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Tal proposta, que se apresenta como nutriz da estratégia que aponta para a
valorização de produtos locais – seja a partir de Indicações Geográficas ou de
Denominações de Origem –, toma por entendimento a perspectiva anunciada por Flores
(2006), que indica que “a dinâmica econômica do desenvolvimento territorial está
fincada na afirmação de recursos territoriais inéditos sobre os quais se promove uma
inovação e que estabelecem novas formas de relação com consumidores”. Ainda, toma
por inspiração a proposição de panier de biens, de Pecqueur (2000), e, por contexto – tal
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Submetido à discussão no Grupo de Trabalho 42 “Antropologia da Alimentação: diálogos
latinoamericanos”, na VII Reunião de Antropologia do Mercosul (Porto Alegre, julho de 2007).
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Esse projeto – que conta com apoio dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) – está sendo desenvolvido por uma equipe
multidisciplinar de pesquisa, que envolve profissionais de diversas instituições, entre as quais
EMATER, FEPAGRO e UFRGS.
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Como destaca Arantes (2004, comentado por Flores, 2006), para isso é necessário que o produto
apresente: singularidade (os diferenciais do produto devem efetivamente estar enraizados na cultura
local); rastreabilidade (possibilitando “o contato do consumidor com a ambiência social e cultural do
produto na origem”); qualidade (necessariamente associada à base cultural dos produtores e de sua
organização social).
como analisado em Menasche (2004), em estudo realizado em Porto Alegre –, um
cenário em que aos alimentos oferecidos às sociedades urbanas contemporâneas associa-
se a idéia de ‘risco’, o que conduziria a uma valorização de atributos associados ao
‘natural’ e ao ‘rural’, evidenciando a busca, urbana, de um rural idealizado, que
expressar-se-ia através da demanda por alimentos, festas, turismo, paisagens, costumes,
história.
É nesse quadro que se situa este trabalho, que busca destacar algumas das
relações existentes entre o modo de vida característico dos pecuaristas familiares dos
Campos de Cima da Serra e a produção artesanal do Queijo Serrano, evidenciando, entre
outros aspectos, práticas de sociabilidade, organização do trabalho, costumes e tradições
associados ao produto.
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região, com áreas de até cerca de 200 hectares, são caracterizados como pecuaristas
familiares4.
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Ries e Messias (2003) estimam que seriam cerca de 3.500 as famílias rurais da região que poderiam
ser caracterizadas como pecuaristas familiares.
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Os principais itens trazidos de ‘serra abaixo’ para compor a dieta dos serranos eram: milho, feijão,
arroz, farinha de mandioca, farinha de trigo, açúcar e polvilho.
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pecuaristas familiares, a renda obtida com a comercialização desse produto representaria
aproximadamente 50% de sua renda total6.
Na lida campeira
Nos Campos de Cima da Serra, as estações do ano são bem marcadas. No
inverno, quando os campos, secos, serão queimados, o gado é conduzido às áreas de
‘recosta’, onde encontrará alimento e abrigo do frio intenso. No período compreendido
entre setembro e abril, quando as temperaturas são mais elevadas, os campos nativos
cobrem-se de um verde intenso, fornecendo alimento farto ao rebanho, que engorda – o
gado comumente empregado é obtido a partir de cruzamento de raças de corte, animais
rústicos – enquanto cria seus bezerros. É nessa época que, tradicionalmente, é produzido
o Queijo Serrano.
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Em pesquisa de campo exploratória, realizada em setembro de 2006, o extensionista da Emater de
Bom Jesus, buscando evidenciar a importância econômica do Queijo Serrano para as famílias
produtoras, apresentou-os alguns cálculos estimativos bastante sugestivos, reproduzidos a seguir.
Considerando-se uma área de 200 hectares e o índice de ocupação comum na região, teríamos 80
cabeças de gado nessa propriedade hipotética. Na produção de carne, com uma taxa de desfrute
anual de 10% (8 cabeças), seriam então produzidos anualmente 3.600 quilos de carne que, ao preço
de R$ 1,70 o quilo, implicariam em uma renda bruta anual de R$ 6.120,00. Na mesma área e
rebanho (o Queijo Serrano é produzido a partir de gado criado para corte, constituído por raças
mistas, sendo as vacas ordenhadas uma única vez ao dia), seriam aproximadamente 40 as vacas,
produzindo cada uma delas, em média, 2,5 litros de leite ao dia, o que perfaria 100 litros de leite
diários, ou 10 quilos de queijo. A um preço de venda de R$ 6,00 o quilo de queijo, seriam então
auferidos diariamente R$ 60,00. Em um ano, considerando-se que o queijo é comumente produzido
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Nesse sistema, a ordenha das vacas não tem por finalidade apenas a produção de
queijo, constituindo-se em prática de manejo do gado, visando a amansá-lo. Durante os
longos períodos em que o gado é deslocado para as áreas de ‘recosta’, permanece
distante do sítio e, desse modo, deixa de conviver com a presença humana. Tornando-se
xucro, gado ‘alçado’, os animais ofereceriam resistência à captura e manejo. Daí a
importância da ordenha das vacas que, fornecendo a matéria-prima para a produção do
Queijo Serrano – forma encontrada para armazenar e posteriormente comercializar o
leite produzido –, possibilita o amansamento do gado.
