDUSP, dos sentidos. Essa mudança de perspectiva pa-
2008 (Coleção Milton Santos; 7). rece resolver conceitualmente um dos grandes

92 93
problemas da contemporaneidade: esta necessidade dupla zação da vida. Também os movimentos de alimentação viva,
que temos de mais liberdade e de mais vínculos. De algum sem agrotóxicos, problematizam a suposta superioridade do
modo, a pós-modernidade, em sua fase inicial a partir dos anos homem e sua crença na eficiência. A problematização da co-
1970, nos apresentou esses dois valores tão essenciais como munidade como campo de movimento heterogêneo está na
contraditórios, na medida em que a noção de vínculo estava relação dos humanos com a paisagem, com os objetos, com
sempre associada à questão da identidade. Muitos psicana- os animais e entre si. Habitar um espaço, observá-lo, documen-
listas, inclusive, associaram o alastramento da depressão à tá-lo, dançar nele, relacionar-se com um objeto, deixá-lo falar
crise de identidade. E na medida em que ampliamos nossa e não simplesmente considerá-lo a partir das minhas referên-
noção de identidade para a noção de singularidade, a partir cias habituais são questões fervilhantes que produzem vozes
de uma base relacional, ao mesmo tempo que desterritoriali- singulares. Estar com animais ou com a imagem de animais
zamos a noção de comunidade, podemos caminhar com mais é um ato que pode acordar um humano não domesticado pe-
desenvoltura pelos fenômenos que já vemos ocorrendo em los escritórios. Considerar a comunidade como complexidade,
nosso cotidiano. Nesse cenário, a arte joga um papel crucial, como distâncias mais do que proximidades, abre espaço para
embora talvez bem diferente do que jogava no cenário anterior: o humano se reinventar.
o papel de vetor para a construção dessas singularidades, não
mais preocupada em traduzir identidades, mas em possibilitar Yuri Amaral (31 de outubro de 2014)
a invenção de singularidades. Nesse sentido, processos que Luiza, gosto (e defendo muito) esse pensamento tanto da sin-
há 50 anos eram considerados marginais, como os de Lygia gularidade de cada ator/elemento como também dos desdo-
Clark, talvez agora possam estar no centro da construção de bramentos que suas relações geram/podem gerar. Isso apenas
um campo de convivências mais genuíno entre as pessoas, e enriquece nosso (multi)universo e nossas sinapses, ao ponto
entre elas e o mundo não humano. de passar não a criar expectativas e planejamentos estratégi-
cos em longo prazo, mas de entender como é possível traba-
Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro de 2014) lhar com e (re)combinar o que se tem em mãos.
É certo que vivemos em um mundo no qual humano é um lu-
gar considerado como privilégio, como um dado de prestígio Yuri Amaral (31 de outubro de 2014)
na criação. Isso vem de uma cultura antropocêntrica europeia Penso que essa problematização depende, também, de como
que recebemos de herança no Brasil – esta também postula se enxergam essas relações, seus atores e desdobramentos.
a comunidade como uma construção homogênea e coerente Qualquer coisa é possível conforme as combinações realizadas
com os princípios territoriais do Estado-Nação. Considerar a entre esses elementos, independentemente de essas combi-
comunidade como heterogeneidade em que o humano não é a nações serem “induzidas” ou “acontecerem naturalmente”.
única vida implica considerar muitas culturas que resistem à
normalização da cultura brasileira. Trata-se da visão indígena Luiza Alcântara (31 de outubro de 2014)
de que as árvores ou as pedras dividem um destino em comum É claro, podemos pensar as artes relacionais em que a co-
conosco, são nossos antepassados. Isso se contrapõe à visão munidade está completamente associada ao projeto artístico,
hegemônica de que a espécie humana é conquistadora e pra- assim como os sites specific e a arte educacional, entre outros.
ticamente sem comunicação com o que não seja ela. Apontam Esses projetos (porque não são criações de objetos, mas a pro-
a comunidade como espaço heterogêneo não exclusivamente dução/proposição de relações estéticas) envolvem todo o am-
humano também o veganismo e o vegetarianismo, modos de biente em torno (pessoas, natureza, construções, paisagem...),
viver que problematizam o modo como a vida animal é tratada, o contexto de onde e quando estão inseridos, assim como o
fazendo do hábito uma ação que não aceita a mercadologi- resultado expositivo do trabalho (o tornar público). Concordo

94 95
com a professora Simone, quando diz que a arte não é a única pra chegar ao Outro, na comunidade, enfim, sem prejuízos
forma de “conectar e nos abrir ao que não somos, de nos fazer maiores para não só a comunidade, mas para o planeta. Veja,
variar, transformar, diferir [...]” Vejo as produções de diferen- por exemplo (só pra jogar mais palha na fogueira - rsrs), a
tes áreas se mesclando muito, tanto que não conseguimos VALE, independentemente do local no Brasil onde essa mine-
distinguir se um trabalho é ou não arte. Podemos pegar vários radora se estabelece, o modo como chegam às comunidade é
exemplos dessa Bienal de São Paulo, em que os trabalhos sempre invasivo e depredador, não levam em conta a cultura
expostos se confundem com educação, pesquisa de campo de ancestral local, nem os valores, nem a crise ambiental emer-
um antropólogo e por aí vai. Talvez a arte esteja deixando de gente, ou seja, o planeta dentro desse paradigma de consumo
ser arte e se tornando cultura, por perder sua característica (algo identificado por alguns autores como lógica da “obso-
de autonomia (o que a define como algo distante da vida) para lescência programada”: consumir e descartar como se a na-
se tornar algo mais próximo da vida. tureza fosse infinita, uma lógica criada nos EUA na década
de 1920, diga-se de passagem). Dentro dessa ótica, olha-se
Ricardo De Cristófaro (30 de outubro de 2014) mais para o resultado (lucro para a empresa) do que para o
Penso que muitas comunidades, como conjunto heterogêneo, processo (modos, estratégias) menos hostis à comunidade.
permanecem e se identificam de maneira muito intensa com Então, sendo prático, qual é a forma/modo de chegar ao Outro
a dimensão do não humano. O não humano como um vetor de (levando em conta questões psíquicas, emocionais e físicas
significação e identidade. Também de localização. Isso ocorre como colocastes) sem ser hostil à comunidade? É isso que me
com a raça humana já na formação dos primeiros grupos so- pergunto atualmente. Vejo em alguns grupos de arte ou de ati-
ciais. Penso, por exemplo, no momento em que o ser humano vismo problematizações desse paradigma predatório e busca
arrastou e levantou grandes pedras e a partir daí criou o que por alternativas para essa postura de indiferença ao contexto
conhecemos como “menir”. O menir é a produção de um lugar. ambiental, social, econômico. Enfim, se a pergunta estiver sob
Um espaço ocupado. A questão da transformação de espaços esse ponto de vista, acho que é por aí, senão, desconsiderem
em lugares a partir dessa ação embrionária do menir está minha fala, please.
muito ligada a práticas e intenções artísticas desde sempre.
Arte como lugar. Bruno Dorneles (28 de outubro de 2014)
Não consigo perceber a natureza dessa problematização, no
Júlia Nascimento de Oliveira (28 de outubro de 2014) caso de sua existência. Mais uma vez devo me limitar ao pouco
Acredito que a grande problematização criada a partir do con- que é possível tirar dos conceitos que envolvem o enunciado.
ceito de comunidade como conjunto heterogêneo seja o reflexo Partindo do princípio de que a figura humana é uma construção
que a comunidade implica no espaço onde está inserida e vice- baseada em princípios fisiológicos, mas, principalmente, em
versa. As manifestações comunitárias alteram dinamicamente princípios psíquicos (aceitamos os corpos estranhos, desde
o espaço habitado, transformando usos, formas e sentidos, que conscientes de seus próprios atos) e que o não humano
tanto dos seus agentes quanto dos seus reagentes. O resultado é um espelho inverso do conceito anterior, fico limitado a su-
dessa dinâmica é uma constante renovação. por que não existe qualquer tipo de problematização pela qual
arte e/ou cultura sejam capazes de operar através de reflexão
Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014) dialógica. Por exemplo, a relação do humano com o não hu-
Ô, Bruno, boa reflexão. Mas ainda assim, tentando entender mano, como apontada pelo Ricardo, não consegue se mostrar
aqui tua linha de raciocínio, fiquei me perguntando como pode heterogênea. Vejamos que somos criados a acreditar e a agir
não haver nenhuma problematização na RELAÇÃO entre ho- de acordo com a ideia de que somos o topo da cadeia alimen-
mem e meio ambiente? RELAÇÃO como modo/estratégia/tática tar, sendo as nossas vontades todas saciáveis e nossos atos

96 97
para alcançá-las, todos justificáveis - talvez por isso Michael
Apple, no riquíssimo artigo Consumindo o outro: branquidade,
educação e batatas fritas baratas, consiga demonstrar o capri-
cho capitalista das formas de produção bastante não humanas
em que se dão o cultivo das batatas do McDonald. Desse ponto
de vista, a comunidade é sempre uma série de agrupamentos
irregulares que dividem muitos poucos princípios operadores
de suas formatações práticas. No mundo moderno, as fontes
de energia não renovável, principalmente o petróleo, são no
que se baseia a cola de boníssima parte do capital. Não ha-
vendo uma comunidade como um ideal de união entre todos os
seres que configuram o contexto em que vivemos, seu tempo
e seu espaço, o que resta à arte e à cultura pode ser o oposto
imediato: evidenciar a discrepância que existe entre aqueles
que erguem as bandeiras do social em nome de um mercado
que conforta sua posição elevada em sua cadeia de poderes.

Cândida Soares Leão Teixeira (27 de outubro de 2014)


A comunidade traz uma problematização para a arte e a cul-
tura que a enriquecem, porque a diversidade dos tipos unidos
em uma comunidade deveria ser motivo para engrandecer o
universo das singularidades agrupadas neste lugar. O outro
deve ser visto como outro, e não como espelho identitário no
qual cada um se reconhece, mas o outro como aceitação da
alteridade inerente dele próprio. Cada um deve fazer o exercí-
cio de aceitar o diferente e incluí-lo em seu mundo, aceitando
com este pensar a multidão que existe também em cada um.
A comunidade também pode pertencer ao mundo virtual. Hoje
com a internet podemos nos unir em qualquer localidade pela
afinidade de ideias ou também pela vontade de discutir e pro-
por inovações dentro de pensamentos diversos.

98
Paula Bruzzi Berquó*

Arte tempo, que a protege da variabilidade constante das

e cotidiano:
circunstâncias, e que lhe permite capitalizar vanta-
gens, prever expansões e antecipar-se às etapas do
jogo. Esse tipo de ação, característica da atividade
aproximações táticas militar, configura, segundo Certeau, a base da ciência
e da política modernas.

A tática, por sua vez, é determinada pela falta de um


Em que medida o fazer artístico atravessa a vida cotidiana? próprio: ela existe onde não há limites entre dentro e
Como esses cruzamentos operam e qual é a sua potência fora, isto é, onde o ter-
em promover questionamentos críticos em torno ao modo reno da ação é o lugar
como o espaço urbano é vivido e produzido? De forma a do Outro. Uma operação Questão 1
* Arquiteta suscitar reflexões a esse respeito, parece-nos oportuno de ordem tática não se Em que medida a arte, em sua interseção com a es-
e urbanista abordar, primeiramente, as práticas cotidianas e a sua di- refere, portanto, à to- fera cotidiana, apresenta potenciais táticos? Discuta
graduada na mensão política. talização imbricada na esta questão com base em exemplos.
Escola de
Arquitetura existência de um campo
da UFMG. Segundo Michel de Certeau (1994, p.31), “o cotidiano é aqui- próprio, mas a um mo- Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
Mestranda lo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), vimento que se faz no Na medida em que interferimos numa realidade
no Núcleo de
Pós-Graduação
nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma espaço controlado pelo “comum” imposta pelo sistema e construímos
em Arquitetura opressão no presente”. Nos dois volumes de sua obra A “inimigo”, em meio às fa- questões e outras possibilidades de realidade
e Urbanismo invenção do cotidiano, o autor dedica-se à análise da dimen- lhas de suas condições com uma “organização estética” que desperte
da UFMG.
são política das práticas ou maneiras de fazer cotidianas, de vigilância. É um tipo um novo potencial estrutural, esta arte passa a
Integrante
do grupo de empreendendo, para isto, uma distinção entre tática e es- de ação hábil, movida ter um potencial tático. A arte precisa se equipar
pesquisa tratégia. Para ele, trata-se de duas modalidades de ação, as pelas ocasiões. É a pri- de instrumentos, conhecimentos, ferramentas e,
INDISCIPLINAR. quais promovem diferentes tipos de operações no espaço: mazia do tempo frente finalmente, criar estratégias, para então iniciar
Pesquisadora
no projeto enquanto a estratégia produz, mapeia e impõe um espaço ao lugar, pura mobilida- suas ações táticas. Isso me soa como empreen-
“Cartografias próprio, a tática utiliza o espaço existente, altera-o e mani- de subversiva em meio der, ou criar projetos, controles de produção, en-
Emergentes: pula-o. Uma ação tática intervém, assim, no próprio cam- aos espaços de poder fim, a arte também deve ser encarada como algo
a distribuição
po que a regula, introduzindo a esse patamar regulatório postulados pelas estra- estruturado e planejado para ser tático. Como
territorial
da produção primeiro um nível outro, que obedece a regras distintas e tégias. Trata-se, para exemplo, temos em Belo Horizonte a manifes-
cultural em instaura, no lugar mesmo de sua dominação, uma plurali- Certeau, das maneiras tação contra a requalificação do Viaduto Santa
Belo Horizonte” dade de possibilidades. de fazer dos consumido- Teresa, em que a intervenção tática reuniu mo-
(SEC/MinC/
CNPq). Membro res, que modificam, por radores, MCs, artistas, arquitetos, estudantes e
da equipe A estratégia caracteriza-se, assim, pela definição de um meio do uso, os produ- ocupantes do Corredor Cultural para mostrarem
idealizadora do lugar circunscrito, que sirva de base para a gestão das re- tos e espaços que lhes que ali já existia uma cultura vigente, uma biopo-
projeto “Museu
do Instante” lações com o que lhe é externo. Esse lugar-base é o que são dados à assimilação. lítica interferindo na vida diária do local.
(2014). lhe confere autonomia em face ao caráter contingente do

100 101
Se o que subjaz o esforço do autor em caracterizar esses Valéria da Silva Freitas (11 de novembro de 2014)
diferentes tipos de ação é justamente a tentativa de pensar Ao ler as contribuições dos colegas e o texto
esse uso para além das representações redutoras comu- principal, eu me lembrei de uma experiência que
mente usadas pelos gestores do espaço urbano, a nós cabe acompanhei em um projeto de artes plásticas na
aqui outro desafio: trata-se de pensar possíveis relações periferia de São Paulo. Foi uma experiência curio-
entre esse uso e as práticas artísticas. De que maneira a sa que gerou opiniões divergentes. Em síntese,
arte atravessa as maneiras com que os cidadãos se apro- o projeto social consiste em pintar as fachadas
priam do território que ocupam? Em que medida seus pro- das casas com cores e desenhos produzidos pe-
cessos são capazes de suscitar incorporações subversivas, los próprios moradores. A princípio, a adesão da
por parte desses cidadãos, das formas urbanas que lhes comunidade a esse projeto foi imediata. Eles se
são impostas? Se, na ótica de Certeau, a estratégia é uma apropriaram da ideia do projeto e começaram a
forma de operação baseada no estabelecimento de lugares atuar junto com a artista plástica para a transfor-
de poder, em que medida processos artísticos podem ser mação da fachada da casa. Entre os moradores,
pensados como táticas de baralhamento desses lugares? houve um que colocou a casa à venda assim que a
pintura foi finalizada. A casa rapidamente foi ven-
Na base de tais questionamentos reside um ponto que dida, por um valor acima da média. Esse fato gerou
nos parece fundamental: a ideia de que o espaço cotidia- diversos questionamentos: “Como se desfazer da
no é, antes de mais nada, o espaço de um mundo comum própria casa, pintada e desenhada pelos próprios
partilhado, e de que uma discussão a seu respeito deva filhos? Que oportunistas!”; “O projeto não foi capaz
ser, portanto, acompanhada por outra, referente a como de sensibilizar o morador a gostar do seu bairro e
esse mundo comum se constitui e se presta à participação. da sua casa?”; “O morador tem o direito de esco-
Trata-se, em outras palavras, de salientar o caráter fun- lher onde quer morar ou não?”. Vejo esse como
damentalmente político do espaço da vida cotidiana e das um exemplo. Qual é a opinião de vocês sobre essa
contínuas negociações que lhe são constitutivas. experiência e seus desdobramentos?

Para a análise de tais questões, a ideia de partilha do sen- Carlos Dalla Bernardina (7 de novembro de 2014)
sível, desenvolvida pelo filósofo francês Jacques Rancière, Na medida em que ressignifica, reorganiza e atu-
nos parece especialmente relevante. aliza o material simbólico que subjaz no incons-
ciente coletivo das singularidades, estruturando
Denomino partilha do sensível o sistema de evidên- aquelas “arquiteturas do sensível” rancierianas...
cias sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a exis- A questão é se o simples “baralhamento” desse
tência de um comum e dos recortes que nele defi- material simbólico, por si só, seria capaz de le-
1. Segundo nem partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, var a uma ação/transformação no âmbito políti-
Aristóteles, em portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e co... Penso que não seria justo com a arte cobrar
trecho citado
partes exclusivas. (RANCIÈRE, 2005, p.15) dela esse peso... Seria inclusive perigoso... A partir
por Rancière, “o
cidadão é quem de determinado ponto, outras instâncias devem
toma parte no Segundo o autor, essa partilha, que se encontra no cerne da arrematar os movimentos visionariamente inci-
fato de governar política, não se reduz, contudo, a um simples tomar parte1 tados pela arte, libertando-a da responsabilidade
e ser governado”
(RANCIÈRE, como governado ou governante, mas inclui uma etapa ante- de liderar uma transformação efetiva da organiza-
2005, p.16). rior, referente ao ato de determinação de quem pode tomar ção “policialesca” de determinado contexto social.

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parte nesse mundo partilhado. A definição de tal “compe- to para: como poderiam estas Na falta de memória sobre os inúmeros
tência” refere-se a uma questão estética, que se encontra configurar mecanismos táticos exemplos cotidianos, além dos já citados
na base do que o autor entende como política. capazes de fazer frente à ordem por aqui, podemos pensar em Duchamp
policialesca, dando a ver o até como icônico desse movimento tático-ar-
Rancière (2011) caracteriza a política - ou a lógica política então invisível e promovendo, tístico, valendo-se de objetos do cotidiano
- como um contraponto ao que denomina ordem policial. A assim, deslocamentos no regi- instituído para subverter-lhes e inventar-
Polícia, para ele, não se refere a um aparato estatal desti- me do sensível vigente na cida- lhes novos sentidos críticos.
nado à repressão, mas a uma “ordenação da comunidade de? Em outras palavras, como a
em que cada parte é compelida a manter-se fiel a seu lugar, arte assume, em meio à experi- Bruno Dorneles (3 de novembro de 2014)
à sua função e à sua identidade” (2011, não paginado). Tal ência cotidiana do espaço urba- Tentando escapar do que considero ser o
ordem diz respeito, portanto, a um arranjo do mundo sen- no, um papel político entendido óbvio, vou me ater à resposta que foge de
sível baseado em uma concepção estática da comunidade, nos termos de Rancière? exemplos do mundo da arte institucionali-
na qual os sujeitos têm seus lugares definidos em função zada - a fim de evitar chegar aos mesmos
2. Cf. RANCIÈRE, de sua “ocupação”: daquilo que se faz, de onde e de quando Nesse ponto cabe um questio- exemplos que vêm sendo vistos ao longo
Jacques. O se faz. Nesse arranjo, o pensável, o visível e o audível se namento importante: quais são das últimas décadas dentro das escolas
que significa
distribuem com base em uma clara separação entre o real os limites da arte como catego- de arte de pesquisa estética contemporâ-
“estética”? .
Lisboa: KKYM, e o ficcional e, de forma mais abrangente, entre o possível ria? O que dela ainda podemos nea. Eu me atenho, portanto, na aparente
2011. e o impossível2 . esperar? É preciso salientar desigual medida que existe entre esta tal
que o que reunimos aqui - de esfera cotidiana e o que podemos perceber
A política teria como objetivo justamente romper com tal maneira talvez excessivamen- como arte neste contexto. Ressalvo aqui
organização, de forma a expor as circunstâncias que a te redutiva - sob tal nominação, uma interpretação minha da pergunta:
subjazem, e possibilitar a recriação dos códigos sensíveis refere-se a um campo mais minha resposta se dá na procura da arte
que a sustentam. O seu papel seria, assim, o de ativar uma abrangente, não restrito às DA esfera cotidiana, em contato com o co-
espécie de baralhamento entre o que se dá a ver no mundo instituições da arte, ou a obras tidiano, e não da arte NA esfera cotidiana,
sensível ou, em outras palavras, de apontar para outras que apresentem pretensões traduzida em modos operários de trans-
partilhas desse universo. É por meio dela, e da dimensão explicitamente “artísticas”. ferência de matéria e sentido do seu lugar
estética a ela inerente, que, na perspectiva de Rancière, Interessa-nos, mais do que isso, de banalidade ao pedestal institucional da
sujeitos excluídos do arranjo ordenado pela Polícia teriam investigar formas de experiên- legitimação absoluta. A ideia do cotidiano
a possibilidade de se fazer ouvir ou, dito de outro modo, de cia estética que permeiam o sobre arte é, a meu ver, tudo aquilo que
se tornar seres pertencentes a um mundo e a uma lingua- espaço vivido, muitas vezes a
gem comuns. ponto de quase confundirem-
se com ele. É o caso, por exemplo, daquelas envolvidas nas
Dessa breve reflexão parece-nos possível intuir que o que inscrições urbanas e nos atos coletivos de ocupação cultu-
está em jogo no espaço da vida cotidiana é justamente essa ral ocorridos recentemente nos espaços públicos de Belo
negociação em torno à possibilidade de tomar parte em um Horizonte (MG), os quais analisaremos à frente. É importan-
universo comum. Ora, se considerarmos tais questões a te salientar que a investigação que aqui faremos é pensada
partir das ações artísticas urbanas, podemos retomar, sob como forma de suscitar possíveis continuações. O objetivo
outra ótica, a indagação que fizemos acima. Se antes nos é estimular os leitores a rastrearem outras situações/ações
perguntávamos em que medida tais práticas poderiam ser que, residindo no tênue limite entre ação cotidiana e prática
tidas como táticas, ora podemos ampliar tal questionamen- artística, apresentem uma dimensão potencialmente tática.

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Inscrições superficiais Feita essa breve digressão, voltemo-nos
ao questionamento que motiva o presente
No pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), a item: como o uso das superfícies urba-
superfície aparece como espaço privilegiado de manifesta- nas pode conferir-lhes um caráter tático?
ção das forças e potências horizontais. O superficial é tido Propomos a investigação dos muros da
pelos pensadores como contrário ao profundo, à verticalida- cidade como potencialmente passíveis de
de, ao linear e aos sistemas hierarquizados, assim como o abrigar processos de subversão da forma
sistema rizomático é definido, em sua obra Mil Platôs, como com que a urbe encontra-se organizada.
contraponto ao sistema-raiz. Segundo os autores, o rizo- Mas seria isso possível, sendo
ma seria uma espécie de ramificação superficial, “que se se mostra eficientemente útil e que al- esses - limites físicos entre o
expandiria em todos os sentidos até suas concreções em cança um atributo de beleza construído dentro e o fora, entre o público e
bulbos e tubérculos”. Já a raiz, representação do profundo, de forma coletiva, mesmo que desigual, o privado - a expressão máxima
apresentaria necessariamente uma forte unidade principal, entre o design de grandes marcas e o tão da ordem imposta no ambiente
essencial para a satisfação da ordem binária que caracte- problemático “gosto médio”. As modula- urbano? Forma de estratificação
riza a sua estrutura. Se no rizoma qualquer ponto pode e ções da moda ao longo dos anos, o design e estriamento, instrumento de
deve ser conectado a qualquer outro, sendo a ruptura de industrial e seus paradigmas formalistas, separação por excelência, ma-
suas possíveis conexões assignificantes para o funciona- meia polegada a mais ou a menos em um nifestação nítida da constituição
mento do sistema, na raiz o princípio reside na fixação de smartphone - que vêm nas cores branca de lugares próprios - de que
um ponto principal, a partir do qual se opera uma ordem ou azul -, são exemplos de como a arte maneira pensar tais estrutu-
hierarquizada. A superfície, como espaço de ramificação do pode transfigurar a interface do relacio- ras como espaço de experiência
rizoma, apresentaria, assim, um caráter múltiplo e desie- namento humano ao seu redor. O que a subversiva?
rarquizado. Seu perene estado de movimento permitiria, na arte institucionalizada, por outro lado,
perspectiva dos filósofos, um constante processo de des- tem feito ao longo das últimas seis déca- Voltemos ao pensamento de
territorialização-reterritorialização dos pontos, de forma a das, para mais, é olhar atentamente para Certeau. A tática não seria, para
gerar uma rede dinâmica. O espaço superficial seria, nesse essas novas formas de operar os meca- o autor, justamente uma ação
sentido, um espaço nômade, de eterno devir. Seria a super- nismos estéticos e relacionais dos seres que se faz na ordem imposta, de
fície, para Deleuze e Guattari, o espaço da tática, tal como sociais com os seus aparatos moderado- forma a desmontá-la? Em meio
entendida por Certeau? res, abstraindo daí uma linguagem tanto a esse caráter rígido do muro,
estética quanto política, em uma investi- pensemos as possibilidades de
gação em que o resultado é o retrabalho mutação engendradas por suas
do cotidiano baseado em si mesmo, em faces. Palco de apropriações
objetos, formas ou momentos capazes de múltiplas, de construção e so-
demonstrar tanto a fragilidade do que as breposição de narrativas e lin-
grandes corporações entendem ser um guagens, tais superfícies confor-
sistema infalível quanto a força destrui- mam espaços de movimento, e,
dora que a dúvida e o passo cego podem assim, de transformação cons-
causar. Penso que muito do ativismo fe- tante. Tratemo-las, com base
minista na arte possa se encaixar neste nas ideias deleuzianas, como es-
meu pensamento, com artistas como paço de deslocamento e conexão.
Barbara Kruger ou Jenny Holzer. Seria possível, nessa perspectiva,

