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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

MINTER UNOCHAPECO/UFSC
DISCIPLINA: DIREITO E ECOLOGIA POLÍTICA
PROFESSOR ROGÉRIO PORTANOVA

Eduardo Sens dos Santos


30.10.2001

TERRA-PÁTRIA – EDGAR MORIN

A história é boêmia e jamais conheceu leis – p. 147

Todas as grandes transformações ou criações foram


impensáveis antes de se terem produzido – p. 188

A Terra é a placenta da humanidade – p. 56

Cada ser humano é um cosmos – p. 62

Existem três tempos: o presente do passado, o presente


do presente e o presente do futuro – p. 116
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MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 3. ed. Porto Alegre :


Sulina, 2000.

Um pensador chamado Edgar Morin

Segundo o apresentador, Morin sugere que só é intelectual aquele que trata de


maneira interdisciplinar e não especializada das questões humanas, deixando de lado
os chavões acadêmicos.
Como o conhecimento não passa de uma percepção da realidade, trabalhada
pelos sentidos humanos, não se pode ter uma noção absoluta da realidade. Tudo é
incerto.
“Intelectual, sugere, é quem através do ensaio, do texto de revista ou do artigo
de jornal, “de maneira não-especializada”, mas com riqueza de informação, trata das
grandes questões humanas” (p. 11).
Edgar Morin busca destruir as certezas. Para ele, “nossas certezas não são
eternas. Nenhuma teoria científica [...] está segura de ter certeza absoluta” (p. 11).
A apresentação insere a informação de que “leis estatísticas gerais” só
existem em “sistemas fechados”. Todavia, não há contexto suficiente para averiguar
o conteúdo da afirmação. Será que os princípios são as leis gerais? Será que os
princípios só existem em sistema fechados?
“Terra-Pátria é o livro fundamental para o exame do fenômeno nacionalista
neste final de século” (p. 11).

Prólogo – a história da história


A história é feita de surgimento, crescimento, multiplicação e luta entre
estados. Conquistas, invasões, escravizações, mas também resistência, revolta,
insurreição.
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Um dado importante: “Somente persistiram, durante milênios, e a despeito de


invasões e mudanças de dinastias, dois núcleos estáveis de civilização, o indiano e
sobretudo o chinês” (p. 17). Por que será? Qual a força têm para terem se mantido
durante tanto tempo? Mais adiante o autor lembra que as “técnicas” para alcançar o
conhecimento na Europa foram importadas do oriente (p. 19).
É necessária uma “história multidimensional” e individualista
(antropológica), que concentre tudo o que gira ao redor do homem, “seus
ingredientes de ruído e de furor, de desordem e de morte” (p. 17).
A dúvida do autor é: podemos sair dessa História? Essa aventura é nosso
único devir?

A era planetária
Morin chama de era planetária o período da evolução humana no qual as
interações entre o velho e o novo mundo se realizam por todo o globo. Percebe que
esse período se desenvolve mediante muita violência e destruição, além da
“exploração feroz das Américas e da África” (p. 24). Esta seria a Idade de Ferro
planetária, na qual ainda estamos.
Ocidentaliza-se o mundo, posteriormente, pois o modelo de Estado-nação
criado pelos europeus vem a ser a forma que se encontra para fugir da dominação.
Da mesma forma, as idéias se mundializam, mas os povos não ocidentais
continuam sendo considerados atrasados. Mesmo com a teoria evolucionista de
Darwin, que definiu serem todos os homens descendentes do mesmo primata, o
preconceito ocidental encontrou uma saída: a compartimentalização da espécie
humana, em raças hierarquicamente superiores e inferiores.
A guerra também se mundializa. Os fatores determinantes seriam as
interações entre os grandes imperialismos europeus e os pequenos nacionalismos. A
morte de um duque gera uma guerra geral entre imperialismos mundiais (I Guerra
Mundial); a crise na bolsa de Nova Iorque gera danos econômicos à Alemanha já
massacrada pelo tratado de Versalhes.A violência é sintoma de outras violências.
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Por exemplo, a crise de 1929 e o nacionalismo alemão, detonadores o


