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vintém

companhia do latão
Em memória

de Augusto Boal
e Reinaldo Maia

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A revista Vintém é uma entre as múltiplas iniciativas da Companhia do Latão, um dos
mais ativos grupos de teatro no cenário brasileiro das artes cênicas.
Como todas as companhias do ramo, ela também apresenta espetáculos, muitos deles
criados pelos seus integrantes. O que a diferencia é sua determinação de estimular sem
tréguas uma reflexão crítica sobre a sociedade, sobre a realidade em que vivemos. Para
isso realiza oficinas, debates, organiza mesas-redondas, trata de estimular o intercâmbio
de experiência e produz material pedagógico em diversos formatos e suportes. Busca a
convergência entre linguagens e meios de expressão, concentrando suas atenções em
públicos que normalmente não têm acesso ao teatro. E faz isso tudo perambulando pelo
Brasil, numa intensa programação itinerante.
Ao completar dez anos, a Companhia do Latão foi contemplada pelo Programa Petrobras
Cultural. Parte de sua programação de aniversário é esta edição da revista Vintém, que
tem como um de seus destaques o “Dossiê Augusto Boal”, sobre um dos mais importantes
teóricos e dramaturgos do último meio século no teatro brasileiro.
Maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, a
Petrobras mantém seu firme propósito de ter, em sua política de patrocínio cultural, uma
parte substancial de seu compromisso com o país.
Desde que foi criada, há pouco mais de meio século, a missão primordial da Petrobras é a
de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Defender e valorizar a cultura brasileira com
ações de alcance social, estimulando a reflexão sobre o papel preponderante das artes em
nossa identidade coletiva, é parte dessa missão.
Afinal, um país que não conhece (e se reconhece) na obra de seus artistas jamais será
uma nação desenvolvida.

Petrobras

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EDITORIAL Expediente

Nos dois anos que separam esta da última edição da Vintém, a Edição
Sérgio de Carvalho (Mtb. 23161/SP)
Companhia do Latão publicou três livros sobre seu trabalho teatral:
Co-edição
Companhia do Latão 7 peças (Cosacnaify, 2008), com a melhor Lia Urbini

produção dramatúrgica dos primeiros 10 anos do grupo; Introdução Assistência editorial


Gabriela Rocha Itocazo, Gabriela Villen, Roberta
ao Teatro Dialético (Expressão Popular, 2009), feito de reflexões Carbone.

teóricas sobre a experiência do Latão com o teatro épico-dialético Projeto gráfico e diagramação
Pedro Penafiel
e Atuação crítica (Expressão Popular, 2009), com uma seleção das
Produção
melhores entrevistas publicadas na Vintém. João Pissarra

O mesmo projeto que viabilizou essas publicações permitiu a Imagem da capa


Programa de apresentação de Revolução na América
digitalização de um amplo acervo eletrônico que inclui agora as do Sul, Teatro de Arena (1960)

primeiras sete edições da Vintém, a contar do zero, disponíveis Colaboração nesta edição
Alessandra Perrechil, Celso Frateschi, Diogo Noventa,
através do site www.companhiadolatao.com.br. Eduardo Coutinho, Fabiano Moreira, Felipe Casanova,
Gustavo Motta, Helen Sarapeck e CTO do Rio de
Concluída essa fase, a Companhia do Latão publica a Vintém Janeiro, Helena Albergaria, Iná Camargo Costa, João
Guedes da Fonseca, Luiz Gustavo Cruz, Maria Rita Kehl,
número 07 atenta ao projeto de pesquisa Ópera dos Vivos, uma Maria Silvia Betti, Ney Piacentini, Paulo José, Renata
Pallottini, Rodrigo Antonio, Sérgio Audi, Thales Gomes,
reflexão sobre arte e cultura no Brasil dos anos 60 para cá. Thierry Deronne
Nesta que é a mais coletivizada das edições da Vintém, feita por
Agradecimentos
Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro e
uma equipe de jovens colaboradoras que se associou ao editor Sérgio
Cooperativa Paulista de Teatro
de Carvalho, encontramos os diversos assuntos que interessam ao
Impressão
grupo hoje: cinema, televisão, teatro. A ênfase de todos, entretanto, Provo Gráfica

está na dimensão prática e função social. Quais as possibilidades de Tiragem


1200 exemplares
uma prática artística radical hoje é a questão que se lê da primeira
Contatos da publicação
à última página de uma edição que se fez com a alegria da prática Companhia do Latão
(11) 3814-1905
militante e a tristeza da perda de dois companheiros de combates companhiadolatao@gmail.com
vintem@uol.com.br
teatrais, Augusto Boal e Reinaldo Maia. www.companhiadolatao.com.br

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4  EDITORIAL

índice
Entrevistas
6  Paulo José. Conversa com Helena Albergaria
16  Os sujeitos do capitalismo. Entrevista de Maria Rita Kehl

Modos de Trabalho
20  A prática do documentário, depoimento de Eduardo Coutinho a Diogo Noventa
24  Uma televisão socialista, depoimento de Thierry Deronne a Diogo Noventa

Dossiê Augusto Boal


32  O artista imprescindível, por Gabriela Villen
34  O teatro do pensamento sensível. Palestra de Augusto Boal
40  Nunca termina quando acaba. Entrevista inédita de Augusto Boal
44  Reencontro e despedida, por Renata Pallottini
46  Teatro Jornal primeira edição, por Celso Frateschi
51  Lembranças de Boal, por Iná Camargo
56  Para uma introdução à prática do Teatro do Oprimido, por Sérgio Audi
59  Falando de Disgus, por Helen Sarapeck
61  Notas sobre a prática dialética de Boal, por Sérgio de Carvalho

Memória
66  O trabalho de Piscator e Brecht, por Lia Urbini e Gabriela Rocha Itocazo
68  Reflexões sobre Tambores na Noite, por Brecht, Piscator, Sternberg

Companhia do Latão
76  Companhia do Latão 7 Peças e Introdução ao Teatro Dialético, por Maria Silvia Betti
82  Entre o Céu e a Terra, por Luiz Cruz
85  A cartomante do Latão, por João Guedes da Fonseca
90  Uma oficina sobre a revolução, por Diogo Noventa
92  Fragmentos cênicos da Comuna do Latão, por Gustavo Motta

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Paulo José
Vintém – Bom, Paulo, vou começar com uma pergunta
meio existencial e um pouco ingênua. Nós tivemos, tempos
atrás, contato com um grande estudioso do teatro de Heiner
Müller, o professor Hans-Thies Lehman, e antes de começar
Conversa com Helena Albergaria qualquer coisa, era um alemão muito simpático, ele nos per-
guntou “por que vocês fazem teatro?” Uma pergunta ingê-
A idéia de entrevistar Paulo José veio da profunda nua que nos pegou de calças curtas. Eu quero começar com
admiração por esse ator delicadamente realista e capaz ela: por que você foi fazer teatro e ser ator?
de uma melancolia épica que sempre me impressionou PAULO – Acho que, simplesmente, porque eu era uma
muito. Conheci-o a partir de seu contato com Sérgio criança que gostava de imitar os outros. Eu sempre tive
de Carvalho, na montagem do espetáculo Um homem é muita facilidade nisso. Nunca me senti inibido em imi-
um homem do Grupo Galpão. Nos encontros com Sérgio, tar outras pessoas. Ao contrário, esse mimetismo, que é
e em outros mais informais nos quais estive presente, característico da infância, essa capacidade de recriar a
pude notar o entusiasmo de amador com o qual ele se situação e representá-la fisicamente, nunca deixou de me
relaciona com sua profissão. Esta entrevista, além de animar. Eu e meus irmãos vivíamos num mundo de fanta-
revelar esse entusiasmo incomum, nos dá um rico pa- sia desatadíssima. Minha mãe era pianista e declamadora
norama das transformações culturais do nosso país nas de poesias, o que nos estimulava a lidar com a palavra de
palavras desse extraordinário “faz-tudo” com o qual uma maneira muito solta. E minha mãe já praticava a imi-
compartilhamos a inquietude e o imenso amor por nos- tação muito abertamente, nas declamações. Tudo era mo-
so trabalho1. tivo para que nós transfigurássemos tudo. Eu não descia
a escada da casa da minha avó, eu descia a escadaria do
castelo, como cavaleiro da Távola Redonda do Rei Artur,
1
Paulo José iniciou sua carreira teatral em Porto Alegre, no anos manejando a espada Excalibur contra o meu irmão Luís
1950. Atuou no Teatro de Arena, em São Paulo, no início dos Alberto, que era dos Doze pares de França. Minha família
anos 1960. Foi ator em dezenas de filmes, entre os quais O padre estimulava esse tipo de brincadeira. Chegamos a fazer um
e a moça (1965) e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro. Na te- circo em casa, que tinha palhaço: “Chiquinho, o rei dos
levisão, dirigiu as mini-séries O Tempo e o Vento (1985), Agosto palhaços/ tomou uma injeção no braço/ se a dor for pro-
(1993) e Incidente em Antares (1994). Retomou seu vínculo com funda/ vai tomar injeção na bunda.” E a família inteira ria.
o teatro de grupo ao colaborar com o Grupo Galpão, de Belo Ho- Eu lembro que meu pai me deu de presente um kino, uma
rizonte, nas montagens de O Inspetor Geral (2003) e Um Homem
é um Homem (2005).

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lanterna mágica, espécie de projetor de cinema. Eu tinha PAULO – Pra mim teatro não é uma profissão.

entrevista
sete, oito anos. Criávamos historietas na sala escura. E O teatro tem que ser feito como uma expressão
fazíamos também teatro de sombras, por trás do lençol artística. Você não é um profissional: é um ama-
estendido... Tudo se transfigurava. E não custava nada, dor, deve amar, estar envolvido. Na minha cola-
absolutamente nada. Num certo sentido, eu só fiz teatro, boração com o grupo Galpão eu retomei algo que
a vida toda. O ator não tem caráter. conheci no Teatro de Arena: a cena se processa
num outro andamento, que não é o do protago-
Vintém – Macunaíma! nista e o do coadjuvante, sem aquele pausamen-
PAULO – É, ele finge que é outra pessoa: gente sem to em que o ator espera a deixa e então solta a
caráter essa, não é? Enquanto os outros vão assumindo fala, um depois do outro, tudo pré-definido. No
uma personalidade só, uma função, nós não aceitamos grupo, todos, de formas diversas, têm a condição
essas personas, essa fragmentação. Mas talvez isso seja, de protagonistas. O Arena foi um teatro bastante
na verdade, só a multiplicação dos eus que são a gente vivo nesse sentido. Havia uma certa facilidade
mesmo. E se o sujeito não fosse ator, seria louco, um em contrariar o texto escrito. A voz era de to-
despersonalizado. Eu mesmo estudei para ingressar na dos. Me incomoda muito quando o ator aceita a
medicina, aí depois fui fazer arquitetura. Fiz até o ter- condição de coadjuvante. Eu sempre sou prota-
ceiro ano, no esforço de levar um diploma para os meus gonista do que eu faço, mesmo quando a cena é
pais. Mas não adianta, o demônio do teatro puxa para só uma passagem, mesmo quando piso no palco
outro lugar. para entregar um telegrama.

Vintém – Eu queria falar um pouco sobre o avesso disso, Vintém – É bonito pensar assim.
a especialização que incide sobre o ator. É quando essa pos- PAULO – É porque você faz aquilo pela história que
sibilidade múltipla se reduz em função do homem mercado- você conta. “Carta para a senhora!” E pronto, vai embo-
ria. Dentro do sistema burguês de produção, nosso trabalho ra. Se eu entro, deve ser com a plenitude e a inteireza
muitas vezes se torna um paradigma da alienação. Aí surge do protagonista. Eu sou uma personagem, todos somos
o ator-prostituta, a “ator gado” ironizado por Hitchcock, o personagens.
ator que executa o desejo alheio na fala alheia, para o pra- vação da entrevista
zer do outro. Imagens extraídas da gra

Luiz Cruz
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Paulo José e Leila Diniz em Todas as mulheres do mundo, de Domingos de Oliveira

Vintém – Isso é bem impressionante no seu trabalho. E embora ela nunca o mostrasse, pensando sobre a mulher
Tem por exemplo, um filme do Walter Hugo Khouri... do pescador ela nos convidava a pensar.” Eu acho que tem
PAULO – “As amorosas?” uma coisa parecida em muitos papéis feitos por você.
PAULO – É o que eu chamo de vivência, não de repre-
Vintém – Isso. Eu não quero ser ofensiva, mas é um filme sentação. O Khouri era uma figura solitária. Estava contra
muito fraco. Também não quero ser puxa-saco, mas a sua todos os que se diziam de esquerda. E eu fazia parte do
presença dá um interesse a uma ficção que não teria sentido pessoal de esquerda. Então tinha alguma coisa crítica nis-
se não fosse você. E me parece que você interpreta de um so. Mas em cena aparecia também o meu lado cético em
modo crítico. Me faz lembrar um poema de Brecht para Hele- relação à própria política, uma dúvida sobre a eficácia
ne Weigel: “Ela representava a mulher do pescador à perfei- política daquilo que a gente fazia, uma desconfiança de
ção, mas tinha um pensamento sobre a mulher do pescador. que talvez não desse certo. Existe uma característica do

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cinema que se chama transparência. O espectador é que de um amigo, os automóveis eram nossos. Então, no míni-
completa o significado projetado naquela personagem. O mo, você tinha um documentário da época. Todas as mu-
espectador projeta o sentimento. Você, como ator, não lheres do mundo, por exemplo, do Domingos de Oliveira,
precisa estar empenhado em expressar dor, sentimento. tem um frescor ainda tão verdadeiro porque é anterior ao
No cinema, a técnica é diferente do teatro. O que importa aparecimento da figura do diretor de arte. Quando o Jabor
é o material de ação. vai fazer Eu te amo, um filme na mesma linha, o persona-
gem do Peréio, que é um engenheiro falido e vive com uma
Vintém – Nós temos a impressão de que, de modo geral, prostituta no apartamento, já predomina um outro siste-
as pessoas que produziam nos anos 60 eram mais compro- ma de produção. Vivendo naquela cobertura de vidro, com
metidas com aquilo de que estavam falando. Comprometidas sua torre de televisões, o personagem deixa de ser típico,
politicamente ou afetivamente. Mesmo o Walter Hugo Khouri perde a singularidade capaz de representar a época. Afi-
tinha um compromisso emocional mais intenso do que a mé- nal, esse engenheiro fodido do Jabor podia, pelo menos,
dia do cinema de hoje. O que mudou? vender seu apartamento, que vale muito dinheiro.
PAULO – O Mente vazia, do Khouri, é um filme muito
pessoal, vem de dentro dele aquilo. O vazio existencial é Vintém – Se vendesse, acabava a falência.
uma questão real... PAULO – Uns dois milhões de dólares: ele estava bem.

Vintém – Mas ele vai descambando para a pornografia de Vintém – Mas vamos falar do cinema anterior a essa abs-
um filme para outro... tração, antes da mercantilização mais totalizada virar coisa
PAULO – As amorosas ainda é muito emocionado por- positiva. Como foi seu trabalho com o Joaquim Pedro? Vocês
que ele filmava fatos da vida dele: todo mundo metido na fizeram filmes impressionantes.
vida política estudantil, e ele isolado. Existe o frescor de PAULO – O Joaquim é meu mestre. Devo a ele ter co-
certas novidades. A Rita Lee, os Mutantes. A abordagem meçado no cinema da melhor forma possível, com O padre
dos planos cinematográficos, a câmera alta. A imagem da e a moça. Ele tinha estudado em Paris, no Instituto de Al-
faixa zebrada da rua. São planos interessantíssimos, no- tos Estudos Cinematográficos. O Roberto Bresson, diretor
vos e originais. As personagens diante de uma vitrine, rigorosíssimo, tinha sido seu professor. Bresson odiava o
sonhando com uma viagem, em fugir do Brasil, ir para o estrelismo dos atores, o histrionismo, a canastrice. Ele ad-
Havaí. Foi nos filmes seguintes que começou a prevalecer mirava o Martin LaSalle, ator que fez com ele o Pickpoket,
uma coisa que já aparecia de leve. E ele passa a fazer intérprete que não fazia nada a mais: tinha destreza na
aquele pornô lésbico chique. Tinha um filme que se cha- ação física, entrava e saía objetivamente. Isso interes-
mava Eu, com o Tarcísio Meira, com um lema engraçado: sava ao Bresson. Ás vezes, quando o ator tinha vocação
“Pode alguém amar três mulheres ao mesmo tempo? Eu histriônica, ele o deixava esperando horas, de propósito.
pode.” Eu pode. Eu é o nome do personagem.
Vintém – Para cansar o ator?
Vintém – O Marcelo, personagem central da obra dele, PAULO – Quando chegava o fim da tarde, depois de
no início era um menino de classe média, sempre mandavam 5 horas de espera, ele dizia: vamos começar a filmar. Aí
dinheiro para ele, mora num quarto de empregada. O Eu já o ator dizia: “agora não vou conseguir dar mais nada”.
mora numa ilha maravilhosa, com um acúmulo de capital em Então ele dizia: “Pois é. Agora é a hora de filmar, eu não
todos os sentidos. quero que você dê nada” . E eles filmavam. Essa tendên-
PAULO – Isso aconteceu com todo o cinema. Nos anos cia do Joaquim ao rigor vem daí. Ele me segurou muito
60 nós fazíamos as nossas próprias roupas. O cenário era no sentido da economia, trabalhar com interiorização e

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nunca com exteriorização. Não faça nada que não tenha atuações. Existe a interiorização. Mas a forma narrativa está
fundamento interno, porque a câmera se aproxima. Eu nos corpos.
gostava de ficar de costas em O padre e a moça. O pro- PAULO – O Macunaíma tem uma falha trágica que é a
tagonista sempre de frente acaba enchendo o saco das malandragem brasileira. O brasileiro é esperto, o brasilei-
pessoas. E os personagens episódicos são os espelhos, ro é malandro, o brasileiro sempre se dá bem. Ele acha que
reflexos do protagonista. Então é importante você dar está tudo bem sempre.
espaço, em cada cena, para os “episódicos”. Cresce a sua
interpretação com a interpretação que os outros atores Vintém – Ele morre achando isso. Quando você pula lá
têm sobre o seu personagem. O espectador se pergunta: no laguinho...
o que se passa na cabeça desse homem que sobe a rua? PAULO – Exatamente. Eu tinha que acreditar mesmo. E
Eu não vejo a cara dele, isso é inquietante, é bom. Eu sei Macunaíma tem que estar feliz de encontrar aquela mulher.
que ele está sofrendo alguma coisa, mas não sei o que
ele está sofrendo. Vintém – Na primeira vez que eu vi esse filme, eu era
bem novinha, chorava muito nessa hora. Porque eu falava:
Vintém – Tem trechos escuros também. coitado, ele está achando tudo tão bom.
PAULO – Aquela coisa quase invisível. Aprendi que o ator PAULO – “Aquela vida mansa. Era gostoso. E um dia ele
é material de ação. O padre encontra o farmacêutico... acorda com uma vontade, um desejo.”

