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Nos anos 1960, um ex-presidente era investigado por causa de apartamento

PAULO CÉSAR DE ARAÚJO


ESPECIAL PARA A FOLHA

23/01/2018 20h09

Fundo Última Hora/Apesp/Reprodução

Juscelino Kubitschek chega para depor em investigação no regime militar

Naquela manhã de domingo, o ex-presidente tomou seu café saboreando também a primeira página do jornal com
pesquisa do Ibope que o colocava na liderança à Presidência da República, com 43,7% das intenções de voto.

Meses depois, a candidatura dele seria homologada, por unanimidade, por seu partido, num evento com a presença de
vários artistas.

Parecia mesmo apenas uma questão de tempo para Juscelino Kubitschek voltar a governar o Brasil.

"JK venceria se eleição fosse hoje", dizia o "Correio da Manhã" com os números da pesquisa, em setembro de 1963.

Mas aí veio o golpe civil-militar, em março do ano seguinte, e a candidatura dele ficou seriamente ameaçada. Iria se
iniciar a caçada ao ex-presidente, que na época, aos 62 anos, era senador da República.

O golpe foi realizado sob o pretexto de combater a corrupção e livrar o país dos comunistas. Num primeiro momento, os
militares procuravam guardar algum sinal de legitimidade, prevalecendo aquilo que Elio Gaspari chamou de "ditadura
envergonhada".

Eleito pelo Congresso Nacional –inclusive com o voto de JK–, o primeiro general-presidente, Castelo Branco, disse que
manteria as eleições presidenciais de outubro de 1965 e daria posse ao eleito. O seu governo seria de transição,
prometendo fazer uma espécie de limpeza geral no país, especialmente da corrupção.

PRESIDENTE E JUIZ

"Até o problema do comunismo perde expressão diante da corrupção administrativa nos últimos anos", afirmava o
marechal Taurino de Resende, presidente da Comissão Geral de Investigação (CGI).

A este órgão cabia investigar, reunir documentos e indicar quem deveria ser cassado por corrupção ou subversão. A lista
era levada ao Conselho de Segurança Nacional que podia acatar ou não a denúncia, mas o julgamento final era do
presidente (e neste caso, juiz), Castelo Branco - que defendia, em discurso, não apenas punição aos malfeitores, mas
também "reformas de profundidade na estrutura orgânica da administração pública" para curar "a enfermidade da
corrupção no país".

Como Getúlio Vargas já havia morrido e lideranças como João Goulart e Leonel Brizola estavam no exilio, os golpistas se
voltaram contra Juscelino Kubistchek, o erigindo a símbolo do que não podia mais prosperar na política nacional.

Diziam que sempre se roubou no Brasil, porém, num nível imensamente maior a partir do governo JK –que seria culpado
também pela inflação e a recessão econômica.

Com sua fúria punitiva o governo militar iniciou então uma devassa na vida do ex-presidente. Foram vasculhadas
empresas e bancos nacionais, americanos e suíços na tentativa de localizar investimentos em nome dele ou de
familiares.
"Não tenho um centavo em banco estrangeiro. Deveria ter para qualquer eventualidade. Mas não tenho nada,
rigorosamente nada", se defendia.

Foi também investigado quanto o ex-presidente havia recebido por viagens de conferências no exterior, na suposição de
que ele não teria pago o imposto de renda.

Documentos sobre supostos atos de corrupção em seu governo eram liberados para a imprensa pela Secretaria do
Conselho de Segurança Nacional. "Não havia dia em que não se verificasse algum tipo de imputação contra sua honra
para justificar a punição iminente", afirma seu biógrafo Claudio Bojunga.

TRÍPLEX EM IPANEMA

A denúncia que se tonaria mais rumorosa envolveu um novíssimo prédio de cinco andares, na avenida Vieira Souto, em
Ipanema, onde JK foi morar, pouco depois de deixar a Presidência. Ele residia no segundo andar e, oficialmente, pagava
aluguel ao seu amigo (e ex-ministro da Fazenda) Sebastião Paes de Almeida.

Mas, segundo a denúncia, o amigo, embora milionário, era um "laranja" do ex-presidente, usado para encobrir o real
proprietário do edifício construído com dinheiro doado por empreiteiros de grandes obras no governo JK.

No processo afirmava-se que a localização, o projeto arquitetônico, a decoração do prédio, tudo teria sido feito ao gosto
de Juscelino Kubistchek e de sua esposa Sarah.

Testemunhas teriam visto o ex-presidente visitando as obras; outros afirmavam que dona Sarah era quem determinava
alterações nos pavimentos. Dizia-se ainda que inicialmente eles iriam morar num tríplex nos andares superior mas
"quando começaram rumores sobre a propriedade do edifício, o ex-presidente abandonou a ideia do tríplex e resolveu
habitar apenas no 2º pavimento".