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pensá-las como expressão de um universo compartilhado? por imagens publicitárias vazias e Questão 2
Lugar de visibilidade e conflito, o fato é que as superfícies neutralizantes – para alguém su- O que ainda podemos esperar da arte
urbanas configuram desde o início do século XX, impor- postamente interpelado pelo meio, como categoria? Quais são os limites
tante palco de disputa simbólica e ideológica nas cidades. o ato de inscrever-se na cidade diz entre o que é legitimado como trabalho
Nesse período inicial, contudo, as intervenções superficiais respeito a uma ruptura mais radical. artístico e as práticas cotidianas? Ilustre
deviam-se, sobretudo, à atividade midiática, impulsiona- Seria essa uma forma de o sujeito os argumentos com exemplos.
da pelo amplo desenvolvimento das indústrias de bens de marginalizado, excluído do mundo
consumo. Em 1928, Walter Benjamin escreve: ”nuvens de comum, tornar-se, ao menos po- Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do tencialmente, parte do processo de Estamos passando por um novo mo-
pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, construção de seus significados? mento das manifestações artísticas
tornar-se-ão mais densas a cada ano seguinte” (BENJAMIN, e as suas relações com o cotidiano.
1997, p.28). De fato, as apropriações dos muros urbanos A esse respeito, destaca-se o estudo As superfícies e plataformas do dia a
ganharam grande amplitude ao longo do tempo, adquirindo feito por Hygina Bruzzi, na década dia nos obrigam a repensar em como
formas e pautas variadas. A atividade publicitária passa a de noventa, a respeito dos graffi- criar estratégias e ações táticas para
disputar espaço com inserções artísticas, textos poéticos e ti nova-iorquinos e de sua relação executar movimentos estéticos cada
intervenções de forte viés político. com as inscrições produzidas na ci- vez mais políticos. Parece que a arte
dade de Belo Horizonte, a partir do ganha cada vez mais essa necessida-
Os outdoors produzidos pela norte-americana Barbara seu contato com o grupo de grafitei- de de um planejamento coletivo para
Kruger, na década de 1980, podem ser vistos como expres- ros Posse de Santa Lúcia. Segundo repercutir em respostas eficazes e,
são das várias faces dessa disputa. A artista, que se apro- a filósofa, que utiliza as teorias de finalmente, em ações que interfiram
pria da linguagem midiática na tentativa de promover uma Jean Baudrillard como base para na nossa realidade. Hoje as informa-
3. Deve-se sua ressignificação, inscreve, sobre imagens amplamente sua análise, as inscrições repre- ções são exageradas e os interesses,
pontuar que o difundidas pelos meios de comunicação, frases que susci- sentariam uma forma de reivindica- dispersos, mas esta exacerbação “vir-
graffiti, apesar
de ter sido aqui tam um pensamento crítico frente às condições de controle ção do direito ao simbólico, que se tual” está criando um efeito contrário
considerado a que a sociedade contemporânea encontra-se submetida. apresenta, na cidade formal, como no sentido de repensar para criar cri-
como pertencente Na Documenta VII, de 1982, a artista espalhou, pela cidade exclusividade da classe letrada. O térios e escolhas e pautarmos nossa
à mesma
modalidade que
alemã de Kassel, pôsteres nos quais imagens publicitárias cerne da questão das inscrições vida em algo significativo e vital (inde-
a pixação, já eram acompanhadas de frases como “os seus momentos residiria, assim, na busca pelo do- pendentemente do Estado e das polí-
encontra-se bem de alegria têm a precisão de estratégias militares”. mínio de uma linguagem comum por ticas neoliberais) para finalmente nos
mais assimilado
parte dos grupos marginalizados, tornarmos CIDADÃOS DA ARTE, em
pela indústria
cultural que esta Mas, para além de intervenções autorais como essa, des- que lhes concedesse a possibilidade que qualquer um pode criar ou inter-
última. taca-se outra modalidade de apropriação superficial do de influir na vida política da cidade. mediar possibilidades de interseção
espaço urbano. Trata-se das pixações e do graffiti3, que se Em suas palavras: entre arte, política e cotidiano. Um
4. Rancière
desenvolve a distinguem dessas últimas pelo fato de serem produzidos, exemplo de tudo isso começa nas op-
ideia de glória ao menos em teoria, através da ação direta do homem co- ções e atitudes diárias, cotidianas, de
do qualquer um mum, ou daquele a que poderíamos chamar, aproprian- o que “compartilhar”, de do que par-
em: RANCIÈRE,
Jacques. A par-
do-nos das ideias de Rancière, de qualquer um4. Assim, se ticipar, de o que conversar, de o que
tilha do sensível: as obras de Kruger nos parecem tentativas de promover consumir. Hoje a Europa já acredita
estética e política. um deslocamento do lugar do sujeito de simples obser- na falência do capitalismo (mas aqui
São Paulo: Exo/
vador passivo – “doutrinado” frente à paisagem dominada temos um Estado que estimula um
Ed. 34, 2005.

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No nosso caso, onde a violência é direta e muda, e a consumo “burro/inconsciente”).
passagem ao ato não é mediada por nenhuma fala ou Acredita-se no consumo comparti-
escrita legitimadora, esse tipo de inscrição, vem, a lhado, em que o ter será um valor
contrapelo, demandar o mínimo de reconhecimento e passado. Por que não nos apode-
de direito à participação na civitas, através da reivin- rarmos disso estrategicamente e Nesse processo, os símbolos inscritos
dicação, não só do direito à palavra, mas de algo que iniciarmos ações táticas estéticas constituem testemunhos de uma his-
a precede: o aprendizado da palavra. Pronunciar e para desconstruirmos nossa ló- tória viva e dinâmica, de uma narrativa
pronunciar-se: é a partir daí que tem início a cidada- gica econômica? Exemplos: com- conflitante e heterogênea, que, bem
nia e a vida política, ou seja, a vida na polis. (BRUZZI, prar carro compartilhado, bazar ou mal vista, permanece acesa, como
1997, p.23) de trocas de roupas, reinventar e sintoma relevante em meio à tentativa
interferir em espaços urbanos com latente de transformação da cidade em
A superfície aparece, assim, como lugar de negociação, de ações culturais... Acho que a arte cenário pasteurizado e artificialmente
repartilha do mundo comum e, mais do que isto, de refun- pode enveredar por questões muito consensual.
dação de uma sua linguagem. A frase “só assim você me mais cotidianas que simplesmente
escuta!”, inscrita na estrutura do Viaduto Santa Tereza, no superfícies e plataformas políticas, Experimentações
centro de Belo Horizonte, é um das muitas expressões des- criando categorias tão próximas colaborativas
sa condição. e palpáveis de qualquer cidadão
que chegue a interferir no sistema Ao pensarmos as práticas artísticas a
Um exemplo recente e emblemático das formas com que a de uma forma dominó gradativa e partir de sua aproximação com a vida
linguagem vem tomando as superfícies urbanas no Brasil é crescente até romper as estruturas cotidiana, outra relevante dimensão
a ação do coletivo Projetação, surgido no Rio de Janeiro (RJ) vigentes com ações e cidadãos vigi- nos ocorre: trata-se do que podería-
em meio às manifestações de junho de 2013. O grupo opera lantes no seu cotidiano. mos considerar como esfera colabora-
de forma colaborativa, projetando em muros, escadas (e até tiva, ou àquela que se refere, em linhas
no Cristo Redentor) frases sugeridas por qualquer cidadão gerais, à busca por uma ressignificação
que esteja disposto a colaborar. Graças à sua ação, frases da realidade a partir da ação em comum. De forma
estampadas nos cartazes que povoaram as ruas durante al- a introduzir a análise de tais práticas e de suas pos-
guns dos atos de manifestação coletiva em junho puderam síveis implicações táticas, apresentaremos, em um
imprimir-se nas estruturas urbanas e ganhar maior visibi- primeiro momento, as origens do que a teórica Miwon
lidade. Seria tal ação uma possível forma de amplificação Kwon designa como “arte comunitária”. Em seguida,
das vozes inauditas na cidade? abordaremos o que estamos denominando “práticas
artísticas colaborativas”. Tais ideias, como veremos,
Feita essa breve análise, que se insere como convite ao apesar de similares, apresentam entre si algumas
questionamento das formas e dos preceitos que nos são diferenças relevantes.
dados à assimilação na cidade, restam-nos algumas ques-
tões: seriam, afinal, as inscrições superficiais urbanas Segundo Kwon (1997), a “arte comunitária” configura
movimentos táticos? O que se sabe é que, a partir dessas um desdobramento tardio do movimento site-specific,
intervenções, constrói-se, paulatinamente, uma cidade surgido em meio ao Minimalismo, no final da década
informal, que ao sobrepor-se à cidade formal, aos seus de sessenta. Trata-se de uma ampliação da ideia do
anúncios, edifícios, muros e limites, dá a ver os confli- site, que deixa de referir-se apenas ao caráter espa-
tos pretensamente camuflados pela ordem que a regula. cial ou locacional da obra, como ocorria nas décadas

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de sessenta e setenta, e passa a incluir, nas realizações site- Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)
oriented da década de noventa, a comunidade e os conflitos O questionamento sobre a pertinência das práticas artísti-
sociopolíticos a ela relacionados. cas estar pautada em categorias me parece uma questão
muito fomentada no modernismo, mas que ainda levanta
Segundo ela, o primeiro momento, ou a formação da arte debates em nosso momento contemporâneo. É relevante
site-specific, caracteriza-se por uma ruptura com o caráter não perder de vista a existência de um campo específico,
ideal do espaço modernista e com a ideia de obra autôno- mesmo que isso não seja importante para alguns e não
ma e autorreferencial. Tal período é denominado fenome- agrade a todos. A própria constatação de existência de
nológico, e apresenta como prioridade a relação da obra uma “arte contemporânea” já é uma forma de raciocínio
com o corpo, a ideia de ‘imediatez’ sensorial no tempo e no por categoria de arte. A produção artística está por natu-
espaço. Em um segundo momento, o site passa a ser visto reza envolvida por um sistema de práticas e conceitos que
não mais em termos apenas físicos e espaciais, mas como definem o campo. Certamente proposições artísticas que
“estrutura cultural”. Essa etapa, por lidar diretamente com atuam no limite desse campo nas fronteiras entre arte e
questões concernentes ao confinamento dentro do qual o vida ou arte e cotidiano problematizam constantemente a
artista opera nas instituições artísticas, é chamado por ela noção de categoria.
de crítico-institucional. Apesar de já aí observarmos uma
ampliação da noção de site e da abrangência dos questio- Taís Freire de Andrade Clark (13 de novembro de 2014)
namentos presentes na obra de arte como um todo, é no A arte como meio de expressão pode ser apropriada por
terceiro momento que esta ampliação parece atingir, de todos, tanto por aqueles que a veem como meio de fuga
maneira mais incisiva, a esfera do espaço urbano. (como já trabalhamos na questão anterior) quanto por aque-
les que, por sua posição na sociedade, já detêm essa voz.
Tal momento, referente à década de noventa, diz respeito Assim a arte passa a ser mais uma forma de monopólio
à busca por um maior engajamento da arte com o mundo de um ponto de vista único - o legítimo. É muito comum
externo e a vida cotidiana. Devido à expansão de sua relação a tentativa de delimitar a arte e enquadrá-la em um sen-
com a cultura e com a realidade social, a arte site-specific tido estético que não admite outro tipo de opinião, como
(ou site-oriented) desse período passa a configurar, segundo se apenas um dito “especialista” pudesse interpretá-la e
Kwon, uma espécie de “arte comunitária”, envolvendo práti- traduzi-la para os leigos. Por trás disso existe um grande
cas culturais ativistas e políticas de afirmação de contextos interesse - o de controle da produção artística. Ora, con-
locais. Trata-se, segundo ela, de um amplo processo de trolar algo que muitas vezes visa exatamente a quebrar o
fortalecimento da ação artística como instrumento social e próprio controle é completamente descabido! Como podem
político. Segundo Kwon: criar critérios para legitimar algumas práticas enquanto
se deslegitimam outras, baseado em algo extremamente
[...] formas atuais de arte site-oriented, que pronta- subjetivo? Esse enquadramento da arte, apesar de não fazer
mente se apropriam de questões sociais (com fre- o menor sentido, é utilizado exatamente para restringir a
quência por elas inspiradas) e que rotineiramente expressão de certos grupos; é muito fácil marginalizar as
incluem a participação colaborativa de grupos de pú- pessoas simplesmente categorizando sua obra como “não
blico para a conceitualização e produção do trabalho, arte”. Assim acontece com alguns estilos musicais (como
são vistas como uma forma de fortalecer a capaci- o funk) e artistas (principalmente da periferia), que não têm
dade da arte de penetrar a organização sociopolítica sua arte reconhecida como tal.
da vida contemporânea com impacto e significado

112 113
maiores. Nesse sentido, as possibilidades de conce- Vanessa Camila da Silva (11 de novembro ro Hélio Oiticica, em meio a qual
ber o site como algo mais do que um lugar – como de 2014) destacamos a ideia do Crelazer,
uma história étnica reprimida, uma causa política, Acho estranho categorizar a arte, tendo referente à busca pelo desenvol-
um grupo de excluídos sociais – é um salto concei- em vista que daí entra a questão estéti- vimento, por parte do artista, do
tual crucial na redefinição do papel “público” da arte ca, o que é belo e feio e para quem? As que seria um “sonho comunitá-
e dos artistas. (KWON, 1997, p.8) práticas cotidianas são um convite para rio”. Esse vetor do pensamento
refletir o espaço e como o ocupamos e oiticiquiano preconiza a ideia de
Na arte site-specific comunitária, a ideia de site é deslocada cuidamos dele. O grafite e a pixação são que atividades coletivas inventi-
do âmbito físico para o discursivo, e passa a basear-se na manifestações que expressam uma lin- vas e não repressivas, incluídas
troca cultural, no movimento e na construção de significa- guagem das ruas, seja de grito ou protes- no âmbito do lazer, seriam for-
ção em rede. Ao estruturar-se “inter(textualmente) mais to. O documentário Pixo expõe muito bem mas políticas por si só. Uma es-
do que espacialmente”, o site adquire, nesse momento, um em seus relatos o cotidiano dos pixadores pécie de gesto tático, se quiser-
caráter transitório e, consequentemente, transterritorial, e apresenta a pixação como uma escritu- mos nos aproximar das questões
constituindo não um ponto ou um mapa, mas um itinerário, ra urbana da contemporaneidade que é levantadas nessa análise. Isso
“uma sequência fragmentária de eventos e ações ao longo feita em meio a escaladas em prédios que ocorreria pelo fato de essas ex-
de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percur- desafiam a autoridade policial, para que o pressarem uma forma de não
so é articulado a partir da passagem do artista” (KWON, registro de protesto e também reconheci- subestimação da vida cotidiana
1997, p.172). O artista adquire, nesse contexto, o papel de mento social seja observado em meio aos a instâncias regulatórias, ou ao
catalisador ou mediador de ações articuladas, que visam, prédios cinza das grandes cidades. que Oiticica denomina “dessubli-
principalmente, ao engajamento político das comunidades. mação programada”.
Júlia Nascimento de Oliveira (10 de novem-
É importante salientar, contudo, que as etapas da produção bro de 2014) No âmbito dessa ideia, surge a
site-specific apresentadas por Miwon Kwon nem sempre Penso em como essa categorização pode concepção do Mundo-abrigo (tex-
ocorrem, como bem sabemos, de maneira linear. Em um criar dentro da arte um processo de hie- to-obra escrito em 1973), e, com
processo de sobreposição e entrecruzamento, tal produ- rarquização, discriminando manifesta- ela, o projeto Barracão, que parte
ção acabou por configurar, em seus diferentes momentos ções que têm potencial e são subjulgadas. do reconhecimento do espaço ur-
históricos, verdadeiros híbridos das temáticas apresenta- Para mim, a arte não tem que ser rotula- bano, e principalmente da favela,
das. Além disso, há uma diferença fundamental da maneira da, o que importa é o que ela se dispõe a como possível palco para expe-
com que isso se deu nos Estados Unidos e no Brasil. Para transmitir. riências de grupo. A ideia era
Douglas Crimp (2005), se nos Estados Unidos das décadas usar o Barracão como princípio
de sessenta e setenta observam-se preocupações de ca- estruturador para a construção de uma comunidade no Rio
ráter predominantemente fenomenológico, no Brasil, nes- de Janeiro, o que não se concretizou. Foram realizados, no
se mesmo período, a tentativa de criação de um espaço entanto, alguns protótipos para o desenvolvimento das cha-
agonístico, ou de caminhos para a desconstrução da ordem - madas estruturas-abrigo, que tinham como princípio estimular
representada, no caso, pela ditadura - é tônica fundamental. o viver comunitário. A “célula Barracão 1” foi construída em
Sussex, na Inglaterra, junto a estudantes universitários, e era
Após essa breve explanação “genealógica”, voltemo-nos à constituída por uma série de Ninhos, que funcionariam como
análise da “arte comunitária” apresentada por Kwon, e de abrigos, salas de recreação ou commom room.
sua possível configuração tática. Como exemplo embrioná-
rio dessas práticas poderíamos citar a produção do brasilei-

114 115
Tomada como paradigma, a obra de Oiticica foi amplamente Nesse âmbito, o trabalho desenvolvido pelo
explorada em um momento emblemático para a discus- grupo argentino Iconoclasistas nos parece
são das intercessões entre arte e comunidade no Brasil: paradigmático. Com base em Buenos Aires,
a 27a Bienal de Arte de São Paulo: Como viver junto?, em essa organização atua desde 2006 no fomen-
2006. A exposição, organizada sob a curadoria de Lisette to à construção de redes e no desenvolvi-
Lagnado e Adriano Pedrosa, baseou-se nas notas dos cur- mento de práticas cartográficas colaborati-
sos e do seminário “Como viver junto”, de Roland Barthes, vas, cujo objetivo último seria o engajamento
e apresentou uma série de indagações a respeito da vida social. As práticas de mapeamento por eles
em comunidade, da “justa distância” e dos possíveis elos realizadas consistem em atividades de re-
que possibilitariam o desenho de uma vida comum, para flexão coletiva a respeito do território. Feitas
além da coincidência espacial e temporal dos indivíduos junto às comunidades, essas
(PEDROSA; LAGNADO, 2008). ações têm o princípio de sub- Questão 3
verter o lugar de enunciação Os recentes avanços no âmbito da tecnologia
Passemos, ora, à análise de grupos que expressam uma da prática cartográfica formal, da informação, e as novas possibilidades de
modalidade de atuação no mínimo relevante para o estudo questionando os discursos conexão em rede assim geradas, têm contri-
das interseções entre arte e vida em comunidade: trata-se dominantes a partir de rela- buído para uma crescente disseminação das
dos coletivos artísticos. Como o próprio nome indica, a no- tos de experiências cotidianas. práticas colaborativas. Como esse movimento
ção de coletividade permeia toda a atividade desses grupos, Os principais objetivos dos influencia o âmbito artístico? Seria o caso de
mostrando-se presente não apenas em sua ação propria- mapeamentos seriam, assim, pensar uma forma de arte para além da “arte
mente dita, mas também, e principalmente, em sua estru- ativar processos de territori- comunitária” pensada por Miwon Kwon (e apre-
tura organizacional. Dentre as ideias que permeiam tais alização, socializar práticas e sentada no texto)? Discorra a esse respeito a
organizações têm-se a horizontalidade, o movimento em pensamentos, estimular o es- partir de exemplos.
rede e a interdisciplinaridade. Contrariamente à lógica mer- pírito da coletividade e elab-
cadológica que prioriza a marca e o autor, os coletivos ex- orar estratégias de transfor- Carlos Muñoz Sánchez (16 de dezembro de
pressam uma tentativa de diluição dessas ideias em prol do mação social. 2014)
desenvolvimento de ações conjuntas, por vezes anônimas. Deixei essa pergunta sem responder durante
Nas oficinas promovidas pelo a semana da aula, e agora, depois de ter lido
Segundo Ricardo Rosas (ROSAS apud LABRA, 2009), apesar grupo, um primeiro momen- os outros textos, e participado das outras
de a ideia de “coletivo” não restringir-se apenas à prática to é normalmente dedicado à discussões, muitas perguntas ficam ligadas.
artística contemporânea - a formação de agrupamentos produção de mapas individu- Aqui o tema é arte e cotidiano, mas tem a ver
artísticos teria ocorrido durante todo o século XX, atraves- ais. Tal prática impulsiona, de com assuntos discutidos na aula de territó-
sando as obras da Internacional Situacionista, de Gordon maneira lúdica, a narração de rio, e na aula de comunidade. Já conhecia o
Matta-Clark e do grupo Fluxus, de Nova York - é a partir experiências e memórias sin- trabalho do coletivo Iconoclasistas e tive a
da década de noventa que os coletivos parecem atravessar gulares, trazendo à tona áreas oportunidade de participar da oficina deles
a sua mais ampla expansão. Impulsionados pelos novos do território e questionamen- na Noite Branca 2014, em BH. Achei mui-
meios de comunicação em rede e em meio a um contexto tos por vezes invisíveis aos to interessante a metodologia participativa
marcado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio nos olhares externos. Uma segun- de mapeo, aproveitando os conhecimentos
países emergentes, esses insurgem como sistemas de co- da fase refere-se à superpo- de todos, e criando de um jeito colaborati-
operação e reciprocidade, em uma espécie de contraponto sição desses mapeamentos: vo, quase se esquecendo da autoria. O mais
à tendência mercadológica dominante. as composições gráficas ge- legal é que eles sabem que um mapa não

116 117
radas exibem padrões complexos de percepção coletiva e muda nada, mas é uma ferramenta a ser usada para futuras
explicitam abordagens e pontos de interesse comuns dos mudanças. Nesse sentido, eles oferecem uma metodologia
participantes. Nas fases que se seguem os integrantes são bem estudada e são guias num trabalho que finalmente é
normalmente divididos em grupos, cada qual tornando- feito em coletivo, sendo o produtivo final desenvolvido pelos
se responsável pela produção de um tipo de mapa. Como participantes. Numa das perguntas de outra aula falei que
exemplos, têm-se os mapas realizados em Caracas, em o artista, embora não seja a pessoa que executa a obra, não
março de 2013. perde a autoria, inclusive se a obra é feita com participação.
Mas pensando no trabalho dos Iconoclasistas, acho que há
Essas oficinas são gratuitas e os guias práticos para a sua vezes em que isso acontece, por exemplo, nos produtos
execução são disponibilizados no website do grupo5 para finais das oficinas deles. Afinal, a obra de arte para eles é a
5. Website do
serem utilizados livremente. Tal prática expande a lógica própria metodologia, não o cartaz ou o mapa final.
grupo Iconocla-
sistas: <http:// comunitária para o amplo universo das redes virtuais, de
iconoclasistas. forma a contornar tanto a dificuldade geográfica de acesso Thaís Mor (23 de novembro de 2014)
net> a tais conteúdos quanto a lógica da propriedade privada, por A possibilidade de criar conexões como rizomas e desterri-
meio das licenças Creative Commons. torializar o espaço através de redes virtuais, possibilitadas
pela tecnologia, cria uma tática cada vez mais política e
A prática mostra-se bastante útil no sentido de promover descentralizada de um “artista mediador”. “[...] essa posi-
discussões a respeito do território e das relações de poder ção autoral já se encontra mais diluída, na medida em que
nele presentes. Sua potência, ao nosso ver, reside princi- participantes assumem uma posição de construção real
palmente no fato de configurar um instrumento de reflexão do produto, cujas pretensões são mais políticas que propria-
coletiva, na qual a cidade, suas fronteiras imateriais e seus mente artísticas”. Apoderar-se dessas tecnologias de in-
movimentos invisíveis são considerados de forma espacia- formação e conexão em prol da comunidade, com caráter
lizada e crítica. Quanto a isso, cabem alguns questiona- heterogêneo, aberto a diferentes seres “singulares” que
mentos: em que medida a reconstrução simbólica, e em se conectam em ações tem gerado formas estéticas e ma-
comum, dos lugares definidos em um território é potente nifestações artísticas cada vez mais táticas. Um exemplo
em engendrar outras possibilidades para a sua partilha? disso é o coletivo Partio, de São Paulo, que criou o Viva Rio
Até que ponto dar a ver o invisível, por meio de um mapa Pinheiros, que cria ocupações artísticas à margem do Rio
colaborativo, pode gerar deslocamentos no regime sensível Pinheiros. “Desde quando foi inaugurada, em 2010, a ciclo-
vigente em uma comunidade? via que fica às margens do rio abriu uma nova perspectiva
e possibilidade de interação com aquele espaço. Através de
A ação configura um exemplo central para a nossa análise, intervenções na ciclovia que começam com artes visuais e
trata-se de uma expressão da conjunção entre as ideias arte de rua, o projeto tem como objetivo a modificação aos
apresentadas acima, sob o nome de arte comunitária, e poucos das margens do Rio Pinheiros. O Projeto, idealizado
as de um fazer propriamente colaborativo. Atenhamo-nos por Carol Ferrés, surgiu durante seus passeios que fazia
brevemente a essa tênue, mas importante, distinção. Se o de bike pela ciclovia, entre março e maio deste ano. Ela
que Kwon denomina “arte comunitária” ainda apresenta conta que, apesar da situação agonizante do rio, tinha mui-
certa dependência de um artista-mediador - que permane- ta vida lá, e pensava nas possibilidades de fazer com que
ce, contudo, como uma espécie de autor da ação em comu- mais gente conhecesse o rio de perto e pudesse ver que ele
nidade - na prática em questão essa posição autoral já en- ainda está vivo. Dessa maneira, o projeto associou a arte,
contra-se mais diluída, na medida em que os participantes o design, a informação e a educação aos espaços públicos,