Vintém – É o Fauzi Arap no filme? Vintém – Não tem ninguém ali, e ele não se dá conta da
PAULO – É o Fauzi Arap. Ironicamente ele está rindo. E miséria. Sempre se julgando maravilhoso.
o padre fica parado, tem um conflito intimo, não sabe se PAULO – Quando volta para a terra dele, subindo o
tira a moça dali ou não, está sem coragem de tomar uma Araguaia, ele olha o rio como um soberano e diz: “Toma
decisão pesada para ele. O Joaquim me diz: “Não precisa nota aí, princesa. Eu quero mandar construir uma ponte
pensar no personagem. Fica parado e tenta lembrar um para favorecer a vida do povo goiano.” É o governador do
poema.” [imita a tentativa] “Resíduo...rosto de sua filha... mundo. O Policarpo Quaresma tinha o mesmo otimismo
até chegar no fim... às vezes um botão, às vezes um rato”. indestrutível.
Mas eu não sabia o poema de cor, eu tinha que ficar ten-
tando lembrar. Criávamos uma dificuldade análoga. Vintém – Idealista. Vidrado.
PAULO – Agora, os dois têm falhas trágicas. Um por
Vintém – Isso não dá pra fazer em teatro porque você excesso de flexibilidade, o Macunaíma, que faz com que
sai da ficção total. ele não tenha nenhum caráter. E o outro por excesso de
PAULO – É, não dá. Teatro tem que ter unidade, tem inflexibilidade. Quebrar, mas não ceder. A incorruptibili-
que ter um fio, uma linha. Tem que ser contínuo. dade também é um defeito. Mas o sentido só se percebe
no todo da história. A personagem não precisa dar essa
Vintém – Já no Macunaíma, também com o Joaquim lição. É o filme que vai mostrar o limite de percepção da
Pedro, parece haver uma vontade épica maior, mesmo nas personagem.

“O que eu gosto nesses filmes é que


são originais. Trabalhos de primeira mão.
Não são cópias de outros filmes.”
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Vintém – Fala um pouquinho Paulo, da relação com o Do- achava o Edu uma espécie de subproduto do primeiro fil-
mingos de Oliveira. Eu quero comentar um filme de que gosto me. Mas não. É uma personagem com desespero. De uma
muito, Todas as mulheres do mundo, um dos filmes mais carência afetiva muito maior. Embora seja sempre “oba,
bonitos sobre relação amorosa, com happy and e tudo, ainda oba”, feliz da vida.
que distanciado pela cara deprimida do Flávio Migliaccio no
final. Você disse que a produção era feita por vocês. E eu já Vintém – Ele critica o sistema e vai lá e come a empre-
ouvi dizer que havia muita improvisação nas filmagens. Como gada, como um bom burguesinho. E depois tratando ela mal
era esse sistema? Que tipo de orientação vocês tinham? na mesa da cozinha. É uma cena linda. Não sei se é o jeito
PAULO – De início, Todas as mulheres do mundo e o Edu, que você faz, o modo que é filmado, a música... fica quase
coração de ouro eram para ser um filme só. Era um encontro uma cena de amor, de entrega.
de duas personagens, o Paulo e o Edu. Na primeira metade, PAULO – É uma cena que tem um certo vazio depois. O
o Paulo contaria a história de sua vida e amores, na outra o que eu gosto nesses filmes, coisa que se encontra em muitos
Edu, que seria o Flávio Migliaccio, contaria a história dele. trabalhos da época, é que são filmes originais. Trabalhos de
Mas a história do Paulo (que no roteiro se chamava Paulo primeira mão. Não são cópias de outros filmes.
José) foi crescendo por dentro. Criamos uma cena: à noite,
alegres, os dois montam a cama na varanda. Uma piada sur- Vintém – Então, pensando nisso, queria conversar sobre
ge na hora: “O pato vinha cantando alegremente... carcará outra questão. No fim dos anos 60, não sei quando exata-
pega, mata e come”. Bobagens que íamos acrescentando. mente, houve uma onda de artistas militantes, muitos deles
Numa cena, ela quer ficar na boate e ele quer ir embora. Ele vindos do teatro, que foram para a indústria cultural. Isso
ergue a mão para dar um soco nela: “Par ou ímpar?” Jogam. aconteceu por necessidade de sobrevivência?
“Par! Ímpar!”. A mulher fala: “Você ganhou, eu vou com PAULO – O Ato Institucional 5 de 13 de dezembro de 1968
você.” Foi uma saída instantânea, surgida do acaso para acabou com o teatro de grupo e com o cinema autoral. Em
segurar o gesto de violência. Na feira de madrugada, eles 1969 eu dirigia o TUSP, Teatro da Universidade de São Paulo,
caminham. É muito bonito, muito bonito mesmo. É muito e fomos para a França apresentar Os fuzis da senhora Carrar.
verdadeiro o filme, e muito emocionante. O Domingos cho- O grupo se dissolveu lá, alguns voltaram na clandestinidade
rava fazendo o filme. Porque ele tinha se separado da Leila para a luta armada. Eu fiquei na Europa o ano todo. Quando
Diniz. E o filme era uma lembrança da vida dele, talvez até voltei, em 1970, fui chamado para a televisão. Eu tinha a
uma tentativa de reconciliação. intenção de trabalhar na televisão para poder fazer cinema.

Vintém – É um filme com atenção para o detalhe. Vintém – Eu trabalhei com o Gianfrancesco Guarnieri por
PAULO – Pois é, tem essas coisas mínimas. alguns anos e me parece que ele acreditava na possibilidade
de atuação crítica dentro de um meio de massas. De fato
Vintém – Pequenos gestos trágicos parece ter havido alguma interferência artística, a julgar
PAULO – E tudo pequenininho. Não é um Tristão e Isol- pelas novelas interessantes que surgiram no fim da década,
da. É um filme burguês. A professorinha na favela. como Gabriela, ou o Carga Pesada que você e o Guarnieri
fizeram. Existia, da fato, maior possibilidade de intervenção
Vintém – E aquela cara do Migliaccio no fim. Já no Cora- crítica no veículo do que hoje? Ou havia ingenuidade em
ção de ouro, o Edu que você faz tem uma recusa em aceitar relação ao aparato?
a realidade burguesa, mas é ela que o sustenta. Ele é um PAULO – Não, nós inventamos a televisão. Tinha uma
filhinho de papai. possibilidade de invenção de uma dramaturgia nova na te-
PAULO – Eu fui entender isso bem depois. Porque eu levisão. Isso veio, claro, da cooptação de todos os talentos

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do cinema novo, do teatro e da música. Todos foram parar PAULO – Muito, era maravilhoso. Entrava na televisão,
na televisão. A temática central do cinema novo nos anos pela primeira vez, um espaço da realidade. Depois acabou.
60 – a realidade brasileira – se transferiu para a televisão. Eu entendo a novela como popularização de histórias da
Eu comecei dirigindo os Casos especiais. Fiz 30 tele-peças. boa literatura brasileira. A novela brasileira dos anos 70
A televisão tinha que se renovar, foi um momento de pas- tinha a consistência da boa literatura, José Lins do Rego,
sagem. Até então as novelas eram financiadas pela Gessy Jorge Amado etc. Depois da crise econômica mundial de
Lever, Colgate e Palmolive. Mas a Globo expandiu isso, ao 1982 houve um retrocesso. A televisão volta para dentro do
mesmo tempo em que trouxe todo mundo para dentro. estúdio. Embora tenham surgido câmeras muito mais leves,
Janete Clair, Dias Gomes, uns vinham do rádio, outros do prevalece o ponto de vista industrial: 70% em estúdio, 30%
teatro e do cinema. A televisão precisava de novidade. Foi de externa, que deveria ser apenas ilustração, um respiro,
o começo da criação de uma rede de alcance nacional. uma passagem entre uma seqüência melodramática e outra.
Grava-se no estúdio com 4 câmeras simultâneas e cortes
Vintém – Pra vocês que estavam saindo do Arena, como simultâneos. Então há um retrocesso na própria linguagem.
era ver esse processo? No tratamento e na temática. Foram se fixando alguns cli-
PAULO – A temática continuava na televisão. A gen- chês da novela, como a chamada mistura ótima com três
te fazia muito peças de fundo político em outro veículo. núcleos familiares: os ricos, a classe média e os pobres. Os
De denúncia social. Os Casos especiais eram todos nesse ricos são neuróticos, cheios de problemas. Não vale a pena
sentido. E as novelas traziam um realismo para dentro da ser muito rico, mas ao mesmo tempo causam uma certa
casa das pessoas com o qual elas não estavam acostuma- inveja na gente. A classe média era aquela coisa comum, e
das. Nos anos 70 a televisão descobre a rua, sai do estúdio os pobres são os tipos engraçados. Na imagem da novela,
e vai para o espaço real. os pobres são quase felizes. Os atores deixaram de contar
histórias novas. Trabalham sempre com a mesma estrutura.
Vintém – E como ela veio a se tornar essa porcaria? Como Copia-se em versão televisiva o cinema de gênero indus-
vocês sentiram isso? Eu tenho a impressão que o Guarnieri trial: a comédia urbana, a comédia rural, o drama urbano, o
sentia a mudança com uma melancolia quase insuportável, melodrama. Alternam essa aparência para disfarçar os me-
um pessimismo que vai ensombrecendo a pessoa. canismos repetitivos. Mas os atores estão cansados de fazer
PAULO – Houve muitas conquistas com a saída da tele- isso, é difícil encontrar entusiasmo. A televisão se tornou
visão para a rua, para os subúrbios. O Jardel Filho vai com uma indústria. O diretor geral faz a escaleta dos eventos.
a equipe para Cascadura, procura uma oficina mecânica O autor distribui as cenas pra quatro ou cinco co-autores.
real, chega lá e conversa com o mecânico: “Vamos trocar Fulano de tal é bom pra escrever cenas de juventude, cheias
de macacão. Eu fico com o seu e te dou o meu.” E com isso de agito. As cenas mais sérias e graves ficam com sicra-
criava uma interpretação diferente. Em Irmãos Coragem, no. É um produto. O setor de pesquisa informa que é bom
gravaram cenas dentro do Maracanã. O primeiro especial criar situações exóticas: essa novela aqui vai se passar em
que dirigi foi Pérola, texto do Dias Gomes baseado em Constantinopla, na Turquia. A outra na Grécia. Só muda a
John Steinbeck. Fizemos com a câmera na mão, no esti- geografia. Mas isso já se esgotou.
lo do cinema novo, com câmeras que pesavam 40 quilos,
correndo atrás da cena, num esforço de ajustar o foco. A Vintém – Eu queria te perguntar sobre seu trabalho como
televisão saía da mesmice do estúdio. diretor. Lendo a sua biografia dá para perceber que você foi
sempre um faz tudo...
Vintém – E vocês pessoalmente sentiam como uma rea- PAULO – Eu não tenho vocação pra diretor, eu não gos-
lização artística? to de mandar nos outros, de negar os outros, corrigir os

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Vintém – Com insegurança intelectual.
PAULO – Mas o método é bem esse: o da ignorância.
Eu, como diretor, não sei. Se você me perguntar, eu nunca
vou procurar ninguém dizendo que sei uma coisa que não
sei. É importante dizer que você não sabe. Brecht invaria-
velmente usava esse método. Um jovem ator pergunta a
ele algo sobre a personagem: “Você não escreveu a peça?
Você deve saber como ela se comporta aqui.” E o Brecht
dizia: “Eu não sei. Vamos descobrir juntos.”

Vintém – Tem uma ótima anotação de ensaio de O Círcu-


lo de Giz Caucasiano. Os atores que fazem os soldados bêba-
dos perguntam: “Por que esses caras não matam o Azdak?”
E ele: “Podia inventar um monte de coisas, mas é porque
sem ele a peça acabava.” É isso.
PAULO – É simplesmente isso. Nessa peça tão bela,
montada por vocês, o que se vê é o Shakespeare-Brecht.
O teatro americano não entende Shakespeare. E eu acho
O padre e a moça, de Joaquim Pedro que para nós, no Brasil, é preciso mais Brecht. Ele libe-
rou o teatro completamente da merda da quarta parede.
outros, isso me incomoda, me molesta, mas ao mesmo
Ele pôs o teatro vivo, com a platéia viva diante de você.
tempo é irresistível meter a colher...
Ele te tirou da caixa de mágica. Abriu os bastidores do
teatro. E nem por isso deixou de ser maravilhoso. Ao
Vintém – O que você espera de um ator? O que você de-
contrário, quanto mais visível, mais invisível fica. Como
testa num ator? Você se projeta como ator quando dirige?
esses marionetistas que atuam abertamente. O espaço
PAULO – Quando eu dirijo o meu método é interroga-
do teatro é vazio e se torna múltiplo quando o ator o
tivo. Eu não gosto de fazer nenhuma afirmação. Eu gos- ocupa, dando significação àquele espaço. Agora isso aqui
to de perguntar sobre alternativas. Quem sabe isso não é um navio. Agora é uma estalagem. Numa explicação
poderia ser feito assim? Nós podemos experimentar. feita diretamente à platéia, você economiza o que seria
Então, me incomoda quando o ator confunde isso com um ato inteiro de Ibsen.
fraqueza. Porque existem aqueles atores que gostam do
diretor tirano. Que precisam dele. Eu não gosto desses Vintém – Em Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas o
atores, dos que precisam da tirania para fazer bem as narrador chega e diz: “Vão se vestir assim, a peça vai ter
coisas. Certa vez fiz uma peça com uma atriz muita esses conflitos.” E pronto.
famosa, que me provocava muito nos ensaios. E minha PAULO – Você não vive da expectativa dramática. Os
assistente dizia para mim: “Você tem que bater nela. títulos contam o que vai acontecer. Não é para ter surpre-
Eu estou falando sério. Você tem que bater nela.” Mas sa com o que acontece, mas sim para descobrir o mecanis-
eu não conseguia. Eu não tinha qualidade de diretor mo que faz com que aquilo aconteça daquela maneira.
para chegar lá e dar uma porrada naquela vagabunda.
É uma questão: esse método da interrogação pode ser Vintém – Ele deixa clara a opção também. A personagem
confundido com fraqueza. poderia ter agido de outra forma.

vintém 7 • 13
Macunaíma, de Joaquim Pedro

PAULO – O Lars Von Trier usa isso no Dogville, um filme Vintém – Mas não exibe essa virtude. Eu já vi montagens
brechtiano. Mas o Lars Von Trier tem uma malícia que o Bre- da Mãe Coragem em que atriz exibe a técnica e acaba com
cht não tinha. Ele conta o que vai acontecer no final e a coisa a peça.
não acontece. O Brecht não mente. Ele diz exatamente o que PAULO – Porque na Mãe Coragem o mais importante é
vai acontecer. Ele quer que você veja com clareza o processo. a alienação dela. É a inconsciência sobre o que ela está
Para você entender o processo. Eu adoro o teatro do Brecht. fazendo. E não pode ser diferente: ela se atrelou a guerra.
Acho fantástico. A liberdade que deu para o teatro. E conti- Ela vive disso. Mas as atrizes gostam de chorar.
nua sendo pouco entendido. Pouco visto. O uso da canção. É
um teatro tão agradável. Não é um teatro de grandes virtuo- Vintém – De interpretar ela como uma grande heroína
sismos. Mas você trabalha muito para fazer bem aquilo. trágica.

14 • vintém 7
PAULO – Por isso a Helene Weigel deu a chave contrária. dramática e a do narrador, deve saber oscilar entre uma
Que está exatamente no grito mudo. Acabou com a atriz dra- coisa e outra. Essa sempre foi uma questão importante no
mática. Ela deu a chave para o novo tipo de interpretação. trabalho do Latão: construir o ponto de vista crítico a par-
Sem deixar de ser uma interpretação emocional, quente. Mas tir das contradições reais. Senão o distanciamento vira um
no momento culminante da perda do filho surge o grito silen- recurso quase cínico, bem ao gosto da nossa época atual:
cioso. Ele te distancia. E não diminui sua emoção. rir da merda em que estamos. Então, sem a aproximação
realista da matéria, você pode virar um cínico debochando e
Vintém – Na Companhia do Latão nós entendemos que o te- perder a perspectiva marxista da transformação.
atro épico e dialético exige um detalhado trabalho realista, in- PAULO – É que Brecht trabalha sempre com particulari-
clusive para que esse realismo possa ser superado como forma. dades. As personagens são concretas, singulares. O Mauler
Passa a ser importante, então, uma preparação do ator atenta na Santa Joana dos Matadouros se emociona verdadeira-
à ficção e ao modo de se relacionar com o público. Você tem mente. Ele vai às lágrimas. Despedir dois mil empregados
hábitos que se repetem no seu trabalho de ator de teatro? de um matadouro é um número, uma estatística. Mas ele
PAULO – Eu gosto de me preparar pelo menos duas lembrar que a Joana está na merda, à noite, isso corta o
horas antes, gosto de visitar o palco, olhar o espaço todo, coração dele. O ator tem que entender esse sentimento
pôr os pés nas cadeiras do público. Tornar reconhecível para ficar clara a diferença entre a imagem do ser social
para você todo o espaço do teatro, inclusive a platéia. e do individual. Porque esses seres têm que estar jun-
Então você pega o seu texto e o repete andando pela pla- tos. Brecht e Stanislavski não se contradizem, são dois
téia, passando as mãos nas paredes do teatro, sentando momentos diferentes do trabalho do ator. O que Brecht
em uma cadeira, depois em outra, para não ser mais inti- permite é um outro tipo de compressão da história que
midado pelo espaço. Meu centro de atenção se torna do você está contando. É uma compreensão do ponto de vista
tamanho do teatro. O Stanislavski trabalhava nisso coti- social. Das forças que fazem com que a personagem seja
dianamente: alargar o círculo atenção. Jean Louis Barrault daquele jeito que está sendo mostrado. Mas ambos são
diz que o limite de comunicação no teatro são dezoito artistas da dúvida. E do aprendizado.
fileiras. Para além de 18 filas você começa a perder a co-
municação com o espectador. É interessante.