Outro indício estaria no nome do edifício - "Ciamar" -, interpretado como anagrama de Márcia, filha de Juscelino
Kubitschek.

Esta denúncia não prosperaria na Justiça comum, sendo arquivada por falta de provas, em maio de 1968. Mas até lá,
muita tinta foi gasta em reportagens sobre "o edifício de Kubitschek" –chancelando nas manchetes o que o ex-
presidente negava.

E tudo isto servia de combustível para quem desejava tirá-lo da disputa à presidência em 1965, e para a qual ele
abraçara o discurso das reformas sociais. "Reformas com paz e desenvolvimento", seria o mote da campanha de JK.

NA IMPRENSA

"A Revolução estará sendo traída enquanto o rei da corrupção permanecer impune", cobrava o deputado e repórter
Amaral Neto, enfatizando "que há muito tempo esse moço já deveria estar na cadeia".

Por sua vez, "O Estado de S. Paulo" dizia que "pelos crimes cometidos contra o erário público" durante o governo de JK
com a "deslavada conivência dele" era "perfeitamente justa e merecida" a sua cassação. E o "Jornal do Commercio"
sentenciava que "o sr. Kubitschek é incompatível com a nova era que se iniciou".

Após investigações da CGI, em maio de 1964 o Conselho de Segurança Nacional opinou pela cassação de JK por
corrupção e alianças com comunistas. Caberia agora, portanto, ao presidente (e juiz) Castelo Branco condená-lo ou
absolvê-lo.

A partir daí o drama de Juscelino Kubitschek empolgou o país, gerando suspense no mercado e em todos os círculos
políticos.

O seu partido, o PSD, sofria junto porque não tinha um plano B sem JK –que fez no Senado um discurso de repercussão,
afirmando que estava sendo perseguido, não pelos seus defeitos, mas por jamais "compactuar com qualquer atentado à
liberdade e agir sempre com dignidade administrativa".

Em meio à expectativa da condenação surgiram boatos de que o ex-presidente poderia ter também sua prisão
preventiva decretada –algo que o próprio Palácio do Planalto tratou de desmentir.

Porém, o suspense continuava; afinal, tratava-se do destino da maior liderança política do país após Getúlio Vargas e o
líder das pesquisas eleitorais. Àquela altura, o telefone do ex-presidente já estava grampeado pelo recém-criado SNI e
Castelo Branco ouviu uma das conversas em que JK se referia a ele como "filho da puta".
DEFENSORES

Apesar do clima policialesco e repressivo, vozes saiam em defesa do ex-presidente.

"Por que, sr. general, cassar o mandato de Juscelino Kubistchek?", indagava o jurista Sobral Pinto, e ele próprio
respondia que "na impossibilidade de vencer o ex-presidente nas urnas, seus adversários querem arrancar-lhe o direito
da cidadania, único expediente capaz de afastá-lo da luta eleitoral".

Dias antes, Danton Jobim também escreveu artigo direcionado ao presidente Castelo Branco, convidando o "supremo
juiz" à reflexão.

"O país não vai lembrar-se amanhã dos coronéis que instruíram o inquérito ou dos políticos odientos que instigam essa
caçada humana, no qual um dos maiores brasileiros do nosso tempo é perseguido como criminoso vulgar. Mas o nome
de Vossa Excelência ficará indissoluvelmente ligado à cassação do mandato de Juscelino Kubitschek".

No último dia de maio, lia-se na coluna de Carlos Castelo Branco que a candidatura de JK se sustentava "apegada apenas
a um fio de esperança".

Uma semana depois não restaria mais nada.

Folhapress
PODER - Porto Alegre. A Presidenta Dilma discursa no ato de mulheres que aconteceu hoje em
frente a Assembleia Legislativa. Ela esta na cidade para acompanhar o julgamento do ex
presidente Lula. 23/01//2018 - Foto: Marlene Bergamo/FolhaPress -017

A DECISÃO

Às 19h27, de segunda-feira, dia 8 de junho, o programa A voz do


Brasil irradiou o decreto do marechal Castelo Branco, que cassava o
mandato de JK e suspendia seus direitos políticos por dez anos.

Para alegria dos adversários, o grande favorito às eleições


presidenciais de 1965 estava banido da disputa.

Carlos Lacerda –que naquela pesquisa do Ibope figurava em segundo lugar–, elogiou a decisão contra JK. Disse que foi
"um ato de coragem política, de visão, embora preferisse batê-lo nas urnas".