118 119
assumem uma posição de construção real do produto, cujas apostando em um potencial de grande trans- fanzines ilustrativos das ações
pretensões são mais políticas que propriamente artísticas. formação, principalmente se tratando de um cotidianas dos moradores de
espaço degradado, porque modifica o olhar rua da área foram distribuí-
De forma a ilustrar situações em que essa ideia é toma- das pessoas para aquele lugar, as conecta dos. Desenhados a partir do
da de maneira mais radical, apresentaremos, como último com sentimentos de que para todo problema acompanhamento, por um
exemplo desta análise, A Ocupação, uma ação artístico-cul- existe uma solução” (https://partio.com.br/ grupo de estudantes, de uma
tural coconstruída pela sociedade civil nos espaços públicos projeto/viva-rio-pinheiros/, http://www.co- jornada de moradores de rua
de Belo Horizonte. A ação surgiu em julho de 2013, motiva- nexaocultural.org/blog/2014/10/projeto-rio- daquela região, esses folhe-
da pela insatisfação de um amplo grupo de cidadãos a um viva-pinheiros). Dá vontade de fazer algo na tos buscavam tornar visíveis
projeto de requalificação da área do Viaduto Santa Tereza, Andradas, não dá? histórias da cidade muitas
6. O G Arte e na região central da cidade. Se o projeto governamental vezes ocultas. Mostrar ações
Cultura surgiu tinha como escopo a construção de um Corredor Cultural na Ricardo Macêdo (13 de novembro de 2014) corriqueiras do seu cotidiano
no âmbito da área, o intuito do ato era, de forma colaborativa e articulada, Oi, Paula, pois é, “sem restringir o comum”. seria uma forma de dá-los a
Assembleia Pop-
ular Horizon- mostrar que tal corredor já existia. Diversos atores uniram- Fora do virtual, o que tenho em mãos e em ver como atores ativos, parte
tal, criada em se em torno a essa ideia, dentre os quais o recém-criado que ando acreditando agora mais do que do mundo em comum, parti-
Belo Horizonte Grupo Temático Arte e Cultura6 , alguns movimentos sociais nunca - pela abertura que o dispositivo ofer- cipantes da cidade e de suas
durante as man-
ifestações de já atuantes na região, arquitetos, artistas, estudantes, pro- ta - é a dobradinha arte e educação (é claro, dinâmicas.
junho de 2013. fessores, agentes culturais e moradores. vinculadas a outros parâmetros). Imersão
em comunidades, bairros, cidades, mais o Além dessas, diversas outras
A ideia era reunir, além das ações que já ocorriam no local, que a experiência indicar em termos de ca- ações ocorreram. O coletivo
qualquer atividade proposta por quem quisesse participar, minhos táticos e estratégicos. Mas, ainda “Trajeto do afeto”, por exem-
promovendo em torno a estas, uma ocupação coletiva e ho- assim, tenho minhas dúvidas sobre quais os plo, espalhou barquinhos fei-
rizontal do espaço que duraria um dia. Mas como agenciar modos adequados de aproximação, modos tos de papel em vários pontos
um evento que se pretende aberto e articulado? Para que a de resolução de conflitos (um tabu na arte do espaço, e os passantes pu-
realização do ato fosse possível, a ideia de colaboração foi contemporânea, né? Envolve questões éti- deram dependurar, no “varal
central. O processo de definição de atividades e espaços a cas...), a questão dos trâmites inter e intra- coletivo do amor”, imagens,
serem ocupados, por exemplo, fez-se por meio de planilhas pessoais... Enfim, um grande abacaxi pra ir frases e impressões momen-
compartilhadas online. Foi criado, também, um grupo de pensando. Acho que nesse sentido vai para tâneas do lugar. Fez-se um
discussão no Facebook, em que qualquer um podia entrar além da arte comunitária, o buraco é bem “banquete comunitário” em
e participar. Da mesma forma, as reuniões preparatórias mais embaixo. torno a uma grande mesa
presenciais funcionaram a partir de um modelo assemble- montada sob o viaduto, e uma
ário no qual todos poderiam dar a ver (e a ouvir) suas ideias pequena estrutura foi construída para que mu-
e propostas. das de plantas fossem trocadas por sementes e
receitas.
Esse caráter colaborativo permeou também a realização do
evento, que começou com um mutirão de limpeza e abar- As superfícies também foram utilizadas. Stêncils
cou, durante uma tarde, variadas microações simultâneas. com os dizeres “o meu corredor cultural tem” ocu-
Além da apresentação de diversas bandas e da realização param as paredes de forma a convidar os tran-
de múltiplas performances, pneus velhos foram pendura- seuntes a também ocupá-las. No chão foi estendi-
dos na estrutura do viaduto de forma a gerar “balanços” e do um grande tecido com o mapa da área, no qual

120 121
os ocupantes eram convidados, sob a frase “inscreva-se”, Considerações finais
a imprimir - com canetas, adesivos ou panos - as linhas de
força que, em sua percepção, atravessavam o lugar. Nesse texto, buscamos dar a ver algumas possibilidades
de interseção entre a vida cotidiana e as práticas artísticas,
Como podemos observar, esse ato configura um exemplo entendendo estas últimas como potenciais táticas capazes
diverso daqueles pontuados anteriormente, relativos à “arte de baralhar os lugares estabelecidos na cidade pela chama-
comunitária”. Apesar de guardar muitas semelhanças com da ordem policial. A título de exemplo das muitas análises
a ação do coletivo Iconoclasistas, inclusive quanto às téc- que se poderiam fazer a partir de tais questões, optamos
nicas utilizadas, parece configurar algo fundamentalmente por rastrear experiências relacionadas a duas dimensões
diverso. Mas onde está a sua peculiaridade? Talvez no fato
de não se tratar de uma obra e tampouco de uma única
oficina em torno da qual a comunidade se reúne, mas de João Paulo de Freitas Campos (12 de novembro de 2014)
uma experimentação coletiva aberta, baseada na ação de As redes sociais se distinguem em duas categorias: as pre-
singularidades múltiplas que, apesar de agirem em comum, senciais e as virtuais. As novas tecnologias da informação
partem de formas e interesses heterogêneos. A “unidade” que permitem a conexão, a comunicação e a organização
que nela se forma parece ser, nessa perspectiva, precária rápida e eficaz de pessoas no ciberespaço potencializam e
ou lacunar: o encontro que se produz entre as partes não ordenam, sob outra lógica, relações que já existiam. Como
promove fusão, mas é fragmentário e contingencial. Não Robert Darnton argumenta em sua obra Poesia e polícia:
se trata, portanto, de uma ação centrada em torno a uma redes de comunicação na Paris do século XVIII, nós somos
identidade unívoca de forma a afirmá-la, mas de um ato em inclinados a pensar que redes de comunicação são um fe-
rede, de conexão e agenciamento. nômeno contemporâneo, que vivemos numa “Sociedade
da Informação”, o que é um termo incrivelmente banal,
Nessa perspectiva, mais do que uma ação comunitária, A pois as sociedades - letradas e iletradas, antigas e moder-
Ocupação parece configurar um tipo de experiência baseado nas - sempre foram “sociedades da informação” - Gilbert
na heterogeneidade e na abertura. O tipo de colaboração Simondon também demonstra isso em A individuação. Nesse
em rede que a caracteriza, em que “o artista” não adquire sentido, essas novas tecnologias da comunicação/informa-
papel nem de autor nem de mediador, parece apontar para ção proporcionam uma nova lógica do mesmo fenômeno
outras e profícuas possibilidades de interseção entre arte, humano: a comunicação - que existe desde sempre! O fluxo
política e cotidiano, baseadas na tomada de ação direta pelo de informações veiculadas no ciberespaço serve de maneira
“qualquer um”. O estabelecimento das novas tecnologias incrivelmente positiva - no sentido em que estou argumen-
de informação e a expansão dos processos de participação tando, acredito que existam pontos negativos também, que
equipotencial - como o modelo ponto a ponto (peer to peer) não comentarei aqui - para movimentos artísticos. Existem
ou parecem contribuir fortemente nesse sentido. obras literárias copyleft sendo construídas coletivamente
na internet, movimentos artísticos se organizam e promo-
vem ações pelas redes sociais virtuais, enfim, a colabo-
ração nas práticas artísticas segue, através destes novos
dispositivos, uma nova lógica: mais rápida, “impessoal”
(termo perigoso, porém necessário aqui, em certo sentido)
e desterritorializada.

122 123
específicas: a apropriação das superfícies urbanas e a ideia já mencionado, quem tem o poder do capital ainda comanda
da colaboração. Se apresentamos, ao longo do texto, mais o que terá ou não alcance global e cabe a nós, singulares e
perguntas do que respostas, é porque nosso objetivo foi, comunidades, formar resistência usando as mesmas ferra-
mais do que propor conclusões fechadas, abrir caminho mentas que eles, não é?
para outras análises, que deem a ver outras possíveis par-
tilhas desse “mundo comum” que subjaz às dinâmicas da Fred Triani (7 de novembro de 2014)
cidade e da vida cotidiana. A nossa expectativa, assim, é de A tecnologia permite, como colocou o colega Yuri Amaral, a
que o leitor sinta-se estimulado a cartografar outras ações, “qualquer um produzir e publicar conteúdo, de e em qual-
situadas nesse espaço entre cotidiano e prática artística, de quer lugar do globo”. Porém vejo com certo ceticismo esse
forma a nelas identificar novas possibilidades táticas. argumento. Sim, qualquer um pode produzir e disseminar
conteúdo, mas como isso ocorre na prática? Por exemplo, o
Yuri Amaral (9 de novembro de 2014) que eu escrevo aqui, agora, chegará a todo mundo em qual-
Tanto a professora como os colegas Fred e Ricardo levantaram fatos quer parte do globo? Qual é a capacidade de disseminação
e questionamentos importantes - essa outra face de controle e su- que minha produção pode abranger? Realmente, não sei se
pervisão. É claro que não podemos fugir dessa vigilância (não temos as novas tecnologias têm contribuído para uma crescente
mesmo como escapar disso. Mesmo a deep web é constantemente disseminação de práticas colaborativas. Práticas colabo-
vigiada, e vale lembrar - corrijam-me se eu estiver enganado - que a rativas existem independentemente da tecnologia. Temos
internet, em sua gênese, foi criada para uso militar, não?). Na publi- diante de nós uma nova tecnologia que permite, sim, uma
cidade, costumamos dizer que, quando não pagamos nada é porque abrangência maior de troca de informação. Mas percebo
nós somos o produto (Facebook, por exemplo). É claro que, fugindo que estamos cada vez mais reproduzindo a lógica off-line e
de generalizações, o mercado encontra dispositivos para continuar criando guetos on-line do que criando alternativas ao mo-
controlando, porém são velhos jogadores, com regras antigas ten- nopólio da informação. O acesso e a disseminação não são
tando controlar um mundo novo de possibilidades inventivas, e isto plenamente abrangentes, ao contrário, são restritos, basta
pela quantidade absurda de pessoas que usam e descobrem falhas ver quem tem acesso a suas publicações no Facebook. Este
e caminhos em todos esses processos. O Facebook atualiza seu(s) site: http://www.tenbyten.org/index.html é um bom exemplo
algoritmo(s) diariamente, justamente pra tentar manter o máximo de minha colocação. Trata-se de um mapeamento global
possível de controle. Nos EUA houve uma evasão dos adolescen- das mais acessadas e compartilhadas notícias do mundo.
tes dessa mídia social, pois queriam privacidade (sem propagandas, É interessante notar o tanto que elas se repetem. E não só
sem família). Já existem aplicativos que bloqueiam a publicidade (Ad isso, a quem elas estão direcionadas. Ou melhor dizendo,
Blocker, por exemplo. Tenho há três meses instalado e já bloqueou quem direciona e detém a informação? A informação ainda
quase 400 mil propagandas de qualquer site que visito). Há, aí, uma é centralizada. No entanto, a internet abre brechas para
resistência sutil, porém poderosa. As mesmas ferramentas usadas uma comunicação global. O que é muito interessante, mas
para controle são usadas para a “criação de si” (Foucault), dobrando eu faço aqui meio que um apelo: ou criamos redes consis-
esse poder vigilante. Parece inocência acreditar nisso, mas é algo tentes de produção e troca de informação ou acabaremos
tímido, espalhado e irreversível em sua totalidade. As pessoas já presos na lógica vigente do monopólio da informação! Aqui
entenderam esse potencial, porém precisam aprender a usá-lo e coloco links que vão na contramão dessa lógica, não são
revertê-lo para si e sua comunidade. As novas tecnologias não só todos sobre arte, mas acho interessante compartilhar, pois
conduzem para a possibilidade de troca, como potencializam isso. são de grupos que se organizam em torno de uma causa:
Poder ter alcance global não significa que terá alcance global. É http://revolution-news.com/
preciso entender o meio para usar esse potencial. No entanto, como http://crimethinc.com/

124 125
Referências http://pib.socioambiental.org/pt
http://www.streetnet.org.za/
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. 5.ed. São Paulo: http://toronto.nooneisillegal.org/
Brasiliense, 1997. http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html
http://www.adpsr.org/home/ethics_reform
BRUZZI, Hygina. Nos passos de Baudrillard: uma trajetória.
Suplemento Literário, Belo Horizonte, nov. 2007. Disponível Dalba Roberta Costa de Deus (6 de novembro de 2014)
em: <http://www.cultura.mg.gov.br/files/2007-novem- No artigo intitulado Arte colaborativa X cibercultura, Ana
bro-1307.pdf> da Cunha discorre sobre a atuação de dois coletivos: o
Superflex (dinamarquês) e De Geuzen (holandês), a respei-
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de to da linguagem digital. A proposta do artigo era analisar a
Janeiro: Vozes, 1994. visão a respeito da cibercultura desses dois coletivos, que
usam a proposta colaborativa e a estética relacional como
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: poéticas de criação. Penso que a estética relacional, mesmo
Martins Fontes, 2005. no ciberespaço, nos convida para o futuro. A colaboração,
as trocas sociais, a criação de ambientes comunicacionais
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs, Vol.1: para discussão e compartilhamento de ideias sinaliza para
Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 1995 uma concepção de arte em que não há um produto final,
mas várias possibilidades. As trocas sociais são o motriz
KWON, Miwon. One Place after Another: Site-Specific Art para pensar uma forma de arte para além da “arte comu-
and Locational Identity. Cambridge: The MIT Press,1997. nitária”. Quando o trabalho faz uso da internet, o público
deixa de ser pessoas específicas que costumam frequentar
LABRA, Daniel. Coletivos Artísticos como Capital Social. exposições de arte. Ao adentrar no ciberespeço, o trabalho
Dasartes. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: <http:// entra em contato com fronteiras desconhecidas, atraindo
www.dasartes.com/site/index.php?option=com_con- os mais diferentes públicos.
tent&view=article&id=101&Itemid=240&showall=1ttp://>

PEDROSA, Adriano; LAGNADO, Lisette. Como Viver Junto


- Catálogo da 27ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Cosac
Naify. 2008

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e políti-


ca. São Paulo: Exo/Ed. 34, 2005.

RANCIÈRE, Jacques. O que significa "estética"? . Lisboa:


KKYM, 2011.

126 127
isabela prado* Mona Hatoum, Cildo Meireles e Francis Alÿs – que abordam questões
diversas relacionadas ao território sob a(s) perspectiva(s) discutida(s)

arte aqui. Por fim, na última seção, apresento parte de minha produção
como artista, também com foco em trabalhos em que a relação com

contemporânea, o território tem importância central.

Arte e território: breves considerações


texturas, território

território sm (lat territoriu) 1 Terreno mais ou menos extenso. 2 Porção


da superfície terrestre pertencente a um país, estado, municí-
pio, distrito, etc. 3 Jurisdição. 4 Região sob a jurisdição de uma
autoridade. 5 Região um tanto populosa mas sem habitantes
em número suficiente para constituir um Estado, sendo pois
* Isabela Prado A elaboração de identidades ligadas a um lugar administrada pela União. 6 Área certa da superfície de ter-
Artista visual, professora tem-se tornado mais ao invés de menos impor- ra que contém a nação, dentro de
e pesquisadora em artes.
Graduada em Belas Artes tante em um mundo de diminuição das barreiras cujas fronteiras o Estado exerce a QUESTÃO 1
pela UFMG e Mestre em espaciais nas trocas, nos movimentos e nas sua soberania, e que compreende A partir dos conceitos apresenta-
Artes Visuais pela Indiana comunicações. o solo, rios, lagos, mares interiores, dos no texto, discuta em que medi-
University (EUA). Partic-
ipou de vários programas
[David Harvey – From space to place and águas adjacentes, golfos, baías e da se observam processos de ter-
back again] portos. ritorialização e desterritorialização
de residência artística e
de exposições individuais no mundo atual. Dê exemplos.
e coletivas no Brasil e no
As relações entre arte e território são extensas Em uma definição mais tradicional (e su-
exterior. Foi contemplada
com o Prêmio Funarte de e podem ser vistas sob inúmeras perspectivas. A perficial), como aquelas que aparecem Thais Mor (7 de dezembro de 2014)
Arte Contemporânea, com análise de tais relações passa, antes de mais nada, nos dicionários de língua portuguesa, o A globalização hoje é o maior
o projeto “Entre Rios e pela forma como a ideia de território se coloca e território tem sido frequentemente asso- processo de desterritorializa-
Ruas”.
evolui ao longo do tempo, bem como pela evolução ciado a suas características físicas, ou tem ção, visto com as multinacionais
das manifestações e proposições artísticas asso- sido visto como o espaço sobre o qual se que hoje entram e ditam uma
ciadas ao(s) conceito(s) de território. constitui um Estado. Tal definição, no en- cultura de consumo em diferen-
tanto, é insatisfatória por deixar de lado tes países, sem falar que, hoje,
Este texto tem como objetivo apresentar e discu- uma série de aspectos essenciais na dis- grande parte delas produz tudo
tir a relação entre arte e território, em uma pers- cussão sobre território, particularmente na China. Nota-se nas grandes
pectiva contemporânea, levando em consideração em sua dimensão simbólica – o que nos metrópoles a padronização das
uma definição ampla de território e o enfoque da interessa em particular para pensar as comunicações, das imagens e
arte site-specific e site-oriented. Apresenta-se ini- relações entre arte e território. dos hábitos de consumo; e toda
cialmente uma breve reflexão acerca do conceito a felicidade enlatada estão in-
de território e sua associação com certos desen- Considerando uma definição mais ampla, seridas em um arquétipo ideal,
volvimentos recentes em arte contemporânea. Ao o território seria visto a partir de uma construído primeiramente pelos
longo do texto, serão apresentados trabalhos de perspectiva que considerasse várias ins- interesses econômicos e, muito
quatro artistas contemporâneos – Gabriel Orozco, tâncias, partindo do pressuposto de que posteriormente, pelos sociais/

128 129
o território sempre comporta uma dupla conotação, mate- tanhas. Além disso, deve-se considerar a fronteira em sentido político-jurí-
rial e simbólica. Primeiramente, em sua dimensão física: o dico, como o elemento de demarcação e separação entre Estados nacionais
território sendo delimitado por uma área geográfica, com – e muitas vezes como objeto de disputa entre nações (por exemplo, India-
características peculiares de clima, relevo, vegetação, hi- Paquistão, Israel-Palestina, Rússia-Ucrânia, etc.). Consideram-se também
drografia, etc. Em segundo lugar, devem-se considerar a fronteiras como limites mais ou menos visíveis de demarcação territorial
ocupação e o uso do território, que se associam, mas não dentro de um país (como a ideia de
se restringem, à sua definição como espaço de constitui- “fronteira agrícola”) ou de segregação culturais. Contra a onda, a volta, ou
ção dos Estados nacionais. Abrange, assim, aspectos eco- espacial, particularmente relevante a tentativa de volta da valorização
nômicos, políticos, sociais e demográficos que caracteri- no espaço urbano (como a fronteira da cultura local, as novas organi-
zariam determinado território. Por fim, em sua dimensão entre o “morro” e o “asfalto”). Por fim, zações sociais virtuais – que se
mais simbólica, o território se define a partir de aspectos no plano simbólico, podem-se pensar juntam por interesses comuns de
de sua história e de sua cultura, associados à construção de fronteiras como elementos de separa- cunho social/ambiental e pela re-
identidades, de elementos de identificação comum, de uma ção ou segregação de caráter cultural/ tomada de valor do genuíno – co-
memória coletiva. Trata-se de, a partir da relação entre social, independentemente de qualquer meçam a renascer em pequenos
território, territorialização e territorialidade, considerar o sentido espacial ou geográfico (como o grupos ou até mesmo em grupos
território físico como uma condição de existência material “fosso entre ricos e pobres”, etc.). organizados que começam a ques-
sobre a qual se constituem o tecido social e o simbólico. tionar a legitimidade das informa-
Em qualquer de suas definições, en- ções, dos produtos e da cultura que
Como resume Gonçalves (2002, p. 229-230): tretanto, as fronteiras carregam con- recebemos. No meu ponto de vista,
sigo um caráter político, derivado dos a territorialização acontece no âm-
O território não é simplesmente uma substância limites (físicos ou não) que elas estabe- bito da organização de ideias e do
que contém recursos naturais e uma população (de- lecem, o que se expressa inclusive do intelecto, no plano virtual, porque
mografia) e, assim, estão dados os elementos para ponto de vista etimológico, consideran- no plano da vida cotidiana parece
constituir um Estado. O território é uma categoria do o front como seu elemento constitu- só ser possível reterritorializar. A
espessa que pressupõe um espaço geográfico que é tivo. Assim, fronteiras são definidas po- não ser que sejamos capazes real-
apropriado e esse processo de apropriação – terri- liticamente e por isso apresentam um mente de criar uma nova forma de
torialização – enseja identidades – territorialidades caráter contraditório, mutável, aberto viver, organizar e conviver biopo-
– que estão inscritas em processos sendo, portanto, e potencialmente conflituoso. liticamente acima das forças eco-
dinâmicas e mutáveis, materializando em cada mo- nômicas, neoliberais, políticas e/ou
mento uma determinada ordem, uma determinada estatais.
configuração territorial, uma topologia social.
Carlos Dalla Bernardina (30 de de-
É interessante notar que a ideia de território está e esteve zembro de 2014)
frequentemente associada ao conceito de fronteiras. Mas, Tais processos ocorrem com cres-
também nesse caso, pode-se considerar um conceito mais cente intensidade e de modo si-
amplo, de modo que a cada uma das instâncias em que o multâneo nos níveis real e virtual,
território se define corresponderia uma definição equivalen- objetivo e subjetivo. No campo da
te de fronteira. Assim, teríamos primeiramente a ideia de música, ao qual sou mais próximo,
fronteira definida como a separação entre dois territórios a a grande novidade são os processos
partir de elementos da geografia física – rios, lagos, mon- de criação e produção a distância...

130 131
O movimento sistemático de reconstituição e redefinição Assim, não surpreende que o esforço para resgatar iden-
de fronteiras (particularmente as simbólicas) se reflete na tidades, a partir das diferenças e particularidades locais,
permanente destruição e reconstrução de territórios. Sobre torne-se central em face de um processo de homogenei-
a primeira, Guattari e Rolnik (1996, p.323) afirmam: zação e redução das características específicas que defi-
nem as identidades dos diversos lugares. A reafirmação
O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, das especificidades leva à produção de diferenças e de
engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso particularidades. Em um contexto de globalização, em que
e se destruir. A espécie. humana está mergulhada a homogeneização abafa as diferenças, sua reafirmação
num imenso movimento de desterritorialização, no embute um caráter crítico e contestatório, ao gerar e pro-
sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfa- mover “texturas” e imperfeições nos espaços padronizados
zem ininterruptamente. do capitalismo, a partir de práticas em que a especificidade
adquire caráter central.
Assim, concebe-se a desterritorialização como o movimen-
to de destruição ou abandono do território, ao passo que Em linhas gerais, a arte Arquivos são enviados com as faixas gravadas
a reterritorialização pode ser vista como o movimento de pode cumprir esse papel por diferentes instrumentos em diferentes lu-
(re)construção do território. Note-se que territorialização como geradora de dife- gares, para depois serem mixados e remixa-
e desterritorialização são vistas como processos concomi- renciação e construção de dos também num contexto desterritorializado.
tantes e que não há desterritorialização sem reterritoriali- identidades. Nesse caso, a Porém, um ponto subjacente a todo esse debate
zação, uma vez que – como mencionado antes – o território arte é vista como um ins- tem me incomodado muito. Numa reação natu-
é condição de existência para a humanidade. trumento de criação de ral e genuína aos movimentos de homogeneiza-
território a partir de sua ção e padronização impostos pelo jogo de forças
O processo de globalização observado nas últimas décadas – capacidade de lidar com do processo globalizatório, caímos facilmente
expressão da expansão em escala mundial do capital finan- as sensações, os sentidos, no erro de confundir o que deve ser uma crítica
ceirizado, acompanhada por intensa evolução da tecnologia a memória e outros ele- a este jogo de forças e o que deve ser uma crí-
e das telecomunicações – é fonte permanente de des(re) mentos no campo simbó- tica ao processo de globalização em si mesmo.
territorialização, tendo gerado crescente homogeneização lico (GROSZ, 2005). Desse modo, o valor da conservação de modos
dos lugares e apagamento das diferenças culturais. A indi- tradicionais é defendido sempre a priori, inde-
ferenciação e a desparticularização dos espaços alimentam A instalação Mi mano es la pendentemente de uma avaliação mais cuida-
os efeitos de alienação e fragmentação na vida contempo- memoria del espacio (1991), dosa a respeito de serem ou não pertinentes
rânea, e a concomitante articulação e o cultivo das diversas de Gabriel Orozco, trata aos territórios que os sustentam. Precisamos
particularidades locais podem ser vistos como a reação precisamente desse pa- estar atentos ao fato de que, ao defender “iden-
pós-moderna, recriadora de territórios, a esses efeitos. pel da arte – e do artista tidades”, muitas vezes os movimentos contra-
– como elemento provo- globalizatórios acabam sufocando importantes
Segundo Henri Lefebvre (1991, p.52): cador, catalisador. O tra- processos de emergência de “singularidades”,
balho, uma instalação de que em diversos contextos necessitam de uma
Considerando que o espaço abstrato [do modernismo 25 metros quadrados feita
e do capital] tende na direção da homogeneidade, na com colheres de sorvete, ilustra a capacidade do artista de
direção da eliminação das diferenças ou peculiari- difundir um conceito ou uma sensação a partir da fruição
dades existentes, um novo espaço não pode nascer de uma obra pelo público. Assim, o artista, crítico e atento,
(ser produzido) a não ser que ele acentue diferenças. seria capaz de irradiar e expandir sua percepção acerca de

132 133
proposições específicas sobre questões políticas, econômi- movimento, à medida que o público esbarra neles
cas, sociais, ambientais, etc. Nessa instalação, em particu- ao se deslocar pela sala de exposição. A instala-
lar, a escolha das colheres de sorvete representa também ção explora uma representação abstrata e con-
a noção de que o “consumo” da arte gera um resíduo, um densada de territórios urbanos para se referir a
registro, uma memória após sua efetivação – construindo, temas como migração, deslocamento, identidade
assim, território. e pertencimento.