Vintém – Tem uma coisa que o Stanislavski diz que é:


“Se interesse pelo que você está fazendo em cena, que os
outros vão se interessar.” Se eu estiver viva no meu círculo
de atenção, mesmo que de costas para o público, haverá
interesse. Eu tenho certeza disso.
PAULO – É verdade, mesmo se você está falando baixo,
a intensidade gera uma articulação melhor devido à con-
centração. E aí o público ouve mais, entende mais. Tem
situações em que você está gritando e não acontece nada
no espectador.

Vintém – O que sempre admirei no seu trabalho de ator Entrevista realizada por Helena Albergaria.Registro
tem a ver com uma coisa linda que o Anatol Rosenfeld fala em vídeo por Luiz Cruz. Edição de Sérgio de Carvalho.
do ator épico: ele tem que ter a capacidade da ação realista Colaboração editorial de Roberta Carbone.

vinté m 7 • 15
Os sujeitos do
esquerda, ou pelo menos de oposição à ditadura militar,
naquela época? Só os cínicos e os desinformados. Mas veja:
uma coisa é reagir contra uma ditadura militar que reprimia

capitalismo
a livre expressão dos artistas brasileiros; outra é continuar
lutando por uma mudança social desde a raiz – não quero
usar a palavra “revolução” porque ela já está associada,
hoje, a muitas atrocidades históricas. Mas ainda penso
Entrevista de Maria Rita Kehl que a esquerda visa transformar radicalmente a socieda-
de. Gosto da bandeira do MST, aparentemente singela, mas
Psicanalista, ensaísta e poeta, Maria Rita Kehl aborda em igualmente radical: “reforma agrária com justiça social e
seus artigos os mais variados temas: ecologia, feminismo, soberania popular”. Não sei se desde aquela época, um cara
sociedade, educação, indústria cultural, teatro, cinema. Sua como o Caetano, por exemplo, se importava com isso, ou
intensa atividade literária reflete uma postura crítica em re- reagia apenas ao que tocava à liberdade de expressão dos
lação aos valores da sociedade de consumo. É autora de, en- artistas – o que não é nem um pouco desimportante. Uma
tre outros, A mínima diferença – o masculino e o feminino na vez que a ditadura aqui caiu, “não com um estrondo, mas
cultura (Boitempo,1996) e Sobre ética e psicanálise (Boitem- com um suspiro”, como no poema do Eliot2, muita gente
não percebeu que escrever, compor, filmar etc, para o “livre
po, 2002). Ao mesmo tempo, sua atuação junto a movimen-
mercado”, também acarreta imensas restrições à liberdade
tos sociais como o MST demonstra o comprometimento de
de expressão. Ou percebeu e não se incomodou, na medida
seu trabalho com a idéia de que a desalienação do sujeito e a
em que o dinheiro entrava no bolso.
confrontação do fetichismo mercantil podem fazer da psica-
Por outro lado, como escrevi em meu livro Ressenti-
nálise um instrumento de luta política. (Roberta Carbone)
mento3, a reação de tantos esquerdistas arrependidos ou
convertidos a membros ativos ou passivos do coro dos
Vintém – No começo do ano você participou de um debate contentes com o mercado, retrata a meu ver um sintoma
sobre arte e política, por ocasião do aniversário do caderno cultural social brasileiro muito mais antigo do que os que herda-
da Folha de S. Paulo, no qual estavam presentes Ferreira Gullar, mos do período militar: o compromisso com o esqueci-
Cacá Diegues e Caetano Veloso. Nos dias de hoje não é raro en- mento, com o perdão apressado aos opressores, com o
contrar em alguns artistas críticos da década de 60 uma postura estado de permanente carnaval prá inglês ver. Nada con-
reacionária e um desejo de reelaborar o passado de esquerda à luz tra o carnaval como festa popular, que eu particularmente
do pragmatismo e desencantamento atuais. Como você interpre- adoro: refiro-me à cultura do povo que se identifica como
ta esta necessidade de anulação do passado presente na fala de carnavalesco, que não esquenta a cabeça, que deixa ba-
Ferreira Gullar naquele encontro? Isso estaria relacionado com um rato os agravos sofridos, etc. E depois, claro: redunda em
processo mais amplo de negação e desprezo social pela história? ressentimento social, amargura, baixa estima, na repeti-
MARIA RITA – Imagino que sim. Para que a resposta ção do bordão “esse país não é sério”... como se eles não
fosse exata, seria preciso primeiro conhecer a motivação tivessem parte ativa nessa suposta falta de seriedade.
que levou, na juventude, esses esquerdistas arrependidos a
se tornarem de esquerda. A melhor explicação talvez este- Vintém – Naquele encontro, a platéia aplaudiu Ferreira
ja no conhecido ensaio de Roberto Schwarz sobre “Cultura Gullar quando ele apregoou as virtudes da divisão social do
e política no Brasil, de 1964 a 1969”1. Quem não era de trabalho, dizendo que seu trabalho de poeta precisa da colabo-
1
Schwarz, Roberto. “Cultura e política: 1964-1969”, em O pai 2
Eliot, T. S. The Hollow Men, Faber & Gwyer Londres, 1925.
de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 3
Kehl, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

16 • vintém 7
costumes conquistada a partir de 68. O movimento

Damião A. Francisco

entrevista
feminista, os homossexuais, os movimentos negros,
etc, conseguiram muitas conquistas importantes a
partir da abertura liberal dos costumes no novo mo-
delo da sociedade de consumo. O ponto intocável, o
“continente negro” continua sendo, é claro, a explo-
ração do trabalho. E os jovens mimados das classes
médias e altas do século XXI não parecem, de modo
geral, se incomodar com isso.

Vintém – Você acha que a posição tropicalis-


ta de conjugar uma atitude vanguardista à lógica
Palestra de Maria Rita Kehl no espaço CPFL mercantil mais cínica ainda é um modelo para a
nossa produção cultural e jornalística?
ração da Maria na cozinha. O que explica este reacionarismo de MARIA RITA – Este é um longo debate que não
algumas pessoas daquela geração? E a satisfação da platéia em me vejo em condições de levar a fundo nessa entre-
ouvir isso de um homem considerado de esquerda? vista, mas quero afirmar aqui que não é esta minha
MARIA RITA – O reacionarismo dos jovens não é um opinião sobre o tropicalismo. Não me refiro às ati-
fenômeno atual. Quem não se lembra do Comando de Caça tudes e opiniões de alguns antigos representantes
aos Comunistas, formado pelos estudantes do Mackenzie, da tropicália, mas à corrente estética que ele inaugurou. O
que atacaram violentamente a turma da Maria Antonia? tropicalismo, em primeiro lugar, inovou e alargou as fronteiras
Identificar os jovens com a esquerda é um grave erro. A da expressão musical, no Brasil, tanto quanto a tão badalada
posição política não é uma questão geracional. Mesmo a bossa nova, que ninguém chama de cínica. Em segundo lugar
grande onda de rebeldia que atravessou o oceano, entre Pa- produziu, com grandes recursos de linguagem poética e mu-
ris, Praga, Washington, Rio de Janeiro, em 1968, encontrou sical – inclusive a incorporação de instrumentos considera-
oposição de outros jovens da mesma geração, defensores da dos malditos – uma linguagem capaz de dar conta, desde uma
ordem, da ditadura militar, da guerra do Vietnã etc. perspectiva crítica que abusava do paradoxo e do humor, do
Hoje o conformismo talvez tenha se generalizado ainda “desenvolvimento desigual e combinado” brasileiro. Não sei se
mais, porque o descontentamento presente nos anos 1960 e a lógica era mercantil desde o início. Eles se arriscaram, foram
início dos 70 – ligado, em parte, à repressão da liberdade sexual, vaiados, não tiveram sucesso mercantil imediato. O Chico era
ao autoritarismo nas estruturas de ensino, à tradição conserva- muito mais famoso, mais vendido, do que o Caetano, em 1966,
dora que ainda dominava na segunda metade do século XX, não 67. Torquato Neto, o poeta mais sofisticado do tropicalismo,
(“todo dia é dia dela/ de amar-te, a morte, morrer/ todo dia é
tem mais razão de ser. Costumo dizer que o capitalismo, do boi,
mais dia/ é menos dia/ é dia D”)4 suicidou-se aos 28 anos. Tom
aproveita até o berro. O berro dos jovens de 68 foi escutado
Zé, o super inventivo Tom Zé, ficou na sombra mais de duas dé-
e, em grande parte, atendido pela apropriação das demandas
cadas. Os outros continuaram a evoluir musicalmente. Gilberto
de liberdades individuais, em prol do mercado e do consumo.
Gil compôs duas pérolas, duas pequenas tragédias populares –
O capitalismo se alimenta das forças que suas próprias contra- Domingo no parque e Ele falava nisso todo dia, para os festivais
dições ajudam a libertar – e nem sempre se trata de forças de
trabalho. Naquele período, foram as pulsões sexuais, no sentido 4
Todo dia é dia D, letra de Torquato Neto e Carlos Pinto. Grava-
amplo do termo, que serviram de água para o moinho da recente da primeiramente por Gilberto Gil no disco Cidade do Salvador
sociedade de consumo. Não condeno em bloco a evolução dos (1973), Universal Music Brasil.

vinté m 7 • 17
da Record, e Caetano fez um disco experimental, como Araçá produzindo uma adesão inconsciente à exploração em função
Azul, que não foi nenhum sucesso de vendas. Tropicália é um da confusão entre o fetiche da mercadoria e a riqueza, pro-
grande disco, todo ele uma crítica à boa consciência burguesa: priamente dita. A grande resistência do capitalismo às crises
“Essas pessoas da sala de jantar/ estão ocupadas em nascer/ que poderiam derrubá-lo consiste, a meu ver, no fato de que
e morrer”.5 Doces bárbaros, de 1977, com os quatro baianos, ele foi o modo de produção mais competente no sentido de
foi um show belíssimo que rende um lindo disco. Sou poeta e produzir exatamente os sujeitos de que ele necessita.
grande apreciadora de música, poesia, literatura. Não consigo  
avaliar a produção artística como um Fla-Flu entre direita e Vintém – É comum encontrar nos ambientes de especiali-
esquerda, a arte é sempre mais (e menos) do que isso. zação acadêmica uma oposição inconciliável entre psicologia
e sociologia? Em que medida a psicanálise – e a obra de
Vintém – Em uma entrevista sua para a Revista Percurso6 Freud – pode contribuir para a reflexão social atual?
você desenvolve um argumento muito interessante em torno MARIA RITA – Não vou falar da psicologia em geral, que não
da subjetividade na sociedade capitalista. Ali você parece não é meu campo. Observo apenas que existe uma psicologia social,
concordar com a idéia do capitalismo como uma “máquina que se expandiu nos Estados Unidos desde meados do século 20
cega”. Se há uma margem de recuo dos indivíduos em relação impulsionada pela necessidade de pesquisas de comportamento
à sujeição completa, que brechas de ação você percebe? Você para orientar o mercado, etc. Mas não vou me referir a ela, ago-
relaciona ética e psicanálise a partir dessa perspectiva? ra, nem tenho acompanhado sua suposta evolução.
MARIA RITA – Talvez eu não tenha me explicado bem, na Na psicanálise existem pelo menos duas correntes. A que
entrevista à Percurso, agora não me lembro mais. Mas ao con- chamamos de linha “inglesa”, representada principalmente pe-
trário, eu concordo com a idéia de “máquina cega” em qualquer los seguidores de Melanie Klein, que dominam a poderosa IPA
sociedade, uma vez que todo laço social inclui as formações (International Association of Psychoanalysis), concebe o sujei-
do inconsciente: os sujeitos se engajam sem saber por quê. to como algo muito próximo ao indivíduo (não por acaso essa
A diferença mais importante do capitalismo talvez seja a de corrente floresceu no seio do liberalismo). Para Klein a mente da
que certo avanço da técnica, em particular das técnicas de criança, desde o nascimento, é um grande teatro de fantasias e
sondagem da subjetividade (vejam as pesquisas recentes da imagens que tentam interpretar o mundo, dar conta das paixões
Isleide Fontenelle a respeito)7 permitiu que as forças do in- ambivalentes, dos impulsos de amor e ódio, de uma forma mais
consciente passassem a trabalhar a favor da máquina: em vez ou menos autônoma. Para os kleineanos, o inconsciente pouco
de desarranjá-la (penso nas “bruxas” queimadas pela Igreja na ou nada tem a ver com o laço social. Já a psicanálise de linha
Idade Média), forneceram o material imaginário para legitimar francesa, a partir de Lacan, segue uma indicação do próprio
a expansão das fronteiras do capitalismo. Estas são – pensem Freud, em Psicologia de massas e análise do eu8 onde ele escreveu
bem – além de geopolíticas, fronteiras subjetivas. Marx foi que toda psicologia individual é, de certa forma, uma psicologia
certeiro ao localizar, no centro do mecanismo que produz a de grupo. O sujeito, em Freud, é atravessado pelas formas dis-
alienação, o conceito de fetiche, que opera tanto nas relações cursivas do grupo a que pertence, e também de sua cultura, no
objetivas de exploração do trabalho quanto na subjetividade, sentido amplo da palavra. Lacan radicalizou essa proposta ao
instituir, como fundamento da constituição do sujeito, a relação
5
Verso de Panis et circensis, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968. com o Outro. O Outro não é exatamente uma pessoa, embora
6
Entrevista realizada em agosto de 2007, publicada na Revista seja representado pela mãe, pelo pai, etc, na vida da criança.
Percurso número 39, editora Sedes Sapientiae. O Outro é um depósito de linguagem, de símbolos, de práticas
7
Dentre as pesquisas da autora destacam-se O nome da marca:
McDonald´s, fetichismo e cultura descartável, São Paulo: Boitem- 8
A publicação brasileira é encontrada sob a seguinte tradução:
po Editorial, 2006 e Pós-modernidade: trabalho e consumo. São Freud, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921).
Paulo: Cengale learning, 2008. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

18 • vintém 7
discursivas; é uma instância simbólica que inaugura o sujeito MARIA RITA – O convívio com o Boal começou tarde na
psíquico ao separá-lo de uma parte si mesmo; nisso consiste a minha vida e infelizmente durou pouco. Eu o conheci em
divisão subjetiva. A fórmula aparentemente enigmática de La- 1999, através de minha amiga Cecília, companheira da vida
can no seminário 14, O inconsciente é a política, resume bem o toda dele, mas só nos aproximamos uns três anos depois. O
lugar do social para esta segunda corrente psicanalítica. Augusto era muito focalizado nas coisas dele, com toda a
razão, e demorava para deixar uma pessoa nova ultrapassar
Vintém – A partir de sua vivência nesses ambientes de o “círculo de giz” que ele criava em torno dele para se pro-
debate, gostaríamos de saber se a psicologia atual se inte- teger das invasões e da dispersão. Depois que ele me admi-
ressa por luta de classes? tiu como uma interlocutora, nossa amizade foi de vento em
MARIA RITA – Pela luta de classes exatamente, acho que popa. Que saudades eu tenho desse amigo tão recente! Ele
não; mas como já disse, não circulo muito nos debates de era alegre, generoso, bem humorado, criativo na conversa,
psicólogos de maneira geral. Há pessoas, individualmente, que nunca banal. Tinha uma auto-ironia que o ajudava a enfren-
se importam com isso como cidadãos, como se importam com tar tudo: a cadeia, a tortura, a doença – a morte, será? Não
injustiças sociais, desigualdades, etc., mas não vejo que a luta sei, não pude conviver com ele nas últimas semanas.
de classes seja um interesse específico, teórico, no campo psi. Sou muito ignorante em matéria de teatro. O que entendi,
Já as conseqüências dela – miséria, desalento, violência, bar- desde que conheci o Augusto e o ouvi falar e levar o Teatro
bárie, desemprego, etc – sim. Tem muita gente trabalhando, do Oprimido a vários lugares, é que sua maior obra foi real-
tanto no campo da produção teórica quanto na prática, no mente a invenção desse poderoso dispositivo de valorização
que se chama a “clínica do social”. Isso já acontecia no Brasil do indivíduo e promoção de consciência. O Teatro do Oprimi-
desde a década de 1970, por iniciativa de pessoas como por do existe no mundo todo, espalhou-se como um vírus, mas
exemplo o Helio Pellegrino, no Rio. Atualmente as instituições um vírus do bem. Tinha enorme admiração pela disposição
lacanianas, cujo centro de gravidade se encontra na França, dele de viajar para todos os cantos assim que se restabelecia
tem se expandido as práticas de clínica do social (a partir de de uma crise – eu o chamava de “Hamlet de muletas”. Além
sugestões do suposto herdeiro de Lacan, o genro dele, Jacques disso, o convívio com ele talvez tenha me deixado um pouco
Alain Miller) e esta influência evidentemente atinge as insti- mais esperançosa, e um pouco mais corajosa também, em
tuições lacanianas no Brasil. Mas ainda estou para conhecer relação aos projetos da esquerda no Brasil. O Teatro do Opri-
melhor essas experiências institucionais. mido, aqui, ficou mais de uma década completamente “fora
de moda”, o Boal nos anos 1980/90 era visto por muita gente
  Vintém – Você conviveu com Augusto Boal, artista e como um cara antigo, que ficou prá trás na história (ele ria
pessoa maravilhosa, que foi capaz de mudar uma época do ao comentar que só era famoso fora do Brasil, aqui ninguém
teatro com seu trabalho. O que você acha que Boal deixa de sabia quem ele era), mas nunca tentou se adaptar às ten-
mais importante com sua obra? O que o convívio com ele dências, nunca mudou suas convicções para ganhar espaços
trouxe ao seu modo de ver as coisas? na imprensa ou agradar a crítica. Aos poucos, o nome dele
voltou a ser uma referência importantíssima, não só para os
movimentos populares mas também entre jovens, estudan-
“o capitalismo foi o modo de tes, artistas. Basta ver a repercussão da sua morte pelo país
produção mais competente inteiro, em maio passado. Um homem assim me encorajou
muito, mesmo sem nunca ter dado nenhum palpite na minha
no sentido de produzir vida. Ele deixava a gente com vergonha de se acovardar.
exatamente os sujeitos de Entrevista escrita realizada por Lia Urbini,
que ele necessita.” Gabriela Villen e Sérgio de Carvalho.