primeiro de angústias e sofrimentos e o segundo do desejo de vinganças, fazem com
que Hitler chegue ao poder a ataque os judeus.
A economia também se mundializa, pois as partes são dependentes do todo e
vice-versa. O todo sofre as perturbações que afetam as partes.
Para Morin, os problemas do terceiro mundo são sentidos em todo o mundo
(crítica) e a visão ocidentalocêntrica dá lugar ao reconhecimento das “habilidades”
das sociedades não-ocidentais. (Questão interessante: será que este reconhecimento
das habilidades, da riqueza e da diversidade das culturas do mundo não é meramente
o reconhecimento de um destino turístico?).
Também percebe a mundialização da “civilização”, mas se refere à
civilização ocidental. Como benefício, diz que se produzem hábitos ou costumes
mundiais e melhora a compreensão entre os povos.
Morin diz que não há um evento que não chegue aos lares de todo o mundo
através da TV e da CNN. “Da mesma forma que cada ponto de um holograma
contém a informação do todo de que faz parte, doravante cada indivíduo também
recebe ou consome as informações e as substâncias vindas de todo o universo” (p.
35). A ingenuidade deste pensamento é evidente, já que há milhões de indivíduos
sem acesso a TV ou a qualquer espécie de cultura. Diaristas no interior de fazendas
de cana, trabalhadores braças de grandes cidades, gente que muitas vezes nem tempo
tem para a televisão. Talvez o que o autor queira dizer seja: cada um, por mais
distante que esteja, sofre os efeitos do que ocorre no universo, mesmo não estando
consciente disso: “[...] cada um de nós, rico ou pobre, traz em si, sem saber, o
planeta inteiro” (p. 36).
A humanidade, para Morin, é um todo interligado e requer a mundialização,
de modo a evitar provincialismos. O desenvolvimento desta mundialização tem
aspectos positivos e negativos: ao passo que destroi culturas, produz hábitos e
costumes comuns através das fronteiras.
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A humanidade é a unidade dos seres humanos, não apenas física ou biológica,


mas histórica: a era planetária (p. 42), ou seja, a era em que a história pertence a
todos e influencia a todos, independentemente do local em que estejam.

A carteira de identidade terrestre


Nossa filosofia “esterilizou o espanto do qual nasceu”, porque não se tem
mais aquela curiosidade por todas as coisas do mundo, como acontecia com os
gregos. Ou até se tem, mas a academia acaba com isso, compartimentando o
conhecimento. Não nos permite conhecer nossa própria humanidade, nossa própria
essência. Desaprendemos a interagir com o mundo. Aristóteles na universidade?
Impossível!
O homem está ligado a tudo que ocorre no mudo, dentro e fora da atmosfera.
A Terra é só a placenta da vida, a Terra é a placenta da humanidade (p. 56).
Reconhece-se que o homem possui um “duplo estatuto” (p. 59), dependente,
por um lado, do elemento biológico, do elemento físico e do elemento cósmico e,
por outro lado, do elemento cultural. É preciso no entanto unir os conhecimentos
acerca da natureza do homem, principalmente no aspecto biológico, psíquico e
cultural, sem compartimentalizar cada ramo do conhecimento.
O Homo sapiens guarda uma “unidade antropológica” com todos os
representantes. Todos riem, choram e têm o cérebro organizado de maneira
semelhante.
Para o autor, o desenvolvimento cada vez maior da compaixão e do
humanismo nos levará à superação das “cegueiras etnocêntricas” e a tratar
respeitosamente os outros homens. E tudo isso acontecerá quando, através da
desespecialização das ciências, percebermos a identidade biológica, econômica,
sociológica, histórica, psíquica e cultural do ser humano.
A comunicação entre as sociedades espalhadas sobre o globo cria o que o
autor chama de “pátria terrestre”, da qual cada um terá sua carteira de identidade
terrestre.
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A agonia planetária
O desregramento do sistema econômico tem sua causa na falta de estudo da
economia em conjunto com outras ciências não-econômicas. Por isso ela é alheia
aos acontecimentos da sociedade (aumentos de preço e inflação). Não sabem os
economistas os porquês dos problemas que a sociedade sofre. “É a relação com o
não-econômico que falta à ciência econômica” (p. 70).
A sociedade também acaba influenciada pela economia à medida que passa a
monetarizar tudo. Ocorre uma erosão de valores e tudo passa a ser quantificado em
dinheiro. Para Morin, uma consequência desta erosão é “o quase desaparecimento
do não-monetário, que ocasiona a erosão de qualquer outro valor que não o atrativo
do lucro, o interesse financeiro”. É interessante pensar aqui na geração pós-google,
em que o não-monetário volta à importância (lembrar das ferramentas da Google,
todas gratuitas e melhores que as da concorrência, e todas atualizadas pelos próprios
usuários).
Há também outros problemas interligados, como a explosão demográfica, o
desregramento ecológico e a crise do desenvolvimento.
Problemas de segunda evidência também são importantes para entender o
desregramento mundial. A falta de coincidência entre a nação, a etnia e o Estado
causa sérios riscos, pois o Estado é o berço protetor dos adultos, que têm seus
relacionamentos baseados na etnia, na família, no clã, na tribo (p. 76). “A nação
restaura no adulto a relação infantil no seio do lar protetor”. A nação é a mãe do
adulto. Os Estados que não guardam correspondência com suas etnias
invariavelmente expulsam as minorias e acabam permitindo a instauração de
conflitos.
Morin parece sugerir então a criação de Uniões entre Estados para superar a
crise ecológica e outros problemas planetários, como o tráfico de drogas, ecologia,
êxodo rural (p. 77). Isso também evita a histeria nacionalista que favorece a
chegada de ditaduras. Quando a economia vai mal, os nacionalismos ganham força.
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As pessoas, com a crise universal do futuro, perdem sua autonomia moral e se