Mona Hatoum, em + and – (1994-2004), explora de forma Em linhas gerais, pode-se argumentar que aquilo
quase literal a ideia de que vivemos permanentemente um que se convencionou chamar de arte site-specific e
processo de construção e destruição de territórios – como site-oriented, em sua versão mais contemporânea,
“texturas” no movimento de homogeneização associado à é particularmente interessante para a produção de
globalização. Trata-se de uma instalação de quatro metros “texturas”, formação de identidades e construção situação de ruptura e
de diâmetro, em que uma haste de metal gira em torno de de território. “É essa função diferencial associa-ruído para poder flo-
um eixo central sobre uma superfície de areia. Seu movi- da aos lugares que as formas primeiras de arte rescer. Acredito muito
mento ininterrupto causa, a um só tempo, a geração de sul- site-specific tentaram explorar e que as atuais no valor da manutenção
cos na areia e seu posterior apagamento, com a superfície incorporações de trabalhos site-oriented buscam dos processos de subje-
se tornando novamente lisa. reimaginar” (KWON, 2008, p.182). tivação dos indivíduos e
das coletividades, mas
A ideia de território e, particularmente, de fronteiras é um Cabe notar que a definição de arte site-specific acredito também no va-
tema constante no trabalho de Mona Hatoum, artista de foi se alterando ao longo do tempo, e que sua lor da constante trans-
origem palestina nascida no Líbano. Present Tense (1996) é evolução reforça os argumentos colocados aqui. formação das formas e
uma instalação em que o mapa da Palestina, tal como de- Inicialmente, era associada a trabalhos que incor- dos símbolos que nos
finido pelos Acordos de Oslo de 1993, é representado com poravam aspectos físicos de certa localidade ou animam para a vida e
miçangas vermelhas, incrustadas sobre uma superfície for- espaço como parte importante na sua concepção, para o mundo. O impor-
mada por 2.200 barras de sabão de Nablus (um produto tra- apresentação e recepção. Isso significa que a pró- tante é cuidar para que
dicional da Palestina, feito com sal mineral e azeite de oliva). esse processo ocorra
O mapa mostra a fragmentação do território Palestino, que sempre de dentro para fora, mantendo os processos de subjetivação
mais parece um arquipélago do que um território contínuo, em estado dinâmico, e não através de uma imposição externamente
como havia sido definido após a Guerra dos Seis Dias, em codificada, como muitas vezes acontece.
1967. A escolha de um material perecível para a instalação
sugere a insustentabilidade e o potencial de alteração das Claudia Laport Borges (24 de novembro de 2014)
fronteiras definidas em Oslo. Como havia colocado em um anterior, e citando Milton Santos, o
território (territorialização) abarca do global ao local, e se torna um
Temas como territorialização e desterritorialização são conceito quando o consideramos na perspectiva do seu uso. Então
também presentes em outros trabalhos de Mona Hatoum, a territorialização está sempre ocorrendo, de acordo com o signi-
a partir das noções de deslocamento cultural e exílio. ficado que está se dando para o uso dos espaços (cidade, praças,
Suspended (2011) é uma instalação composta por 35 balan- web, viadutos, etc.). Por outro lado, entendo como um processo de
ços de madeira, em cujos assentos estão gravados mapas desterritorialização a retirada do significado simbólico do território.
de grandes cidades ao redor do mundo. Os balanços são Dando um exemplo prático: uma comunidade indígena que perdeu
dispostos de modo desalinhado no ambiente, criando uma um território, onde possuía significado espiritual e antropológico
sensação de deslocamento, e se mantêm em constante

134 135
pria construção da obra era definida pelo espaço físico e a figurando antes de tudo como uma rede de relações sociais. Nas palavras de
ele se vinculava de forma inseparável. Esse paradigma é Miwon Kwon (2008, p.171),
denominado de fenomenológico ou experiencial.
a característica marcante da arte site-oriented hoje é a forma como
A arte site-specific inicialmente tomou o ‘site’ como tanto a relação do trabalho de arte com a localização em si (como site)
localidade real, realidade tangível, com identidade como as condições sociais da moldura institucional (como site) são
composta por singular combinação de elementos subordinadas a um site determinado discursivamente que é delineado
físicos constitutivos. […] O objeto de arte ou evento como um campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural.
nesse contexto era para ser experimentado singu- Além disso, diferente dos
larmente no aqui-e-agora pela presença corporal modelos anteriores, esse (como um cemitério antigo, um local de
de cada espectador, em imediatidade sensorial da site não é definido como celebrações, um local de pesca tradicio-
extensão espacial e duração temporal. […] O trabalho pré-condição, mas antes é nal, etc.). O local foi desterritorializado,
site-specific em sua primeira formação, então, focava gerado pelo trabalho (fre- pois perdeu seu significado simbólico e
no estabelecimento de uma relação inextricável, in- quentemente como ‘conte- cosmológico.
divisível entre o trabalho e sua localização, e deman- údo’), e então comprovado
dava a presença física do espectador para completar mediante sua convergên- Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de
o trabalho (KWON, 2008, p.167). cia com uma formação 2014)
discursiva existente. Antes de mais nada, quero destacar o
Ao longo do tempo, a noção de site foi ampliada, de modo a ótimo texto da Isabela Prado, de rara ‘le-
incluir outros aspectos anteriormente negligenciados. Em O território passa então a ser veza e exatidão’. E, é claro, as instigan-
um primeiro momento, questionou-se o papel das insti- fluido e disperso, e suas fron- tes intervenções dos colegas. Bem, em
tuições de arte, explicitando elementos associados a seu teiras passam a ser de difícil O Anti-Édipo, Guattari e Deleuze afirmam
funcionamento e buscou-se revelar a maneira (não neutra) definição. O espaço da obra se que a sociedade encontra-se quadricula-
como a obra se relaciona com o ambiente expositivo e todo torna mais amplo, podendo in- da em circunscrições que aprisionam a
o sistema que o envolve. Note-se que a noção de site que cluir o próprio espaço físico, mas produção e o desejo para canalizá-lo em
decorre de tais considerações se torna mais complexa, ao também outros elementos, reais um sentido reprodutivo e antiprodutivo.
incluir também aspectos históricos, sociais, econômicos e – como textos, imagens, objetos E acrescentam que um processo revolu-
políticos, configurando a abordagem “crítico-institucional”. – ou virtuais, como um conceito cionário desejante tem de passar por (e
teórico abstrato. Assim, o espaço gerar) uma desterritorialização: linhas
Por fim, a partir dos anos noventa, a arte site-specific am- da arte passa a ser colocado em de fuga do desejo, conexões insólitas
pliou ainda mais sua abrangência, atingindo uma perspec- segundo plano, em favor de outro que fazem explodir, desterritorializam as
tiva de descontinuidade no tempo e no espaço, e explorando locus que pode ser desmateria- formas concretas ou abstratas do poder.
seu potencial de ambiguidade e des(re)territorialização a lizado, nômade e virtual. Como Ainda em 1972, ano do lançamento do refe-
partir de uma abordagem discursiva. Nesse caso, tanto o bem resume Miwon Kwon (2008, rido O Anti-Édipo, Guattari, em um peque-
espaço quanto a obra não se prendem a uma noção fixa, e p.173), “na prática das artes avan- no texto (Psychanalyse et Transversalité),
se movem em direção a instâncias mais públicas, sendo çadas dos últimos 30 anos, a defi-
organizados intertextualmente a partir do movimento nô- nição operante de site foi transformada de localidade física – enraizada, fixa,
made do próprio artista. Assim, o site deixa de ser apenas real – em vetor discursivo – desenraizado, fluido, virtual”.
uma localização geográfica ou um ambiente físico, se con-

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A evolução da arte site-oriented em direção à sua versão propõe um conceito operacional ao processo de desterrito-
discursiva permite ampliar ainda mais seu alcance como rialização: a transversalidade. Uma dimensão que pretende
geradora de territórios (simbólicos ou não). Isso porque ultrapassar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e
pode promover a singularidade de identidades locais, ge- o de uma simples horizontalidade, na qual tende a realizar-se
rando visibilidade a grupos ou assuntos negligenciados pela logo que uma comunicação máxima se efetua entre os dife-
cultura dominante. Sua estruturação deixa de depender de rentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos. Ou seja, a
sua espacialidade e seu modelo passa a ser uma narrati- transversalidade permeia o universal (pura verticalidade) e o
va, ou um itinerário – visto como uma sequência de ações particular (simples horizontalidade). Vejamos isso no concreto.
ou eventos no tempo ou no espaço – cujo alcance se torna Há cerca de seis anos, surgiu na Comunidade do Campinho
potencialmente ilimitado, e cujo percurso é definido pela (Congonhas, MG), oriunda de uma iniciativa dos docentes da
passagem do artista. Escola Municipal Dona Maria de Oliveira Castanheira, a ques-
tão da consciência patrimonial na formação do sujeito (seja ele
O papel do artista, nesse caso, passa a ser o de elaborar individual ou coletivo). E então começou o Projeto Consciência
e definir conceitualmente a obra, mobilizar os elementos Patrimonial naquela comunidade.
necessários para sua produção e legitimar ou validar o tra-
balho com sua “presença”, principalmente quando o tra- Uma vez que a globalização denota um processo contínuo de
balho envolve a participação do público em sua execução, “anulação do sujeito”, percebeu-se ali que uma prática artís-
de modo a potencializar seu impacto e significado. Nesse tico-cultural estava à beira da extinção. Tratava-se do culto à
sentido, Santa Cruz, festejada no dia 2 de maio, cujo ápice é a confecção
de pequenas cruzes de madeira forrada com flores, papel celo-
o artista se aproxima de ser a ‘obra’. […] É o aspecto fane, miçangas, etc., que, benzidas no dia do festejo, são colo-
performativo de um modo característico de opera- cadas nas portas e/ou janelas das casas para que, acredita-se,
ção de um artista (mesmo quando em colaboração) o domicílio fique selado contra os males ao longo do ano. O
que é repetido e transportado como nova mercadoria, fato é que a única moradora que ainda (naquele momento) pre-
posto que o artista funciona como o veículo principal servava o culto era uma senhora de 84 anos. Essa foi a razão
de sua legitimação, repetição e circulação. (KWON, maior desse projeto, levado à Escola num ensejo de trazer de
2008, p.177) volta um pouco da identidade da Comunidade – que, diga-se de
passagem, é majoritariamente composta por afrodescenden-
A intervenção Elemento desaparecendo/Elemento desapare- tes. Ao fim e ao cabo desse projeto, a partir de 2009, deram-se
cido (2002), de Cildo Meireles, representa uma contribuição os festejos do culto à Santa Cruz. Confeccionadas pelas crian-
interessante nessa tendência, em que a obra se constrói ças da Escola, cruzes de singela beleza plástica foram distri-
com sua disseminação pública a partir de uma proposi- buídas à população, benzidas pelo pároco, ao qual se juntou o
ção do artista. O trabalho, apresentado na Documenta de grupo de Congado. Hoje, inegavelmente, percebe-se o aumento
Kassel, consistiu na montagem temporária de uma pequena da autoestima da comunidade. Assim depõe a pequena Carol,
fábrica de picolés e na venda de sua produção nas ruas e de 9 anos: “É uma cultura da comunidade. Estamos lutando
nos espaços públicos da cidade. Todos os picolés eram fei- para registrar a tradição de Santa Cruz como patrimônio local.
tos apenas de água e apresentavam, em um dos lados do Tenho certeza de que vamos conseguir”. Finalizando, com os
palito, a inscrição “elemento desaparecendo”. Uma vez que mesmos Guattari e Deleuze, a ideia de dispositivo consiste na
os picolés eram consumidos, se revelava, no outro lado do montagem espontânea de um artefato absolutamente novo que
palito, a inscrição “elemento desaparecido”. articula elementos heterogêneos, dos coletivos até aqueles

138 139
do artista como criador de identidades (e, portanto, de
Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido aborda a território) a despeito de não haver um “produto” ou ob-
questão do território pela ótica dos recursos naturais, am- jeto artístico sendo gerado ao final do processo. Como
pliando a percepção do público a respeito de uma ques- o título já sugere, às vezes fazer
tão política essencial na atualidade, e que apresenta sé- alguma coisa leva a nada. de microscópicas funções subpessoais.
rias implicações territoriais no presente e no futuro. Ao Esses dispositivos podem ser os meca-
mesmo tempo, a intervenção questiona o circuito da arte Em Barrenderos (2004), o aspecto nismos que veiculam a desterritorializa-
e seu caráter mercadológico, uma vez que o trabalho só se público e performático dos traba- ção. De fato, foi o que vimos!
completa com o gradual derretimento do objeto, de modo a lhos de Francis Alÿs entra nova-
tornar visível o texto impresso no palito. A participação do mente em cena, também tendo Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de
espectador também se faz essencial na concretização da a relação entre cidade e meio 2014)
obra, o que implica outra dimensão de autoria – tal como ambiente como pano de fundo. A redefinição constante do conceito de
mencionamos anteriormente. Segundo Moacir dos Anjos, Nessa intervenção, varredores de território em várias áreas de conheci-
Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido traz em sua rua são orientados a empurrar o mento nos leva a pensar e concluir que,
constituição um elemento ambivalente, pois “[solicita] a lixo de uma rua para outra, até o a todo momento, vivenciamos processos
participação do público na construção de objetos simbólicos ponto em que a quantidade de lixo de territorialização e desterritorialização.
[...], pedindo, ao mesmo tempo, que deles se desfaça ou que acumulado ao longo do percurso Penso que um território existe apenas
os consuma para que as criações ganhem pleno sentido” forma uma montanha e impossi- em função de sua capacidade de esta-
(ANJOS, 2010, p.67). bilita que se continue com esse belecer relações. O território entendido
movimento. Também nesse caso, como um objeto estável cede lugar a um
Por fim, apresentam-se aqui alguns trabalhos de Francis observa-se que o trabalho se es- processo de construção permanente de
Alÿs, que refletem sobre questões territoriais e de iden- gota em seu próprio processo, e comutações. Assim, o conceito de terri-
tidade, e que têm grande identificação com alguns dos que a ação e o esforço dos corpos tório contemporâneo renuncia ao “local
elementos da perspectiva de arte site-oriented, tal como não levam à geração de um pro- físico” como um topos ou um invólucro
mencionado anteriormente. Em particular, os trabalhos de duto artístico tangível ao final. estável que o identifica. Nesse senti-
Francis Alÿs têm em geral caráter público e performático, do, as reflexões de Miwon Kwon sobre
apontam para a singularidade de identidades locais e se Em Green Line (2004), por sua práticas artísticas são importantes na
exploram conceitos de des(re)territorialização a partir de vez, Alÿs explora a questão do atualização ou redefinição do conceito
ações e eventos articulados pelo artista-nômade. Assim território com ênfase na ideia de site-especific ao abordar trabalhos
como Cildo Meireles, Alÿs também questiona o status da de fronteiras. Nessa performan- artísticos nos quais a condição física
obra de arte ao produzir trabalhos que se esgotam na pró- ce, executada em Jerusalém, o de uma localização específica deixa de
pria realização, ou que se expressam simplesmente pelo artista caminha por vários quilô- ser o elemento principal na concepção
engajamento corporal do artista ou dos participantes – ca- metros sobre a chamada “linha de um site. Acredito que várias obras
minhando, varrendo, dirigindo, etc. verde”, demarcação de fronteira do artista Maurice Benayoun, especial-
entre Israel e Palestina estabele- mente World Emotional Mapping e Frozen
A performance Paradox of Praxis I: Sometimes doing some- cida após o final da guerra entre
thing leads to nothing (1997) ilustra precisamente esse ponto. árabes e israelenses em 1948, e que prevaleceu até a
Nesse trabalho, Alÿs empurrou um bloco de gelo pelo cen- Guerra dos Seis Dias, em 1967. Alÿs carrega consigo
tro da Cidade do México até que todo o gelo se derretesse. uma lata de tinta verde com um pequeno furo, o que
Sua ação – pública, na cidade – discute o papel da arte e faz com que o artista vá redesenhando a fronteira (que

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já não existe mais) ao longo do percurso. A partir de uma O denominador comum nessa produção é a ideia de que
ação quase literal de reconstrução de território, o trabalho territórios são construídos e desconstruídos continuamente,
discute a conflituosa relação entre palestinos e israelenses, e que a arte tem um papel relevante para apontar e refle-
perpassada por questões políticas, históricas, econômicas, tir sobre diferenças, identidades locais, “texturas”, em um
religiosas, e explora a relação entre arte e política, particu- mundo guiado pela homogeneização e pela padronização
larmente delicada em situações de conflito. dos espaços, dos costumes – enfim, do território.

When Faith Moves Mountains (2002) também representa Arte e território: reflexões pessoais
uma intervenção direta sobre o território, mas desta vez
em escala muito maior, e com grande participação pública. Temas associados ao território, a fronteiras, a particulari-
Nessa ação, quinhentos voluntários se perfilaram sobre dades locais, à construção e ao apagamento de identidades
uma grande duna de areia nos arredores de Lima (Peru) e, estiveram frequentemente presentes em minha produção
com o auxílio de pás, tentaram mover a posição da duna em recente como artista. Em muitos desses trabalhos, o ca-
alguns centímetros. Assim como em vários outros trabalhos ráter site-specific ou site
de Alÿs, a obra só se concretiza com a participação do pú- -oriented, a efemeridade Feelings, são exemplos dessa nova forma de en-
blico, e se completa e ao mesmo tempo se esgota em seu da obra e a participação tendimento e atuação artística em territórios “ou-
processo. O resultado final, embora tenha sido movido um do espectador também tros”. Disponível em: http://www.benayoun.com/.
grande volume de areia, é praticamente imperceptível na têm grande relevância.
escala macro da paisagem, mostrando uma vez mais como Várias vezes, os traba- QUESTÃO 2
um enorme esforço pode levar a “nada”. lhos refletem também Como a arte pode contribuir para a construção de
o caráter nômade do territórios (do ponto de vista simbólico) no mundo
Por fim, Bridge/Puente (2006) é também uma intervenção artista, pois foram pro- globalizado?
site-oriented que explora as relações entre arte, política duzidos em períodos
e território. Nesse trabalho, Alÿs mobilizou comunidades de residência em di- Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014)
de barqueiros de Havana (Cuba) e Key West (Flórida, EUA) versas partes do mun- Existe uma conceituação, meio precipitada, a meu
para construir uma ponte flutuante, formada por barcos do. Apresento aqui uma ver, mas que, no entanto, é bem didática para essa
alinhados. Partindo simultaneamente dos dois territórios, parte dessa produção, nossa questão. Refiro-me à oposição entre “cultu-
cada extremo da ponte apontaria em direção ao outro, de como forma de comple- ra” e “arte”, a cultura sendo o sedimento de tudo
forma que, no limite, poderia ser construída uma ligação mentar a discussão pro- o que já foi produzido e criado pelas civilizações,
entre os dois países. A ação explora a ideia de identidade e posta no texto. e a arte sendo tudo aquilo que vem para atraves-
o papel da arte para promover um diálogo entre dois países, sar e promover rupturas com a cultura instituída,
de modo a romper o isolamento historicamente imposto a Nueva Córdoba (2008) é trazendo o novo, o ruído, o espanto, o ascender
Cuba. uma série de cartões de uma nova ideia ou possibilidade. Dentro des-
postais produzidos a sa perspectiva, não apenas no mundo globalizado,
Em resumo, os trabalhos de Gabriel Orozco, Mona Hatoum, partir de fotografias mas em todas as épocas, a arte caracterizou-se
Cildo Meireles e Francis Alÿs, aqui apresentados, repre- de imóveis demolidos essencialmente pela construção de novos ter-
sentam uma amostra da produção de arte contemporânea em Córdoba, Argentina. ritórios simbólicos. É o que a difere da cultura.
em que questões associadas ao território são examinadas. Revela os resquícios do Falando especificamente de nossa época globali-
interior das casas, com zada, é de especial importância que a arte seja ca-
suas particularidades, paz de atravessar e transformar os movimentos de

142 143
como que revelando parte da intimidade e da identidade Outro grupo de trabalhos recentes – parte do projeto
de seus antigos moradores. Como em outros lugares, as intitulado Entre Rios e Ruas – reflete sobre a questão
1. A apresentação
antigas casas darão lugares a edifícios, promovendo a pa- territorial, com foco na relação entre cidade, meio desses trabalhos
dronização e a homogeneização dos espaços. O título do ambiente e indivíduo1. O ponto de partida, nesse caso, está baseada em
trabalho corresponde ao nome do bairro onde as fotos fo- é a relação que Belo Horizonte (MG) estabeleceu des- Prado (2013).
ram feitas, e os postais são, então, um registro da antiga de sua fundação e estabelece ainda hoje com os rios e
Nueva Córdoba. córregos presentes em seu território. Menciono aqui
três dos trabalhos desenvolvidos.
Em 2009, fui convidada a participar de uma residência na
Cisjordânia. Como se poderia esperar, a delicada situação Jóia é um broche feito em ouro e explora a relação en-
política e social da Palestina – que se refletia em restri- tre corpo, espaço e escala. O desenho dessa joia, de
ções à circulação no território, ao controle de fronteiras, 9,5cm de comprimento, replica em escala 1:10.000 o
às limitações econômicas e de infraestrutura – influenciou traçado dos últimos 950m de leito
decisivamente minha percepção e minha produção durante natural do Ribeirão Arrudas dentro destruição das identidades em movimen-
a residência. Dois trabalhos foram executados, abordando dos limites do município de Belo tos de criação de singularidades, virando
questões cruciais na região: primeiro, a presença do muro Horizonte. De acordo com Eduardo o jogo da tendência de padronização das
e dos checkpoints e as limitações à liberdade de movimento de Jesus (2012, p. 22): subjetividades. Essa é a contribuição mais
no território; segundo, as restrições no abastecimento de importante, a meu ver, que a arte pode
água na Palestina, que se refletem na presença maciça de Carregar a Jóia é o mes- nos fornecer na atual conjuntura.
caixas d’água, em grande número, nos telhados. mo que carregar o que
ainda resta. Fixá-la pró- Luiza Alcântara (25 de novembro de 2014)
O primeiro desses trabalhos – um vídeo intitulado Vanishing xima ao corpo, carregá-la A arte faz parte da construção da identi-
Point (Ponto de Fuga) – captura o fluxo de veículos e pe- como adereço é o mesmo dade social, faz parte da cultura. Dessa
destres no checkpoint de Qalandia, perto de Ramallah, que carregar um pequeno forma está completamente ligada ao sim-
durante um dia inteiro. O título traz um jogo de palavras, fragmento de tempo e es- bólico social. Voltando ao exemplo dado
pois Vanishing Point também significa “ponto de desapa- paço que remetem de uma na questão anterior, as ocupações podem
recimento”, e o trabalho propõe uma reflexão sobre desa- só vez para a ausência de ser (e alguns trabalhos de arte possuem
parecimento da cultura, perda de identidade e restrições uma paisagem e para o esta proposta) chamadas de arte. Como
à liberdade. jogo da escala. ocupar e ressignificar os espaços? Que
outras subjetividades são possíveis ali?
As caixas d’água – massivamente presentes nos telhados A instalação Repaisagem, por As residências de arte podem ser outro
da Palestina e tão visualmente marcantes na paisagem – sua vez, utiliza mantas magné- exemplo disso. Artistas se deslocam para
são o elemento central em Water Skyline, uma instalação ticas que correspondem a todos pesquisar e interagir com um lugar espe-
com uma série de imagens impressas em fotocópia P&B os trechos de córregos em lei- cífico e para criar com e a partir dele.
no papel sulfite A3. As fotografias são coladas diretamente to natural no município de Belo
sobre as paredes, uma ao lado da outra, usando o pro- Horizonte e sugere a participação Claudia Laport Borges (24 de novembro de
cesso de lambe-lambe, e formam uma linha do horizonte 2014)
imaginária. Assim, a instalação cria uma nova paisagem e Sou geógrafa e não poderia aqui deixar de
ressalta as restrições do abastecimento de água na região, buscar os ensinamentos de Milton Santos.
fonte permanente de conflito territorial. Para o autor, um território é analisado

144 145
do espectador, criando novos desenhos, novas paisagens. Por fim, cabe mencionar a intervenção Wind Catcher
Assim, o trabalho é definido mediante a participação do (2007), realizada em Shatana, uma pequena vila na
outro, que é quem efetivamente o constrói e o transforma Jordânia, de paisagem montanhosa e monocromáti-
continuamente. A instalação contém ainda um elemento de ca. Para esse trabalho, foram construídos 50 objetos
áudio, que corresponde ao som desses mesmos córregos, de tecido colorido, semelhantes a pequenos paraque-
em trechos canalizados, que correm sob as ruas da área das, que foram dispostos no alto de uma colina, em
central da cidade. uma estrutura que remetia a uma tenda de beduínos.
A intervenção incentivava a participação do público e
A performance Lição: se essa rua fosse um rio consiste em promovia a interação entre os habitantes da vila, pois
uma sequência de aulas de violino na rua, em que o pro- os objetos eram usados sempre por duas pessoas. No
fessor tenta me ensinar a execução da melodia Se esta rua horário determinado, os participantes saíram em du-
fosse minha. As aulas ocorrem sempre em ruas sob as quais plas a caminhar pela vila, vestindo os objetos de tecido
correm trechos dos córregos da cidade. O trabalho é visto inflados como paraquedas pelo vento que incessante-
como uma metáfora para a dificuldade em estabelecer uma mente soprava no vilarejo. O trabalho, assim, propiciou
nova relação e uma nova consciência da cidade acerca do uma experiência de interação e troca dos indivíduos,
ambiente. “Repetitivamente, a artista encena um percurso entre si e com a própria cidade, bem como um efeito
que não se conclui, próprio à aprendizagem, assim como visual na paisagem monocromática da região.
aos rios” (DINIZ, 2012, p.16).
sob a perspectiva do uso: o território usado constitui-se como um
Os trabalhos do projeto Entre Rios e Ruas trazem, por meio todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares
da metáfora, da participação do espectador e da experiência e conflitantes. Deve ser compreendido como uma totalidade que vai
espacial, uma reflexão sobre o uso do território urbano e do global ao local. Em sua análise argumenta que o território em si
uma proposta de recriação da cidade. não é um conceito, ele só se torna um conceito quando o considera-
mos na perspectiva do seu uso. Tal entendimento é demasiadamente
A ideia de território a partir da formação de identidades é importante, visto que tem como preocupação principal a ação e a uti-
um dos aspectos centrais da intervenção urbana Estrangeiro lização desempenhada pelos seres humanos na produção do espaço.
(2006), realizada em um bairro de Berlim, na Alemanha. Ou seja, a arte, em todas as suas formas e vertentes, ao se apropriar
Nesse trabalho, foram distribuídos por mim e mais quatro dos espaços, está criando um território de uso.
voluntários uniformizados cerca de 900 balões coloridos,
com a palavra “estrangeiro” impressa em cor branca e in- Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de 2014)
flados com gás hélio. Anexada a cada balão havia uma eti- Com o desmonte do muro de Berlim, em 1989, rapidamente as for-
queta que sugeria que o mesmo fosse solto às 20h. Dessa ças conservadoras conclamaram o “fim da história”, das ideologias
forma, a participação do público era condição essencial e, consequentemente, o advento do livre caminho para a harmonia
para a execução do trabalho. O resultado pôde ser visto entre os povos – leia-se: heterogeneidade sociocultural sob os rigo-
na região durante o período da intervenção, primeiro pela res da lei do mercado. Porém, depois da queda do muro de Berlim,
identificação entre os participantes que carregavam seus houve a proliferação de um sem número de cercamentos. Por que
balões ao longo do dia e depois pela imagem dos vários ba- isso em um mundo globalizado? E penso aqui no muro da Cisjordânia,
lões subindo ao céu simultaneamente, a partir de diferentes no muro da fronteira entre os EUA e o México, nos muros dos bairros
pontos do bairro. fechados... Uma das respostas é que, na era do acesso, nem todos
são bem-vindos. Em um mundo de mercadorias perfeitas, a pessoas