vinté m 7 • 19
A prática do documentário
Depoimento de Eduardo Coutinho

Interessado nas possibilidades da adaptação de A opção pelo documentário


procedimentos formais e temáticos do teatro épico Eu fiz ficção toda vida. Só comecei a fazer documen-
para a linguagem cinematográfica, realizei em 2001 tário na televisão em 1975. Foi quando aprendi muitas
um estudo universitário intitulado Cinema dialético: coisas, mas tive também algumas experiências com as
reflexos brechtianos no cinema nacional onde analisei três limitações do veículo: a cobrança de audiência, os mode-
los de linguagem, coisas que sempre existem, mas exis-
filmes brasileiros de diferentes décadas e gêneros sob a
tiam menos naquela época. Na televisão eu filmava mais
perspectiva do legado teórico e dramatúrgico de Bertolt que qualquer cineasta, filmava todo o tempo. Editava,
Brecht. Como método de pesquisa, entrevistei os diretores escrevia, eu mesmo inseria a música. Em certos filmes
dos filmes pesquisados para pôr a prova minhas hipóteses. fazia tudo.
Na entrevista com Eduardo Coutinho, que naquela Foram esses cinco primeiros anos de Globo Repórter
ocasião estava na sala de montagem do filme Edifício que me permitiram fazer o filme Cabra marcado para mor-
Master, lançado em 2002, a conversa tratou também rer. Eu sabia perfeitamente que não tinha sentido recupe-
dos procedimentos gerais de trabalho e construção de rar uma ficção feita 20 anos antes. Ao mesmo tempo, eu
linguagem do diretor. O texto aqui publicado é uma versão só podia voltar a fazer cinema se fosse para fazer o Cabra.
editada desse encontro1. (Diogo Noventa) Terminá-lo se transformou em uma grande obsessão. E
quanto mais eu aprendesse de documentário, mais estaria
1
Coutinho, nascido em 1933, realizou os filmes Babilônia 2000 preparado para fazê-lo.
(2000) e Santo Forte (1999), onde retrata a vida dos moradores Se eu tivesse permanecido no cinema de ficção – ou só
dos morros do Rio de Janeiro. Nas décadas anteriores, de 80 e no jornalismo – o resultado do filme seria outro. O extraor-
90, trabalhou na perspectiva do vídeo popular realizando diversos dinário era fazer o filme da forma que foi feito. Eu trouxe
média-metragens de envergadura social, como: Os romeiros de para os meus filmes algo que a televisão fazia muito mal: a
Padre Cícero (1994), Boca do lixo (1993), A lei da vida (1992), O fio câmera chega e começa a filmar. Sem maiores arrumações
da memória (1991), Volta Redonda, O memorial da greve (1989), de luz, de foco. Com agilidade e energia. Por outro lado, a
Jogo da dívida (1989) e Santa Marta – duas semanas no morro equipe com quem eu passei a filmar era de cinema. Trazia
(1987). Em 1984, realizou um dos mais consagrados filmes brasilei- um nível de reflexão que a televisão não tinha. Foi isso que
ros, Cabra marcado para morrer, filme que recupera a história dos me permitiu mostrar no filme o diretor, a câmera, acidentes
personagens reais de seu filme de 1962 sobre as ligas camponesas de filmagem que se transformaram em projeto no cinema.
no nordeste. Antes do Cabra, Coutinho dirigiu cinco episódios do Depois disso, por que eu continuaria na ficção?
Globo Reporter (1976 – 1980), fase em que se dedicou ao docu-
mentário. No inicio de sua carreira o diretor realizou três filmes de Os meios de produção
ficção, Faustão (1970), O homem que comprou o mundo (1968) O cinema de ficção tem um problema: você tem que
e O pacto (episódio do longa ABC do amor – 1966). Seus últimos ter meios para fazer o que quer. No documentário não.
trabalhos são Peões (2004), O fim e o principio (2005), Jogo de Eu posso filmar em 45 dias com quatro pessoas. Faço a
cena (2007) e Moscou (2009). direção e produção, trabalho com um fotógrafo, um assis-

20 • vintém 7
dinheiro. Filmo em uma semana, em cinco, três

modos de trabalho
dias. A edição é que demora meses. Não preciso
de dois anos para um projeto. Às vezes se espe-
ra oito anos para fazer um longa-metragem, e
quando ele acaba já se perdeu o motivo original.
São razões práticas e teóricas que justificam mi-
nha permanência no documentário.

Usos da ficção
Existem temas que podem ser melhor retra-
tados pela ficção do que pelo documentário. O
tráfico de drogas, por exemplo. Nesse caso, não
podemos filmar “o traficante” porque podem ma-
tá-lo. Ou podem nos matar. E colocar o sujeito
Eduardo Coutinho em filmagem de Santo Forte de capuz é intolerável. Na ficção não tem esse
problema porque se trabalha com atores, você
tente, técnico de som e um motorista. Cinco pessoas no produz nomes, e você pode representar melhor
todo! Você sabe que o Glauber fez Deus e o diabo com 7 certas partes da história.
pessoas? E hoje em dia as pessoas dizem que precisam de Da mesma maneira, existem documentários
30 pessoas para um curta-metragem. de caráter ficcional, como Santo forte. Nesse filme, a reli-
O documentário é pegar e fazer. Ele é imperfeito por gião é a formulação da ficção. As pessoas contam histó-
natureza. Não tem essa de “por que nesse documentá- rias espantosas e não importa se são verdadeiras ou não.
rio você não filmou o cara jantando com a mãe?” Não O filme que faço agora é sobre a classe média [Edifício
jantou com a mãe porque a mãe morreu, porque ele não Master]: subo num prédio, entro na casa das pessoas e
quis que eu filmasse, porque ele não se dá bem com a elas contam histórias. Eu não tenho a menor preocupação
mãe e acabou. No documentário, em geral, as pessoas em saber se são verdadeiras ou mentirosas, como no caso
retratadas fazem o que querem. Mesmo quando você do cara que cantou com o Frank Sinatra. Não importa se
paga, tem coisas que as pessoas não fazem. Se eu que- aconteceu ou não, eu não tenho que checar como no jor-
ro filmar um sujeito no trabalho e a segurança não me nalismo. É verdadeiro e é ficção, tudo perpassa tudo, os
deixa entrar, acabou. O filme de documentário sabe e métodos é que são diferentes.
vive disso: da impossibilidade. Isso permite uma ima- Outra comparação que se pode fazer é entre o docu-
gem com todos os defeitos possíveis, desde que tenha mentário e o jornalismo televisivo. Existem entre os dois
um mínimo de foco e que se entenda o que a pessoa gêneros algumas diferenças fundamentais. Antes de mais
fala, o mínimo de audibilidade. A parte visual do filme nada, a reportagem não dura, é feita para ser vista no mi-
tem que gerar uma emoção que ocupe o espaço. Isso nuto seguinte. Eu faço filmes na esperança de que durem.
que é o agradável no documentário. Por isso não tenho Espero que eles sejam cinco anos depois melhores do que
a intenção de voltar para a ficção, onde permanece essa eles eram na época. Se o Cabra dura até hoje no cinema
idéia de “grande produção” do cinema brasileiro. E eu é porque, de certa forma, ele tem um avalista, uma prova
estou fora disso. final. Quando o filme não se prende no imediatismo ele
É claro que eu preciso fazer filmes. Sempre que puder, pode durar. Além disso, a reportagem nunca discute o ca-
para viver. Mas primeiro eu filmo, e depois vou arranjar o ráter de precariedade que uma filmagem ideal tem: você

vintém 7 • 21
filma e aquilo é o real. Isso é o que eu discuto nos meus
filmes. Meu filme é sempre um filme, não é real mesmo.
“Não se muda uma pessoa
Algo a ser levado em conta também é a impossibilidade de com um filme. Podemos
se revelar determinadas condições de filmagem ou mesmo
realizar um processo de criação mais longo na reportagem
influenciá-la.”
porque existe repórter que chora, repórter herói, você No caso do Santo Forte, perguntei a uma mulher se
como repórter se complica. Nos meus filmes eu mostro ela era feliz e ela respondeu que não. Essa não era a
gente recebendo cachê, o que nunca é visto na televisão, cena final do filme, mas todo mundo dizia que meu fil-
nem mesmo em documentário. Eu mostro que isso faz par- me deveria terminar com ela. Deveria se eu estivesse
te do processo de filmagem: você negocia antes e depois, realizando uma ficção, o que não era o caso. Colocada
com dinheiro ou sem. no final, eu daria uma conotação simbólica e tiraria a
liberdade do espectador. Optei por manter o filme mais
Roteirizando fragmentos aberto para o espectador, tentando não dar o veredic-
Eu não filmo com roteiro: escolho os personagens e to: “ah, esse filme quer dizer isso, o espectador tem que
pergunto o que as pessoas fazem. Nem sei o que é ter- pensar aquilo”.
minar o roteiro e começar o filme. Durante as filmagens É uma tentativa de ser o mais aberto possível, e pagar
você apenas constrói fragmentos que serão roteirizados o preço por isso. Algumas pessoas gostam igualmente de
na edição. Filme é uma coisa construída, e alguém tem determinados filmes meus, só que umas acham que é de
que construir. Se não eu, então quem? Depois ele ainda esquerda e outras, de direita. Não se muda uma pes-
será reconstruído pelo espectador. soa com um filme. Podemos influenciá-la, mas ela vem
É preciso criar uma estrutura dramática de documentá- com uma carga de vida, anterior, que nenhum filme dá. É
rio para fazer um filme que valha a pena, e é difícil esta- inútil querer ensiná-la. Eu prefiro que o espectador siga
belecer regras para isso. Posso dizer apenas que eu tento livre e depois tenha interrogações próprias. Se o filme o
ser fiel às condições de filmagens, mas o que quer dizer faz refletir, ele pode mudar. O que eu não quero é que
isso? Tentar manter uma montagem documentarizante, seja uma resposta pronta. Se a pessoa não for surpreen-
não ficcionalizante, por exemplo. dida pelo filme, então não vale a pena fazer cinema.

O interesse pelo outro


É importante passar empatia pelos personagens, senão
o espectador vai embora. Eu espero que o público tenha o
mesmo interesse que eu tenho pelos entrevistados. Espero
que exista vida, que seja forte, que haja curiosidade em se
ver e ouvir. São os personagens que interessam.
Meus filmes não são histórias com começo, meio e
fim exatamente, e agüentam porque têm personagens
que valem a pena. Carismáticos, algo bem difícil de
definir. Normalmente o carisma vem nem tanto pelo que
se diz, mas pelo modo como se diz. O grande defeito do
cinema é que os cineastas vão procurar pessoas que di-
gam o que eles querem ouvir e já no terceiro ou quarto
Santo Forte entrevistado não existe mais surpresa nenhuma. O es-

22 • vintém 7
sencial é ocorrer uma evolução, uma interação quando Se o indivíduo quiser inventar um auto-retrato é mais
se conversa com alguém. Que eu descubra no momento expressivo ainda porque é revelador; quem constrói um
do relato – com a câmera ligada – algo que não se retrato falso quer ver um retrato verdadeiro. A construção
contou antes, algo descoberto no ato de falar. Isso é o do personagem é que é fascinante.
extraordinário.
Para que essa interação se dê, a primeira coisa é fazer Saber perguntar
com que as pessoas não se sintam julgadas. Não quero Insisto na interação entre mim e o personagem.
nada dos entrevistados porque eu não vou modificar a vida Meus filmes dependem da troca, são produto de diá-
deles. Depois o abismo continua igual. Mas no momento logo. Portanto, se eu apareço ou não nas filmagens,
da filmagem, se a pessoa me interessa e eu estou absolu- isso é o de menos, importa aparecer a pergunta. Se
tamente extasiado, dependendo dessa pessoa para fazer você não me perguntar algo, eu não tenho o que lhe
um filme, eu preciso que ela construa um auto-retrato for- dizer. E quem fala sozinho vai pro hospício! Se falo para
te. Quando isso se produz é maravilhoso, a pessoa sente você é porque você me perguntou e eu te interesso, aí
que não é julgada não importando o que diga. partimos para um diálogo. Se você me perguntar, por
Não tem curso para isso, e talvez um facilitador seja exemplo: “o que eu acho do cinema brasileiro?”, eu não
criar um vazio dentro de você: se a pessoa sente que vou te dizer, se você me perguntar “o que eu acho da
você está disponível, sem julgamentos, e você tenta China?”, eu não vou responder. Assim também com os
se colocar no lugar do outro para compreender o que personagens dos filmes. Eu não pergunto para o sujeito:
está sendo dito, você pode entendê-la. Mesmo que “o que é cidadania?” porque ele não vai saber respon-
seja algo terrível você compreende um ponto de vista, der, além de não ser interessante. Agora, se ele falar da
leva em conta determinantes sociais e econômicas que pobreza, da parte que lhe afeta, se tiver um pouco de
não fazem parte, necessariamente, do seu universo. E “tripa”, pode me interessar.
você precisa passar essa sensação sem palavras, isso é A violência, por exemplo, não me interessa. Eu começo
o grande barato: as pessoas dizem coisas extraordiná- pela vida pessoal, que toda pessoa tem. Por mais que ela
rias, simples, e preenchem o seu vazio. Meu segredo é não queira ela viveu, tem colégio, família, sexo, dinheiro,
ir vazio e estar disposto a aprender, é uma troca. Eu saúde, morte, isso tudo qualquer um tem. Os intelectuais
tenho coisas que ela precisa me dar, e ela, favorecida pensam que não é assim, mas é. Depois disso, se a pessoa
pelo meu interesse, vai dizer coisas que nunca disse. É disser “a minha família veio para cá, eles eram de origem
uma troca que o dinheiro não paga, é simbólica; sem espanhola”, partimos para um outro problema: o assunto
ela eu não posso terminar o filme, e ao mesmo tempo, nasce de uma biografia, e um ser é diferente do outro.
sem o filme ela não pode ter aquela expressão. Cada um Embora submetidos ao mesmo contexto, cada um tem um
tem uma coisa para se aproveitar. traço único. Tudo começa a partir desse traço único, de-
Nos meus filmes procuro o mundo do entrevistado, re- pois pode-se falar sobre tudo. Não é um livro de sociolo-
velado com suas próprias palavras, verdadeiras ou não. gia, de antropologia. É um filme e eu espero que a vida
pulse. Se a vida não pulsar não vai me interessar.

“Um grande defeito Diogo Noventa é videasta e pesquisador de cinema. É


dos cineastas é procurar coordenador do Pontão Estúdio do Latão e integrante do
Núcleo de Vídeo da Companhia do Latão. Esta entrevista
pessoas que digam o contou com a colaboração de Daniel Veloso, Marcelo Berg e
que eles querem ouvir.” Mariana Moura. Edição de Lia Urbini e Gabriela Itocazo.

vintém 7 • 23
T hierry Deronne é jornalista. Nascido na Bélgica, reside
há 15 anos na Venezuela, onde é vicepresidente de Forma-
ção Integral da Televisão Pública VIVE.
Em novembro do ano passado esteve no Brasil a con-
vite da Brigada Audiovisual da Via Campesina1 para par-
ticipar de um curso de formação no qual a Companhia do
Latão coordenou uma oficina em torno do poema Café, de
Mario de Andrade. O projeto, que contou também com a
participação do Ponto Brasil-TV Brasil, envolveu quarenta
militantes da Via Campesina de todo país.
A matéria que segue é uma versão editada da entrevis-
ta concedida a Diogo Noventa (do núcleo audiovisual da
Companhia do Latão), Felipe Canova e Thalles Gomes (da
Brigada Audiovisual da Via Campesina).

Prática da televisão revolucionária


É difícil fazer uma televisão revolucionária sem um con-
texto diretamente revolucionário. Você pode preparar, e há
que preparar, mas o momento real de sua concretização é o
da revolução social. Por isso é tão importante vincular expe-
riências alternativas de vídeo popular e movimento social.
Só uma orientação política é capaz de manter os impulsos
críticos populares à distância desse mundo das ONGs, da co-
optação estadual e do mercado do humanitarismo.
Ao mesmo tempo, não há revolução sem o controle do
conjunto das ondas hertzianas de rádio e televisão. E a
mudança real tem que incidir sobre o modo de produção. A
revolução está em tudo, ou não está. É uma condição que
deve ser preparada antecipadamente. É preciso formar anos
antes o pessoal para que, quando se dê a revolução, te-

Uma
nhamos gente qualificada para ocupar esses espaços rádio-
elétricos com outro conceito qualitativo de comunicação.
Esta preparação pode não parecer prioritária quando se
está em outro contexto, como o Brasil de hoje. Mas é pre-

televisão ciso observar a experiência da Venezuela, do Equador, do


1
Via Campesina é uma organização internacional de luta pelo

socialista
direito dos camponeses. Na oficina citada, participaram militan-
tes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), do
MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e da CPT (Comis-
são Pastoral da Terra), três dos principais movimentos que inte-
Depoimento de Thierry Deronne gram a Via Campesina no Brasil.