concentram na exaltação estética e no niilismo.
A origem dos fundamentalismos é uma busca pelo passado, ante a crise do
futuro, dada a miserabilidade do presente. Por isso é que o progresso não é uma
certeza histórica.
A tragédia do desenvolvimento leva à exaltação do consumismo. Como a
busca da felicidade passa a ser a busca pelo dinheiro, as famílias trocam suas
culturas de subsistência que até então as alimentava e adotam as monoculturas de
produtos de necessidade oscilante (p. 84).
Quando decai a importância desses produtos ocorre o êxodo rural e as cidades
ficam abarrotadas de miseráveis. Por isso se diz que o desenvolvimento é
desintegrador.
Morin propõe que se lute pela salvação da diversidade cultural e, ao mesmo
tempo, pela cultura planetária comum. Reconhece como males da civilização a
obsessão pela forma física e pelo consumo, frisando que é na adolescência que se
concentram, dada a sua vulnerabilidade, os males da sociedade. Aí é que se
potencializam. “A bibelomania se conjuga com a bugigangomania”. “O turismo é
menos a descoberta do outro, a relação física com o planeta, do que um trajeto
sonambúlico guiado num mundo semifantasma de folclores e monumentos” (p. 89).
O desenvolvimento desregulado da tecnociência faz com que o homem se
hiperespecialize em detrimento de uma cultura ou competência geral. A lógica das
máquinas artificiais invade o cotidiano, formando a mcdonaldização da sociedade e
trazendo o pensamento mecânico e parcelar; o homem não indaga mais da própria
existência (p. 94).
* Quais serão as características da googleização da sociedade e da cultura?
Tudo isso dificulta a ocorrência de uma grande mutação econômica, técnica e
social, pois os homens deixam de pensar o mundo como uma totalidade. Desde
Marx ninguém mais soube pensar complexamente e criar algo novo e progredido.
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Após o colapso do marxismo o pensamento político é incapaz de praticar um


pensamento complexo e de considerar um grande projeto (p. 97).
Em suma, o problema maior é a “aventura descontrolada da tecnociência” (p.
98). A busca por tecnicizar a ciência, especializando-a e compartimentando-a. O
caminho a trilhar é aquele que encontrar um freio ao avanço técnico sobre as
culturas, para evitar a implosão da própria cultura. É preciso uma parada para
pensar, para respirar, para “preparar a mutação” (p. 100).