146 147
Referências menos que perfeitas é vedado o livre fluxo. Tudo isso junto é a ques-
tão que envolve o InSITE, citado aqui pela Isabela Prado. Criado em
ANJOS, Moacir. Arte Bra Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 1992, esse festival de arte pública decolou em 1994, ao conseguir cap-
2010. turar a importância que as fronteiras haviam assumido no discurso
político da arte global. No InSITE 97, causou sensaçâo, dentre outras,
DINIZ, Clarissa. “Rios, ruas, visibilidades”. In: Entre Rios
a instalação de Marcos Ramirés Erre denominada Troyan Horse: um
e Ruas. Brasília: FUNARTE, 2012. (Catálogo de exposição).
Cavalo de Tróia de 25m de altura, instalado na fronteira entre EUA/
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Sueli. Micropolítica: cartografias México (San Diego/Tijuana), com duas cabeças – uma virada para o
do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. Norte e outra para o Sul. Como observou Néstor Canclini: “evitou
assim o estereótipo da penetração unidirecional do Norte pelo Sul”.
GONÇALVES, Carlos. “Da geografia às geo-grafias: um Estava criada a 'Post-Border Art'.
mundo em busca de novas territorialidades”. In: CECENA,
A.; SADER, E. (org.). La guerra infinita. Hegemonía y terror Isabela Prado (24 de novembro de 2014)
mundial. Buenos Aires: Clacso, 2002. Oi, Ricardo, gosto muito do formato de residências. Concordo que
parte de um deslocamento que, por si só, pode ter grande potencial
GROSZ, Elizabeth. Chaos, territory, art. Deleuze and the fra-
criativo. E que a troca cultural que se estabelece nesses casos é
ming of the earth. IDEA Journal, 2005.
muito interessante e pode também acabar influenciando a produ-
HEINRICH, C. (ed.). Mona Hatoum. Ostfildern: Hatje Cantz ção do artista. Sabemos que existem opções de residências com
Verlag, 2004. características opostas, em termos de localização, duração, escala,
formato, recursos, etc. Dependendo do local da residência (como
JESUS, Eduardo de. “Cartografias quase invisíveis”. In: nas ovelhinhas e montanhas com neve), funciona quase como uma
Gómez, J. C. (Org.). Isabela Prado: entre rios e ruas. Belo “bolha” de imersão, em que o artista se afasta do ritmo acelerado
Horizonte: SESC Minas, 2012. de seu cotidiano na cidade e abre a possibilidade de explorar outro
KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre tempo. De todo modo, independentemente do grau de isolamento do
site-specificity. Revista Arte & Ensaios, n. 17, 2008 [1997]. local, o mero afastamento da rotina e da zona de conforto do artista
já gera um olhar crítico, um olhar “de fora”, e isto pode ser um ele-
LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford: mento de criação. Eu tive esse tipo de percepção em casos tão extre-
Blackwell, 1991 [1974]. mos como um pequeno vilarejo na Jordânia ou em grandes cidades
como Berlim. Uma das experiências de residência mais marcantes
MEDINA, C.; FERGUSON, R.; FISHER, J. Francis Alÿs.
que eu tive foi na Palestina, em 2009. Acabei publicando um relato
London: Phaidon, 2007.
sobre isso na Revista Tatuí (http://issuu.com/tatui/docs/tatui_08_pdf),
PRADO, Isabela. “(In)visível sob a cidade: o projeto ‘Entre sobre a relação entre paisagem e território. Acho o tema riquíssimo.
Rios e Ruas’”. Revista da UFMG, vol.20, n.1, 2013. Queria especular um pouco sobre isso, a partir do que entendi da
sua pergunta. Acho que território e paisagem estabelecem uma re-
RANCIÉRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Ed. lação de mão dupla (considerando ambos como constructos sociais,
34, 2005. mentais, simbólicos). Por um lado, me parece que a paisagem é
SÁNCHEZ, O. Conwell, D. (ed.). [Situational] Public. San elemento constituinte do território. Ou seja, a paisagem é um dos as-
Diego: inSite, 2006. pectos que definem nossa visão ou percepção sobre o território. Isso
significa que quando construímos novos valores para a paisagem
recriamos o território. Ao mesmo tempo, existem aspectos do terri-

148 149
tório – particularmente, mudanças do território físico (verticalização ções, diga-se de passagem), etc. Ocupar territórios nesse sentido,
das cidades, por exemplo) – que podem alterar nossa percepção da dentro de outra lógica, é contribuir para a disseminação desta lógica,
paisagem, que por sua vez leva à nova reterritorialização (no plano seja através dos resultados em publicações, vídeo e exposições. O
simbólico). Mas parece também que a alteração do território físico Amilcar Paker* bem disse que “quem fala em residências, fala em
e a do simbólico operam em escalas de tempo diferentes, ou seja, deslocamento” e “promove literalmente desterritorialização como
parte da nossa percepção da paisagem é fruto da nossa memória condição básica de criação”. O já falecido Octavio Ianni também nos
sobre o território, mesmo que na realidade aquele território já não dizia, já em 1992, que a despeito da “ilusão da origem, tudo tende a
exista da mesma forma... deslocar-se [...] línguas, hinos, bandeiras, tradições, santos”, espaço
global em tempo presente. Nisso, fiquei me perguntando qual é a
Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014) relação entre a construção de paisagens (como constructos mentais
Apesar de não me ocorrer nenhum exemplo concreto a dar, acredito históricos) e a noção de território/reterritorialização? Você falou no
que a maior contribuição da arte para a construção do território sim- texto, Isabela, sobre “a desterritorialização como o movimento de
bólico no mundo globalizado esteja ligada ao ambiente de fronteiras, destruição ou abandono do território, e a reterritorialização como re-
em que a arte pode (e costuma) agir. A arte contemporânea man- construção do território”. Isso, em termos mais subjetivos, pode ter
tém-se sempre na fronteira simbólica - e mesmo física - recriando a ver com o modo como concebemos as paisagens? Já que elas são
espaços físicos, simbólicos e culturais, e se retroalimentando dessas constructos sociais, históricos, mentais, que mudam com o tempo.
mudanças, desterritorializações e reterritorializações. Ao agir nessa Reterritorializar também é imaginar, construir nesse sentido novos
fronteira, entre o convencionalmente aceito e o próximo passo, a arte valores para paisagem? Não sei se fui claro na pergunta...
cria espaços para várias novas linhas de pensamento e atuação, não
só artisticamente, mas social e urbanisticamente também. *Há um texto do Amilcar sobre residências muito bom, chamado
“resiliências artísticas” (http://www.funarte.gov.br/residenciasartis-
Ricardo Macêdo (19 de novembro de 2014) ticas/wp-content/uploads/2014/07/miolo+capa-livro-res-artisticas-
Acho que artistas em residência são um bom exemplo. É onde o FINAL_baixa-res.pdf).
deslocamento é a base e a origem da coisa. E, ainda por cima, eles
pontuam a importância do agenciamento de formas diferenciadas de Questão 3
administrar o tempo de produção de seu trabalho. E, nisso, propõem Considerando a evolução da arte site-specific em direção à sua versão
outros alicerces frente ao paradigma frenético do mercado atual, discursiva, com ampliação da participação do público e relativização da
revitalizando um ritmo desacelerado, pré-industrial. Alargando e noção de autoria, qual é o papel do artista na produção artística contem-
estendendo o tempo dentro de outra temporalidade, e isso é muito porânea associada à questão do território?
legal. Vi umas chamadas para residências atuais e encontrei uma
com ovelhinhas e montanhas com neve no meio do nada (http://www. Thaís Mor (30 de novembro de 2014)
transartists.org/air/listh%C3%BAs-artists-residency-program). Essa A arte destaca as especificidades/características locais que diferen-
residência não ocorre em uma comunidade grande, mas em uma ciam e determinam um território (sensações, sentidos, memórias).
pequena, com outros artistas de várias regiões do globo; não me- Ela é capaz de “legitimar” símbolos, diferenciando-os de um “site”
nos válida, pois, ainda assim, rola um intercâmbio cult fortíssimo, para outro - territorialização/ desterritorialização/reterritorializa-
imagino, com trocas e vivências de uma multiplicidade cultural pe- ção. A partir da premissa “O território é uma condição de existência
sada. Nas residências, acho que o modus operandi da produção de para a humanidade”, o artista, como um nômade, muitas vezes com
uma ideia e criação de algo já é, em si, uma potência agenciada, um vivências “globais”, é responsável por organizar esses elementos,
poder simbólico frente à segregação das cidades, à velocidade das símbolos, e mobilizar a participação do público para construir um
gentrificações, das “desocupações” de terrenos (desterritorializa- conceito potencial e de significado.

150 151
Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014) Bárbara Rodrigues Tavares (22 de novembro)
Acredito que seja justamente ancorar a própria mudança de percep- O artista se apresenta como intelectual crítico que traz à tona as
ção sobre o conceito de território como algo estático e enraizado, inquietações da sociedade que ele habita, incluindo as próprias in-
trazendo à tona a noção de território como trajetória experiencial, quietações. Acredito na força do trabalho do artista para criar novos
fluxo de encontros e agenciamentos. Mas, ainda e principalmen- territórios - em todos os sentidos. As manifestações mais participa-
te, contribuir para a vivificação dos territórios formais, para que vi- tivas e com autores plurais estão relacionadas à iniciativa do artista.
brem e estejam tanto quanto possível prenhes de movimento crítico Ele pode ser considerado o ponto de partida, determinante para os
e transformador. Nesse sentido, cabe ao artista do século XXI estar rumos que as ações vão tomar.
fora dos espaços institucionalizados, promovendo ruídos, rupturas
e ressignificações da paisagem cotidiana, para que seu vínculo com Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014)
as pessoas possa ser (r)estabelecido e (re)vivificado. Creio que mesmo em obras abertas o artista mantenha o seu pa-
pel de criador e orientador. Obras interativas e que necessitam do
Reginaldo Luiz Cardoso (24 de novembro de 2014) público para ser contempladas não minimizam a autoria. Autorias
Como disse no post anterior, com o InSITE tomou forma a chamada coletivas, que têm se ampliado principalmente em face das redes di-
Post Border Art. Isso porque, uma vez que o festival ocorre em uma gitais, são também (e ainda) formas de autoria. As diversas licenças
região fronteiriça extremamente problemática e emblemática, visa alternativas, espaços de questionamento e amplitude entre copyleft
a por a nu a retórica do livre fluxo global. E é simbólico esse evento e copyright ainda assim são alternativas de autoria e não o fim delas.
porque coloca a questão do artista contemporâneo equilibrando-se Na literatura, por exemplo, se fala muito a respeito da incompletude
na borda, na fronteira entre o reconhecido – o Norte/Centro –, e o do livro sem a existência de um leitor e, ainda, que as interpretações
relegado a segundo plano – o Sul/periferia, na borda entre o mains- de textos, de certa forma, geram obras diversas - não se passa nem
tream e o basfond. Não à toa, o InSITE 05 teve como conceito central perto de tocar as questões de autoria. Ainda é o artista quem con-
a arte (in)visível. Um exemplo tirado dessa mostra é a intervenção cebe e usa o território nas artes, ainda que ele possa propor novos
One Flew Over The Void/Bala Perdida, do venezuelano Javier Téllez usos e construções para os espaços que se dispõem a explorar. O
em colaboração com pacientes de um centro de saúde mental de público pode, sim, tornar-se artista ao propor uma subversão para
Mexicali, e dos quais surgiu a proposta de cruzar a fronteira pelo a proposta inicial e criar uma completude para a obra originalmente
ar. Tratou-se do lançamento do homem-bala Dave Smith do lado proposta.
da fronteira mexicana para o lado norte-americano, uma festa de
encerramento de um projeto coletivo. Ali, coisas importantes foram Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)
postas: 1°) que o caráter processual do projeto resultou em nada Acredito que o artista passa a desempenhar novos papéis e a al-
tangível, em ausência de objeto; 2°) os suportes utilizados foram cançar um novo estatuto como propositor artístico. Um território
muito além daqueles convencionados pelo cânone; 3°) o registro do pode ser criado a partir de um mapa de relações. Mapas que não
processo é fundamental. Tudo como descrito por Miwon Kwon. Como correspondem a mapas geográficos. Mapas nos quais o conceito
observou R. Bont, com grande acuidade, o InSITE, nesse sentido, se de vizinhança passa a adquirir outros sentidos a partir do momento
converteu em um legado tático para futuras atuações que, sem dú- em que o espaço de ação do artista também adquire características
vida, mudaram o rumo do mundo da arte. E, provocativo, questiona: mais abstratas.
“abolido o objeto, o ‘espetáculo’, entendendo a arte como uma prática
política, de que vão viver os artistas?”. Seja lá qual for a resposta,
corroboro aqui a opinião de Jenni Klein, de que depois do InSITE 05
o futuro das práticas artísticas se assenta definitivamente fora das
galerias.

152 153
Eduardo de Jesus* campo da Física aplicadas à produção artística, iniciou e
disseminou a mediação técnica na produção das imagens

Relações (desde o Renascimento, algumas técnicas de produção


de imagem eram utilizadas na produção artística, como a

entre arte câmera escura, a tavoletta e outros instrumentos).

e tecnologia: Com a chegada da fotografia houve uma primeira ruptura


com as formas mais tradicionais de produção das ima-
gens, que passaram a ser reproduzidas e deslocaram o
traços históricos lugar antes ocupado pelo original. Assim como a fotogra-
fia se firmou no campo da arte, outras máquinas, outros
e desdobramentos instrumentos e outras técnicas foram sendo incorpora-

atuais dos pela produção artística


ao longo do tempo. Em pouco Questão 1
tempo, os impressos, a ima- Qual é a possível relação histórica e contem-
Introdução gem cinematográfica, o vídeo, porânea entre arte e tecnologia e qual é o
as transmissões televisivas, o lugar da arte tecnológica no domínio da arte
* Eduardo de Jesus Em A noiva desnuda pelos seus celibatários, mesmo1 computador e as redes, den- contemporânea?
Mestre em Comunica- (1915-1923), Marcel Duchamp buscava mostrar cer- tre outros suportes e dispo-
ção pela UFMG (2001), ta dimensão orgânica nas formas arredondadas e sitivos técnicos, tornaram-se Reginaldo Luiz Cardoso
Doutor em Artes pela
volumosas daquelas máquinas: moedores de cho- meio e material para a criação Caros (Professor e Colegas), gostei muito
ECA/USP (2008), é
professor do Programa colate, engrenagens e ganchos que aproximavam, artística, que não apenas os das questões levantadas neste módulo.
de Pós-Graduação em de forma quase assustadora, o ambiente sequen- incorporou, adequando-os às
Comunicação Social da cial, aparentemente frio e sem vida das máquinas, formas já consagradas pela Em primeiro lugar, foi muito bom o Eduardo
Faculdade de Comuni- do universo humano. Uma proximidade inusitada. tradição, mas também deixou- de Jesus ter levantado logo de cara a ques-
cação e Artes da PUC O Grande Vidro, como também é conhecida a mes- se transformar profundamen- tão da historicidade que está presente na
Minas. Atua como pes-
ma obra de Duchamp, mostrava os sintomas de te por eles. Naturalmente que chamada arte contemporânea (algo que
quisador e curador em
diversos projetos e ex- um grande encontro entre as naturezas da má- surgiu em um lugar incerto entre Duchamp
posições como Festival quina e do ser humano. Para a época, um grande e Warhol). E, afinal, a dobradinha arte e tec-
de Arte Contemporânea enigma, iluminado pela intensa transparência do nologia é uma constante na história da hu-
SESC_Videobrasil (São vidro trincado. Hoje, apesar de experimen- manidade: está na invenção da perspectiva,
Paulo, 2013) e Festival tarmos manifestações ainda mais intensas na nas artes gráficas, na indústria química, nas
Internacional de Foto-
relação entre ser humano, técnica e máquina, tecnologias da informação...
grafia (Belo Horizonte,
2013), entre outros. engendradas na vida cotidiana, alterando sensivel-
mente toda a ordem social, ainda vivemos o enig- Segundo, podemos dizer que vivemos em
ma proposto na obra de Duchamp. um mundo pós-aurático, aquele mundo que
se desenvolveu a partir das questões trazi-
1. Tradução nossa de: No campo da arte, a máquina compareceu inicial- das à tona por W. Benjamin e desenvolvidas
La mariée mise à nu par mente, com a chegada da fotografia. A máquina posteriormente dentro e fora da Escola de
ses célibataires, même fotográfica, fruto das sucessivas descobertas no Frankfurt. Talvez quem resuma bem isso

154 155
essas incorporações dos meios técnicos pelo ambien- Arte e tecnologia
te artístico provocaram profundas alterações tanto na
produção artística em si quanto na forma de perceber Se buscarmos a etimologia do termo seja o crítico e curador norte-a-
e experimentar as obras. Mesmo porque, em alguns arte, veremos que ao radical ars, de ori- mericano Joshua Decter, ao afir-
casos, as máquinas foram rapidamente incorpora- gem latina, corresponde outro, vindo mar que “chegamos à época da
das à vida social, colaborando para uma nova visão de da cultura grega – techne – indicando, obra de arte enquanto (sic) apa-
mundo e, com isto, gerando novas formas de conhe- conforme nos lembra Arlindo Machado, rições e desaparições”. Como
cimento e cultura. “que, nas origens, a técnica já implicava contradizê-lo em um momento
a criação artística, ou, em outros termos, em que se discute de tudo hoje
Os instrumentos de comunicação a distância foram havia já uma dimensão estética implí- no campo das artes, desde os no-
alterando as formas de perceber o tempo e o espaço, cita na técnica” (MACHADO, 1994, p.09). vos/velhos suportes até a morte/
conseguindo aproximar pontos distantes. Cada novo Apesar de techne e ars indicarem uma presença da autoria em uma am-
instrumento descoberto ia tornando cada vez mais produção voltada para a execução e a pliação e um rompimento sem
complexas essas aproximações. Com a chegada da construção do objeto, o uso desses ter- precedentes históricos da arte?
televisão e, depois, dos satélites, computadores, in- mos já mostrava na Grécia Antiga níveis
ternet e redes sociais, o mundo acabou ficando pe- de hierarquia no domínio do fazer artís- A minha questão: se se trata de
queno para a enorme teia comunicacional que se es- tico, como ressalta Renato Barili: alcançar uma interpassivida-
tendeu sobre ele, varrido pelas imagens transmitidas de, como quer Zizek (citado por
por inúmeros meios, envolvendo tanto os meios de O certo é que tanto a “ars” latina Eduardo de Jesus), em um mun-
comunicação massivos quanto aqueles de uso pesso- como a “techne” grega indicavam do que está constantemente re-
al, como smartphones, que permitem acesso às redes precisamente graus primários de configurando as subjetividades,
sociais e podem alcançar em seus desdobramentos intervenção técnica, numa acep- não seria afirmar a priori que os
formas de comunicação pessoal de alcance massivo. ção extremamente larga e genéri- sujeitos foram capturados pelos
ca: tanto que logo se tornou indis- dispositivos e, portanto, caberia
Quando os instrumentos de comunicação tiveram pensável introduzir hierarquias de à arte tecnológica resgatá-los
seus usos subvertidos e tomados como suportes ar- valores retiradas de uma escala através de novos processos de
tísticos, dando prosseguimento, em nova chave, a tra- ascendente destinada a premiar (des)subjetivação?
balhos pioneiros como os de Marcel Duchamp, Walter os valores da mente relativamen-
Ruttman e René Clair – que já exibiam a possível des- te aos da mão e da fadiga física. Como disse, esse módulo trou-
construção do objeto artístico – a produção artística (BARILLI, 1989, p.20) xe-me várias questões e esta se
tomou então um rumo completamente novo. Com a tornou mais premente, pois tem
entrada dos suportes imateriais em cena, tornou-se Essas hierarquias provocaram a criação atravessado todos os módulos
necessário reinvidicar outras formas de compreensão de outro termo que fosse capaz de de- anteriores. Não é uma questão
para essas obras de arte, principalmente pela nature- signar aquela atividade artística menos fácil e não há respostas prontas
za complexa da experiência estética que elas provoca- ligada à manipulação dos materiais, “um (ainda bem).
vam. A utilização dos instrumentos típicos da comuni- fabricar por excelência, dado que preci-
cação a distância na produção artística reposicionou samente não usa mármores e cores, mas apenas
inteiramente a relação espaço-temporal e, com isto, a substância ‘espiritual’ ou parcamente a pala-
alterou também radicalmente, a experiência estética. vra gráfica” (BARILLI, 1989, p.20). Surgiu assim
o termo poiesis. Desde a Grécia Antiga, passando

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pelo Renascimento e depois pelo século XIX, com a Além de dar continuidade a Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de
descoberta da fotografia e do cinema, até o vídeo e o um modelo clássico de repre- 2014)
computador em nossos dias, encontramos diferentes sentação, herdado, de certa Relações históricas entre arte e tecnologia
maneiras de relacionar técnica e produção artística. forma, do avanço da tecno- podem ser percebidas nos momentos em
Em alguns momentos, em particular, há mesmo uma logia na fabricação de apa- que os artistas buscaram na ciência uma
relação de confronto entre ars e poiesis, o que tem relhos ópticos utilizados na maneira de aperfeiçoar seus processos de
gerado, além de manifestações artísticas das mais Renascença, a produção co- trabalho, buscando respostas objetivas para
diversas, um intenso debate. mercial da fotografia inaugu- o comportamento de certos materiais, de-
rou uma forma de reproduzir senvolvendo novas técnicas com a ajuda da
Nos ateliês do Renascimento era comum a presen- imagens quase sem a inter- ciência. Nesse sentido, formas embrionárias
ça de aparelhos de pintar baseados na Tavoletta de venção humana: uma imagem de relação entre arte e tecnologia já podem
Brunelleschi, que serviam para que o artista produ- de natureza técnica. Pode-se ser percebidas com a utilização de estudos
zisse um esboço da imagem, materializado ali, na su- argumentar, contudo, que a relacionados à ótica, ao comportamento das
perfície do vidro. O olhar monocular da perspectiva imagem renascentista já era cores e a métodos relacionados à aplicação
renascentista também fazia uso da câmera obscura, de natureza técnica, uma vez da perspectiva pelo ponto de fuga.
que projetava as imagens, de forma invertida na pa- que os efeitos dos diferentes
rede da câmera oposta ao orifício por onde entrava a tipos de pincéis, o uso da ma- A Revolução Industrial ocorrida no início do
luz, “enquanto o papel do artista consistia apenas em deira, da tela e dos aparelhos século XIX permitiu um contato maior da
fixar estas imagens com pincel e tinta” (MACHADO, ópticos condicionavam, de produção artística com processos de produ-
1994, p.09). certa forma, o fazer artístico. ção de manufaturas. Avanços no campo da
A diferença é que, com a foto- química, física, matemática e, consequen-
Posteriormente, no século XVI, com a descoberta das grafia, iniciava-se um período temente, das engenharias influenciaram o
lentes objetivas por Daniele Barbaro, estava criado o em que as técnicas não eram imaginário de muitos artistas. Tecnologias
cenário para, mais tarde, no século XIX, o surgimento mais só de produção, mas de produção e relação com imagens estão
da fotografia: também de reprodução. presentes na produção dos panoramas, na
utilização experimental da fotografia, do
Num certo sentido, a fotografia vem sancio- Walter Benjamin, em A obra cinema e de dispositivos eletromecânicos.
nar o primado do sistema descritivo escolhido de arte na era da reproduti- Desse modo, muito antes da era digital
quatro séculos antes pela cultura ocidental; ou bilidade técnica, mostra que, a articulação entre arte e tecnologia já se
inversamente, pode dizer-se que Leon Battista mesmo antes da fotografia, a manifestava.
Alberti, já quando em 1432, ao escrever De pic- obra de arte podia ser repro-
tura, falava de uma ‘janela aberta’ e de uma duzida como forma de exercí-
pirâmide de raios visuais por ela enquadrados, cio pelos discípulos ou para a própria difusão,
ou melhor, talhados, rescindidos, de forma a como, por exemplo, através da xilogravura
oferecer um corte vertical, antecipava de al- ou da litogravura. Na fusão com a imprensa
gum modo os critérios ópticos sobre os quais e com as artes gráficas, as formas de repro-
se fundou o aparelho da máquina fotográfica. dução das imagens “adquiriram os meios de
(MACHADO, 1994, p.09) ilustrar a vida cotidiana” (BENJAMIN [1936],
1993, p.165). Esse processo de divulgação de
imagens, que ilustrava o cotidiano, ganhou

158 159
novo impulso com a descoberta da fotografia: “A obra A perda da aura também provo- Entendo que estamos presenciando no
de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução cou uma ruptura da relação es- momento contemporâneo novos passos
de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A paço-temporal constitutiva da na relação histórica entre arte e tecno-
chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande experiência estética, alterando logia. O fator que determina diferenças
variedade de cópias; a questão da autenticidade das sensivelmente a percepção das com o passado certamente é a preponde-
cópias não tem nenhum sentido” (BENJAMIN [1936], obras. Com efeito, a reprodução rância na utilização da tecnologia digital,
1993, p.165). técnica alcançou um regime di- meio que substitui, congrega e supera as
ferente da reprodução manual, tecnologias do passado de várias manei-
Com as reproduções das obras, segundo Benjamin, considerada então como falsifi- ras. Gerencia antigas e novas tecnologias.
perdemos o “aqui e agora”, a existência única da obra, cação. Benjamin aponta duas ra- Um bom exemplo é a própria fotografia.
sua autenticidade. Perdemos a “aura”, essa “figura zões para isso: Mecânica e analógica no passado, agora
singular, composta de elementos espaciais e tempo- digital. Mas ambas ainda dependentes de
rais: a aparição única de uma coisa distante, por mais Em primeiro lugar, relati- princípios óticos, lentes, filtros, etc.
perto que ela esteja” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165). vamente ao original, a re-
produção técnica tem mais Elen Maria de Souza Friche
Ao perder a aura, as obras de arte perderam o seu autonomia que a reprodu- A sociedade já incorporou, pelo uso do
caráter de ritual e de sagrado. As imagens das cate- ção manual. Ela pode, por telefone e de outros mecanismos de co-
drais, por exemplo, com seu valor único e autêntico, exemplo, pela fotografia, municação, a relação de contato a dis-
a serviço do ritual, da transcendência, passaram a acentuar certos aspectos tância, em particular pela internet com
coexistir com outras imagens criadas para serem re- do original, acessíveis à sua popularização nos anos 1990 e, mais
produzidas em série. objetiva – ajustável e ca- recentemente, com os dispositivos ‘ves-
paz de selecionar arbi- tíveis’ e wireless.
Marc Jimenez, ao comentar o texto de Benjamin, trariamente o seu ângulo
aponta duas consequências geradas, contraditória e de observação –, mas não
simultaneamente, pela perda da aura, “uma negativa, acessíveis ao olhar humano. [...] Em segundo lugar,
pois ela provocaria um empobrecimento da experiên- a reprodução técnica pode colocar a cópia do origi-
cia baseada na tradição; a outra positiva, pois favore- nal em situações impossíveis para o próprio original.
ceria a democratização – e a politização – da cultura” Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a
(JIMENEZ, 1999, p.330). Ressalte-se que na época em obra, seja sob a forma de fotografia, seja do disco.
que Benjamin refletia sobre isso – década de 1930 –, (BENJAMIN [1936], 1993, p.168)
os acontecimentos históricos não permitiram que o
entusiasmo acerca de uma possível democratização A reprodução técnica permite, por exemplo, que os deta-
da cultura vingasse. No entanto, as reflexões do au- lhes das fotos ampliadas sejam vistos e que a orquestra
tor ultrapassaram aquele momento e até hoje acom- seja ouvida no disco. Ou seja, as mediações técnicas fazem
panham as preocupações contemporâneas sobre o com que esses eventos passem a ter uma nova duração no
papel ambíguo dos meios técnicos de reprodução e tempo, o que gera novas formas de produzir e compreender
transmissão no domínio da arte e da cultura, sobre- a obra de arte.
tudo nas formas mais cotidianas intensamente mar-
cadas por processos globais de midiatização. Para Benjamin, “o modo pelo qual se organiza a percep-
ção humana, o meio em que ela se dá não é apenas consi-