Seu colega udenista Edson Guimarães também afirmou que a decisão de Castelo Branco "veio na hora exata" para
mostrar "que a Revolução não foi feita para manter privilégios, mas realmente para mudar o cenário da política
nacional".

A ditadura era envergonhada mas não se avexou de banir o ex-presidente com justificativas frágeis –fato destacado no
editorial do "Diário Carioca": "Sem provas de espécie alguma, absolutamente sem provas, baseando-se apenas em
indícios e suposições, cortou-se sumariamente o curso de uma vida púbica dedicada desde os seus primórdios aos
interesses da nação, negando-se com isso ao povo o direito de votar num de seus líderes mais representativos, dono de
um passado de realizações tão importantes quando internacionalmente consagradas".

Concluía o editorial dizendo que se JK "hoje não é mais candidato à Presidência da República, é muito mais que isto: é o
símbolo vivo e fremente da vontade de um povo".

O "Correio da Manhã" também criticou a cassação "sem provas convincentes". No mesmo jornal, Carlos Heitor Cony
desabafou: "Afinal, foi consumada a grande estupidez", prevendo que com aquele ato o presidente Castelo Branco
"selou seu destino perante a nação e perante a história: é um homem mesquinho".

O "Correio da Manhã" e o "Diário Carioca" foram exceções entre os principais jornais do país, porque a grande
imprensa, em sua quase totalidade, apoiou a cassação de Juscelino Kubitschek.

A Folha de S.Paulo, "O Estado de S. Paulo", "O Dia", a "Tribuna da Imprensa", o "Jornal do Commercio", o "Jornal do
Brasil" e, principalmente, "O Globo", com um editorial intitulado "Uma lição para o futuro", afirmando que "as medidas
excepcionais e enérgicas que estão sento tomadas pelo governo, visando à punição dos responsáveis pela corrupção"
teria "o mérito maior de mostrar a todo o mundo que desta vez se realizou algo para valer".
A Folha de S.Paulo também justificou que ao ex-presidente foi concedido "o direito de defender-se amplamente e com
a máxima ressonância".

CRÍTICAS

A condenação de JK foi destaque na mídia internacional –mas lá numa visão favorável ao criador de Brasília.

O jornal "Le Monde", o "New York Post", a "Time" e a "Newsweek", por exemplo, criticaram a decisão do marechal
Castelo Branco.

E o matutino El Espectador, de Bogotá, refletiu que "antes que uma garantia de paz política e social no Brasil" aquele
ato seria "destinado a causar mais sérios e talvez irreparáveis traumatismos no presente e no futuro do pais".

Juscelino Kubistchek recebeu a notícia da cassação cercado de amigos e familiares em seu apartamento, na Vieira
Souto.

Dona Sarah mostrava-se muito abatida e revelou ter tomado tranquilizantes. "Isso tudo foi uma barbaridade",
desabafou.

Lá fora, uma multidão se aglomerava nas imediações do Edifício Ciamar (hoje, JK) e o tráfego ficou congestionado nas
duas pistas da avenida.

Algumas senhoras choravam pelo ex-presidente, enquanto um grupo de golpistas e lacerdistas gritava "ladrão! ladrão!".
Houve então um início de briga, foram acionadas tropas da Policia Militar e algumas pessoas ficaram levemente feridas.

O tumulto só terminou quando os manifestantes anti-JK bateram em retirada pela praia de Ipanema. Por volta das 22
horas, Juscelino Kubitschek apareceu à janela abraçado com sua esposa, ocasião em que os populares deram vivas à
democracia e cantaram o Hino Nacional e o Peixe vivo.

Mateus Bonomi - 23.jan.2017/Folhapress


Protesto em apoio à condenação do ex-presidente Lula, em Brasília

Pouco depois, com a voz embargada o ex-presidente ditou um manifesto em que


afirmava: "Sei que os meus inimigos me temem porque temem a manifestação do
povo, e assim, com esse ato brutal, me afastam do caminho das urnas, única
manifestação válida num regime verdadeiramente democrático".

Disse também que embora "silenciado pela tirania, restarão documentos


irrefragáveis, restará a reparação que a história oferece, dignificando os que forem
sacrificados pela má fé, pela incompreensão, pelo ódio".

E ele então concluía com um vaticínio certeiro e profético. "Este ato não marcará o fim do arbítrio. O vendaval de
insânias arrastará na sua violenta arrancada mesmo os meus mais rancorosos desafetos. Um por um, eles sentirão os
efeitos da tirania que ajudaram a instalar no poder."

PAULO CESAR DE ARAÚJO, historiador e jornalista, é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio,
e autor, entre outros, de "O réu e o rei - minha história com Roberto Carlos em detalhes" (Companhia das Letras)

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