Nossas finalidades terrestres


O ser humano tem duas finalidades na Terra. A primeira é a de preservá-la e
conservar a vida e suas manifestações culturais. A segunda é a de criar condições
para a realização do homem, como humanidade, numa comunidade de ações.
O desenvolvimento deve ser concebido como o desenvolvimento intelectual,
psíquico, cultural e social, não apenas econômico. A acepção inicial que teve a
doutrina socialista abarcava esta idéia. E quanto maior desenvolvimento econômico,
maior o subdesenvolvimento moral, psíquico e cultural (p. 106).
A conclusão é a de que o problema do subdesenvolvimento psíquico é o
problema da hominização. “O verdadeiro desenvolvimento é o desenvolvimento
humano” (p. 108). A finalidade do desenvolvimento, em última instância, é a
dignidade humana, é o viver verdadeiramente e o viver melhor, sem ser explorado, o
que pressupõe a ética do desenvolvimento.
Observa Morin o que chama de fenômeno chave da era planetária: “o
subdesenvolvimento [miséria mental, escassez de amor] dos desenvolvidos aumenta
precisamente com seu desenvolvimento tecno-econômico” (p. 110 e p. 112).
É preciso também reencontrar a relação entre presente, passado e futuro, pois
a crise do futuro (falta de perspectiva) cria a hipertrofia do presente (viver o agora),
fazendo o ser humano regredir ao passado. Daí os fundamentalismos. A restauração
do futuro é muito importante.
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No entanto, não se deve querer o melhor dos mundos, mas apenas um mundo
melhor – deve-se caminhar aos poucos.
Um passo para isso é a luta por uma democracia civilizadora, na qual não
haja uma imposição da maioria à minoria, mas pela qual se tenha a possibilidade de
expressar idéias desviantes e heréticas; a minoria não prevalece, mas tem vez.
Para esse objetivo é prejudicial o desenvolvimento das tecnoburocracias, que
tendem a excluir dos meios democráticos decisões que caberiam, num sistema
democrático, ao povo ou aos parlamentares (p. 120).
É preciso também “federalizar a Terra”, reconhecendo a ela a característica
de mátria e pátria do homem – daí o título do livro: Terra-Pátria. Deve-se buscar
uma associação mais ampla que o Estado-nação. A luta é pela unidade da
diversidade, ou seja, pela preservação das multiplicidades culturais, a “mestiçagem
generalizada” e diversificada (p. 126).
Em suma, é preciso ser cosmopolita. “É somente quando nos tornarmos de
fato cidadãos do mundo, isto é, cosmopolitas, que seremos vigilantes e respeitosos
das heranças culturais, bem como compreensivos das necessidades de retorno às
fontes” (p. 127).

O impossível realismo
A realidade é incerta porque é formada de múltiplas incertezas e o que
comumente se diz ser realidade comporta dois elementos variáveis: o elemento
factual e o elemento temporal.
Pelo elemento temporal percebe-se que aquilo que era verdade ontem já não é
mais hoje, e também não será a realidade amanhã.
O elemento factual remete à necessidade de se conhecerem os fatos para
definir a realidade; mas os fatos, além de não estarem sempre bem visíveis, ainda
têm que passar por uma interpretação. Essa interpretação, contudo, requer o
conhecimento de complexas e variadas realidades, porque o tradicional pensamento
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reduzido separa os diferentes aspectos da realidade e não permite um entendimento


completo.
Para saber a realidade do futuro é preciso apostar, porque, pelo princípio da
ecologia da ação, uma ação começa a se afastar da idéia que a criou assim que entra
no jogo das interações do meio. Daí a metáfora do efeito borboleta, pela qual uma
batida de asas na Austrália pode causar terremotos nos EUA.
Nessa perspectiva, ficam prejudicadas as possibilidades de aceitar que os fins
justifiquem os meios, porque os meios ignóbeis podem prejudicar os fins (já que não
estão deles afastados) ou então tomar rumo próprio e se autofinalizar. É preciso
apostar que determinados meios levarão a um fim, reconhecendo os riscos.
Por isso, não basta que a idéia vá ao real, é preciso que o real vá à idéia,
formando uma multidimensionalidade, um realismo complexo, que compreende a
incerteza do real.