160 161
derado naturalmente, mas também historicamente” cepção do tempo, a saber, uma percepção do tempo para o qual não há mais
(BENJAMIN [1936], 1993, p.165). A alteração nas for- continuidade, para a qual não há nenhum valor no sentido clássico do termo
mas de percepção, seja do mundo ou da obra de arte, ” (BOLZ, 1992, p.95).
está ligada, entre outros fatores, à utilização de de-
terminados instrumentos, técnicas e procedimentos A nova forma de percepção inaugurada pela fotografia, levada mais adiante
típicos de cada época, o que gera deslocamentos não pelo cinema, subverte a noção comum de tempo. Em vez de percebermos o
só históricos, mas também sociais, políticos e, por tempo numa sucessão linear dos acontecimentos, no cinema experimentamos
isso, subjetivos. Com isso, temos uma rearticulação um ritmo irregular e descontínuo, “feito de empurrões, com as suas superpo-
dos meios de produção artística, que também se al- sições e montagens” (BOLZ, 1992, p.95). Essa temporalidade típica do cinema
teram em busca de outras possibilidades de criação e da própria experiência da modernidade, segundo Benjamin, nos ensina
e de formas de diálogo com as questões emergen- a viver em descontinui-
tes de seu tempo. Isso explica o fato de que, com a dade. A percepção dos As novas possibilidades de relação usuário/dispo-
chegada da fotografia, a pintura tenha se libertado choques e dos fluxos sitivo proporcionaram um espaço interativo que
da representação e alcançado outras maneiras de de imagem no cinema, explora as sensações de ubiquidade, deslocamento
organização formal que acabaram por gerar novos de acordo com Bolz, faz e simultaneidade, e propiciaram o aparecimen-
movimentos artísticos, como o Impressionismo, por com que seja possível to de ambientes multiusuários e mídia tática com
exemplo. Além disso, surge a possibilidade de copiar exercitar “descontinui- grupos e coletivos de ação artística, permitindo
as obras e também de criar novas obras de arte usan- dades num estado de novos esquemas de ação e participação artística.
do as facilidades técnicas e específicas da fotografia, distração”, o que leva a
por exemplo. percepção a “tomar os Quando se circula na imaterialidade dos territó-
choques como rotina” rios digitais, a interatividade permite que tudo se
Assim, é possível notar que a percepção é alterada, (BOLZ, 1992, p.95) conecte com tudo, tudo esteja em estado de ‘per-
como consequência do convívio com um enorme fluxo mutabilidade’, de possibilidade e contaminação.
de imagens que tornam todo o mundo mais próximo. Assim, para se pensar a relação entre arte e tec-
Esse conhecimento do mundo estabelece-se agora nologia, deve-se considerar:
numa relação espaço-temporal deslocada entre a
• passagem da cultura material para a imaterial;

imagem reproduzida e o fenômeno capturado pela
• estreita relação entre arte e ciência;

imagem originalmente. Segundo Benjamin, a des-
• diluição do conceito de artista, que dispersa sua
truição da aura é a característica “de uma forma de
autoria;
percepção cuja capacidade de captar o semelhante no
• tecnologias digitais que favoreçam a arte da
mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela con-
participação;

segue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN
• troca do conceito de objeto artístico pelo de
[1936], 1993, p.101).
processo;

• abandono de uma produção artística centrada na
Ao desenvolver seus estudos sobre a reprodutibilida-
pura visualidade.
de técnica, Benjamin privilegia o cinema como meio
capaz de produzir as alterações mais significativas
nas formas de percepção. Norbert Bolz indica a na-
tureza dessas alterações: “O cinema não é nada mais
nada menos do que a escola de uma forma de per-

162 163
Questão 2
Desdobramentos na vida social No atual cenário experimentamos um intenso uso de diversas tecnolo-
gias em nossa vida cotidiana. Como isso reverbera na produção artística?
Na sociedade contemporânea, além da reprodutibili-
dade técnica, contamos ainda com diversos meios de Maria Caram Santos de Oliveira
comunicação, que nos proporcionam agora novo tipo Tanto na produção quanto na temática, o uso intenso de tecnologia
de experiência (do mundo e das obras de arte), como reverbera no fazer artístico contemporâneo.
comenta Couchot:
Citei na questão anterior o Coletivo Gambiologia. Em sua exposição
A questão que se coloca então – questão políti- Gambiólogos 2.0, no Oi Futuro, em 2014, eles fizeram uma interessan-
ca por excelência – é aquela de uma sociedade te mistura entre crítica e uso de tecnologia. Usando em sua maioria
partilhada entre a necessidade de dar conta de material descartado - televisões velhas, brinquedos, celulares e pe-
seus (velhos) mecanismos de regulagem, de ças de celulares -, a exposição fazia uso da tecnologia para a cria-
mediação e de temporização e a necessidade ção e a execução de peças e, ao mesmo tempo, criticava o descarte
imposta por uma revolução tecnológica irre- frequente e intenso, a produção de lixo, a falta de reflexão sobre a
versível para reorganizar seus meios de comu- maneira melhor de descartar esse suposto lixo e como prolongar a
nicação, seu acesso ao saber e à informação sua vida e/ou reutilizá-lo.
e sua apropriação de envolver cada um mais
e mais individual e diretamente em todos os No FAD (Festival de Arte Digital) vemos outros usos e outros ques-
níveis de decisões possíveis. Uma sociedade tionamentos para as tecnologias atuais e mesmo para as “passadas”
dividida entre o tempo da História – um tempo com a sua colocação em peças artísticas totalmente voltadas para a
que se refere ao seu tempo – e o tempo real, produção de arte tecnológica.
impaciente e febril das trocas interativas que
torna a espera intolerável, numa sociedade di- Júlia Nascimento de Oliveira (29 de novembro de 2014)
vidida entre a reflexão e o reflexo, entre o signo A arte aliada a tecnologias contemporâneas de produção traz uma
e o sinal. (COUCHOT, 1997, p.143) miscelânea de texturas que permitem uma percepção e absorção
maior pelo espectador. Essa mesma arte também pode possibilitar
As novas relações entre o tempo histórico e o chama- maior interatividade entre obra e expectador e pode permitir a rup-
do tempo real, típico do domínio da tecnologia, pro- tura de fronteiras culturais, sociais e políticas:
vocam alterações nas nossas formas de perceber o
mundo e experimentar as obras de arte que surgem • Culturais, pois o campo da arte passa a ser transitório e volátil, ou
nesse novo ambiente. Estamos falando de uma so- seja, a arte associada à tecnologia permite que se produza sem ne-
ciedade que, cada vez mais, experimenta e conhece o cessariamente estar ligado diretamente a uma determinada cultura,
mundo de forma mediada. Somos pressionados, como daí a caracterização de ser uma arte plural;
mostrou Couchot, pela urgência de uma forma de co-
municação que, por meio das suas formas sincrônicas • Sociais, pois pode minimizar a diferenciação de classes sociais den-
de interação, acaba gerando uma forma de percepção tro do mundo da arte. É possível conhecer manifestações artísticas
posicionada no fluxo da transmissão. do mundo inteiro através da internet. A própria disponibilização da
arte por seus autores nas redes, de forma gratuita, é uma forma
expressiva de popularização da arte;

164 165
As transmissões jornalísticas ao vivo, via satélite, vis-
tas em todo o mundo simultaneamente, a comunica-
ção pessoal e massiva dos telefones ou do computa-
dor nas redes sociais, os jogos e também as obras de Como percebemos, existe um enorme es- • Políticas, pois a arte digital
arte alteraram sensivelmente nossa forma de per- copo de possibilidades subjetivas, materiais tem sido utilizada recorren-
cepção do mundo. e técnicas que podem ser articuladas livre- temente como veículo de ma-
mente pelos artistas. Nesse gigantesco pa- nifestações políticas, popu-
Assistimos, atualmente, à ascensão de velozes pro- norama, as mais diversas técnicas foram aos larizada cada vez mais pelas
cessos de produção, reprodução, recepção e trans- poucos sendo incorporadas pela produção redes sociais.
missão de informações, assim como de difusão de artística, reconfigurando os circuitos, as for-
imagens, nas quais diversas passagens e trajetos aca- mas da experiência estética e o domínio da Porém, esse campo de dis-
bam por deslocar ainda mais a experiência única do arte contemporânea. cussão pode também se dirigir
aqui e agora da aura, tal como definida por Benjamin, para questões mais comple-
e provocar, assim, uma ruptura ainda maior na re- Hoje em dia assistimos a outros desdobra- xas como, por exemplo: seria
lação espaço-temporal constitutiva da experiência mentos das relações entre arte e tecnologia, a utilização dos aplicativos
estética. Agora, não se trata mais de experimentar a ampliando e rompendo fronteiras. Desde o voltados à arte, que permi-
aparição única de uma coisa distante, e, sim, de apro- fim da década de 1990 que os telefones ce- tem tirar fotos profissionais,
ximar, conectar o próximo e o distante, proporcionan- lulares se colocaram fortemente como ins- transformar rascunhos em
do a interação entre sujeitos, objetos e signos que se trumento de comunicação, mas foi após a obras de arte com apenas um
encontram distantes no espaço e próximos no tempo. primeira década do século XXI que houve clique, dentre diversos outros
uma convergência das tecnologias em torno encontrados gratuitamente,
A produção artística contemporânea também se nu- da internet, culminando no cenário atual: um uma forma de banalização do
tre dessas novas relações espaço-temporais em um processo criativo? Ou seria
intenso hibridismo entre suportes, domínios e pos- uma forma contemporânea de se relacionar e perme-
sibilidades de criação. A popularização de inúmeros ar as múltiplas camadas sociais que nos envolvem em
dispositivos e a facilidade de acesso à rede ampliaram nosso cotidiano?
sensivelmente as possibilidades de circulação, de um
modo geral, da produção simbólica (texto, som, ima- Acredito também que a agilidade de informações, bom-
gem em movimento). bardeando constantemente os meios de comunicação em
massa, a subjetivação do conceito de presença e as so-
O que ocorre é um trânsito entre os mais diversos breposições das camadas de interação social fazem com
suportes, indo do desenho em papel, passando pela que o processo criativo seja constantemente reinventado,
pintura, performance, fotografia, instalações que, adequando-se à dinâmica da sociedade contemporânea,
combinadas com opções e estratégias pessoais que na qual o tempo disponível é cada vez mais curto, assim
incorporam técnicas bem distintas (tradicionais e como a urgência da absorção de informações
novas), fazem da arte contemporânea um amplo e
dinâmico território.

166 167
2. Em torno da comunicação
novo regime tecnológico2 , trazendo desdobramen-
e da arte na contemporanei-
dade. Disponível em: tos na arte, tanto na produção quanto nas formas
https://www.academia. de circulação e construção do conhecimento. Os
edu/4147070/Em_torno_ smartphones, tablets, notebooks e, sobretudo, as
da_comunica%C3%A7%-
C3%A3o_e_da_arte_ redes sem fio disseminadas no espaço urbano re-
na_contemporaneidade. configuraram fortemente a infraestrutura tecnoló-
Apresentado na VIII edição gica de acesso às redes, gerando novas formas da
dos Seminários Internacio-
nais Museu Vale - “Cyber
experiência estética reconfigurando a própria vida
-arte-cultura: a trama das cotidiana e, também, o domínio da arte.
redes” - 13 a 17/03/2013.
Se anteriormente havia todo um regime diferen-
ciado em um circuito apartado para abrigar as ma-
3.POPPER, Frank. Art of
nifestações artísticas de traço mais tecnológico
the eletronic age. Londres:
Thames and Hudson, 1997 como festivais e mostras, hoje em dia tudo isto se
e DOMINGUES, Diana. torna um grande circuito composto por obras nos
(org). A arte do século XXI, mais diversos suportes. Pouco a pouco, a própria
a humanização das tecno-
logias. São Paulo: Editora história da arte tecnológica3 ganha novos contor-
Unesp, 1997. nos e começa a dialogar de forma ainda mais in-
tensa com a história da arte, por um lado, e, por Referências
outro, com as tecnologias envolvidas em inúmeros
4. KRAUSS, Rosalind.
A voyage on the north agenciamentos sociais na vida cotidiana, gerando BARILLI, Renato. Curso de Estética. Lisboa: Editorial
sea – Art in the age of the um circuito ampliado em um contexto pós-mídia4 Estampa, 1989.
post-medium condition. no qual as especificidades das mediações tecnoló-
Nova York: Thames &
Hudson, 1999 e KRAUSS, gicas não são determinantes para a definição das BOLZ, Norbert. Onde encontrar a diferença entre uma
Rosalind. Two moments obras. Tudo ocorre num intenso trânsito entre obra de arte e uma mercadoria? In: Revista USP, nº 15.
in the post-medium suportes, técnicas, procedimentos e estratégias, São Paulo: Editora da USP, 1992.
condition. In: October.
abarcando tanto os suportes mais tradicionais
Spring 2006, No. 116, p.
55-62. Massachusetts: MIT quanto os mais novos. COUCHOT, E. A arte pode ainda ser um relógio que
Press, 2006. Em ambos os adianta? O autor, a obra e o espectador na hora do
textos Krauss desenvolve tempo real. In: DOMINGUES, Diana. (org). A arte do
e amplia a ideia de uma
condição pós-mídia. século XXI, a humanização das tecnologias. São Paulo:
Editora Unesp, 1997.

GIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo:


Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999.

MACHADO, Arlindo. As imagens técnicas: da fotogra-


fia à síntese numérica. In: Imagens nº 3, São Paulo:
Editora da Unicamp, 1994.

168 169
Yuri Amaral (1 de dezembro de 2014) Bernardo Romagnoli Bethonico (2 de dezembro de 2014)
Sendo a arte uma forma poderosa de manifestação da sub- Em experiências de “tempo real”, cada vez mais mediadas,
jetividade do autor/artista/criador sentida sobre a rotina e a não raro mergulhamos as cabeças (separadas do tronco)
realidade, se mudarmos os mecanismos de percepção/inte- em smartphones, computadores, transmissões ao vivo. É um
ração/troca, consequentemente o resultado disto também problema comum que o tempo de nossas vidas não suporte
será alterado, criando ad infinitum novas formas resultantes a espera ou a entrega. É preciso ter a ilusão do controle do
desta percepção. fluxo da comunicação, é preciso participar, atualizar, curtir
o tempo todo, diz-nos o ritmo dos hiperlinks e das redes
Hoje ainda temos o choque de diversas gerações, saudosis- sociais.
tas de um tempo no qual nunca viveram e que buscam, à
sua maneira, reviver esse passado. Ora, a percepção daque- Diante disso, são importantes na produção artística atual
les que viviam naquela época (seja ela qual for) é evidente- as questões do aqui, do agora, da percepção do corpo e da
mente diferente da percepção dos que vivem hoje, principal- relação entre pessoas, objetos e signos, para uma crítica
mente pelos meios de conexão com o real. Acho divertida do real.
essa reconstrução e readequação das experiências “do
passado” (re)vividas pelos sujeitos do agora, reconstruindo Questão 3
significados a partir do que eles acreditam. O que ocorre com os processos de fruição artística quando ex-
perimentamos obras que se utilizam de diversas tecnologias?
Isso, citando apenas um exemplo. A acessibilidade, assim
como permite alcance/produção/leitura por muitos, tam- Luiza Alcântara (29 de novembro de 2014)
bém permite o controle e a institucionalização do que não Maria, concordo com sua responda a mim. Quando eu disse
quer ser reconhecido como tal, “devolvendo” para o mundo “Gosto de pensar a participação do espectador para além
ressignificado aquilo que veio de seus singulares. de manusear e entrar nas obras”, é nesse sentido que você
aponta. Porém, em grande parte da produção dessas obras
Para citar alguns exemplos, simples e, talvez, equivoca- a interatividade está associada a: aperte isto e veja o que
dos: perfis no twitter de microcontos, (a)temporais em sua acontece, puxe a alavanca, desenhe, etc. Acho pobre esse
essência; páginas no facebook de pessoas que produzem e tipo de concepção, não sei dizer de que período são essas
publicam sua maneira de perceber algo (seja lá o que for obras, assim como Eduardo, mas vejo que está mudando,
esse algo), fotógrafos de Instagram... Seria tudo isso, e mais sim, toda a forma de participação.
um monte, [novas] formas de arte?
Eduardo, eu percebo que ‘artemídia’ está lidando com
E isto me deixa muito em dúvida: o que, de fato, legitima a questões para além da interatividade. Como eu disse na
arte como tal? O que difere um fotógrafo de exposição em resposta anterior, ela aponta para questões de tempo-es-
um espaço feito para tal de um fotógrafo de instagram? Não paço, duração da obra, materialidade, orgânico e não orgâ-
são, ambos, autores de suas percepções? nico de formas muito potentes. Assim, também trabalham
com questões políticas e simbólicas muito fortes. Podemos
pensar no feminismo que fala de corpos pós-humanos, os
ciborgues, e por aí vai.

170 171
Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de 2014) configurando roteiros sem determinação. Lugares sem tra-
Nesse tópico acredito que proposições artísticas que lidam jetos, frente ou verso, certo ou errado, que dialogam com
com a produção de realidade virtual tecnológica apresen- a oscilação entre próximo e distante, presente e ausente,
tam algumas experiências enriquecedoras para o campo na convergência de uma existência determinada por uma
da arte que estão além da topografia do espaço real e da participação.
tradicional materialidade dos objetos sólidos. As caracte-
rísticas peculiares desses territórios e os mecanismos de Aprender a se relacionar com a realidade virtual pode ser
relação do homem com os mesmos tornaram possível o compreendido como um modo de adquirir certo estilo de
aparecimento de percepções, lógicas e liberdades advindas relação, um modo diverso de usar o corpo próprio, de en-
de experiências singulares, abrangendo toda uma ontolo- riquecer a capacidade perceptiva e reorganizar nossos es-
gia de telepresença, de imersão sensorial e conectividade quemas corporais.
imaterial.
Maria Caram Santos de Oliveira (27 de novembro de 2014)
Nesse campo é relevante destacar o esforço que tem sido Luiza, concordo com você em parte. Acredito realmente que
despendido por artistas e cientistas no intuito de produzir existam muitos projetos que simplesmente joguem com a
instrumentos de relação com os ambientes virtuais que ideia de “interatividade” ou “tecnologia” em detrimento do
possam potencializar a “convicção de realidade” destes projeto artístico. No entanto, me interessam muito propos-
espaços e o “sentido de presença” no interior dos mesmos. tas que realmente jogam com a participação do espectador,
Essa “convicção” e esse “sentido” têm sido alcançados por principalmente quando fazem isso misturando tecnologias
meio da utilização de dispositivos que geram a percepção “obsoletas” com novas técnicas.
de “imersão na imagem”.
Eduardo, eu creio que a questão da fruição e do tempo é
Certamente, um nível diferenciado de “imersão na imagem” essencial nessas novas obras. A meu ver, as pessoas dis-
se dá nos ambientes de realidade virtual. O que ocorre de ponibilizam cada vez menos tempo e atenção para a fruição
específico nesses ambientes está relacionado à possibili- (não apenas de obras, mas de vivências cotidianas também).
dade de o sujeito se fazer presente de maneira muito mais Nesse ponto, vejo a arte utilizando a questão temporal como
efetiva, através de ações e deslocamentos que se proces- ponto de tensão, seja estendendo o tempo, desafiando o
sam em ambientes no “interior” da imagem. espectador a esperar ou abandonar a obra, ou reduzindo a
obra a formatos mínimos, para encaixar e questionar esse
São ambientes que configuram uma espécie de geografia padrão de tempo cada vez mais curto.
diferente da experiência no mundo físico e palpável, mas
que não são menos reais por não serem materiais. O fato
de esses ambientes não serem materiais não significa que
são irreais e, embora destituídos de fisicalidade, podem
ser exatamente lugares que permitem formas de relação
e inserção.

Lugares a serem perpassados, visitados internamente em


suas topografias, por caminhos escolhidos pelo público.
Escolhas que podem ser mudadas sob diversas ordens,

172 173
Marcela Silviano Brandão Lopes* ras especializadas. De preferência, para o casal “grávido”.
Aula de respiração. Aula de amamentação. Alimentação.

Artesanias Alongamento. Agachamento. E o design, o que tem a ver


com isso? É importante que a informação seja atraente, de

do desejo fácil assimilação, de imediata compreensão.

O design é importante também na moda, na roupa do bebê,


na roupa da jovem mamãe. Sutiã reforçado. Sutiã para ama-
mentar em público. Sutiã bege (ops!, nude) para não marcar
Afogando em números a roupa. Sutiã colorido para a mamãe ficar mais sexy.

Assisto a um programa na TV sobre ciclistas, bicicletas e Depois do parto, aula para aprender a cuidar do filho, criá-lo
campeonatos. Bicicletas lindas, levíssimas. O uniforme sem traumas. A mãe não sabe educar, a avó desaprendeu,
dos ciclistas, supercoloridos, justos nos corpos. Capacetes o pai, coitado, está entrando em cena há pouco tempo. Mas
também coloridos, com relevos e detalhes aerodinâmicos. a moça do programa da TV sabe.
Tudo pensado e desenhado para obter maior velocidade. As Estudou psicologia, pedagogia, Questão 1
bicicletas, magrelas, com pouca massa, com pneus ultra- filosofia, biologia, mapa astral. E É possível pensar o design para além dos
finos. As roupas colantes mostram corpos moldados pelo tudo pode ser adquirido aos mon- pressupostos do mercado e da indústria?
esporte. Musculosos e sem gordura alguma. Nada pode ser tes nas bancas de revistas.
a favor da inércia. Os relevos nos capacetes acompanham o Ricardo De Cristófaro (3 de dezembro de
traçado do vento. E além da velocidade, a segurança: capa- Já no programa sobre saúde se 2014)
cetes, joelheiras, óculos cortavento, cotoveleiras. Leveza e ensina a cuidar do corpo. Como Acho que é possível. Entretanto, quando
inteligência. Juntas. Tudo projetado e planejado. emagrecer. Alimentar-se melhor. estamos diante de objetos que possuem
Ser saudável! Um amigo meu dis- uma relação de grande intimidade com
Quem quer comprar uma bicicleta, mesmo que seja apenas se uma vez que na nossa infância a anatomia humana, outras questões se
para seu lazer, encontra uma variedade infinita de opções. a rúcula não tinha sido descober- fazem presentes.
E não só no quesito beleza-cor-preço. É preciso estudar ta ainda. Será? Pois agora vieram
o assunto antes da compra. Além disso, será impossível a quinoa, o arroz selvagem, o ar- Muito do que rege o comportamento das
sair da loja sem o kit capacete, cotoveleira e joelheira. As roz de jasmim, a comida francesa, pessoas diante de determinados objetos,
* Professora estatísticas mostram o quanto é perigoso andar de bicicleta. a comida japonesa, a peruana, a em termos de percepção, emoção, inda-
do curso de Segurança, antes de tudo! vietnamita e, a melhor, a culinária gação e mesmo rejeição, está vinculado
Arquitetura e
Urbanismo na criativa, inventiva, internacional! a um repertório cultural particular, a
PUC Minas, E as estatísticas estão por toda parte. Elas também uma significação, à presença ou não de
doutoranda na mostram, por exemplo, como é perigosa a maternidade. Junto ao programa de culinária certos objetos no interior e nos hábitos
Escola de Arqui-
Durante a gestação é preciso fazer muitos exames. De san- tem aquelas propagandas – que de determinadas sociedades.
tetura da UFMG,
pesquisadora gue, de urina, de fezes. Ultrassom, doppler e outras ima- nem parecem propagandas – que
dos grupos de gens. E é ótimo, dá quase para ver com quem a criança mostram utensílios de cozinha Os objetos cotidianos causam, nas pes-
pesquisa PRAXIS vai se parecer antes de ela nascer. Exames para ver se ela lindos, facas específicas para soas, determinados estímulos, a exem-
e INDISCIPLI-
NAR, ambos da será normal, se não tem nenhuma doença. Controle e pre- plo do desejo de interação com o objeto
UFMG. venção! Ah, é preciso também fazer aulas com enfermei- por um processo de recriação de situa-

174 175
cada corte, em inox, coloridas, grandes, pequenas, e livros ções conhecidas, ou pela vontade de vivenciar uma
de receitas bem diagramados. nova experiência.