24 • vintém 7
Uruguai, da Bolívia. Se você não prepara de antemão uma No caso do socialismo, uma “estética socia-

modos de trabalho
equipe de comunicação socialista, revolucionária, quan- lista” evidentemente não pode ser simétrica à
do um governo progressista recupera a freqüência (onda capitalista e criar “heróis socialistas”. Na União
hertziana), não há quadros para assumir a produção. Soviética criaram-se heróis de mármore, espécies
Os primeiros que chegam são comunicadores sociais da de supermen socialistas. Toda a simetria repro-
universidade, ou ainda, profissionais que vêm dos meios duz a mesma forma, o que é um erro. Uma pos-
comerciais e que acreditam só haver uma televisão. Eles sibilidade é resgatar raízes originárias - como a
ocupam os espaços, e os governos não acreditam nos de- cultura indígena ou africana, por exemplo- como
mais. Há uma descrença de que sem os profissionais e sem elementos de base para esse novo imaginário.
os modelos convencionais se consiga um trabalho profis- Outro ponto importante é enfatizar valores cole-
sional. A televisão que Rafael Correa cria no Equador; o tivos de trabalho, criar uma relação nova entre o
canal do Estado de Evo Morales, na Bolívia; ou um canal mundo individual e o mundo coletivo.
municipal no Uruguai; todos são geridos por profissionais O cinema novo latino americano aponta nesse
que vem dos meios dominantes. sentido. Lucia2 por exemplo é um filme cubano
interessante: apresenta o destino de uma mu-
Mudar os fundamentos lher, com o qual você pode se identificar muito,
A televisão tem que ser transformada desde seus fun- mas ao redor dela tem um mundo político que se
damentos, que são as relações de trabalho e a relação com articula e que a transforma em indivíduo social.
a comunidade em geral. Ela se torna uma mediadora em direção a um
Para que não seja mais uma fábrica de produtos para imaginário socialista sem deixar de existir como individu-
um horário – oito nove, dez ou onze – seus trabalhado- alidade. Esse é o tema: como criar essa nova relação.
res têm que se entender como militantes concretos, que A criação do imaginário é a criação das condições
consideram o trabalho na televisão uma ferramenta de estratégicas para se ganhar ou perder uma guerra. É uma
questão estratégica, que o capitalismo entendeu muito
construção do poder popular,
bem. Não é necessário dizer: “É preciso ser capitalista”.
É uma mudança de concepção total. Assim, seria re-
A publicidade já o faz o tempo todo, através de perso-
dimensionado o próprio lugar da televisão na sociedade.
nagens e imagens. Daí a importância de dialogar com o
Ela deixaria de ser o centro da vida, como é na sociedade
mundo da criança.
burguesa, e passaria a ser uma arte entre outras. Por isso
a experiência de Brecht é muito interessante no mundo do
Reescrever a história
teatro, quando ele diz que se tem que transformar a divi-
A ficção televisiva pode ser também uma “produção
são de trabalho dentro de um coletivo teatral. A mesma
de memória”, apropriando-se de fatos históricos. Aqui no
reflexão é necessária à televisão para se encontrar uma
Brasil registrou-se um período histórico em Xica da Sil-
coerência com o modelo socialista de trabalho. va, mas na Venezuela não houve telenovelas históricas.
O tema foi sempre amores burgueses, “clássicos”, em um
Imaginário socialista apartamento inodoro, insípido, virtual, sem relação com
Um novo modo de produção é inseparável de uma es- a história e a sociedade. Há grandes personagens que nos
tética revolucionária. O desafio é superar o imaginário interessam recuperar e recontar a história, como a primei-
individualista, agressivo e destruidor do capitalismo e da ra rebelião dos escravos pretos da colônia venezuelana ou
publicidade. Por outro lado, a única garantia para que se
continue experimentando uma estética socialista é mu- 2
Lucia, filme realizado em 1968 pelo diretor cubano Humberto
dando os meios de produção. Solas.

vinté m 7 • 25
a história de Samora Machel 3. Mesmo a imagem dominante
de Bolívar é uma imagem da burguesia: um Bolívar grande
“É o modo de produção
e branco, quando, na verdade, era baixo e quase moreno. coletivo que vai gerar
Tinha uma avó africana e uma voz fanha. Ele não era pro-
priamente um “herói”. Há que se criar esse novo imaginá-
a nova estética.”
rio atacando a imagem que foi concebida pela burguesia
Eu creio que um artista pode ser profeta, mas sozinho
de um Bolívar elitizado a serviço da dominação.
não consegue criar uma nova estética. Isso depende de
Há muitos outros exemplos que poderíamos citar. É
um momento histórico em que as massas têm que assumir
substituir a visão de elite existente por uma visão popu-
essa estética. É o modo de produção coletivo que vai ge-
lar. Temos que reescrever a história e a telenovela será
rar a nova estética.
muito importante para isso também. Uma novela do MST,
Sanjines, por exemplo, consegue estabelecer um modo
por exemplo, que fosse hoje atrás das histórias de seus
de produção muito participativo com a comunidade in-
militantes. Partindo do Jornal dos Trabalhadores Sem Ter-
dígena e, ao mesmo tempo, fazer a auto-crítica de um
ra de 1984, por exemplo: em cada artigo há uma história.
artista mestiço oriundo da Cidade de La Paz. Num de seus
Seria preciso ir a cada lugar e ver o que aconteceu.
trabalhos, ele, a princípio, não entende que é preciso pas-
sar pelo feiticeiro, a autoridade da comunidade indígena.
Um cérebro coletivo
O feiticeiro lê nas folhas de coca se a equipe de filmagem
Essa criação audiovisual teria que ser, necessariamen-
te, pensada por um cérebro coletivo. Só assim seria capaz é bem-vinda ou não na comunidade. A partir daí eles se-
de contribuir para a criação de novos sentimentos, rela- rão aceitos e poderão trabalhar juntos.
ções e situações na dramaturgia. Esta anedota é interessante porque mostra que a co-
Glauber Rocha, Miguel Littin4 e Jorge Sanjines5 foram munidade é quem permite ou não a criação de uma nova
profetas, mas não estavam ilhados. Eram vozes de um estética. Sanjines adotou, então, o plano-seqüência [to-
pensamento futuro, vozes de um povo por nascer. O povo mada sem edição que recupera o tempo da vida, da orga-
nordestino, para Rocha, é uma metáfora de um povo nização, sem eliminar os supostos “tempos mortos”, como
futuro. Não é uma nostalgia arquetípica. É a projeção diz a televisão comercial], numa ruptura com a dramatur-
do futuro da mitologia popular como reserva de energia gia ocidental de edição fragmentada. Esta foi uma visão
para se criar um povo futuro. Da mesma maneira, Jorge válida na Bolívia. Em Cuba será outra, no Brasil, outra.
Sanjines, na Bolívia, prefigura o que veio a se passar com Mas se vê aí o papel do protagonista coletivo.
Evo Morales.
Uma televisão fora da televisão
3
Líder revolucionário de inspiração socialista que se tornou o pri- Com base numa lógica coletivizante, a televisão tem,
meiro presidente de Moçambique após a sua independência, de também, que ser completamente descentralizada. Tem que
1975 a 1986. Seu desaparecimento em um desastre aéreo nunca existir uma televisão fora da televisão, onde os centros de
foi realmente esclarecido. produção estejam em todas as partes. Tomando-se como
4
Cineasta chileno nascido em 1942, conhecido principalmente metáfora a soberania alimentar – a auto-produção dos ali-
por Ata geral do Chile (1986), filmado clandestinamente durante mentos em muitos assentamentos – a ficção, a informação,
o governo de Augusto Pinochet. Foi diretor da estatal Chile Films a documentação são alimentos espirituais, tão necessários
em 71, nomeado por Salvador Allende. Filma até hoje. quanto. Se você tem produção em muitos lugares de um
5
Cineasta boliviano nascido em 1937. Diretor de, entre outros, país, cria-se igualdade real pela possibilidade de expressão
Ukamau (1966), A nação clandestina (1989) e Os filhos do último de diferentes pensamentos e pontos de vista. Este é um
jardim (2004). tema muito republicano, a igualdade, e muito socialista,

26 • vintém 7
também. Mas, acima de tudo, deve ser visto como possi- concreto. A partir daí buscamos os elementos mais ade-
bilidade de evitar a burocratização ligada à criação de um quados. Mudamos os tempos e a forma, segundo o número
centro de poder, coisa que ocorreu em processos revolucio- de participantes, o ritmo de vida, o tipo de trabalho. As-
nários que acabaram por formar uma burocracia de Estado, sim a escola se configura. Seus membros, provenientes do
o que termina sendo outra vez uma burguesia. movimento popular, têm uma experiência social que lhes
O poder nas mãos do povo significa: as ferramentas nas permite estabelecer estratégias de formação muito mais
mãos do povo – para que a estrutura formada seja mais adequadas, porque conhecem muito bem os participantes
horizontal, igualitária e descentralizada. Creio que seria e o que eles têm na cabeça.
a melhor metodologia. A regionalização da televisão Vive Temos um só universitário na Escuela Popular y Latino-
nasce de uma reflexão autocrítica, no intuito de romper americana de Cine de VIVE. Todos os demais se formaram
com o possível centralismo do olhar televisivo. dentro da escola de VIVE, sem passar pela epistemolo-
gia da comunicação social. Isso não significa dizer que,
O povo vai formar o povo por princípio, a universidade é má. Mas, historicamente,
Na medida em que a transformação estética passa pela a universidade na Venezuela pensa a comunicação social
mudança do modo de produção, e que o objetivo dessa como “vender uma mensagem”. O objetivo é “vender”, num
mudança é entregar a televisão realmente ao povo, há que acordo com o inconsciente publicitário.
se criar coletivos de trabalhadores com formação política. Mesmo na Universidade Bolivariana (a universidade
Para isso entendemos ser importante uma universidade nascida da revolução venezuelana e que dá acesso pela
permanente onde o trabalhador estude história, econo- primeira vez a setores populares), que é nova, os profes-
mia, artes, tudo. sores vêm da velha universidade. Ainda não temos novos
quadros. Decidimos, então, criar um mecanismo de for-
Num processo revolucionário, o Estado tem que ser
mação buscando experiências no campo sócio-político,
uma escola, cada ministério tem que ser uma escola, a te-
como a do MST. O objetivo é criar um conjunto de co-
levisão tem que ser formadora, para que o povo construa
nhecimentos e formar gente, o povo. Como dizia Carlos
poder e conhecimento.
Fonseca Amador6, “o povo tem que formar o povo”. Essa
No caso da Vive, é claro, não podemos avançar sem
é a grande questão.
desenvolver uma escola, não somente venezuelana, mas
latino-americana. Essa formação tem que ser completa.
Chile, Cuba e Nicarágua
Eisenstein, quando trabalhou na primeira escola de cine- Historicamente, a esquerda demorou muito para pen-
ma em Moscou, insistia na existência de uma unidade dos sar o problema da comunicação e da cultura. A primei-
conhecimentos e não na separação, como sempre ocorre ra experiência na América Latina de enfrentamento do
nas escolas convencionais. aspecto transnacional da comunicação ocorreu durante
O que está acontecendo agora na Venezuela é a procu- a Unidade Popular7, no Chile antes do golpe. Nos anos
ra de se adaptar a formação a uma necessidade concreta. 1970, a esquerda oficial estava condicionada pela visão
Partimos sempre de uma luta concreta, de um assunto burguesa e vertical da comunicação. Não havia tempo
nem capacidade para se criar uma cultura e uma comuni-
“A televisão capitalista não 6
Professor nascido em 1936, na Nicarágua, fundou a FSLN (Fren-
necessita analisar a realidade te Sandinista de Libertação Nacional). Morre 3 anos antes da

porque não necessita que o FSLN tomar o poder.


7
Coalizão partidária de esquerda que governou o Chile entre
povo transforme a realidade.” 1970 e 1973, sob a liderança de Salvador Allende (1908–1973).

vinté m 7 • 27
cação revolucionárias que impedissem a dominação sim-
bólica. Ali ficou claro que a capacidade midiática contra
a qual se devia lutar não era somente da direita na-
cional, mas de toda uma burguesia mundial empenhada
em produzir uma imagem negativa do processo revolu-
cionário, que pregava a impossibilidade de um processo
revolucionário. Ao mesmo tempo era preciso enfrentar o
monopólio da direita sobre os meios de comunicação, e
se contava com apenas um canal do Estado, sem a possi-
bilidade de desrespeito à propriedade privada. A luta era
desigual em quantidade e qualidade.
Do mesmo modo, a revolução cubana reproduziu em
sua televisão estatal, basicamente, o mesmo sistema an-
terior, mantendo o arquétipo de televisão: um pouco de
diversão, um pouco de informação. Não houve participa-
ção qualitativa da população.
Filmagens para programa da VIVE
A Nicarágua se inspira um pouco no modelo cubano:
uma televisão de um só canal. Mas Cuba tinha o monopólio Cinema e TV
do espectro. Já a Nicarágua tinha que lidar com a “contra- Quando se desenvolvia, no seu início, o cinema lati-
informação” dos meios de comunicação internacionais sob noamericano, os sistemas de produção eram relativamente
influência dos Estados Unidos. Além do confronto militar autônomos. Podiam operar em ruptura com o mercado do
direto. Na guerra não é fácil estabelecer debates críticos. cinema mundial. Existiam cooperativas, produtoras de es-
Se a pátria está em perigo, há que se defender a unidade querda, além de espaços de formação, escolas de cinema
nacional. Enfrenta-se a falta de recursos, visto que quase independentes do mercado. Depois dessa época, do novo
todos são destinados a defender o país. A Nicarágua não
cinema latinoamericano, houve uma série de privatizações
pôde criar centros de criação audiovisual ou de televisão
das escolas de cinema e a entrada de imensos capitais nos
comunitária. A presença da telenovela, por exemplo, po-
circuitos da comunicação, especialmente na televisão. Quer
deria ter viabilizado um grande momento de criação de
dizer, é uma nova estratégia do capitalismo, investir muito
mensagem popular, mas não foi.
na comunicação. De maneira que, os espaços de produção
Na verdade se trata de uma luta terrível. Com a revolu-
independentes, nacionalistas, revolucionários, se reduzi-
ção na Venezuela, muitos dos magnatas donos dos meios
ram muito, tanto na produção quanto na difusão. Com a
de comunicação se transferiram para outros países. O fa-
vitória ideológica do neoliberalismo, muitos artistas acre-
moso Cisneros8, um dos grandes donos da mídia em nível
internacional, ou Murdoch9. Ambos saíram do país, mas ditaram no conto de carochinhas da “autonomia da arte”.
participaram do golpe de Estado contra Chaves. E muitos cineastas também começaram a criar um mundo
mais íntimo, menos político. Mas seguem, na verdade, a
8
Gustavo Cisneros, empresário venezuelano dono das Organiza- evolução geral que tocou todas as esferas da sociedade.
ções Cisneros, conglomerado de telecomunicações e afins ope-
rante em mais de 50 países na América, Ásia e Europa. Alterar a relação com o tempo
9
Keith Rupert Murdoch, dono do maior conglomerado de tele- Uma forma de revolucionar o conceito de programa de
comunicações do planeta: é dono de 789 empresas, entre elas a televisão é alterar sua relação com o tempo, em vários as-
20th. Century Fox, o tablóide inglês The Sun. pectos. Precisamos poder mudar fundamentalmente a no-

28 • vintém 7
ção de tempo e a noção de programa. Quer dizer, sabemos sem câmera, sem microfone. A equipe escuta as pessoas,
que a televisão capitalista não necessita analisar a reali- modifica preconceitos, supre algumas lacunas de falta de
dade porque não necessita que o povo transforme a reali- informação... É um momento de diálogo. Por um lado, o
dade. Então, sua programação se resume a uma repetição trabalhador da televisão contribui com conhecimentos
de estereótipos, feitos em uma sala de redação, seguida científicos, pela formação sóciopolítica que tem. Por ou-
de uma busca de imagens ilustrativas. Você poderia fazer tro, o povo contribui com toda sua experiência da luta,
um noticiário quase que virtualmente, criando imagens de vida, das condições de existência. Nesse intercâmbio,
virtuais em 3D, em um computador. Com imagens virtuais nasce um roteiro que passa por mais dois dias de edição.
de violência, de catástrofes naturais, e uma voz narrativa, Cada vez mais trabalhamos esse processo na própria co-
seria possível fazer o noticiário sem grande diferença. munidade, que segue participando em todas as etapas. No
De toda forma, é uma fabricação muito rápida. Se o fim de uma semana de trabalho, o programa vai ao ar de
jornalista vai à favela, ou ao congresso, não importa onde, uma segunda-feira a outra. Neste momento, o mais impor-
são dois minutos e acabou. Não há tempo para investiga- tante já não é o programa em si, mas a relação que se criou
ção. A gravação é muito rápida, a edição é muito rápida e com a comunidade. Isso transborda a idéia de produzir um
o produto também tem que ser breve. Portanto, não tem programa. Trata-se de um fenômeno de organização.
como haver reflexão. E o produto, por sua vez, não guarda Temos ainda a possibilidade de voltar à comunidade,
absolutamente nenhuma relação com a realidade. coisa que a televisão capitalista nunca vai fazer, e con-
No nosso caso, estamos em processo de recuperação tinuar acompanhando a trajetória e as conseqüências do
do tempo. Seria absurdo, por exemplo, a manutenção da fato inicial. Há um grande valor informativo em ver como
estrutura de intervalos a cada 13 minutos, pois não usa- uma experiência evolui, para que outros aprendam com os
mos publicidade, não temos comerciais, não temos nada a erros, os problemas e as soluções encontradas.
vender. Após um difícil debate, definiu-se que cada grupo Esse tipo de modo de produção coletiva permite que
de produção teria que definir o tempo necessário para seu Vive seja, também, uma plataforma organizativa: onde
programa. Assim, temos programas curtos, programas lon- camponeses encontram operários, movimentos de mulheres
gos, o tempo está em função de seus objetivos. se conectam com movimentos urbanos etc. Há um valor po-
Há ainda uma flexibilização no sentido de respeitar a lítico agregador de organização e participação popular. Há,
fala das pessoas. Se a dinâmica de um debate está mui- por exemplo, um mecanismo de consultoria social, através
to boa, por exemplo, pode-se deixar um segmento de 10 do qual convidamos vários movimentos populares a dar sua
minutos mais. Esse critério de versatilidade evita que o opinião sobre a televisão e orientar politicamente a progra-
programa tenha que ser cortado justo no momento mais mação do canal Neste contexto, o programa se torna menos
interessante, como ocorre freqüentemente na televisão importante que a organização. Isso é interessante.
comercial: “Lamentavelmente, teremos que cortar aqui”. É claro que há sempre os “burocratas do governo” que,
A regionalização também busca essa autonomização ao ouvirem tudo isso, nos acusam de “troskistas românti-
dos formatos. Em cada região, se decide qual será a dura- cos e teóricos”. Não entendem que, ao contrário, falamos
ção e o dispositivo de cada programa. O objetivo é haver de coisas muito práticas: se o que esta em jogo é realmen-
cada vez mais pluralismo de formatos, de formas, de esti- te uma revolução, a televisão tem que ser um canal para
los, de gêneros. aumentar a capacidade de ação política.
Há um programa que vai ao ar ao meio dia, se chama
Noticieros del Cambio [Noticiário da Mudança], que traba- Expectativas
lha em um ciclo de, mais ou menos, uma semana. A produ- Há uma contradição interessante no que se refere às
ção começa com dois dias de investigação participativa, expectativas em relação a Vive, na conjuntura atual da