A antropolítica
Se a política se incumbe do devir do homem no mundo, o desenvolvimento,
que também significa a incumbência política do devir humano, deve ser tratado com
multidisciplinariedade, multidimensionalidade. “A política deve tratar da
multidimensionalidade dos problemas humanos” (p. 143).
Há duas espécies de política: a totalizante, que deveria encontrar boas
soluções para tudo; e a totalitária, que quer controlar tudo, mas por não conseguir
tenta se impor pela força.
O certo é que uma política, sozinha, não pode assumir nem resolver todos os
problemas.
Mas o problema é levar a uma política fragmentada, que recorra a experts que
trabalham de forma compartimentada. Por exemplo, deixa-se a política econômica
de um país inteiro nas mãos de um economista que nunca foi político. O resultado é
um pacote econômico sem respaldo público e sem eficácia. Isso tudo faz com que a
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política se “afaste das grandes idéias” e tome como “prioridades objetivos


econômicos” (p. 144).
A grande dificuldade é ser multidimensional sem ser totalitária ou
fragmentada. Deve integrar a administração, a técnica, o econômico, sem se
despolitizar (p. 145). O ideal é que a política assuma problemas fundamentais
globais. A política, todavia, não pode pretender ser soberana: “a política que envolve
tudo deve ser ela própria envolvida pelo todo que ela envolve” (p. 146).
A consequência do alcance dessa política é a chamada política de caráter
planetário e antropológico, que permita a tomada de consciência global.

A complexidade na base antropológica


O que se pode esperar?
Dentro dessa visão complexa de política, não se pode pretender encontrar leis
históricas para o desenvolvimento humano, porque pelo princípio da ecologia da
ação, as conseqüências das ações só obedecem às próprias ações por pouco tempo,
quando obedecem. “A história é boêmia e jamais conheceu leis” (p. 147).
Para o autor, não se pode permitir que “as ciências físicas, biológicas e
humanas deem a última palavra no saber antropobio-cosmológico” (p. 147). O
pensamento complexo tem que assumir sua posição e “ligar o que estava separado,
ao mesmo tempo que mantém as distinções e diferenças”, porque “a antropologia
complexa é capaz de iluminar a antropolítica” (p. 147).

Complexidade no comando: ecologia da política e estratégia


Princípio da ecologia da política: “A política não tem soberania sobre a
sociedade e sobre a natureza; ela se desenvolve de maneira autônoma/dependente
num ecossistema social, ele próprio situado num ecossistema natural, e as
consequências de suas ações, que entram imediatamente no jogo das inter-retro-
ações do conjunto social e natural, só obedecem por pouco tempo e raramente à
intenção ou à vontade de seus atores. Isto é ainda mais verdadeiro na era planetária,
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na qual a interdependência generalizada faz que ações locais e singulares tenham


consequências gerais, longínquas e inesperadas. O princípio da ecologia da ação
política deve portanto estar presente sem descanso no pensamento antropolítico e no
pensamento planetário” (p. 148).
Resumindo: a política é autônoma em relação à sociedade. As consequências
da política são imprevisíveis. As ações só inicialmente obedecem à vontade dos
atores. A interdependência generalizada da era planetária torna isso mais evidente.
A solução para esse caos é a estratégia de condução permanente, que leva em
conta os diversos roteiros possíveis no desenrolar de uma ação. O problema se torna
então uma questão de escolhas: prudência com audácia. A prudência deve ser usada
mais, mas a audácia é boa para “sacudir inércias” (p. 149). É também preciso
“promover o princípio moral segundo o qual os meios devem estar de acordo com as
finalidades”, mas “meios maus [por vezes] tornam-se indispensáveis para salvar do
pior”.
* Eis aqui talvez uma contradição no texto do autor: se a política obedece ao
princípio da ecologia da ação, não há como prever “roteiros possíveis”, não há como
escolher entre uma e outra. Não há como minimizar riscos se lutamos contra um
inimigo invisível e totalmente imprevisível: a falta de obediência das consequências
às ações iniciais. E é no mínimo estúpido afirmar que os meios devem estar de
acordo com os fins, mas que “em casos limites” os meios podem ser maus... A
subjetividade vai evidentemente tornar a exceção (casos limites) em regra.