Mas o programa não ensina apenas a cozinhar, ensina tam- Outros objetos nos levam a rememorar, a ter fan-
bém a comer. Comer melhor, comer de forma mais saudá- tasias, desejos e lembranças. Os objetos também
vel, comer com elegância e estética. E também ensina a podem moldar comportamentos, formar conceitos
beber. É preciso saber harmonizar. Há de se conhecer as ou reafirmar “pré-conceitos” que temos sobre de-
melhores vinícolas, as cervejarias mais artesanais. Tudo terminadas formas e assuntos.
com nomes e sobrenomes. As papilas devem ser estimula-
das e o olhar deve ser educado. Várias configurações de intimidade ocorrem entre
os homens e os objetos. Há objetos que são ínti-
A moça que apresenta o programa – mas pode ser um cara, mos por pertencerem a nós; outros, mais distan-
homem na cozinha é cool – é superviajada. Aí tem aqueles tes, por pertencerem a terceiros. Mas há também
programas sobre viagens. Lugares certos. Dicas práticas. uma forma de intimidade que não diz respeito à
Pontos turísticos, restaurantes, lojas, feiras. E é lógico que posse do objeto, e, sim, a um sentimento de saber
os livros e os guias são superdidáticos. lidar com este. Certamente, esse fato está rela-
cionado ao design e a um sentido de pregnância, à
Além, é claro, das malas anunciadas nos reclames. Com carga denotativa do objeto, à ambiência, aos há-
duas rodinhas, com quatro rodinhas, mais fáceis para puxar, bitos e comportamentos que assumimos diante
melhor para empurrar, coloridas para fácil identificação na da particularidade dos objetos. É uma espécie de
esteira das bagagens, de material leve para não pesar na dimensão natural que acompanha a própria evolu-
balança do aeroporto. ção dos objetos através da história humana, con-
dicionando, de modo educativo e cultural, uma re-
O design inteligente requer designers inteligentes, criativos gularidade de ação, sempre indicando maneiras de
e “proativos”, que saibam trabalhar em ambientes colabo- agir. Diante de muitos objetos, sem qualquer tipo
rativos, em busca de desenhos “diferenciados” e “diverti- de aprendizado, sentimos intimidade e sabemos
dos”! Trata-se de uma atividade que ocupa o corpo e a men- como usá-los e operá-los.
te do designer, no horário do trabalho e fora dele. Trata-se
de um trabalho que não produz apenas um produto, mas Uma percepção de intimidade entre o homem e
também imagens, ideias, patentes, direitos autorais. Em ou- determinados objetos configura-se fortemente na
tras palavras, trata-se de um “trabalho imaterial” (NEGRI; conformação da anatomia humana à forma total
HARDT, 2005, p.149). ou a um detalhe do objeto, e uma infinidade de ob-
jetos apresenta esta possibilidade de casamento
Esse design inteligente, testado cientificamente, desenha- de ajuste confortável e receptividade à anatomia
do para prevenção, segurança, prazer e lazer, exige pouco humana.
de quem vai adquirir o seu produto. Aquilo que era fácil,
intuitivo e corporal é anunciado como sendo assunto de O corpo do homem está virtualmente acoplado a
especialistas. É o design da estatística, da segurança, mas, determinados objetos e seus usos comuns, e a
principalmente, do consumo, para o mercado. eficiência dessa conformação é, frequentemente,
uma das condições para o bom funcionamento de

176 177
E para ser consumido não basta o produto ser necessário, ligência é também pura intuição, ciência da rua, aprendida com
ele precisa ser desejável. Precisa invadir também o corpo os pais, irmãos, vizinhos, mas, principalmente, andando de
e o imaginário de quem vai comprá-lo. Trata-se um “capi- bicicleta. E é assim: andar de bicicleta a gente nunca esquece...
talismo cognitivo”, afinal: “O que é produzido [...] não são
apenas bens materiais, mas relações sociais e formas de Artesanias do desejo
vida concretas”. (NEGRI; HARDT, 2005, p.135)
Didi-Huberman (2011), quando se refere à experiência, afirma
O movimento que habito ser ela “indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às
sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos à
Como escapar, então, desse sistema político-corporal? A noite”. E sugere: “Devemos, portanto [...] nos tornar vaga-lu-
resposta está justamente no efeito paradoxal do funciona- mes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a
mento desse sistema. Se, cada vez mais, o poder do capi- comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo,
tal nos invade por dentro, é justamente de dentro que ele de pensamentos a transmitir” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.154).
poderá ser enfrentado. Como bem resume Pelbart (REF):
E aí encontramos, nas soluções engenhosas e bem-humo-
quando parece que “está tudo dominado”, no extre- radas que acontecem à revelia das estatísticas e do mundo
mo da linha se insinua uma reviravolta que ressigni- especializado, invenções que não se deixam disciplinar, não
fica a própria dominação como segunda. Aquilo que se cristalizam no tempo, nem no espaço, justamente porque
parecia submetido, subsumido, controlado, domi- estão em movimento.
nado, “a vida” revela no processo mesmo de expro-
priação sua positividade indomável e primeira. Não Podemos identificá-las nas respostas cotidianas dos “homens
se trata de romantizar uma capacidade de revide e ordinários” (MAN), dos “homens lentos” (SANTOS), subversi-
de resistência, mas de repensar a relação entre os vas em relação àquelas designadas pela ciência, por se trata-
poderes e a vitalidade social na chave da imanência.
Poderíamos resumir esse movimento do seguinte muitos objetos. Esse acoplamento operacional, simples e direto, ocorre, por
modo: ao biopoder responde a biopotência, ao poder exemplo, na relação com muitas máquinas, ferramentas, com instrumentos
sobre a vida responde a potência da vida, mas esse e utensílios cotidianos não autônomos, que só funcionam como extensões
“responde” não quer dizer uma reação, já que a po- do corpo humano por serem altamente dependentes da motricidade e da
tência se revela como o avesso mais íntimo, imanen- energia de nossos órgãos, a exemplo da força exercida pelas pernas, pelos
te e coextensivo ao próprio poder – daí a dificuldade braços e mãos.
de separar o joio do trigo, de saber de que lado esta-
mos. (PELBART, 2014) O hábito e o modo de relação com objetos cotidianos dessa natureza nos
fornecem e estabelecem em nossa memória um arquivo de referências que
Nessa perspectiva, se o corpo é moldado pelos aparatos molda nossas ações e nossos movimentos. Naturalmente nossas mãos e
tecnológicos, ele é também escultor! O movimento precisa nossos dedos se acomodam a esses objetos.
dele. No caso das bicicletas, se o corpo está posicionado
mais à frente, consegue-se mais velocidade. Pedalando Leilane Antunes de Paula Neves Maia (6 de dezembro de 2014)
sem sentar no banco, mais velocidade ainda. Para o alto, Creio que pensar sempre é possível. O que eu me pergunto é se nós pode-
para baixo, para os lados. O corpo dirige o movimento, cria mos produzir o design por nós mesmos. Se é possível termos uma educação
a dança, faz deslizar na pista, descolar do chão. E essa inte- estética e prática na escola de base para que nós tenhamos a capacidade de

178 179
rem de ações “menores” (DELEUZE) e mais difusas que as E quando o material usado nas artesanias é a sucata, acontece uma
subsidiadas pela eficiência e segurança. São invenções da subversão maior, um “golpe” no sistema de produção: o tempo usa-
ordem do subversivo porque extrapolam o estabelecido e do na fabricação do objeto descartado é revertido para o saber-fazer
estão na esfera do imprevisível. Inspirados em Boaventura, da invenção livre, sem ganho nem mais-valia para o capitalista:
vamos chamá-las aqui de “artesanias”:
Acusado de rou- pensar o design e, também, se quisermos,
O lugar de enunciação da ecologia de saberes são bar, de recuperar ter habilidades técnicas para fazer uma
todos os lugares onde o saber é convocado a conver- material para seu peça de design, ou saber como fazer.
ter-se em experiência transformadora. Ou seja, são proveito próprio
todos os lugares que estão para além do saber en- e utilizar as má- Dalba Roberta Costa de Deus (8 de dezem-
quanto prática social separada. [...] É este o terreno quinas por conta bro de 2014)
da artesania das práticas, o terreno da ecologia de própria, o traba- Bom, vou um pouco na contramão das
saberes. (SANTOS, 2008, p.33) lhador que “tra- respostas dos meus colegas, talvez até
balha com sucata” com uma opinião simplista demais e mui-
As artesanias, além de não se apoiarem exclusivamente no subtrai da fábrica to ingênua, mas é meu ponto de vista nes-
capricho e na eficiência, podem surgir na emergência dos tempo (e não tan- te momento.
acontecimentos, e, com isto, serem engendradas no pre- to bens, porque
cário e inventadas a partir do imprevisto e da improvisação, só se serve de Acho difícil pensar o design além dos
resolvidas imediatamente, no cotidiano, em ato. restos) em vista pressupostos do mercado e da indús-
de um trabalho tria, até porque o design surge depois
Milton Santos, quando compara as zonas “luminosas” com livre, criativo e da Revolução Industrial, como uma es-
as “opacas”, afirma que na primeira a naturalização do precisamente não tratégia de ampliação dos lucros das
instituído – inclusive dos objetos técnicos produzidos –, a lucrativo. Nos indústrias. No Brasil, o design teve seu
regularização e a racionalização dos espaços criam “uma próprios lugares impulso na década de 1950, com o desen-
mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa”. onde reina a má- volvimentismo e a rápida expansão indus-
Em oposição, nas zonas opacas, a precariedade faz surgir quina a que deve trial. O International Council of Societies
o criativo, o aproximativo, o imprevisível (SANTOS, 2008, servir, o operário of Industrial Design (ICSID), conselho
p.326). trapaceia pelo internacional que protege e promove os
prazer de inven- interesses do profissional de Desenho
Já Canclini (1997) nos chama a atenção para a interação e a tar produtos gra- Industrial, define design como “uma ati-
hibridação de várias referências locais, nacionais e trans- tuitos destinados
nacionais presentes nessas invenções. Sob nosso ponto de somente a significar por sua obra um saber-fazer pessoal e
vista, tal hibridação permite às artesanias escaparem de a responder por uma despesa a solidariedades operárias ou
qualquer ordem de valor dicotômica, que separe o bom e o familiares. Com a cumplicidade de outros trabalhadores [...]
belo do mau e do sem valor, já que são soluções carrega- ele realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Longe
das de urgência e emergência, que nos surpreendem pela de ser uma regressão para unidades artesanais ou individu-
forma inventiva e às vezes inusitada em juntar e misturar, ais de produção, o trabalho com sucata reintroduz no espaço
resultando em forma-ação, conteúdo e intenção em ato, industrial (ou seja, na ordem vigente) as táticas “populares”
estética e política hibridadas. de outrora ou de outros espaços. (CERTEAU, 1994, p.82-83)

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Vale ressaltar que não preconizamos aqui uma mudança nhecimento laborioso sobre as limitações
de “cardápio”, e muito menos uma idealização romântica do que sabemos. (SANTOS, 2008, p.15)
de uma identidade “genuína” ou de um modo de fazer “ori-
ginal”. Antes de tudo, é preciso perceber que tais artesanias Diante disso, há que se pensar numa necessária
não são o avesso de uma realidade que se pretenda norma- “profanação” daquelas ações ainda hoje crédulas
tizar, mas que são parte inerente e potente dessa realidade. das disjunções pretendidas pela modernidade
E como bem já observou De Certeau: (prática/teoria, saber/fazer, ciência/técnica/cul-
tura) – seja pelo contágio com essas outras di-
A criação é perecível. Ela passa, pois é ato. [...]. A nâmicas ou pelo (re)uso incongruente do que foi
festa não se reduz aos registros e aos restos que ela sacralizado:
deixa. Por mais interessantes que sejam, esses ob-
jetos “culturais” são apenas os resíduos do que não Uma das formas mais simples de profana-
mais existe, a saber, a expressão ou a obra – no sen- ção ocorre através de contato (contagione)
tido pleno do termo. Ligada desse modo à atividade no mesmo sacrifício que realiza e regula a
social que ela articula, a obra perece, portanto, com passagem da vítima da esfera humana para
o presente que ela simboliza. Ela não se define por a divina. Uma parte dela (as entranhas,
sobreviver a si própria, como se o trabalho de uma exta: o fígado, o coração, a vesícula biliar,
coletividade sobre si mesma tivesse como finalidade os pulmões) está reservada aos deuses, en-
encher os museus. Ao contrário, a obra é a metáfora quanto o restante pode ser consumido pelos
de um ato de comunicação destinado a cair, estilha- homens. Basta que os participantes do rito
çando–se e a permitir assim outras expressões do toquem essas carnes para que se tornem
mesmo tipo, mais distantes no tempo, apoiadas em profanas e possam ser simplesmente co-
outros contratos momentâneos. Muito ao contrário midas. Há um contágio profano, um tocar
de se identificar  com o raro, o sólido, o dispendioso que desencanta e devolve ao uso aquilo
ou o “definitivo” (características da obra-prima, que que o sagrado havia separado e petrificado.
é uma patente), ela visa se esvanecer naquilo que ela (AGAMBEN, 2007, p.66)
torna possível. (CERTEAU, 1995, p.243-244)
vidade criativa cuja finalidade é estabelecer as qualidades multifa-
Nossa intenção é de, colocando lado a lado as invenções cetadas de objetos, processos, serviços e seus sistemas em ciclos
daqueles considerados especialistas do design com as de vida inteiro. Portanto, design é fator central da humanização ino-
ações daqueles considerados leigos do ofício, promover a vadora de tecnologias e o fator crucial de intercâmbio cultural e
discussão sobre a validade desta diferenciação, como já o econômico” (2012).
fez Boaventura quando recorreu à “douta ignorância” de
Nicolau de Cusa: Dessa forma, acho que pensar o design para além dessa funcionali-
dade é primordial, mas não desvinculado do mercado e da indústria.
A designação “douta ignorância” pode parecer con- Nas palavras de Maíra Fontenele Santana: “se o papel do design
traditória, pois o que é douto é, por definição, não está voltado para a humanização inovadora de tecnologias e é fator
ignorante. A contradição é, contudo, aparente já que crucial de intercâmbio cultural e econômico, deve ser tanto na inte-
ignorar de maneira douta exige um processo de co- ração do usuário com o objeto quanto na interação do produtor com
o objeto produzido e na aproximação do produtor com o usuário e a

182 183
Assim, outro campo de atuação se abre para o designer. Não sociedade, tendo a responsabilidade e o compromisso de dimi-
mais aquele que apenas soluciona problemas (afinal, o que nuir a lacuna que provoca a alienação do trabalho e alienação
é um problema?), mas também que cartografa, evidencia, do consumo”.
articula, e, com isto, constrói outras tessituras de saberes
e potencializa outros possíveis: Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)
Hoje convivemos com o crescimento da economia criativa.
Produzir o novo é inventar novos desejos e novas “Diferenciações” nos produtos e serviços de design tentam ir
crenças, novas associações e novas formas de co- muito além do desejo, da funcionalidade e da forma. E chega-
operação. Todos e qualquer um inventam, na den- mos à citação do texto: Didi-Huberman (2011), quando se refere
sidade social da cidade, na conversa, nos costumes, à experiência, afirma ser ela “indestrutível, mesmo que se
no lazer – novos desejos e novas crenças, novas as- encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de
sociações e novas formas de cooperação. A invenção simples lampejos à noite”.
não é prerrogativa dos grandes gênios, nem mono-
pólio da indústria ou da ciência, ela é a potência de O design “fala” e retrata contextos históricos e econômicos
todos e de cada um. (PELBART, 2011, p.23) de cada época e espaço, ele é capaz de captar movimentos e
delinear origens. Hoje temos um design submetido aos desejos
Entretanto, o risco de captura, cooptação, capitalização es- já estabelecidos antecipadamente e globalmente. Um design
tará sempre por perto, e novas “linhas de fuga” (DELEUZE) “assistencialista”, massivo e imediato.
devem ser inventadas o tempo todo. O movimento não pode
parar. Oposto ao excesso ou à perda da qualidade e intenção do obje-
to, o design vive e tenta reconstruir e resgatar a identidade de
um movimento, o que chamamos de EXPERIÊNCIA. Criar novos
hábitos de vida, formas mais simples de consumo, produtos
REFERÊNCIAS com maior durabilidade, linhas de produção com menos im-
pacto ambiental e uma compra consciente pelos consumidores
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo finais colocam o design como inteligência no uso da matéria e
Editorial, 2007. autônomo diante do domínio econômico. O discurso, o ciclo de
produção, a proveniência da matéria-prima, uma comunicação
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para mais organizada, todos os processos são concebidos em cima
entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora EDUSP, de uma ideia, de um conceito e um ideal que são construídos
1997. e fazem parte de uma EXPERIÊNCIA (que marca e fica) e que
cada vez mais pode ser utilizada para definir novos valores.
DE CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural. Campinas: Editora
Papirus, 1995. (Coleção Travessia do século) Reginaldo Luiz Cardoso (9 de dezembro de 2014)
Marcela, gostei muito do seu texto, da estratégia que você uti-
__________. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora lizou para montá-lo. Primeiro apresentou a empiria e depois
Vozes, 1994. partiu para o campo da análise.

DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos Vagalumes. Belo Bem, vamos ao tópico. Dizer que sim ou que não, penso, é cair
Horizonte: Editora UFMG, 2011. em duplo cego: o “sim” seria uma espécie de capitulação ao

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HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Multidão. Guerra e de- mercado, uma maneira de dizer explicitamente que não há al-
mocracia na era do Império. Rio de Janeiro: Editora Record, ternativas ao atual sistema econômico; o “não” poderia indicar
2005. uma espécie de pensamento ingênuo no qual, acredita-se, des-
de Trotsky, que o combate ao sistema somente seria eficaz se
PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São fosse feito de dentro para fora. Daí a complexidade da pergunta
Paulo: Iluminuras. 2011. cujo campo de possibilidades situo em outro eixo.

PELBART, Peter Pál. Biopolítica e Contraniilismo. Disponível Tomo aqui como referência a fala do designer Marc Kandalaft:
em: <http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/fi- “il est essentiel que le designer ait pour objectif d’humaniser la vil-
les/2010/02/const-comum_Peter-Pal-PELBART.pdf>. le”. De fato, qualquer que seja a questão do design hoje, passa
Acesso em: ago. 2014. pelas cidades e, consequentemente, pelos corpos (como nos
lembra a Marcela Brandão). E, desta vez, penso em Foucault,
______. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta lá na Microfísica do Poder, quando afirma que “na verdade, nada
de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exer-
2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/myces/ cício do poder”.
UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>. Acesso em:
jul. 2014. Apesar de o design atravessar a história, na sua versão moder-
na ele aparece, inexoravelmente, junto com o desenvolvimento
SANTOS, Boaventura. A filosofia à venda, a douta ignorância da microeconomia, resultando nos métodos do melhor posi-
e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, cionamento de um produto no mercado e, com isto, facilitar a
Março 2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/ sua venda (a Valéria e a Dalba falaram muito bem sobre isso!).
myces/UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>. Tomo como exemplo uma publicação que saiu há poucos dias
Acesso em: jul. 2014. em encarte no jornal Valor Econômico: “Valor setorial: emba-
lagem” (nov. 2014). Dentre inúmeros depoimentos de empre-
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP, sários do setor, da constante inovação de materiais, etc., é
2008. espantosa a força do mesmo no crescimento econômico de
um país. Mas causa maior perplexidade saber que o setor de
embalagens é, pois, um termômetro de maior ou menor ati-
vidade econômica. Se vai bem, ótimo. Se vai mal, provoca um
rearranjo do marketing e, consequentemente, do design.

Portanto, o desafio está em quebrar essa simbiose entre o


design e o capitalismo. Isso implica, necessariamente, lidar
com as coisas de maneira diferente, o que implica, por sua vez,
um sistema econômico diverso, ou em ter isto no horizonte do
provável e do possível.

Além do mais, sem mudar o capital simbólico dos sujeitos, as


artesanias correm o risco de estar reforçando o fetiche das
mercadorias. Isso é importante porque junto com o capital

186 187
simbólico tem também o capital econômico que, sabemos, é Acho que a partir daí, de um fundamento interno que se con-
extremamente mal distribuído em nossa sociedade. Tomando cretiza em ações (conquanto eu tenha de onde tirar dinheiro
unicamente esses dois capitais, fica uma questão pairando no para viver, porque não sou “Madre Tereza”), posso pensar em
ar: quanto as pessoas estão dispostas a pagar (sim, há um cus- design para além do mercado e da indústria.
to no nível do desejo também) por um mundo sustentável que,
é necessário dizer, implica um mundo mais lento? Um mundo Ricardo Macêdo (11 de dezembro de 2014)
mais lento (ou mais caro com as artesanias) se enquadra em O problema é que muitos tendem a confundir operações es-
que grau de viabilidade, uma vez que a acessibilidade tem a ver téticas (da arte) com o processo de um designer por não ter
diretamente com a embalagem, que facilita maior (ou menor) experiência como designer. O ato criativo tem um momento
circulação de mercadorias? específico no design, contudo, se aquele objeto não correspon-
der à realidade humana, pessoas podem se machucar no seu
É claro que esse não é o único caminho trilhado pelo design, uso. Por isso a existência de várias disciplinas além da que lida
mas, sem dúvida alguma, é o hegemônico. Então, penso no com o processo criativo. O povo da arte geralmente mistura
pressuposto que lancei no início deste texto: todo movimento tudo e acha que dá no mesmo, mas não é assim. Até pra se
libertador deve ter como meta assumir a cidade como palco pensar esse entrecruzamento (arte e design) é muito delicado,
de experimentações que possam ser capazes de despertar (ou pois, como falei, envolve a saúde física/psicológica do usuário.
formatar) novos capitais simbólicos, culturais, econômicos e
sociais. Trata-se de uma reconfiguração das subjetividades, Questão 2
daquilo que Bourdieu chamou de “habitus”. É por esse caminho Em que medida romper fronteiras entre o erudito e o leigo pode
que pretendo retomar as questões posteriores. ser suficiente para repensar o ofício do designer?

Ricardo Macêdo (10 de dezembro de 2014) Valéria Costa Pinto (5 de dezembro de 2014)
Não sei... Esta é a primeira vez que penso sobre isso e, depois Acredito que os dois se complementam na medida em que so-
de uns dias afastado daqui, acho que é uma boa reflexão. O de- luções criativas dos leigos possam ser elaboradas e difundidas
sign é uma estética programada - de certa forma - voltada para pelo erudito. Como, por exemplo, as bordadeiras da Rocinha
o uso, para a funcionalização da beleza que está ali inserida. que trabalham para uma grife de moda. Boa parceria para
Se faço um objeto a partir de uma demanda social, penso em ambas porque aumentou o número de funcionárias no setor,
vendê-lo. Como fazê-lo sem pensar em vendê-lo? valorizando um ofício em extinção e dando visibilidade ao tra-
balho delas. Por outro lado, a grife introduziu no mercado um
Acho que essa reflexão está para além do design e vai bater nas produto inédito e diferenciado e, por ter retorno social, foi re-
portas de alguma ideologia de plantão ou... de alguma urgên- conhecida mundialmente.
cia: crise planetária, crise ética, crise econômica, etc. Se eu
me munir de um espírito ligado a um desses fatores, acho que Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)
consigo implementar no objeto esse desejo: de ligá-lo mais a Romper a fronteira entre o erudito e o leigo me parece estar
um pressuposto libertário (um design anarcopunk!? Straight diretamente ligado à inovação. O design é capaz de dialogar
Edge!? Kiki!? Design SOMA!?) do que à mercadoria, mais à ação com os dois lados e, através dele, é por onde se concebe o
que ele possa instigar do que ao consumo de si mesmo, mais à novo. Técnicas tradicionais com linguagens estéticas contem-
ativação de uma nova mentalidade do que ao reforço da antiga porâneas, conhecimentos milenares em novos suportes...
mentalidade.

188 189
O inovador com um suporte na tradição pode garantir a qua- têm inclusa uma troca que poderia ser formação para os leigos
lidade e durabilidade de um produto ou serviço, assim como e novas técnicas para os eruditos.
algo tradicional com o suporte de novas linguagens gráficas
pode garantir a democratização de um ofício quase esquecido. Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)
Penso que romper a fronteira entre o erudito e o leigo é um
As referências num projeto de design não se restringem ao passo importante para a democratização do design, pois apro-
erudito ou ao leigo. Novas maneiras de pensar e produzir xima o processo cada vez mais das necessidades verdadeira-
não podem desconsiderar conhecimentos e tradições, mas, mente humanas, não se deixando levar pelos interesses do
sim, incorporá-las em prol de uma nova maneira de pensar e mercado.
produzir.
Porém, acho que essa ruptura não é suficiente para o aprimo-
Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014) ramento completo do ofício do designer, pois não se deve ater
Acho que essa questão dá para fazer um paralelo entre os de- apenas ao produto final, mas também a todo o processo cria-
signers e os arquitetos. É fato que não é preciso um arquiteto tivo e de produção, que deve ir além do percurso criador-pro-
para fazer arquitetura, do mesmo jeito que não é preciso um duto-receptor. Acho que essa inovação deve vir acompanhada
designer para criar um objeto. Porém, são profissionais que de discussões mais profundas no âmbito social, aproximando
estão preparados para desenvolver coisas concretas. cada vez mais o designer dos usuários de suas criações.

No mundo da arquitetura está virando uma tendência a chama- Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014)
da autoconstrução, que toma como referência aquela arquite- Inspirada em Bakhtin, a grande tese de Carlo Ginzburg, que
tura feita sem arquitetos e construída pelos próprios usuários. perpassa toda a sua obra, é a noção de circularidade cultural.
Mas inserindo o arquiteto nesse processo. O arquiteto pode ser Para Ginzburg, em diferentes momentos históricos, as elites
a pessoa que desenha o produto, mas também vai se envolver conseguem preservar, com maior ou menor êxito, as fronteiras
na construção, e às vezes, vai ser um dos futuros usuários da entre a cultura tida como própria desta mesma elite, e a dos
obra. outros, entendida como menor. Assim, podemos ter maior ou
menor circularidade.
Para colocar um exemplo, poderia falar do projeto LaFábrika
detodalavida, na Espanha. Um galpão de uma antiga fábrica de O problema é que, com a modernidade, essas elites, naquilo
cimento abandonada que tem sido reabilitado (ou reciclado) que Marx chamou de ideologia, conseguiram criar um sistema
para ser um espaço de trabalho colaborativo e um lugar de que faz com que a cultura delas prevaleça como hegemônica.
pesquisa sobre o bem comum. No processo de reabilitação Isso faz com que a maioria abdique ou pense que os seus inte-
estiveram envolvidos todos os futuros usuários do espaço: resses são os mesmos daqueles que os oprimem. Marx resu-
artistas, arquitetos e, inclusive, advogados, que trabalharam miu assim essa situação: “disso eles não sabem, mas o fazem”.
como pedreiros durante um ano para conseguir um espaço de
trabalho. O filósofo Sloterdjik nos diz que essa hegemonia cultural pode
ser hoje traduzida pela prevalência da “razão cínica”. Cínica
Na minha opinião, acho que não tem que existir essa fronteira porque, ao se dar razão a Marx, deu-se outro sentido à famo-
entre o erudito e o leigo, esse repensar pode ser a sinergia sa frase. Essa hoje seria reinterpretada da seguinte maneira:
entre os dois. A profissionalização dos leigos e a volta ao tra- “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim
balho manual dos eruditos. Novos processos cocriativos que o fazem”. O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância en-

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tre a máscara e a realidade social, mas, apesar disso, continua “mas dos seres humanos enquanto (sic) sujeitos, isto é, criado-
a insistir na máscara. res de si mesmos, de sua vida individual e coletiva”.

Percebe-se que a circularidade é necessária à arte, pois, do Ricardo De Cristófaro (16 de dezembro de 2014)
contrário, a arte “entraria em processo de entropia” (FLUSSER, O campo de atuação do leigo coexiste com o erudito em um
Vilém. Nossa Embriaguez, 1983). mesmo tempo e espaço, levando a uma percepção de que na-
turalmente existe algum tipo de interação entre eles. A coe-
Se não atentarmos para a existência da “razão cínica”, esse xistência de linguagens cultas e populares na contemporanei-
processo se torna autofágico. Em suma, para romper frontei- dade é uma realidade e, por diferentes vias, os grupos que as
ras, o pressuposto está em romper com a “razão cínica”. utilizam estabelecem relações de trocas e diálogos constantes.
Além da interação entre leigo e erudito, ainda devemos consi-
Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014) derar que existe um diálogo de ambos com a cultura de massa.
A não-compartimentação de erudito e de leigo gera diálo-
gos entre cultura acadêmica e cultura intuitiva. Romper es- Néstor Garcia Canclini pode ser um bom caminho para a com-
sas fronteiras não quer dizer misturar tudo, mas, sim, admi- preensão do fenômeno de hibridação cultural e da complexi-
tir que estamos todos no mesmo barco quando o quesito é dade das relações entre grupos culturais, especialmente as
humanidade. tradições culturais e populares na contemporaneidade.