vinté m 7 • 29
Venezuela. A hegemonia midiática – 80% da televisão, que, em geral, têm a mesma freqüência. Mas, empirica-
80% do rádio e quase toda a imprensa escrita – nas mãos mente, cada vez nos chegam mais contatos de todos os ti-
da oposição conduz a uma pressão quantitativa: há que se pos: gente querendo produzir programas, receber oficinas
chegar a muita gente. O que é presumível em se tratando de de audiovisual, reclamando de problemas, pedindo ajuda,
um governo revolucionário que lida com uma ditadura midi- denunciando. Há cada vez mais participação tanto em ní-
ática, fomentada pelo poder das elites locais e transnacio- vel nacional como em nível regional.
nais, repetidoras diárias do bordão de que “há uma ditadura Muita gente reconhece a equipe da Vive nas ruas, pelos
comunista” em nosso país. É natural o governo queira um bairros e favelas. Há um fenômeno qualitativo se insta-
mecanismo de comunicação direta de contrapropaganda. lando, porque as pessoas sabem que têm o direito de falar
Contudo, há uma contradição lógica. Somos cobrados e criticar também. Em Vive, não há condução ou “instru-
com base no conceito de rating, que é a medição da quan- mentalização” da fala das pessoas. E às vezes a critica
tidade de audiência por minuto, para poder vendê-lo aos ao governo Chaves é dura. Ou seja, é um canal criado por
anunciantes comerciais. É um conceito comercial criado Chaves, mas que também critica Chaves ou a sua política.
para vender o minuto televisivo aos anunciantes publi- Denúncias de corrupção, de promessas não cumpridas, de
citários. Quanto mais alto, mais caro se pode vender o incompetência de órgãos governamentais. Nossa missão é
espaço entre a programação. É uma análise quantitativa que o povo use esse canal para isso também.
para medir o número de pessoas que tem poder de compra, Isso cria um clima de confiança, não transformamos a
que são consumidores potenciais. Nós não temos o mesmo palavra das pessoas, nem as censuramos. A presidenta de
objetivo. Não podemos usar esse ranking como método de Vive, Blanca Eekhout, certa vez perguntou ao presidente
avaliação do alcance do nosso trabalho. Chaves até onde poderíamos chegar com a crítica, ao que
Nossa lógica é fazer com que o povo seja mais capaz ele respondeu: “Podem criticar tudo, sem crítica não há
política e culturalmente de construir o poder popular em revolução. Mas, se forem transmitir uma crítica que pode
todos os níveis, em todos os contextos possíveis. Uma derrubar meu governo, me avisem uma hora antes.”
medição somente quantitativa é absurda, pois não é me-
dido o ganho qualitativo de autonomia e fortalecimento Televisões comunitárias
político. Há que se inventar um instrumento de medição Há duas visões importantes sobre a produção audio-
que abarque, por exemplo, um contato intercooperativas visual comunitária: uma histórica e outra política. A his-
proporcionado por determinado programa. Ou seja, encon- tórica evidencia um momento da revolução onde se pode
trar uma forma qualitativa de medir o impacto da televi- trabalhar com os novos deputados, abrindo brechas legais
são na sociedade. para instaurar um conceito de comunicação plural, livre.
Vive, em cinco anos, passou de duas horas para 24h O Estado cumpre sua função de ajudar a democratizar
de transmissão diária. Em 2008, terminamos a instalação concretamente os meios de comunicação no país, libera
dos transmissores em todo o território nacional. Cobrimos freqüências em nível nacional. Foi Chaves quem obrigou
potencialmente 85% da população. Ainda é um publico a comissão nacional de telecomunicação a criar o marco
apenas potencial, não é efetivo, mas há momentos em que legal, porque os tecnocratas, que obedeciam à hegemonia
nos vêem mais do que à Globovision, curiosamente. Ainda comercial, não queriam. Agora existem mais de 400 meios
pela medição clássica, vemos que há um público constan- de comunicação comunitários, em sua grande maioria rá-
te, que nunca baixa de um determinado patamar. dios, sendo 15 televisões comunitárias.
Um dos obstáculos que tivemos que enfrentar foi a A questão política, por sua vez, é mais contraditória.
diferença de freqüência de nosso canal em cada estado do A Venezuela não é uma sociedade socialista. É uma socie-
país. Outra desvantagem em relação aos meios comerciais dade capitalista, que consome muito e sonha muito com

30 • vintém 7
Teoria e prática de uma televisão socialista
(ViVe – Escuela Popular y Latinoamericana de Cine e Television. 2007)

QUADRO COMPARATIVO
TELEVISÃO DOMINANTE TELEVISÃO SOCIALISTA
Difusionismo cultural (“vamos mostrar
A cultura já existe no povo, basta dar-lhe espaço.
o que é bonito aos de menor cultura”)
Educação de cima (moralismo, “nós é que sabemos, Aprendizagem mútua. Intercâmbio de saberes, o povo ensina o
vamos resgatar à gente com menos cultura) povo. Construção coletiva de conhecimentos para a vida.
A saída é individual A saída é a organização
Programação centralizada, Programação descentralizada,
um pequeno grupo decide os conteúdos múltiplas equipes produzem a partir da comunidade
Hierarquia de especialistas e divisão do trabalho Aprendizagem coletiva e “cérebro coletivo”
Controlado economicamente pelo mercado Controle popular
Censura econômica Sem censura sobre os conteúdos
Obrigação de vender (o canal tira
Liberdade de informar
seu lucro dos espaços de propaganda)
Vê-se somente o que se vende A comunidade fabrica a informação que interessa à população
Interesse privado Interesse geral
Falta de responsabilidade por parte
Responsabilidade do repórter como
do jornalista ou cinegrafista: “faço meu trabalho”,
criador e membro da comunidade
preocupado apenas com o salário
Mensagem repressiva (violenta, manipuladora, Mensagem libertadora
utilização das pessoas como fonte de lucro) (respeito ao outro, as pessoas são sujeito)
Linguagem banal, empobrecida
Linguagem múltiple, imaginativa, inovadora
(luz estandardizada, temas centrados)
Ritmo muito rápido de montagem
Ritmo mais lento de montagem (as pessoas existem)
(as pessoas não têm tempo de existir)
Fragmentação caótica da informação Imagem completa do mundo (causas e conseqüências)
Conduta passiva do telespectador Interação dos envolvidos
Imobilização de seres isolados Mobilização do coletivo

o modelo norte-americano. Somente agora estamos co- de Água, de Saúde. Há um Conselho Popular, como existe
meçando a sair disso. Assim, muitos dos que se formaram em Porto Alegre, com o orçamento participativo, através do
no ofício audiovisual dentro das televisões comunitárias qual o povo decide. Há pessoas que estão ali pelos recursos
buscaram ser produtores independentes para ganhar sua econômicos e há pessoas mais politizadas, que se enfren-
vida. E estão no seu direito. Mas isso debilita o aspecto tam. Não há uma solução fácil. Mas a idéia de comunicação
político e popular da televisão comunitária. comunitária teve muitos progressos em pouco tempo. Creio
Para que os meios comunitários sejam uma ferramenta que o poder popular segue avançando e ele mesmo vai se
de poder popular, e não uma empresa particular, Vive pro- apropriar desses espaços e corrigir esses problemas.
cura se conectar com cada experiência de comunicação de
diferentes organismos ou coletivos, como Comitês de Terra, Edição de Gabriela Villen.

vintém 7 • 31
AUGUSTO BOAL
O artista
imprescindível

32 • vintém 7
Os textos deste dossiê trazem alguns testemunhos de aprendizado, enunciados por

augusto boal
vozes de diferentes gerações formadas por Boal. Trazem também material inédito desse
grande artista da ação política.
Coerentemente com o princípio constitutivo de sua obra, Augusto Boal tem uma
trajetória de vida dedicada na multiplicação de cidadãos empenhados em transformar
o mundo em que vivem. Sua preocupação foi mobilizar pessoas ao redor do mundo que
continuassem a mobilizar outras pessoas em torno de uma revelação: o teatro é um
instrumento político que pode e deve ser usado por quem bem entender, nas mais diversas
situações, tendo características particulares que o tornam muitas vezes imprescindível.
Boal devolve o teatro à esfera pública, quebrando o monopólio exercido sobre ele e
avidamente defendido pelos iniciados ou iluminados artistas e pela indústria que os cerca
e financia. O enfrentamento que Augusto Boal propõe tem a ousadia de negar princípios
básicos do mundo capitalista. Ele atinge o cerne da estrutura propondo um novo modo
de produção no qual a tradicional divisão do trabalho é alterada: não existe mais a
oposição entre os que representam e os que assistem, o objetivo da arte não é mais gerar
um produto final, mas está nas transformações ocorridas no processo que transbordam o
espaço-tempo da encenação.
Partindo dessas noções, Boal sistematiza o Teatro do Oprimido, com seus múltiplos
desdobramentos: Teatro Fórum, Teatro Legislativo, Teatro Invisível, entre outros. Todos
são ferramentas de luta e diálogo na sociedade, em seus diversos âmbitos, do doméstico
ao institucional.
Pelos diversos países por onde passou, Boal recolheu material e desenvolveu novos
aspectos de seu projeto. Analogamente, fez com que o Teatro do Oprimido fosse passado
de mão em mão, sendo em cada canto apropriado e reinventado a partir das necessidades
locais. Sua prática estimulou experiências coletivas que confrontam o sentimento de
impotência individual imposto pelos desígnios onipotentes do capital.

Gabriela Villen

vintém 7 • 33
O teatro do
pensamento
sensível
Palestra de Augusto Boal1
A contribuição que eu poderia dar a esse debate seria
a de tentar explicar o que aconteceu com o Teatro do
Oprimido, desde o momento em que ele começou a se
desenvolver no Teatro de Arena.
No inicio, nós éramos um grupo pequenininho, que
não era nem o Arena; ficava lá em cima, era o chamado
Areninha. Agora o grupo sou eu e mais 5 ou 6 pessoas
que trabalham comigo há 18 anos, logo que voltei do
exílio. Além desses existem 10 ou 12 pessoas e outros
grupos em volta, que temos pelos estados. É bastante
gente que faz a multiplicação, uma multiplicação cria-
tiva. Eu tento mostrar esse processo no meu livro novo,
Estética do oprimido: o fato é que, neurologicamente,
você só aprende quando ensina. Da mesma forma, você
só ensina quando aprende.
A organização é também fundamental dentro do Te-
atro do Oprimido. A organização é você ir, realizar um
trabalho com duzentas pessoas, depois cada uma segue
para sua casa. Temos que entender que a organização é
o que começa daí: o que pode continuar? Não é? Essa
organização é necessária.
1
Palestra proferida por Augusto Boal no Fórum de Arte Social da
Cooperativa Paulista de Teatro, no Teatro Studio 184, na cidade
de São Paulo, em 12 de setembro de 2008. Na ocasião, também
compunham a mesa de debates José Renato (Teatro de Arena)
e Maria Aparecida (representante da Brigada Nacional de Teatro
do MST “Patativa do Assaré”).

34 • vintém 7
O Teatro do Oprimido está hoje espalhado pelo vras, falar com imagens. Trabalhávamos com as ima-

augusto boal
mundo inteiro. É praticado em mais de 50 países. Está gens dos atores, dos próprios participantes. Os objetos
em um processo de crescimento grande e em alguns que estavam lá eram modificados em imagens. E se eu
países se pratica de forma regular e intensa, como na dissesse: “o que é família?” Ninguém podia responder
Índia. Há alguns anos atrás, dizia-se assim: “bom, lá com palavras.
fora, o Teatro do Oprimido tem uma expansão muito Nós falávamos em espanhol, que era minha terceira
grande, mas aqui no Brasil não se houve falar”. Isso língua. Para eles talvez fosse a quinta ou sexta. Eles
era verdade, mas não é mais. Agora nós trabalhamos eram obrigados a falar várias línguas para se entende-
em todos os estados do Brasil. Tanto nas capitais como rem entre as muitas nações indígenas. A partir dessa
nos interiores. Só não trabalhamos no Amazonas e no experiência, começaram a aparecer técnicas bem sim-
Pará, por ser difícil. ples, que foram se tornando cada vez mais complexas.
Para começar, gostaria de explicar que o Teatro do Hoje temos muitas técnicas para nos comunicarmos sus-
Oprimido não é o que às vezes se diz: “as pessoas fazem pendendo o uso da palavra. Podemos conversar, falar,
alguns exercícios, alguns jogos.” Na época, já fazíamos sem a palavra. Fazemos esses exercícios de imagem para
jogos, e isso foi incorporado ao Teatro do Oprimido. evitar que a palavra entre cedo demais e - pelo poder
Quer dizer, não é que o Teatro do Oprimido seja um con- avassalador que ela tem – liquide com a capacidade de
junto de jogos. Ele se aparenta mais a uma árvore, que pensamento sensível do grupo.
não se desenvolve sozinha, não agüentaria. É necessário
que todos os galhos se convertam em troncos; se con- Aspectos do Teatro Forum
vertam em multiplicadores, para que se possa continuar O Teatro Fórum é o mais difundido no mundo. Hoje,
a desenvolver. Por isso é que é um teatro de conversão, de todas as formas do Teatro do Oprimido, ela é a mais
de auto-conversão. simples: trata-se de uma peça que escrevemos, ou me-
Quando alguém vem falar, já aviso que não somos lhor, que os curingas do Teatro do Oprimido ajudam
terapeutas. Já discutimos muito esse tema: do que é os próprios oprimidos a escrever. Não queremos fazer
psicodrama, do que não é psicodrama! Discutimos sobre nada, nem queremos fazer tudo. É nessa diferença que
Stanislavski – às vezes esquecemos que ele existiu, que está o processo estético. Por ele podemos interferir
foi o verdadeiro pai teatral de todos que se preocupam ajudando as pessoas. Da mesma forma, podemos fazer
com a busca do que se passa diante de nós, não é isso? os nossos espetáculos.
Todo mundo tem problemas a resolver, mas isso é para Quando a peça termina, ela tem que apresentar uma
ser resolvido em outra área, diz respeito a outra área. A condição. Ela nunca vai ser uma peça heróica, mostran-
ação não se confina à psicologia, é por isso que tivemos do caminho. A idéia é que não seja um tipo de teatro
que ir para o teatro imagem, ao teatro legislativo e, que eu também já fiz: teatro de propaganda. Era bom
quando possível, para as ações concretas. naquela época, e pode voltar a ser bom em certas cir-
cunstâncias.
O que é o Teatro Imagem Nós fazemos com que a peça apresente o problema
Durante os 16 anos em que fiquei fora do Brasil, cuja solução não sabemos, honestamente não sabemos.
quando fui exilado, trabalhei muito com comunidades Nessas condições, nos dirigimos às pessoas que so-
indígenas do México, da Colômbia, da Venezuela e do frem o mesmo tipo de opressão, e perguntamos a elas:
Peru. Cada qual falava sua língua, nem eles se enten- “Escuta, vocês têm solução? Então, entrem em cena,
diam. Era uma confusão. Era preciso falar sem pala- substituam o protagonista que está com problema. É

vintém 7 • 35
um problema solúvel e vamos experimentar quantas solu- manos. Além do meu advogado de mandato, havia mais
ções vocês quiserem.” O importante é que mostremos um dois advogados, os três recebiam todas as sugestões,
espelho múltiplo do olhar dos outros, da capacidade que analisavam direitinho, e diziam: “isso pode; isso é an-
os outros têm. Quando se entra em cena, se opera uma ticonstitucional; isso não pode; isso é bom, mas é es-
coisa fantástica. tadual, não é municipal.” Preparavam tudo direitinho
Em primeiro lugar, você invade a cena, normalmente e me devolviam já o projeto de lei. Eu só tive uma lei
tratada como se fosse um altar, em que só os oficiantes que veio da minha cabeça. E essa eu retirei rapida-
– os atores-sacerdotes – podem oficiar. Para nós, esse é mente – se houvesse tempo eu contaria o porquê. Nós
o lugar para se agir, não é o lugar para apenas se ver. Por- aprovamos 13 leis, todas vindas de discussões teatrais,
que, desde o começo, o teatro sempre foi perigoso e ain- através do procedimento do Teatro Legislativo, feito
da é. Criativo, sempre foi perseguido, porque é potente. na rua, nos sindicatos, nas igrejas, escolas. Onde quer
Desde antes dos cantos ditirâmbicos gregos, já existiam que fôssemos, a gente falava: “Olha, está aqui uma lei,
restrições à formação de um teatro num determinado lo- o que vocês acham?”
cal: “Venham ver, quer dizer, não venham agir. Vocês vie-
ram aqui pra receber alguma coisa.” A escritura do Teatro Invisível
No meu livro sobre o Teatro do Oprimido, eu tento mos- O Teatro Invisível é uma cena escrita. O grupo es-
trar que o sistema de Aristóteles era obedecido porque, creve uma cena e nós ajudamos. São eles que prepa-
com raras exceções, tornava-se extremamente coercitivo. ram o programa, vão ao local onde aquilo poderia ter
O objetivo dele é manter a platéia, manter o espectador, acontecido, já aconteceu ou virá, talvez, a acontecer.
manter o cidadão diante de linhas. A partir disso, se torna verdade. Não é uma verdade
sincrônica, e sim diacrônica. Não aconteceu agora, não
A prática do Teatro Legislativo está acontecendo agora, mas já aconteceu, pode acon-
Quando eu voltei ao Brasil, começamos o Teatro Le- tecer, e talvez esteja acontecendo em outro lugar. É
gislativo. por isso que não brincamos com o Teatro Invisível, em-
Eu fui eleito vereador no Rio de Janeiro, foi uma bora possa acontecer muita coisa engraçada. Uma gra-
das experiências mais maravilhosas e mais trágicas da ça vindoura da revelação, das coisas que não estavam
minha vida. Maravilhosa porque realmente você vê a fa- conscientes na cabeça da pessoa e que de repente se
bricação da lei. Havia ali assassino, jogador, narcotra- tornam. Isso faz com que a pessoa ria. Mas o objetivo
não é fazer rir.
ficante: era um convívio muito pesado, mas ao mesmo
O objetivo é trazer à consciência aquilo, como dizia
tempo era lindo mostrar como é que se fabricam as leis.
Brecht: “Ele fica tão familiarizado que já não vê mais
Na verdade não aprendi nada de novo, mas aprendi uma
a monstruosidade daquelas coisas que o oprimem, que
forma nova daquilo, uma forma mais sensorial, uma for-
o escravizam.” É por isso que temos que sensibilizar
ma mais sensível.
novamente as pessoas para aquilo que sofrem e não
Aquilo que fizemos durante quatro anos simulava
estão percebendo.
uma sessão da câmara. E eu pensava que isso não ia
interessar à platéia, mas a interessava muito. Eles vi-
nham e debatiam. Tinha um orador que se opunha a “Não interessa o teatro em
um outro, tinha um presidente, tinha tudo. Simulá-
vamos uma reunião. Era bonito. No meu gabinete eu que você diz o que quer, e
era também presidente da comissão dos direitos hu- fica por isso mesmo.”
36 • vintém 7
Não podemos fazer com que o teatro seja um gueto.

augusto boal
No Raid Park em Londres você pode dizer o que quiser e
não vai preso. Mas só enquanto está naquele cantinho.
Mas ao sair dali, tendo dito isso, vai preso. Não interes-
sa o teatro em que você diz o que quer mas fica por isso
mesmo. Queremos mudar as coisas. O teatro nos serve
para mudar a sociedade. Ser cidadão é transformar essa
cidade. Não apenas viver nela, mas transformá-la. Cida-
dão verdadeiro é isso: “Está ruim? Vamos mudar, vamos
brigar, vamos fazer.”