Entre os princípios estratégicos para lidar com a ecologia da política também


podemos notar o da solidariedade e da globalidade, que determina que os problemas
de nível planetário sejam trabalhados globalmente; e o da subsidiariedade, que
manda tratar problemas locais nos locais mesmo.
O novo motor da história, por isso, deve ser o da associação (norma 1, p. 150)
e da solidarização, pelo qual os países respeitem etnias, mas não percam contato
para alcançar conexões econômicas e culturais sadias. Outra norma é a da
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“universalidade concreta”, segundo a qual “o interesse geral não é nem a soma nem
a negação dos interesses particulares” (p. 151).
Em suma, a estratégia da política complexa deve ter consciência das
interações entre os setores e os problemas tratando tudo de forma completa e
interagindo entre os espaços. “Necessita a consciência das interações entre os setores
e os problemas e não pode tratar isoladamente esses problemas e setores” (p. 151).
Deve-se agir não sobre causas isoladas, mas sobre interações entre os problemas que
levam à causa. Exemplo do pesticida: ataca as pragas mas também a qualidade do
alimento. É preciso um tratamento ecológico. Assim ocorre com a política, que
precisa de uma ecologia entre suas causas e efeitos.
Metáfora do motorista no trânsito: às vezes é preciso até pegar uma
contramão para chegar ao objetivo.
Mas essa estratégia política deve operar em três tempos. Os três tempos
devem ser tratados conjuntamente, de modo a permitir não ocorrer descontinuidades
entre cada período (curto, médio e longo prazo). O mais importante é o imediato e o
presente, que requer uma política pragmática do menor mal, às situações de
urgência. Se o doente está muito mal, devem ser tratados os sintomas primeiro, e
depois as causas. A multiplicação do tratamento dos sintomas acaba com o foco nas
causas.
A política de médio prazo tem por objetivo as finalidades terrestres, ou seja, o
associativismo e o “interesse geral”. É uma política de transição.
A política de longo prazo busca as ideias guias, a utopia, as ideias farois.
Há também três espaços, que normalmente não são considerados pela política
tradicional: o espaço das relações pessoais, das relações étnicas, e das relações
planetárias. A antropolítica deve considerar essas três escalas homogeneamente.

A reforma de pensamento
O maior problema do pensamento é o dogma de que quanto mais
especializado e abstrato, melhor. Mas o conhecimento sempre deve ser
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contextualizado. É preciso acabar com aquele dogma. A economia, por exemplo, se


abstraiu de condições sociológicas, políticas e históricas, sendo hoje humanamente
atrasada.
Obviamente, é impossível conhecer a fundo tudo. Conhecer os problemas-
chave e contextualizá-los é que é importante.
Aquele pensamento avulso é eficaz em setores do conhecimento não
complexos, como o das máquinas artificiais; mas a lógica desse sistema acaba não
permitindo considerações afetivas, subjetivas e criadoras. O resultado é um círculo
vicioso, pois os que se dizem cientistas não reconhecem aos não-cientistas o direito
de pensar e elaborar teorias, que só neles encontram aquela subjetividade e
afetividade.
A verdadeira racionalidade trabalha no campo empírico e considera
racionalmente mitos, afetos, amores e mágoas.
A síntese do pensamento complexo requer um pensamento radical (que vá à
raiz dos problemas); um pensamento multidimensional, organizador e sistêmico, que
reconheça a relação todo-partes-todo; um pensamento ecologizado, que considere a
relação do objeto de estudo com seu ambiente cultural, social, econômico, político e
natural; um pensamento que conceba a ecologia de ação e a dialética da ação, e que
estrategicamente permita modificar e até mesmo anular a ação empreendida; e um
pensamento que reconheça suas deficiências e negocie com a incerteza.
Em suma, o pensamento complexo parte da premissa de que é impossível
conhecer o todo sem conhecer as partes, e é impossível conhecer as partes sem
conhecer o todo.