Vejo o designer não somente pensante, mas tateante, na escuta Canclini argumenta que, para abordar a conjuntura latinoame-
de uma sabedoria antiga das mãos, na consciência de que o ricana, por exemplo, seria indispensável uma perspectiva plu-
design é feito para pessoas concretas e não abstratas. ralista, na qual são aceitas as fragmentações e combinações
múltiplas entre tradição, modernidade e contemporaneidade.
Tanto as artesanias quanto as academias têm a ganhar com a
recriação do design ao lado dos antigos ofícios, como marce- Nesse sentido não percebo fronteiras rígidas a serem rompi-
naria, artesanatos, tecelagem, encadernação, sapataria e todo das pelo ofício do designer contemporâneo.
tipo de atividade realizada por pessoas com as quais podemos
ter uma comunicação cara a cara. Questão 3
Quais são os mecanismos para que a profanação e a contamina-
Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014) ção anunciadas por Agamben não se transformem em captura e
É perfeita a última intervenção da Marcela. Apenas um com- cooptação pelos interesses do mercado?
plemento: conforme Maturana (A Democracia é uma Obra de
Arte), etimologicamente, “con-versar” vem da contração de Ardesson Reis Santana (19 de dezembro de 2014)
dois vocábulos latinos: con, junto com, e versare, dar voltas Pelo que entendi, o que se pode fazer é enxergar a situação
em redor de uma coisa. Isto é, conversar é ir junto, caminhar considerada como cooptação como uma oportunidade de in-
em companhia. filtração no “sistema”, utilizando-se das ferramentas que este
pode oferecer para ações de subversão.
Portanto, a condição política de existência do sujeito é a demo-
cracia (e tudo o mais que a acompanha). Consoante a isso, a Carlos Muñoz Sánchez (14 de dezembro de 2014)
democracia não está a serviço da sociedade ou dos indivíduos, A diferença entre lazer e trabalho pode não existir. Eu falei de
tempo de lazer em referência ao tempo que as pessoas têm

192 193
fora da atividade remunerada que fazem para comer. Se você restaurante que frequento. Inventar um sistema com o porteiro
tem um emprego “convencional” de 30 ou 40 horas semanais, do prédio. Ressignificar o vizinho. Quem sabe aprender a fazer
sem responsabilidades para levar pra casa, e o resto do tempo um bolo? Ou aprender a estar lado a lado de um desconhecido
você trabalha na atividade na qual você realmente acredita, enquanto atravesso a rua. E criar um grupo de estudos-práti-
seu trabalho e seu lazer são o mesmo. Mas nessa situação cas informais? Tenho me convencido de que a revolução não
temos que escolher alguma palavra pra definir essas horas será mesmo televisionada. Se eu não mudar o entorno, me
que você dedica para conseguir dinheiro. O trabalho e o lazer permitindo usar o que se encontra apartado, nada muda.
são o mesmo, mas durante a semana tem um período de “[...]
coloque palavra que não seja trabalho aqui...”, que é o que Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)
permite você se sustentar. Acredito que o design pensado de forma colaborativa, buscan-
do uma integração social e inovação constante, pode ser um
Eu queria que não existisse, mas eu mesmo estou dentro de importante mecanismo subversivo, profanando o que é ditado
vários processos que estão sendo difíceis. Alguns deles co- pelo mercado ou pelas teorias engessadas que nos são ofe-
mentei nas outras questões. Porém, sei de fato que é possível recidas. Uma maneira de contaminação do que é sacralizado
se sustentar nessas margens, conheço e sou amigo de muitas pela máquina produtora seria o design a partir da experiência,
pessoas que conseguiram, e muitos que estão (estamos) lu- não apenas aceitando o que é dito como “bom” ou “correto”
tando para isso. pelo capital, mas buscando uma vivência cotidiana, reciclando
conceitos, aperfeiçoando teorias, sempre se aproximando do
Barbara Rodrigues Tavares (12 de dezembro de 2014) humano.
Assim como questões debatidas a respeito da arte em geral,
existem mecanismos que podem fugir aos interesses do mer- É válido ressaltar que o processo criativo é tão importante
cado. Essas alternativas podem ser percebidas em ações e quanto o produto final, pois o ato de produzir fora dos parâme-
atividades que vêm sendo praticadas nas cidades e é impor- tros estabelecidos pelo mercado já é um ato de subversão, que
tante apontar os coletivos artísticos nesse sentido. São grupos pode aglutinar diversas esferas de debate e reflexão.
autogestores e autodependentes que buscam soluções hete-
rogêneas para questões comuns na cidade, a maioria delas à Luiza Alcântara (11 de dezembro de 2014)
margem do mercado. Acredito em duas coisas apontadas abaixo: a primeira é na
criação desses espaços de que a Maria Caram fala, espaços
Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014) autônomos que pensam a criação de objetos, ações, servi-
O movimento não pode parar. Lembro-me da bailarina Sofia ços, e que buscam gerar outros espaços (mesmo que sejam
Neuparth, que dizia que “O movimento não para, nós é que deslocamentos intelectuais) de forma diferente. Por onde vão
imobilizamos nossa relação com ele”. Esse é um convite a circular essas produções? Quem está querendo o serviço?
alargar a escuta do mundo e ser de outra forma: quando tudo Concordamos com suas ideias? Se sim, ok. Se não, o que po-
parece corrompido e estagnado. demos fazer? Aceitar e subverter? Ou recusar?

Escutar o movimento que já está aí é conversar com aquela E, nesse sentido, chego ao segundo ponto citado, com o qual
pessoa com a qual sempre me deparo na rua. E ver o que pode concordo. Podemos, sim, aceitar propostas de trabalhos den-
surgir da conversa. É articular uma ação com as cozinheiras do tro do sistema que tanto questionamos, mas sem a ingenui-

194 195
dade de que não estamos nele. Sabendo de nossas posições e do da cidade, de política, de multidão... Mas aqui aparece um
das dos outros, sabemos como subverter, como jogar a nosso conceito parecido.
favor e, assim, não seremos cooptados.
Ricardo falou do Lipovetsky e Marcela adicionou a Marina
Maria Caram Santos de Oliveira (10 de dezembro de 2014) Abramovic. Não tenho estudado esses casos concretos, e não
Creio que a melhor resposta aqui é algo que já citei em módu- saberia dizer se eles estão tentando subverter as empresas por
los anteriores: espaços lisos e espaços estriados. dentro. Mas existem alguns problemas nos processos criativos
dos designers que trabalham além do mercado - um deles é
Como a Greice citou antes, o capitalismo age de forma predató- “comer”.
ria, capturando e transformando em objetos de consumo mes-
mo aquilo que nasce à sua margem. Como disse na primeira Conheço muitos designers ou coletivos que gostariam de traba-
pergunta, é a substituição da “utilização” pelo “consumo”. lhar só com a parte ativista do design, mas desistem ou deixam
essa parte para o tempo do lazer, porque são obrigados a ter
Assim, creio que, quase inevitavelmente, novos mecanismos um emprego convencional, cooptados pelas empresas, para
serão constantemente capturados e refeitos em embalagens poderem se sustentar. E alguns dos que conseguem se susten-
prontas para uso. Como enfrentamento, creio que a possibili- tar com isso, é com as palestras que dão sobre outras metodo-
dade seja achar brechas e se infiltrar nelas sempre que pos- logias no design (ou na arquitetura, por exemplo). Porém, são
sível, criando sempre espaços - que podem ser chamados de metodologias que nem para os melhores dessas disciplinas
espaços lisos, contratempos, zonas autônomas temporárias dariam para viver, e, afinal, vivem da teoria mais do que da
- de escape e inovação dentro desse sistema. prática desses processos.

Greice Teixeira de Souza (10 de dezembro de 2014)


Pelbart sugere a produção do novo, sendo que no seu concei-
to, produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças,
novas associações e novas formas de cooperação. Mas quando
nos referimos à sua captura e cooptação pelos interesses do
mercado, vale lembrar “que o mercado capitalista é uma má-
quina que sempre foi de encontro a qualquer divisão entre den-
tro e fora. O mercado capitalista é contrariado pelas exclusões
e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre cres-
centes. […] Em sua forma ideal, não há um fora no mercado
mundial: o planeta inteiro é seu domínio” (HARDT, 2000, p.361).

Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014)


De volta aqui uma questão do primeiro texto: “Mas sabemos
que a metrópole é também o lugar, por excelência, da expro-
priação deste comum produzido no encontro e na criação das
novas formas de vida e de luta”. Naquele texto e também nas
questões relativas a ele, a gente falou sobre como é possível
mudar algo desde dentro. Daquela vez a gente estava falan-

196 197
Apontamentos sobre educação
a distância e construções coletivas
de conhecimento:
a experiência do curso arte e espaço –
uma situação política do século xx

Maria Helena Cunha*


Patricia Faria**

Com o curso Arte e Espaço – uma situação política 1. Maria Helena Cunha -
do século XXI, cujo conteúdo buscou abarcar de for- Mestre em Educação pela
FAE/UFMG, especialista
ma ampla os temas relativos à arte, aos espaços e em Planejamento e
à política, avaliamos que seria bastante pertinente Gestão Cultural pelo
discutir com os alunos a perspectiva de transfor- Instituto de Educação
Continuada - PUC/MG e
mar uma plataforma virtual de educação em um licenciada em História
espaço processual de construção do conhecimento. pela UFMG. É diretora da
Inspire Gestão Cultural
e da DUO Editorial. Fez
Com base nessa ideia, lançamos intencionalmen-
a coordenação geral e
te a questão: o que acham de uma plataforma de pedagógica do curso
educação a distância como um espaço virtual de que deu origem a esta
construção do conhecimento coletivo? publicação.

2. Patricia Faria -
Essa questão foi trabalhada durante a primeira
Professora da disciplina
disciplina - Ambientação em EAD - destinada ao Ambientação em EAD
conhecimento e à discussão da própria plataforma. deste curso. Graduada
Assim, a partir dos debates e das observações dos em Psicologia pela
UFMG; especialista em
alunos a respeito do tema e de suas expectativas Planejamento e Gestão
com relação ao curso a distância, fomos alinhavan- Cultural pelo IEC/
do e desenvolvendo este texto. PUC_Minas; e especialista
em Cooperação Cultural
Iberoamericana pela
A plataforma EAD|Inspire, desde sua criação, teve Universidade de
como metodologia de trabalho estabelecer a dis- Barcelona/Espanha.
Produtora e Gestora
cussão direta entre os professores e todos os
Cultural, coordena o
alunos e entre os próprios alunos no Fórum de Pontão de Cultura Escola
Discussão, no qual o debate é aberto e compar- Livre COMUNA S.A.

198 199
tilhado para que todos possam participar e acompanhar o O modelo pedagógico estabelecido como linha norteadora
raciocínio, as opiniões e as reflexões sobre o tema proposto. do processo formativo da plataforma EAD|Inspire sempre
Ao mesmo tempo, buscamos entender como eles poderiam buscou envolver, por um lado, a autoinstrução (leitura de
se apropriar dessa ferramenta de estudos ao longo de todo textos), que depende muito da disciplina e da força de von-
o curso como processo de sua formação. Um dos alunos, tade de aprendizagem individual, e, por outro, a aprendiza-
Marco Antônio Souza Borges Netto, afirma: “Acredito nessa gem colaborativa por meio de debates entre os alunos. Esse
plataforma. Mas requer muita disciplina do estudante. A é um importante diferencial desse processo formativo, que
vantagem é que há uma memória e que podemos interagir estabelece um diálogo contínuo e compartilhado na cons-
sempre que possível”. trução de um conhecimento comum e “com o qual podemos
interagir sempre que possível”.
Reiterando a fala acima, em uma plataforma de educação a
distância – assim como acontece também nos cursos pre- Em uma provocação feita pela Profa. Patricia Faria, para
senciais - a construção do conhecimento coletivo requer de instigar o debate durante o período de sua disciplina, ela
todos os envolvidos uma apropriação do tema proposto com questionou: “Gostaria de aproveitar o post de hoje para
uma disposição para o debate, que intensifica e qualifica a colocar uma ideia que se faz presente sempre que vamos
discussão. trabalhar com educação a distância: muitos autores citam
que um grande desafio está relacionado com a melhor ma-
Portanto, o objetivo da inserção dessa discussão inicial neira de usar as tecnologias de informação e comunicação
no curso era compreender como um curso virtual pode- em benefício do bom aprendizado e da construção coletiva
ria favorecer ou gerar uma discussão que propiciasse ou do conhecimento. Penso que essa preocupação está rela-
incentivasse a reflexão dos alunos para a possibilidade da cionada com muitos fatores que já enumeramos [...]. Como
construção do conhecimento coletivo, a partir de suas rea- usamos as tecnologias de informação na nossa vida hoje
lidades, expectativas e do conhecimento sobre a experiên- em dia? Vocês acham que fazemos um bom uso delas? O
cia de cursos a distância. Uma das alunas do curso reflete quanto nos perdemos nesse mar de informações?”.
especificamente sobre isso e reforça um ponto de vista ao
afirmar que acredita: A partir dessa colocação, estabeleceu-se um debate no
Fórum e destacamos duas falas. Em uma delas uma aluna
[…] na construção do conhecimento coletivo, pois afirma que “opinar sobre se fazemos um bom uso ou nos
hoje, mais do que nunca, temos um excesso de in- perdemos nas informações é difícil, pois acho que aconte-
formações, mas que nem sempre são coletadas da cem as duas coisas...”. Continuando, ela aponta sua obser-
melhor maneira. Uma plataforma de educação a vação para os jovens:
distância é capaz de reunir diversas percepções e
olhares que são lançados a partir do espaço de cada Tenho percebido que crianças e adolescentes, que já
participante. A união, por uma busca em comum, e nasceram com essa tecnologia, possuem mais faci-
o direcionamento dessas informações podem gerar lidade de acesso, porém precisam de uma mediação
um conhecimento múltiplo e inovador. Se é a melhor para fazer bom uso dela, pois a maioria só acessa as
forma ainda não sei, mas acredito que temos que redes sociais e quando precisa realizar um trabalho
nos apoderar das plataformas virtuais para o melhor escolar de leitura, interpretação e construção de tex-
aproveitamento delas: o conhecimento. (THAÍS MOR) to fica muito perdida.

200 201
Dessa forma, ela traz a problematização para o outro lado, um número significativo de pessoas, tão distantes geogra-
o das escolas e professores, e conclui: ficamente e com diversos níveis de formação e informação.
Neste curso, especificamente, contamos com a participação
Cabe, também, aos professores introduzirem e dis- de alunos de dezoito estados brasileiros, tornando possível,
cutirem o assunto da educação tecnológica nas es- e de maneira muito simples atualmente, a realização de
colas. O que muitos teóricos chamam de ‘letramento um debate a partir da nossa diversidade. Alguns alunos se
tecnológico’ tem que evoluir para uma ‘competên- posicionaram com essa perspectiva, deixando registrados
cia informacional’ que requer um trabalho árduo da no debate os seus pontos de vista sobre o tema:
Educação... (DALBA ROBERTA COSTA DE DEUS).
Penso que, utilizando os meios de tecnologia da in-
Outro aluno, Bruno Dorneles, traz uma discussão pertinente formação, nós estamos cada vez mais a romper as
ao processo educativo. Ele afirma: barreiras que antigamente segregavam diversas
pessoas. A democracia presente na construção do
Tenho alguns problemas com a ideia de educação conhecimento coletivo é essencial para que dissemi-
a distância, talvez por ela tentar reduzir a distância nemos o que outrora ficou restrito a um grupo mui-
a uma questão geográfica, quando, na verdade, eu to ínfimo de pessoas, num verdadeiro monopólio do
(como professor de artes da rede pública de ensi- conhecimento. O conhecimento coletivo, como bem
no) me sinto muito mais próximo dos meus alunos citou a Patrícia Faria, torna-se cada vez mais refina-
quando dividimos uma plataforma digital (whatsapp do quando agregamos àquelas ideias postas e tidas
ou facebook), em que os interesses de cada um se como “dogmáticas” uma nova forma de pensar ou
tornam mais evidenciados, como modelos de apre- interpretar, que tem muito a ver com o crescimento
sentação claros da pessoa (quase como a roupa que moral e intelectual e o agregado regional de cada um
se veste on-line). de nós. (DENY EDUARDO PEREIRA ALVES)

Ele ressalta ainda que: E na visão de outro aluno:

Apesar dos problemas, considero essa uma das pou- Acredito que seja um mecanismo forte e de grande
cas e legítimas formas de construção de conheci- promessa na construção do conhecimento. Por meio
mento coletivo, dado que para estarmos aqui preci- da educação a distância é possível ter alunos conec-
samos estar equipados com aquilo que nos dispõe tados de diversas partes do País, o que pode gerar
um número quase infinito de conhecimentos. Apesar não apenas um debate construtivo e enriquecedor,
de não orgânico, apesar de nos trans-humanizar, a como também se apresentar como uma forma de de-
internet permite que consultas rápidas e em diálo- mocratização do ensino, seja do ponto de vista formal,
go com uma comunidade transformem dificuldades como também do aperfeiçoamento e da livre busca
individuais em curiosidades coletivas, o que auxilia pelo saber. Essa modalidade exige autodisciplina e
de forma vertebral no desenvolvimento do indivíduo empenho redobrado do aluno, uma vez que, sem um
e do coletivo. “professor presencial” no dia a dia, a sua organização
e dedicação serão pontos-chave na efetiva constru-
Um ponto inegável a ser identificado no contexto do ensino ção do saber. (FELIPO LUIZ ABREU DE OLIVEIRA)
a distância é a capacidade de proporcionar o encontro de

202 203
O mapa abaixo ilustra o perfil geográfico dos alunos, tra- Além da possibilidade de ampliar a capacidade de articu-
çando a capacidade de abrangência dos cursos a distância. lação de pessoas de locais diferentes, a flexibilidade com
Nesse caso específico, destacamos um número de alunos relação ao tempo para o estudo e o não deslocamento físico
bem superior da Região Sudeste, com percentual de 75% foram apontados como as grandes vantagens do ensino a
do total, fato que se deu em função de estarmos sediados distância, e podemos afirmar que este sempre foi um ponto
em Belo Horizonte (MG), e realizarmos o curso por meio da destacado por outros alunos de cursos anteriores nesta
legislação municipal de incentivo à cultura, o que significa, plataforma. As palavras de uma das alunas deste curso
em termos percentuais, um número maior de vagas dispo- evidenciam esse fato:
níveis para a cidade e para o estado de Minas Gerais.
A EAD é uma forma de estar, principalmente na for-
ma de debates e fóruns, onde não seria talvez mo-
mentaneamente possível. A mobilidade de acesso
inscrIçÕes por estado permite que diversas pessoas estejam em constante
interação. Podemos discutir, discordar e rever nos-
sos conceitos e conhecimentos. Para mim, é com a
EAD que a globalização exerce seu papel: a mundia-
lização do espaço geográfico por meio da interligação
econômica, política, social e cultural em âmbito pla-
netário. (JOANA D´ARC JESUS DOS SANTOS)

1% Por outro lado, vimos em vários comentários, neste e em


1% 4%
1% outros cursos, que a falta do contato físico é vista também
4% como uma desvantagem. Isso talvez se justifique por uma
1%
2%
visão ainda muito arraigada do padrão de sala de aula que
estabelece a relação presencial entre professor e aluno.
2%
Considerando o contexto atual, nós acreditamos que o EAD
1%
tem, na verdade, criado a possibilidade de aprendizagem
para aqueles que estão distantes dos centros urbanos (que
1%
possuem grande parte dos programas formativos específi-
62%
cos) e, ao mesmo tempo, traz para todos os alunos a opção
1% 1% de não terem que enfrentar a dificuldade da mobilidade
11%
1% urbana e de otimizar seu tempo disponível (flexibilização do
4% horário de estudo). Assim, o tempo e o espaço passam a ter
outro significado, fortalecendo a vantagem do acesso sobre
2% a necessidade do contato físico.
3%
Nesse sentido, quando nos mobilizamos para a realização
deste curso a distância, Arte e Espaço – uma situação política
do século XXI, não foi só pela metodologia, que acreditamos
possibilitar a construção coletiva e um processo contínuo de

204 205
aquisição de conhecimento, mas também por con- avaliamos que essa proposição foge completamente da li-
siderarmos a extensão territorial brasileira, com nha pedagógica escolhida pelo EAD|Inspire, na qual todos
um grande número de pequenas cidades no inte- os participantes – professores e alunos – mantêm um diálo-
rior de cada estado, e a dificuldade de mobilidade go aberto e podem acompanhar os debates a partir de uma
nos grandes centros urbanos. Ou seja, buscamos leitura completa e contínua de todos os comentários. A pro-
democratizar o acesso a conteúdos específicos e posta metodológica é a busca constante para manter uma
de qualidade para muitos que teriam dificuldade interatividade diária entre os todos os usuários envolvidos.
em participar de formatos presenciais.
Assim, a metodologia utilizada pela plataforma a distância
Dessa forma, entendemos que os recursos das EAD|Inspire tem como proposta responder a uma busca de
tecnologias de informação que atuam como me- formação continuada e aprofundada, que consiga acompa-
diadores do processo de desenvolvimento de estu- nhar os profissionais nos desafios e atividades cotidianas,
dos a distância significam um diferencial para os motivando-os à discussão constante para o desenvolvimen-
alunos que tiveram a oportunidade de estabelecer to de seus trabalhos. Isso pode ser retratado em um dos
um diálogo contínuo com especialistas de temas comentários da avaliação final:
variados e relacionados à sua formação.
Como primeira experiência posso dizer que tentei
Voltando à questão que motivou a discussão inicial aproveitar ao máximo. A monitoria sempre atenta e
durante o curso - O que acham de uma plataforma presente me chamou a atenção. Quanto ao conteú-
de educação a distância como um espaço virtual de do, achei interessante, por ser ainda novo para mim,
construção do conhecimento coletivo? –, é impor- e consegui ampliar muito meus conhecimentos. Os
tante falar das expectativas, do que foi atendido e professores souberam se posicionar, despertando
mesmo de frustações após a realização do curso. reflexões sobre os conteúdos. A coordenação, secre-
3. Nas citações referentes
às avaliações finais não fo- Buscamos nos comentários de uma avaliação final taria e plataforma funcionaram adequadamente, sem
ram citados os nomes dos e nos comentários de alguns alunos, que voltaram problemas. Por ser gratuito, possibilitou-me ampliar
alunos, pois preferimos para responder a essa questão na disciplina inicial, meus conhecimentos e interagir com professores
manter sigilo por ser uma
avaliação individual. Cita- as referências para levantarmos algumas obser- e colegas, incentivando-me a ler sempre mais e a
mos, no entanto, os nomes vações pertinentes. refletir sobre as perguntas e as respostas.
de alunos em comentários
que foram postados no
Nem todos os alunos se adaptam a esse formato Outro ponto importante, que já foi muito identificado entre
fórum de discussão, espa-
ço aberto para os debates. específico da plataforma, na qual as leituras de as observações dos alunos da plataforma, é o compartilha-
todas as questões colocadas e os debates também mento do conhecimento, dos textos e debates, com seus
entre alunos são uma proposta de discussão aber- parceiros externos à plataforma, de trabalho ou de escola:
ta. Isso significa que ela não deve ser estabelecida
no grupo de forma unilateral - em que o professor Essa plataforma é muito eficaz, achei ótima, fácil
responde direcionado a um único aluno - confor- de lidar. Gostei demais dos textos, vou repassá-los
me uma observação apresentada na avaliação fi- todos; os depoimentos e intervenções dos professo-
nal: “Seria interessante se pudéssemos comentar res dessa forma mais livre é bem instrutivo. Talvez
diretamente as mensagens enviadas por outros pudesse ter mais interação dos professores com os
alunos”. Embora esse seja um ponto recorrente,

206 207
alunos. A monitoria do Bruno é ótima, não precisei
usar o suporte técnico.

Outro aluno volta à questão na plataforma após o final do


curso e a responde da seguinte forma:

Penso que não substitui a aula presencial, o estu-


dante de curso a distância tem que ser muito mais
atento aos estudos por ter que ser autodidata, mes-
mo sendo orientado, porém, é uma ferramenta muito
boa e possibilita acesso e conhecimento. (GUSTAVO
PIRES DE PAULA)

Por fim, a plataforma EAD|Inspire, que abrigou o curso Arte


e Espaço – uma situação política do século XXI, cumpriu com
seus objetivos ao manter uma estrutura de navegabilidade
amigável e de acesso simples, que proporciona a facilida-
de no processo de interação entre alunos e professores e,
consequentemente, segue enfrentando seu principal de-
safio: ampliar as condições que levam à aprendizagem e
ao conhecimento específico de forma colaborativa, enten-
dida aqui como um diálogo aberto que leva à reflexão e à
ampliação de repertório, e não, necessariamente, apenas
como a construção colaborativa de um texto coletivo. Para
a EAD|Inspire, o que vale são o bom debate e a vontade de
participar dele.

208
Assessoria de comunicação
Curso
Thaís Almeida Maia 
Arte e Espaço – uma situação política do século XXI
Design gráfico
Realização Ana C. Bahia
Duo Editorial
Assessoria jurídica
Patrocínio Diana Gebrim
Lei Municipal de Incentivo à Cultura e Bonsucesso

Apoio
Inspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG
Publicação
Arte e Espaço – uma situação política do século XXI
Plataforma de Educação a Distância 
EAD|Inspire Realização
Duo Editorial
Coordenação geral e pedagógica
Maria Helena Cunha – Inspire| Gestão Cultural Patrocínio
Lei Municipal de Incentivo à Cultura e Banco Bonsucesso
Coordenação de conteúdo
Natacha Rena – Indisciplinar | EA UFMG Apoio
Inspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG
Professores
Eduardo de Jesus  Organizadores
Isabela Prado  Bruno Oliveira, Maria Helena Cunha e Natacha Rena
Marcela Silviano Brandão Lopes 
Natacha Rena  Coordenação Editorial
Patricia Faria  Natacha Rena
Paula Bruzzi Berquó 
Produção Editorial
Simone Parrela Tostes  
Bruno Oliveira
Monitoria
Produção executiva
Bruno Oliveira
Michelle Antunes
Suporte Técnico
Gestão Financeira
Harmisweb
Maria Helena Batista
Produção executiva
Revisão de textos
Michelle Antunes
Trema (trema.textos@gmail.com)
Gestão Financeira
Design gráfico
Maria Helena Batista
Ana C. Bahia 

210 211
alunos aprovados

Alexsandra Silva Oliveira Buriti


Barbara Rodrigues Tavares
Bernardo Romagnoli Bethonico
Carlos Dalla Bernardina
Carlos Muñoz Sánchez
Cândida Soares Leão Teixeira
Claudia Laport Borges
Dalba Roberta Costa de Deus
Elen Maria de Souza Friche
Eliane Maris da Silva
Eva de Fátima de Aquino Pereira
Gustavo Pires de Paula
Gustavo Wolff
José Moraes Júnior
Júlia Nascimento de Oliveira
Luiza Alcântara
Maisa Cristina da Silva
Maíra de Castro Botelho
Maria Caram Santos de Oliveira
Maria Goretti Gomide Pinheiro
Marlene de Souza Sardinha
Natália Ribeiro de Paula
Reginaldo Luiz Cardoso
Renata Santos Souza
Ricardo de Cristófaro
Ricardo Macêdo
Suely Aparecida dos Santos
Taís Freire de Andrade Clark
Thaís Mor
Thiago Vetromille Ribeiro Gomes
Valéria Costa Pinto
Valéria da Silva Freitas
Vanessa Camila da Silva
Vanessa Tamietti
Victor Hugo Tozarin dos Santos
Wagner Pina
Yuri Amaral
A786
2015
Arte e espaço [recurso eletrônico] : uma situação política do século XXI /
Natacha Rena, Bruno Oliveira, Maria Helena Cunha, orgs. – [ Belo Horizonte] :
Duo Editorial, [2015].

1 recurso online (216p.) : il.


ISBN: 978-85-62769-06-1
Inclui bibliografia.
Apresentado pela Fundação Municipal de Cultura.

1. Arte. 2. Arte e educação. I. Rena, Natacha. II. Oliveira, Bruno. III. Cunha, Maria
Helena.
CDD: 707

Este livro foi realizado com recursos da


Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte.
Fundação Municipal de Cultura
1065/2012

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