Experiência na Europa e na América latina


O melhor lugar onde trabalhei, próximo ao Brasil, foi
na Argentina. É um país com que me dou muito bem.
Eles são solidários. Fiquei lá cinco anos. Os primeiros
dois foram maravilhosos, depois começou a ditadura.
Chegou uma hora que não dava mais para agüentar, tive
que ir embora.
Quando eu trabalhava pela América Latina, per-
guntava assim: “quais são as opressões que vocês sen-
tem?” Alguém respondia: “aconteceu assim e depois
chegou a polícia.” Depois vinha um outro, contava
uma história completamente diferente, para concluir:
“E aí a polícia...” Naquela época, eu fiquei habituado
a ver que a polícia era a causa de todas as opressões.
A polícia é realmente opressora. Era assim na América
Latina toda.
Quando eu fui para a Europa, perguntava: “Quais são
suas opressões?” Uma pessoa respondeu: “Olha, a mi-
nha opressão, aquela que me oprime mesmo, é que eu
não sou capaz de me comunicar.” Eu pensava: “Cadê a
polícia?” (Risos da platéia.) Respondi: “Você está me
comunicando que não é capaz de se comunicar. Então já
é comunicação.” Ele, conformado: “Viu, você não enten-
deu.” (Risos da platéia.)
Depois percebi algo trágico. Em alguns países em que
a sociedade está aparentemente resolvida – mas não está,
porque os mesmos problemas existem ali de outra forma
–, como os países escandinavos, a porcentagem de suicí-
dios sempre foi maior que na América Latina. Eu trabalhei

vintém 7 • 37
e trabalho muito na Suécia, na Dinamarca, na Noruega.
Vou quase todo ano para lá, e tenho percebido isso.
Na América Latina matava-se muito: era exército,
marinha, aeronáutica, polícia... Suicídio também ha-
via, mas em uma porcentagem menor que a dos paí-
ses escandinavos. Se uma pessoa se mata porque tem
medo do vazio, eu não posso não levar a sério. Se ela
se mata porque não sabe se comunicar, tem que ser
levado a sério.
Então, eu e a Cecília, minha mulher, psicanalista, co-
meçamos um ateliê que durou dois anos e se chamava
Le flic dans la tête, quer dizer, “um tira na cabeça”. Era
um ateliê que agia através de indivíduos – já que não
podemos, por um lado, afastar o indivíduo, e, por outro,
afastar a sociedade. É preciso fazer a ligação. Queríamos
entrar na cabeça das pessoas, ajudá-las a visualizar, a
teatralizar aquilo que estava dentro delas.
Começaram então a aparecer técnicas como a do Jana Sanskriti, grupo indiano de Teatro do Oprimido
próprio tira na cabeça. São aqueles momentos em que Quando eu digo que todo mundo nasce artista, eu não
queremos muito fazer alguma coisa, mas um policial na estou brincando. No meu livro começo com um capítulo
nossa cabeça diz: “Não faça!” E acabamos por não fa- chamado “O pensamento sensível e o pensamento simbó-
zer. Ou então, o contrário: não queremos fazer algo! E lico na criação artística”. O pensamento sensível é pen-
vem a polícia na nossa cabeça e diz: “Tem que fazer!”. samento, não é só conhecimento. Todos nós recebemos
Então fazemos. Obrigamo-nos porque parece haver informações sensoriais. O pensamento é a base. Por ele
umas vozes dentro de nossas cabeças. Nossa proposi- as informações são orquestradas. Há um movimento que
ção, então, era: vamos teatralizar para acabar com o é anterior, ele é primogênito e genitor do pensamento
mistério! Vamos fazer teatro! simbólico da palavra.
Eu penso em imagens, em sons. Penso o som da pa-
Pensamento sensível lavra e, depois, a imagem que a palavra me traz. E o
Pelo fato de que em todos os nossos teatros (Teatro nosso ofício se baseia nisso, trabalhar com a palavra,
Fórum, Teatro Legislativo, Teatro Invisível, Teatro Ima- com seu som e imagem. Se as televisões, os jornais, as
gem) não queremos apresentar um espetáculo, um pro- rádios ocuparam esse espaço, não será pela eternidade.
duto acabado, acabamos por descobrir que entre a nossa Podemos brigar ali dentro também, temos que brigar por
platéia e nós não há nenhuma diferença. Quem somos esse espaço.
nós e quem são os atores? Seres humanos. Somos seres Como é que fazemos dentro do Teatro do Oprimido?
humanos e o teatro é a primeira coisa que caracteriza o Começamos com jogos, brincamos com o teatro para
ser humano. É a capacidade de metaforizar, a capacidade desenvolver o pensamento sensível, brincamos com os
de aumento. Você é capaz de ver o que você está fazendo. grupos. Porque, além do mais, os jogos são uma metáfo-
Você é ator e espectador ao mesmo tempo. Podemos até ra da sociedade: o jogo tem lei, você tem que obedecer.
inventar o futuro. Nós trabalhamos muito com o MST, e nosso desejo é

38 • vintém 7
trabalhar mais. Mando aqui um recado. E com quem cesa, para não sei o quê mais. Isso até criava certa

augusto boal
estiver interessado. animaçãozinha. Agora, pulamos de canal e parece que é
a seqüência da mesma história, a seqüência do mesmo
Os canais contaminados: a palavra – o programa. Felizmente, apareceu agora um canal novo,
som – a imagem TV Brasil, que pelo menos mostra que existe índio nesse
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, por exem- país. Em qualquer parte do Brasil, Maranhão, Mato Gros-
plo, está enfrentando grandes dificuldades para que a so, você vê índios dançando. Em Parintins, apesar de
reforma agrária seja realmente feita. Ele trava uma luta comercializado, é lindíssimo. Tudo que tem no Brasil, de
antiga pelo direito ao território. E a mesma luta se tra- arte feita pelo povo, é maravilhoso.
va no território da cultura. Essa terra está dominada Esse programa Reality show, é o máximo exemplo.
exatamente pelos mesmos canais, que são aqueles da Eu estava sendo entrevistado por Anne Goldman, uma
estética, que são aqueles do teatro e de todas as artes, mulher extremamente importante do jornalismo norte-
que são os canais da palavra, do som e da imagem. americano, mas que todo mundo critica. Ela perguntou:
O que está acontecendo com a palavra? Quem é que “E você, Boal, o que você acha do Reality show?” Eu
hoje em dia acredita em jornal? Pessoas muito ingê- respondi: “A estrutura é ótima”. Ela levou um susto, não
nuas. O jornal tem que ser lido ao contrário, como a sabia que eu ia defender o programa: “Como é que é?
gente dizia lá no Teatro de Arena, na experiência do Você gosta?” “Não. Eu falei que tem uma estrutura óti-
teatro jornal. Quer dizer, podemos também usar técni- ma, a de colocar pessoas lá dentro que fiquem conver-
cas para entender, por exemplo, a realidade das mortes sando sobre vários temas. Agora, o que eles fazem, não
no Iraque hoje. é bem o que eu gostaria que fosse feito. Eu gostaria de
Mais de 4 mil e 200 soldados norte-americanos mor- ver lá, conversando, por exemplo, o Michel Moore e o
reram nessa guerra. Vale a pena impor uma democracia Arthur Miller.” (Risos da platéia.)
ao preço de uma matança que continua, apesar da men- O número de palavras que se usa na mídia é signi-
tira deles? Não vale. Se a gente pensar nas palavras, ficativo. Com um palavreado muito reduzido, tem-se o
os jornais estão contaminados. Tudo está contaminado objetivo claro de imbecilizar o espectador. Não é que
pelo pensamento do poder. E o poder está interessado eles não saibam fazer melhor, são inteligentes. Ou pelo
em certas coisas e não em outras. menos são criativos em algum setor desimportante. Mas
Isso me fez pensar uma coisa sobre os bancos. Eu eles realmente têm o projeto de emburrecer o especta-
acho, simplesmente, que todos os bancos deviam ser dor. Não é algo como: “Ah, não sabem fazer melhor”.
brasileiros, nacionalizados, e todo lucro, que é espanto- Sabem sim, mas não querem! Essa tendência estética da
so, deveria ir para saúde, para educação, para cultura. imagem assume hoje uma forma tão veloz e rápida que
Paras as coisas boas. Não é uma idéia linda? Agora, se a televisão passou a ser feita para quem não a vê. Você
você for falar com o dono do Financial Times: “Olha, eu tem que olhar a televisão, mas ela não te deixa ver. Es-
tive uma idéia genial. Você me deixa escrever um artigo tão enterrando as pessoas, a sensibilidade delas. O que
com uma grande manchete: ‘Os bancos todos estatiza- eu queria falar neste encontro era isso. Mas eu estou
dos’? E depois outro: ‘A saúde para todos aqueles que aqui se quiserem mais conversa.
têm problemas de saúde.’” Eles diriam: “Isso é responsa-
bilidade do Estado, não é assunto particular.” Transcrição de Alessandra Perrechil a partir de
Antes, assistindo tevê, passávamos de um bangue- registro videográfico de Fabiano Moreira.
bangue norte-americano para uma comédia idiota fran- Edição de Gabriela Itocazo.

vintém 7 • 39
Nunca termina quando acaba
Entrevista inédita de Augusto Boal

Entrevista realizada após palestra de Augusto Boal no Fórum de Arte Social


da Cooperativa Paulista de Teatro (ver pág. 34).
40 • vintém 7
Você acha que é possível dizer que o artista brasileiro to Boal, você pode contar com esse governo. Mas cuidado

augusto boal
está indiferente ao objetivo que marcou a história do Tea- com a burocracia!”. Ele mesmo falou. Porque tem muita
tro do Oprimido: o de fazer com que a população produza gaveta por aí que enterra projetos e destrói o que pode.
seu próprio bem cultural? Então a gente tem que lutar contra a burocracia, que
Eu não sei. Eu acho que isso existe. Durante muito atrapalha processos que podem ser transformadores.
tempo nós sofremos uma ditadura. Não podemos nos es-
quecer disso. A ditadura tem esse lado imperativo. E eu Existem sabotagens institucionais, dentro da própria
acho que a nossa sociedade se anestesiou muito, e mes- administração?
mo se corrompeu nesse período. Eu me lembro quando É a inércia da mediocridade. A mediocridade está lá, e
eu fui candidato a vereador lá no Rio e ganhei a primeira por inércia ela continua promovendo coisas erradas, en-
eleição que disputei. Havia muita gente que chegava para tende? Antes era por obrigação. Nós tivemos uma ditadura
mim e falava assim: mas o que você vai dar em troca? Eu cívico-militar, não foi só militar não. Tinha muito civil que
dizia: não vou dar nada em troca, eu tenho um projeto, o ajudava em todos os crimes cometidos naquela época. Mas
Teatro Legislativo. O sujeito pensa de imediato na troca. se antes eles faziam por obrigação, depois se habituaram,
É uma corrupção que já penetrou no nosso tecido social, e agora é a inércia. Então temos que levantar essa questão
e isso demora a se modificar. Mas aos poucos vai mudar. O de base: vamos ser honestos, todos, e trabalhar juntos?
problema é que boa parte do pessoal que circula em torno Vamos lutar contra a corrupção e deixar livre aquilo que
do teatro se anestesiou também. E há o pessimismo. Uma precisa ser livre? A arte é incompatível com o embalsama-
das conseqüências de muita ditadura em cima, é que você mento. Não se embalsama gente. Tem que deixar os braços
fica pessimista. Mas é necessário tempo. livres, a cabeça livre. Não é a liberdade anárquica do “faz
o que quer”. É preciso controle sim. Tem que gastar bem o
Você acha que o atual governo federal tem enfrentado a dinheiro. Mas não queremos burrice.
questão da anestesia cultural como se deve? Ou isso esbarra
numa dificuldade estrutural, da própria máquina burocrática? Está havendo um grande debate hoje sobre a Lei Roua-
Há um ano e meio atrás houve uma reunião dos pon- net, que mobiliza o teatro de grupo e também os produto-
tos de cultura em Belo Horizonte, e eu fui escolhido para res comerciais, em posições contrárias. Parece, inclusive,
falar em nome dos pontos de cultura1. Eu fui o último que algumas pessoas ligadas a Associação dos Produtores
orador antes do Lula. Eu contei coisas, de como me pa-
do Rio está trabalhando por uma espécie de lei geral do
recia aquele movimento que eu apóio integralmente, pri-
teatro. Você tem notícia disso? O que vem por aí? Ouvi
meiro encampado pelo Gilberto Gil, depois com o Juca
dizer que você sabe de alguma coisa.
Ferreira e agora com Célio Turino. É uma equipe que está
Pergunta para essa pessoa que disse que eu sei de algu-
se desenvolvendo. E foi o governo atual que deu meios
ma coisa, o que é que eu sei? Eu sei o que saiu no jornal. Não
para que isso aconteça. Mas eu também denunciei coisas
tenho nenhum segredo a revelar. Um sinal desses tempos
erradas, ligadas à burocratização dos processos. Então, o
é uma nota que saiu no jornal faz uns dias: que um grupo
Lula, diante de 1200 pessoas falou: “Companheiro Augus-
de atores, conhecidos pelo teatro bastante comercial que
1
O projeto Pontos de Cultura integra o Programa Cultura Viva, fazem, quer botar o nome deles numa espécie de bolsa de
do Ministério da Cultura. Através deste projeto, organizações e valores. Isso eu soube. Saiu no jornal, ninguém me contou.
instituições da sociedade civil, por meio de seleção por editais Então as pessoas teriam a possibilidade de comprar ações
públicos, tornam-se Pontos de Cultura e ficam responsáveis por de tal espetáculo. Surge aí uma jogatina onde predomina o
articular e impulsionar as ações que já existem nas comunidades. interesse no lucro e não na qualidade do que você faz. É a

vintém 7 • 41
mesma lógica escravocrata da Broadway, associada ao jogo. importante é transformar. Mesmo que às vezes seja uma coisa
Você pode detestar a peça, mas vê que ela vai fazer sucesso pequenininha. É melhor do que não transformar. E quando
e aposta para ganhar dinheiro. Eu acho isso horrendo e quem pode ser algo maior, é melhor ainda.
faz uma coisa dessas não pode se dizer artista. Pode-se dizer
jogador da bolsa, mas não pode se dizer artista. Queria que você falasse um pouco do seu trabalho como
uma forma de trazer vida para o teatro contemporâneo. É
A sua obra é marcada pelo vínculo entre trabalho artístico isso que você chama Teatro Essencial?
e questões sociais. Você concorda que a atuação artística A minha maior contribuição não é no teatro oficial, ou no
está sempre limitada se ela não se vincula aos movimentos teatro, digamos, habitual. A minha contribuição é no teatro
sociais, se o teatro fica circunscrito à classe média? que eu prefiro chamar de essencial. Que é o ser humano. O que
Essa sempre foi uma questão importante para mim. Sem- interessa são as pessoas. O teatro que nos permite praticar
pre digo para os meus companheiros: o Teatro do Oprimido o pensamento sensível como algo prioritário, primogênito,
nunca termina quando acaba. O que acaba é o espetáculo, genitor. Interessa você estar em campo. Eu acho que todo
é o evento. Aí temos que fechar a sala, apagar a luz, ir para mundo tem que entrar em campo. Eu acredito que todo mun-
casa. Isso acaba. Evento. Mas o que a gente busca não é o do é artista. Não porque eu queira decretar isso, mas por-
evento: é a transformação social. É ela que nós temos o dever que as primeiras manifestações do ser humano são todas de
de apoiar, a transformação. Teatro é movimento, é praxi-tron. ordem estética, sensorial. A criança brinca com areia e faz
Não é teatron. Teatron é lugar para se ver, mas o teatro é um coisas com areia, pinta com o lápis de cor, e se tem música
lugar para se agir. Se não se age... E ação não precisa ser sair ela dança. Tudo é sensorial no começo, daí é que vem a arte.
com a bandeira desfraldada. Ação pode ser uma atividade de Nunca em detrimento da palavra, do pensamento simbólico,
reflexão que vai conduzir a um ato, que às vezes não ocorre mas não permitindo o monopólio. Porque a palavra é um meio
no dia seguinte. Mas tem que se projetar no futuro. Não pode de transporte. Com a palavra você diz qualquer coisa e o con-
ser jamais algo que acaba aqui, agora vamos esquecer, vamos trário dessa coisa. Então ela tem que ser tomada com cuida-
jantar e tomar um vinhozinho que é bom. É também evidente do. Você tem que ser socrático: quando alguém diz alguma
que todos queremos fazer coisas bonitas. Eu também quero. coisa, você perguntar “mas o que você quer dizer com isso?”.
Quando eu escrevo uma peça, quero que seja a mais linda O que você disse eu sei, mas o que você quer mesmo dizer?
possível. E se eu a enceno como diretor, trabalho para que Porque cada um tem uma forma de entender a palavra. Então
meu trabalho é ir à essência das coisas. Eu quero ir à base. E
seja a mais maravilhosa. Mas não se deve parar aí. O Teatro
é por isso que faz sucesso no mundo inteiro. Porque não é um
do Oprimido é muito mais do que um espetáculo, por mais
catecismo, não é um estilo a ser seguido. É um método de tra-
belo que ele seja. Daí a aproximação aos movimentos sociais.
balho que favorece descobertas, e elas estão acontecendo.
Como o MST, por exemplo, que é um movimento maravilhoso.
Então eu acho que o teatro tem que se vincular mesmo a
O seu trabalho permanece como uma referência fundamental
outros processos. Mas não se vincular para ser um apêndice.
do teatro brasileiro, e nisso se aproxima de outros grandes artistas
Um exemplo interessante é o que ocorreu com o Teatro do
que também trabalharam com pedagogia. Você foi contemporâ-
Oprimido na Índia, com o Jana Sanskriti. Eles eram um grupo
de teatro e, de repente, viraram uma confederação de Teatro
do Oprimido, ao se associar a uma central de trabalhadores. “Ação pode ser uma
Surgiu um movimento com centenas de milhares de pessoas
que usam o teatro como linguagem. E operam coisas reais, de atividade de reflexão que
mudança mesmo. Eles transformam a sociedade. Quer dizer, o conduz a um ato.”
42 • vintém 7
“A gente precisa de Eu queria que o senhor falasse um pouco mais da ditadu-