O evangelho da perdição
A aventura desconhecida é a consciência da finitude do ser humano, a
consciência da inconsciência humana.
O conceito de itinerância representa um constante retorno ao presente, ao
passado e ao futuro, revalorizando momentos poéticos, extáticos e autênticos.
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O evangelho é a boa nova de que não há salvação se não cultivarmos o jardim


terrestre. O problema é que a esperança de salvação em vida ou além da vida impede
que se observe e que se acredite na perdição. Aliás, a própria idéia de salvação é um
recalque da consciência da perdição.
O apelo à fraternidade é uma das ferramentas de cultivo do jardim terrestre e
diz respeito diretamente à quebra de nossas normas e tabus.
Daí poderá o homem viver e habitar a Terra de modo poético, mas sem deixar
de lado a prosa, que é o lado funcional da literatura.
O evangelho da perdição é, portanto, uma religião, no sentido de re-ligar o
homem ao homem e os problemas uns aos outros.
Só que é uma religião com os objetivos racionais de salvar o planeta, civilizar
a Terra, realizar a unidade humana e salvaguardar a diversidade.
“O reconhecimento da Terra-Pátria conflui com a religião dos mortais
perdidos, ou melhor, desemboca nessa religião da perdição. Não há portanto
salvação se a palavra significa escapar à perdição. Mas se salvação significar evitar
o pior, encontrar o melhor possível, então nossa salvação pessoal está na
consciência, no amor e na fraternidade, nossa salvação coletiva é evitar o desastre de
uma morte prematura da humanidade e fazer da Terra, perdida no cosmos, nosso
‘porto de salvação’” (p. 182)

Conclusão – Terra-Pátria
São várias as tomadas de consciência que se complementam, entre elas a
tomada de consciência da unidade e da diversidade da biosfera, que é a consciência
ecológica; a da unidade e diversidade do homem, que é a consciência antropológica;
e a tomada de consciência do dasein, do estar no mundo sem saber porquê.
É preciso fundar a solidariedade humana centrada na consciência da perdição,
na consciência dos problemas comuns.
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Não se trata de o homem dominar a Terra, pilotando-a. É preciso agora cuidar


dela, co-pilotando-a, porque a Terra tem poderes não reguláveis ou controláveis pelo
homem.
A civilização produz a insatisfação com as satisfações e, por isso mesmo, não
traz a salvação.
Os princípios da esperança na desesperança apontam principalmente a que
todas as grandes criações ou transformações foram inconcebíveis antes de
acontecerem. Tudo que aconteceu de bom na história foi a priori improvável.
Também aponta para o princípio do salvamento a tomada de consciência, pois só se
busca a salvação diante do perigo.
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Aristóteles na universidade...
Por Eduardo Sens dos Santos, novembro de 2001

— Aristóteles passou no vestibular!

— O filho da Maria Alice?

— Isso, da Maria Alice da padaria!

— Coitado, nunca vai ser ninguém na vida...

Essa infelizmente seria a conclusão mais acertada que alguém poderia tirar da
assertiva do primeiro compadre.

Coitado do Aristóteles, tinha tudo para ser alguém na vida: um filósofo quem sabe;
ou então ser médico; se não o tivessem obrigado a isso poderia virar botânico, ou
biólogo; talvez continuasse a se dedicar à poesia; ou então mudasse o rumo e
passasse a se concentrar em matemática, astronomia; imaginem ele veterinário,
tinha tanto jeito para isso... poderia escrever sobre política ou ética, sobre
veterinária e anatomia animal, imaginem...

Mas Aristóteles não vai ser nada disso. Prestou vestibular para aquilo que mais o
agradava com seus dezessete anos e vai seguir a vida inteira fazendo a mesma coisa,
mesmo que sua paciência se esgote, ou que ele mesmo esgote o assunto, ou que o
assunto o esgote...

— Por que isso, compadre?

Porque ele foi obrigado a contrariar sua natureza inteligente e ilimitada. Forçaram-
no a voltar seus olhos, os radiantes olhos que todo garoto de dezessete anos tem
nessa idade quando descobre algo novo, para um só dos quadros do museu, para
um só dos livros da biblioteca. O crime é tão violento quando o do malandro que
mostra cinquenta pirulitos para uma criança e diz a ela que escolha apenas um
sabor pelo resto da vida, mesmo sem conhecer esse sabor...

Mas, e se Aristóteles não tivesse vivido em nosso tempo? Digamos que tivesse
nascido há muitos anos, talvez até mesmo antes de Cristo? O que teria acontecido a
ele? Teria sido alguém na vida?

