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ELIADE, Mircea. Rites and symbols of initiation – The mysteries of birth and Rebirth.

“Ordálios iniciáticos” in Chapter 2 – trad. Mauro Jorge

Ser engolido por um monstro

As fortes emoções, o medo, o terror, tão habilmente despertadas pelas


situações acima descritas, devem ser consideradas assim como várias torturas
iniciáticas. Nós já notamos alguns exemplos de ordálios cruéis; naturalmente, eles
são muito maiores em número e em variedade. No sudeste da África, os tutores
surram os neófitos sem piedade, e os neófitos precisam não mostrar nenhum sinal
de dor. Excessos desse tipo algumas vezes resultam na morte do menino. Em tais
casos, a mãe não é informada até depois do período de separação na mata; dizem
então a ela que seu filho foi morto pelo espírito, ou que, engolido por um monstro
com outros neófitos, ele não conseguiu escapar de seu ventre. Em qualquer evento,
as torturas são equivalentes à morte ritual. Os golpes que o neófito recebe, as
picadas de inseto, a coceira causada por plantas venenosas, as mutilações – todas
estas formas de tortura significam precisamente que ele foi morto pelo Animal mítico
que é o mestre de iniciação; que ele é dilacerado em pedaços e esmagado em sua
goela, “digerido” em seu ventre.
A assimilação das torturas iniciáticas aos sofrimentos do neófito ao ser
engolido e digerido pelo monstro é confirmado pelo simbolismo da câmara na qual
os meninos são isolados. Frequentemente a câmara representa o corpo ou a goela
aberta de um monstro aquático, um crocodilo, por exemplo, ou de uma cobra. Em
algumas partes de Ceram a abertura através da qual neófito passa é chamada de
boca da cobra. Sendo encerrado nessa câmara é o equivalente a ser aprisionado no
ventre do monstro. Na Ilha Rooke, quando neófito é isolado em uma câmara na
selva um grupo de homens mascarados dizem às mulheres que seus filhos estão
sendo devorados por um terrível Ser, chamado Marsaba.
Algumas vezes a entrada no corpo do monstro inclui efeitos de cena
bastante elaborados. Entre algumas tribos do sudeste da Austrália, o neófito é
obrigado a deitar-se numa cavidade natural ou numa escavação, e diante dele é
armada uma peça de madeira cortada em duas partes, representando a mandíbula
da cobra que é o mestre da iniciação. Mas da Nova Guiné provém os mais
eloquentes exemplos do simbolismo da câmara iniciática. Uma casa especial é
construída para circuncisão dos meninos; é na forma do monstro Barlun, que
acredita-se que engula os neófitos; que é, a construção tem um “ventre” e um “rabo”.
A entrada do neófito na câmara é equivalente a entrada no ventre do monstro. Entre
os Nor-Papua (costa norte do centro da Nova Guiné) os neófitos são engolidos e
depois vomitados por um espírito cuja voz soa como uma flauta. Plasticamente, o
espírito é também representado tanto por máscaras como por cabanas feitas de
pequenas folhas dentro das quais o iniciando entra. As câmaras iniciáticas dos Kai e
dos Jabim tem duas entradas – uma, representando a boca do monstro, que é
bastante grande; a outra, que é muito menor, simboliza o rabo.
Um ritual equivalente é a entrada num boneco semelhante a um monstro
aquático (crocodilo, baleia, grande peixe). Entre o povo os Papuas da Nova Guiné,
por exemplo, o monstruoso boneco chamado Kaiemunu é construído de ráfia;
durante a iniciação o neófito tem de entrar no ventre do monstro. Mas em nossos
dias o significado iniciático deste ato foi perdido; o menino entra em Kaiemunu
enquanto seu pai ainda está terminando a construção.
Devemos ter oportunidade de retornar ao simbolismo da entrada no ventre
do monstro. Para este padrão iniciático atingir a mais ampla disseminação e tem
sido constantemente reinterpretado em variados contextos culturais. Até o momento,
digamos que o simbolismo da câmara é consideravelmente mais complexo do que
estes primeiros exemplos têm demonstrado. A câmara iniciática representa não
apenas o ventre do monstro devorador mas também o útero. A morte do neófito
significa um retorno ao estado embrionário. Isso não é para ser compreendido
meramente em termos de fisiologia humana mas também em termos cosmológicos.
Isso não é apenas uma repetição da primeira gestação e do nascimento carnal a
partir da mãe; isso é também um retorno temporário ao virtual, modo pre-cósmico
(simbolizado pela noite e escuridão), seguidos de um renascimento que pode ser
homologado com uma “criação do mundo”. Esta necessidade de repetir a
cosmogonia periodicamente, e homologar a experiências humanas com os grandes
momentos cósmicos, é, além disso, uma característica do pensamento primitivo e
arcaico.
A memória da isolada cabana iniciática, no profundo da floresta, foi
preservada em contos populares, mesmo naqueles da Europa, muito depois dos
ritos de puberdade cessarem de ser realizados. Psicólogos têm demonstrado a
importância de certas imagens arquetípicas; e a câmara, a floresta, e escuridão são
tais imagens – elas expressam o eterno psicodrama da morte violenta seguida de
renascimento. A mata simboliza tanto o inferno como a noite cósmica,
consequentemente a morte e suas virtualidades; a câmara é a goela do monstro
devorador, na qual o neófito é comido e digerido, mas é também um útero que nutre,
no qual ele é engendrado a partir do começo. Os símbolos de morte iniciática e de
renascer são complementares.
Assim como vimos, alguns povos assimilam os neófitos isolados na floresta
às almas dos mortos. Neles frequentemente é esfregado um pó branco para fazê-los
assemelharem-se a fantasmas. Eles não comem com seus dedos, porque os mortos
não usam os dedos. Para dar alguns exemplos, em algumas partes da África (os
Negros Babali de Ituri) e da Nova Guiné, os neófitos comem com um pequeno palito.
Em Samoa eles são obrigados a usar tais palitos até que a ferida de suas
circuncisões tenha curado. Mas a esta estadia entre os mortos não é sem
recompensas. Os neófitos receberão revelações de sabedorias secretas
transmitidas oralmente. Porque os mortos sabem mais que os vivos. Aqui temos
nosso primeiro exemplo da importância religiosa dos mortos. O culto dos Ancestrais
é cada vez mais marcado, e as figuras do Seres Celestiais quase desaparecem da
prática religiosa corrente. A morte ritual tende a ser valorizada não apenas enquanto
um ordálio iniciático necessário para um novo nascimento mas como uma situação
privilegiada em si, por permitir aos neófitos viver em companhia dos Ancestrais. Esta
nova concepção é destinada a representar um papel central na história religiosa da
humanidade. Mesmo em sociedades desenvolvidas os mortos serão considerados
como possuidores do conhecimento arcano, e profecia ou inspiração poética será
solicitada onde os mortos repousam enterrados.

ELIADE, Mircea. Rites and symbols of initiation – The mysteries of birth and Rebirth.
“Simbolismo iniciático do retorno ao útero” in Chapter 3 – trad. Mauro Jorge

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