Na ordenha, manual, o trabalho começa bem cedo, por volta das cinco horas da
manhã, quando as vacas chegam à sede do sítio em busca de suas crias. Os terneiros
haviam sido apartados delas na véspera, à tarde. Enquanto a ‘gurizada’, ou o pai, recolhe
as vacas, a dona da casa prepara o ‘goles’, o café puro e forte que será acrescido ao leite
especialmente tirado para, no início da ordenha, produzir o ‘camargo’, que terminará de
despertar a todos os membros da família, reunidos no galpão para a realização da
ordenha. Após a ordenha, os homens encarregam-se do manejo do gado, a lida
campeira, enquanto que as mulheres dedicam-se à produção do queijo.
apenas nos meses de verão (180 dias), teríamos uma renda bruta anual proveniente do queijo de R$
10.800,00.
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O queijo de final de semana
As pessoas que hoje vivem e trabalham nos campos da região estudada, contam
que, antigamente, não se produzia queijo aos domingos. O domingo era, então,
considerado dia sagrado, e em dia sagrado não se trabalha: é pecado.
À época em que as relações de trabalho no campo não eram ainda reguladas pela
legislação trabalhista, o queijo de final de semana, permeado pelas relações de
reciprocidade e de hierarquia entre proprietários de terra – em um período que antecedeu
as sucessivas partilhas por herança, as propriedades eram maiores – e agregados, seria
concedido aos últimos, como pagamento pelo trabalho, mas também como favor.
Mais tarde, entre muitos pecuaristas familiares – mas não em todas as famílias –,
a renda resultante da comercialização do queijo de final de semana também teria
destinação diferenciada daquela auferida com a venda do queijo produzido nos outros
dias, porém de um modo diferente daquele que refletia a hierarquia entre proprietários
de terra e agregados, anteriormente descrito. O queijo de final de semana será, aí,
permeado por outro tipo de relações hierárquicas, as relações sociais de gênero. Ainda
que sejam as mulheres que, na grande maioria dos casos, produzem o queijo nos sete
dias da semana, tão somente o dinheiro resultante da venda do queijo produzido no
domingo – via de regra marcado, para distinguir-se dos demais – ficará sob seu controle.
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Já mencionamos que o gado ali tradicionalmente empregado é obtido a partir de
cruzamento de raças de corte, animais rústicos, de baixa produtividade leiteira –
aproximadamente cinco litros diários por vaca. Observamos que algumas famílias
possuem, também, alguns animais de raças leiteiras (Holandesa e Jersey), que, se bem
apresentam maior produtividade leiteira, demandam maior atenção com a alimentação e
exigem duas ordenhas diárias.
O que mais agrada da vida aqui fora é que eu sou livre. Se eu quiser trabalhar mais
cedo, mais tarde, ou se eu não quiser trabalhar, eu sou dono, sou patrão. Aí eu tenho
mais liberdade. Isso faz diferença para não mudar o sistema em ter o gado de corte,
tirar o leite do gado de corte. Porque vaca de leite, tem que tirar o leite todos dias, de
manhã e de tarde. Aí tem o rodeio, tem a lida campeira, e aí não posso ir. Trabalhar
com o gado de corte me influi mais, porque eu acho que tirar leite duas vezes por dia é
uma prisão. Essa vaca [leiteira]... eu sempre disse, sempre disse e continuo dizendo,
não me serve esse gado para mim, porque se eu quiser sair na minha festa, ou agora,
como eu precisei sair, eu solto os terneiro, não estou preocupado.
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Referências
BÉRARD, Laurence; MARCHENAY, Philippe. Le vivant, le culturel et le marchand:
les produits de terroir. Vives campagnes: le patrimoine rural, projet de société.
Autrement, Paris, 194, p.191-216, 2000.
BRIGHTWELL, Maria das Graças; NODARI, Eunice Sueli; KLUG, João. Saberes e
sabores de Praia Grande: práticas alimentares, memória e história. Florianópolis: Ed.
UFSC, 2005.
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SGARBI, Jaqueline; VERAS, Melissa Mechelotti. Tradição e desenvolvimento nos
Campos de Cima da Serra. In: SANTOS, Lucila Maria Sgarbi; BARROSO, Vera Lucia
Maciel (Org.). Bom Jesus na rota do tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre: EST,
2004.