Provavelmente alguém com a curiosidade de Aristóteles, com sua perspicácia e


determinação, teria feito o que bem quisesse na vida; teria aproveitado ao máximo
todos os momentos fazendo aquilo que gostava e, como fazia o que gostava, cada
vez mais o fazia melhor, e assim melhorava tudo até ser definitivamente o melhor
entre os melhores no assunto.
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Digamos que aos dezesseis anos gostasse de, por exemplo, medicina: escreveria aos
vinte um tratado; e se fosse biologia: pesquisaria e catalogaria milhares de espécies;
política ou ética: talvez escrevesse os textos mais importantes sobre o assunto;
digamos, quem sabe, literatura: não chegaria a ser o melhor, mas sua contribuição
para o mundo seria importante; e na astronomia: andaria a passos largos; e se se
metesse a falar de lógica, matemática ou, podemos pensar em algo completamente
distinto como... veterinária: deixaria, mesmo assim, suas marcas para o resto do
mundo.

Mas, desafortunadamente, não foi esta a sina de Aristóteles. Viu-se obrigado a


matricular-se numa faculdade qualquer e a esquecer tudo o que não dissesse
respeito ao novo curso. Até a forma com que se expressava teve de mudar: fale de
acordo com a gramática; não escreva fora dos padrões científicos; não dê idéias
suas, apenas cite autores importantes, de preferência europeus; limite-se ao
conteúdo da disciplina...

Aí, quando quis estudar anatomia e escrever um tratado, teve que ficar seis anos
num curso maçante cheio de memorizações para dizerem que sabia do que falava;
depois, precisou de mais três anos de mestrado e cinco de doutorado para escrever
um tratado, que não foi aceito porque não estava nos padrões científicos...

Lá se foram quatorze anos. Resolveu estudar biologia, por gostar e sentir-se à


vontade com os animais. Precisou de cinco anos para dizerem que, finalmente,
poderia observar animais e estudá-los como pretendia.

Entediado, resolveu estudar a política das cidades próximas à sua e escrever um


livro. Informou-se sobre como levar adiante esse trabalho e, novamente, lá se foi
para a faculdade de ciências sociais estudar tudo o que não lhe interessava até
chegar à ciência política. Mais cinco anos e pensou que agora estaria apto a
escrever o que desejava.

Que nada, ainda não tinha conseguido o tal reconhecimento público e precisou
escrever diversas outras pequenas obras, sobre assuntos que não lhe interessavam
tanto para, somente então, tentar lançar o grande livro.

Agora, contudo, o trabalho passava do limite de páginas estabelecido pela banca de


doutorado para aprovação... Com a astronomia, com a veterinária, com a
matemática e a lógica, com a literatura e a poesia, com tudo foi a mesma história:
não aceitavam o que escrevia porque não se encaixava nos padrões ou não tinha
ainda o “perfil” para tratar do assunto.

Essa mania de dividir os assuntos, de compartimentalizar e de ver o mundo do


modo mais específico possível acabou com Aristóteles, que agora não é mais
ninguém. Aliás, Aristóteles agora se chama joão. Isso mesmo, joão assim com letra
minúscula, de tão minúsculo que é o tal. Não vai escrever nada de útil ao mundo,
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não vai descobrir nada de novo nem desafiar regra alguma. Vai ser somente joão, o
aluno de número 4.563 a ter passado pela faculdade...

É evidente que não podemos transportar a figura de Aristóteles para os dias de


hoje, assim como não podemos exigir da educação a liberdade de tempos remotos.
Mas, da mesma forma, não é possível manter o exagero de tornar os conteúdos das
disciplinas herméticos em si mesmos, como se tem feito nas últimas décadas; não é
possível colocar tantos obstáculos à criatividade e à curiosidade; não se pode
acreditar na seriedade de um sistema que se propõe a estimular o estudo de temas
cada vez mais específicos sem confrontá-los com o âmbito mais geral do
conhecimento de forma multidisciplinar.

Permitamos ao menino do museu e da biblioteca todo o tempo do mundo para se


deliciar o quanto quiser com seus quadros e livros; permitamos ao garoto a escolha
de qualquer pirulito e, caso não goste do sabor do primeiro, que tente o segundo e o
terceiro e o quarto, e assim por diante. Caminhemos para o futuro e não para o
passado. Abramos, enfim, os olhos de joão e façamos dele um Aristóteles!

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