augusto boal
ra, como uma espécie de interrupção de uma evolução críti-
heróis quando eles são ca. Não só do ponto de vista estético, mas do pensamento
necessários.” sobre política. Vocês estavam lidando com uma visão de
teatro, discutiam sobre formas, métodos, objetivos, sobre
o herói operário, sobre o sentido de representar um herói
neo, por exemplo, do Eugênio Kusnet, que também fazia com
nacional. E esse processo de debates foi interrompido.
que o teatro se apropriasse dos processos. Eu queria que você
É muito difícil sua pergunta. Eu e o Anatol Rosen-
falasse um pouco sobre sua vivência com o Kusnet, que é um
feld, quando estreou Tiradentes, nós escrevemos vários
nome que acho que a gente precisa trazer um pouco de volta.
artigos. Muito cordialmente. Porque era bom também
Olha, com o Kusnet eu trabalhei pouco. Quem trabalhou
você ter amigos inteligentes com os quais você discor-
mais foi o Zé Renato. Eu trabalhei com ele numa peça que eu
da, mas não briga. O outro pensa diferente? Então está
dirigi para o Oficina: A engrenagem, do Sartre. Era um filme
certo. Você não pensa igual. Então nós criamos vários
Zé Celso, Renato Borghi e eu transformamos em peça de te-
atro. Fizemos também na rua, o que era proibido. Fazíamos artigos sobre o tema do herói. Ele escrevia um, eu es-
marchas com a boca tapada. Era um momento de combati- crevia outro. Eu publiquei a minha parte no livro sobre o
vidade. Kusnet tinha um grupo de trabalho, e às vezes ele Tiradentes. Porque você não pode analisar o herói, como
alugava o Arena para seu curso. A gente conversava muito. se a palavra não fosse um meio de transporte. “Herói”
Era um convívio muito afetivo. E ele era uma pessoa muito quando, onde e como? E para quê? Então tem momentos
emocionada, que se emocionava muito. Eu também não sou em que você quer herói, sim. Em Santa Clara, quando
durão. Era muito bom a gente conversar, era bom à beça. Che Guevara comandou um exército de Brancaleone de
Nós falávamos sobre a vida e sobre Stanislavski. Quando ele quinze pessoas e descarrilou um trem, e prendeu um
trabalhou no Arena, como ator em Black Tie, era a minha exército imenso do Batista, o herói ali foi necessário.
época stanislavskiana ferrada. Líamos os textos, juntávamos Ele arriscou a vida e foi um herói. Agora, ser herói na
frases. No Arena se fazia laboratórios sobre Stanislavski o Bolívia, mal informado e morrer lá? Não ouve heroís-
tempo todo. Um dia eu surpreendi uma pessoa no banheiro, mo nenhum ali. Houve um romântico heroísmo. A pala-
só que ele não abria a porta. Estava ali fechado, falando. Eu vra herói! Onde, em que momento? A gente precisa de
perguntava quem é, se ficou louco. Aí eu esperei. “Está com heróis quando eles são necessários. E infelizmente às
problema?” Ás vezes ele gritava. E eu: “Alguma coisa aí?”. vezes são. Ás vezes não. Agora, acreditar no heroísmo,
Não respondia. Daqui a pouco sai o ator com um gravadorzi- esperar que venham heróis e só então mexer o dedo?
nho. Ele estava fazendo uma experiência que nós fazíamos, Tem que mexer o dedo antes. Então, aparecem os heróis.
meio tirada dos livros de Stanislavski, meio inventada, que O movimento engendra heróis. É a prática, é o combate
era assim: a pessoa tinha que fechar os olhos, pegava o que faz o herói. O Fidel está vivo, foi herói. Não tem
microfone e lembrava algum acontecimento, ou inventava que morrer pra ser herói. Evo Morales está tendo uma
algo que queria que acontecesse. E solitariamente, a pessoa atuação heróica lá. E outros, por outras maneiras, estão
falava. Babababa. Depois reunia-se o grupo e íamos ouvir sendo heróis. Não quero mencionar patrícios nossos.
o que foi dito. “O que você sentiu quando disse isso?” Eu Mas tem muito herói por ai.
tinha aprendido um pouco de Stanislavski antes com Sadi
Cabral, no Rio de Janeiro. Mas era mais teoria. E depois eu Entrevista realizada por Ney Piacentini e Rodrigo Antonio.
freqüentei o Actor´s Studio, que na época era bom. (Risos.) Transcrição de Alessandra Perrechil, a partir de registro
Não gosto de falar mal de ninguém. videográfico de Fabiano Moreira. Edição de Sérgio de Carvalho.

vintém 7 • 43
Reencontro e despedida
Renata Pallottini Mas tudo que é bom tem fim. Terminou o curso, saímos
para a luta, os tempos passaram e eu fui mais ou menos
Meu primeiro encontro com Augusto Boal professor obrigada a preparar uma tese de doutoramento. Por esse
aconteceu em 1962, na Escola de Arte Dramática (EAD), tempo, 1981/82, estava dando aulas na Escola de Comu-
então sediada na Avenida Tiradentes, diante da tradicio- nicações e Artes, Departamento de Artes Cênicas. Tínha-
nal Rua das Noivas. Eu estava voltando de uma bolsa de mos passado pelos anos duros de 1960/70, com maiores ou
estudos em Madri, mas já tinha tido contato com o seu menores ferimentos. Boal tinha sido preso, exilado, tinha
trabalho, na oportuna volta por cima que o Teatro de trabalhado com seu Teatro do Oprimido em vários lugares
Arena tinha dado a partir de Black tie e Chapetuba, com do mundo. Era naquele momento diretor do Centre d’étude
ele e José Renato. et de diffusion des techniques actives d’expression (CEDITA-
Já sabia a respeito do Boal dramaturgo, iniciante, tes- DE), um homem de teatro de expressão internacional. Ti-
tando as armas. O melhor, como sabemos, viria depois. nha publicado, em 1975, o livro que era, em grande parte,
Mas o que me interessa focalizar aqui é o mestre. Eu, correspondente às lições que nos tinha dado.
que já vinha de duas boas faculdades, a de Direito, de Escusa dizer que meu exemplar de Teatro do oprimido e
São Francisco e a de Filosofia, da PUC, fiquei surpreendida outras poéticas políticas, edição da Civilização Brasileira,
com a energia e a dedicação que esse rapaz imprimia a está todo anotado, riscado e rabiscado; ali eu encontrava
seu trabalho. Boal tinha então por volta de trinta anos, de novo o meu mestre e as aulas, as quais tinha tido a
estava voltando dos Estados Unidos, onde havia feito o sorte de assistir.
que lhe interessava: estudar dramaturgia. Vinha cheio de Mas ainda tinha algumas dúvidas e elas só podiam ser
idéias novas e mantinha a velha idéia: lutar pelos que sanadas por quem tinha me falado pela primeira vez a sério
estavam sendo sacrificados, lutar com as armas de que das revelações hegelianas para a Poética, e nas suas rela-
ele dispunha: a arte e o teatro. ções com Marx e Brecht depois. Tinha que ser Boal. Por isso,
Dava aulas duplas, à noite, conforme o horário tradicio- redigindo a tese que depois iria redundar no livro Introdução
nal da EAD: de sete às onze da noite, com direito a exten- à dramaturgia, publicado pela Editora Brasiliense em 1983,
são durante ensaios. Boal trabalhava de sete as nove, mais escrevi para o meu amigo, querendo tirar uma dúvida a res-
ou menos, transmitindo sem parada a sua experiência, as peito de algo que ele nos tinha ensinado em 1962/63.
suas descobertas e exigências, e fumando um cigarro atrás A resposta veio logo, e era vazada no mesmo tom que
do outro. Ele literalmente acendia um novo cigarro na pon- ele nos tinha ensinado a reconhecer: simples e direto.
ta do primeiro e assim ia falando, perguntando, respon- Eu perguntava qual era a origem das leis do drama,
dendo. Nós, os alunos, extasiados, bebíamos as palavras oriundas de Hegel e aplicáveis inclusive ao drama aristo-
dele e íamos, conforme as oportunidades e as solicitações, télico, leis que ele nos tinha dado a conhecer e explicado
escrevendo e reescrevendo nossos textos. Com certeza, a naquele curso da EAD. Essas leis passaram a ser utiliza-
versão definitiva de O santo milagroso, grande sucesso de das por todos nós para a análise de textos importantes e
Lauro Cesar Muniz, e também a de O crime da cabra, meu criação de novos textos. E de sua eficácia e praticidade,
texto, depois premiado, devem muito a essas verdadeiras passamos desde alunos a ter provas antes mesmo de po-
fontes de conhecimento e reconhecimento. dermos, a rigor, conhecer as suas origens e entender suas

44 • vintém 7
bases teóricas.

augusto boal
Arena conta Zumbi, de
Veio a resposta:
Guarnieri, Boal e Edu Lobo
“Pelo que me lembro, tentei
adaptar (ou sistematizar) os con-
ceitos hegelianos dentro das qua-
tro Leis da Dialética, e deu nisso:

1. lei do Conflito
2. da variação quantitativa
(ação dramática);
3. variação qualitativa;
4. interdependência .”

A carta era datada de Paris: 1° de janeiro
de 1981. Maravilhoso. Um professor e estu-
dioso, sempre agindo, dirigindo, orientando,
dedicar o seu primeiro dia do ano a elucidar
uma velha aluna.
Sua eficiente explicação consta da minha
tese de doutoramento e, claro, daquela edição e
das subseqüentes edições do texto sobre drama-
turgia que eu tinha preparado para publicação.
Da generosidade, da atenção para com uma
antiga discípula, dão provas essas poucas linhas.
Pude depois visitá-lo no Rio, no seu apartamen-
to do Arpoador. Estava doente, porém mantinha
o otimismo e o espírito de luta que o caracteri-
zaram sempre.
Perdemos esse homem lutador e conscien-
te; isso é o imponderável. Mas aí estão suas
lições de teatro e de vida. Resta-nos acompa-
nhá-las, porque são dignas da nossa lembran-
ça e da nossa admiração.

Renata Pallottini é dramaturga, ensaísta,


poetisa e tradutora brasileira. Autora do ensaio
Introdução à dramaturgia (Ática, 1983) e dos
textos teatrais Crime da cabra (1965) e Pedro
Pedreiro (1986), entre outros.

vintém 7 • 45
Teatro jornal primeira edição
Celso Frateschi eficácia artística e política da arte teatral a partir da-
quilo que aparenta ser exatamente a sua fragilidade. O
“No Brasil, o futebol é um esporte extrema- falar presencial para poucos de cada vez. Escrever sobre
mente popular. Por muitas razões. Uma delas é que qualquer início nos obriga a um processo de reconheci-
na arquibancada todo mundo também joga fute- mento. Somos um outro que revê aquele outro que se
bol. Pra se jogar futebol não é preciso ser atleta; tornou nós mesmos e isso se por vezes chega ser diver-
pra entrar na seleção sim, precisa, mas também se tido pode ser também assustador.
pode jogar na várzea, num terreno baldio ou no Eu, Denise Del Vechio e Edson Santana estávamos ter-
quintal de casa. O espectador de futebol também minando o curso de teatro realizado pela diretora Heleni
joga futebol, e isso é importante. Guariba e pela atriz Cecília Thumin. Tinha sido um ano
No Brasil o teatro não é muito popular. Por mui- muito intenso. A vida prematuramente deixara de ser
tas razões. Uma delas é que na platéia ninguém faz uma brincadeira. Heleni seria presa e assassinada pela
teatro. Todo mundo pensa que pra se fazer teatro ditadura (apesar de ser considerada desaparecida), Boal
é preciso ser artista. O espectador de teatro não seria preso e exilado, eu mesmo já tinha experimentado a
joga teatro e isso é uma pena. minha primeira prisão, apesar de estar ainda distante dos
Mas nós achamos que teatro deve ser um jogo meus dezoito anos. A violência avançava com AI-5. Toda
que todo mundo possa jogar, uma forma de comu- liderança estudantil fôra presa no famoso congresso de
nicação com a qual todo mundo possa se comu- Ibiúna, os tempos se turvavam para aqueles que não se
nicar. Ninguém precisa ser orador para participar identificavam com o estado de exceção que se implantara
de uma assembléia, ninguém precisa ser atleta pra no país. Eu havia sido enquadrado no decreto 477 ao ser
jogar futebol, e também assim ninguém precisa ser expulso da minha querida escola na Vila Anastácio e im-
artista pra jogar teatro”. pedido de continuar os meus estudos em escola pública.
Queríamos continuar fazendo teatro no Arena.
Assim iniciávamos o espetáculo Teatro jornal primeira Estávamos preocupados com a orfandade que passarí-
edição. amos a viver. Num dos encontros com Boal, ele tinha nos
Evidentemente não tínhamos a menor idéia de tudo falado de uma experiência que ele queria ter feito antes
o que aconteceria depois ao Boal, ao nosso país e a da instituição da censura prévia: um jornal teatralizado.
cada um de nós. Não tínhamos noção da potência que A idéia dele seria um semanário teatral que teria como
Boal extrairia daquela experiência absolutamente des- público, bancários, trabalhadores do centro da cidade e
pretensiosa, realizada com aquele pequeno grupo de comerciários que poderiam, ao sair do trabalho na segun-
jovens atores, naquele espaço minúsculo na sobre-loja da feira, comprar seu ingresso no Teatro de Arena e assis-
do Teatro de Arena em São Paulo. Quando Boal citava tir as notícias da semana teatralizadas da mesma maneira
o Teatro-Jornal como o início e base do Teatro do Opri- que compravam a sua revista semanal na banca de jornal.
mido, sempre me enchia de orgulho e espanto. Escrever Evidentemente havia ficado impossível quando surgiu a
sobre esse trabalho me obriga a refletir sobre esse início censura prévia que demorava pelo menos 60 dias, (quan-
e talvez concluir o caráter coletivo do fazer teatral e a do era muito ágil), para comunicar se o espetáculo po-

46 • vintém 7
deria ou não ser apresentado ao público. Ou seja, qual- radicalizava brutalmente com AI-5 e a censura era feita

augusto boal
quer perspectiva de informação jornalística atualizada diretamente, nas redações dos nossos jornais, com ou
via teatro tinha sido completamente destruída. A idéia sem anuência das famílias proprietárias dos nossos peri-
nos pareceu instigante como exercício de ator e nos ódicos. Talvez seja importante salientar que a nossa tele-
permitiria continuar aplicando alguns ensinamentos da visão ainda não possuía nem de longe a força que conse-
Cecília e da Heleni. Foi na casa da Heleni, num jantar de guiu na década seguinte. Ainda não existia rede nacional
despedida da turma desse curso que nós, que tínhamos e computador era cérebro eletrônico. A informação era
mais nos identificado estética e politicamente com o totalmente controlada. A realidade estava bem distante
Arena, usando da petulância e da ousadia da juventude, da retratada nas páginas de nossos jornais e revistas.
criamos coragem e nos dirigimos ao Boal, que deitado A construção de nossas cenas, portanto, tinha que lidar
numa rede na varanda da casa esperava o café: com duas dificuldades: primeira, a de transformar o fato
– “Certa vez você nos falou sobre essa idéia do Teatro jornalístico em matéria teatral e, segunda, a de contrapor
Jornal. Você permitiria que a gente trabalhasse sobre a realidade retratada com o retrato da realidade editado
ela, como pesquisa, uma vez que o nosso curso acabou e pela censura da ditadura. Nesse sentido priorizávamos
não queremos deixar de estar por perto do Arena?” matérias onde a forma com que se dava a sua publicação
Não tínhamos a menor idéia de apresentar o Teatro já buscava esconder o estado de terror implantado no
Jornal como peça de repertório. Queríamos investigar país pelos militares. Assim, ao revelar um conteúdo mais
o que poderia ser a teatralização de notícias de jornal. próximo da realidade, revelávamos também a manipula-
Nessa época existia o Teatro Areninha, um teatrinho de ção daquele conteúdo pela mídia.
70 lugares, bem apertados, e ele deixou a gente traba- Criamos várias técnicas de teatralização de notícias
lhar lá nos horários vagos desde que não atrapalhásse- de jornal. Precisávamos testá-las com o público.
mos a programação do teatro. No local Luis Carlos Aru- O AI-5 tinha liberado a ferocidade dos militares e
tin encenava na época a peça Um Dois Três de Oliveira o ódio de classe. Com a queda do congresso de Ibiúna
Quatro, de Lafayete Galvão. Nos horários em que não e a prisão em massa de toda a liderança do movimen-
tinha ninguém, a gente trabalhava o Teatro Jornal. to estudantil que era o mais importante foco de resis-
Ao trio inicial formado por Denise, Edson e eu, jun-
tência à ditadura, perdemos também o nosso principal
tou-se o Hélio e a Dulce Muniz e o Elísio, que também
formador de público. Toda liderança do movimento es-
tinham feito o curso da Cecília e da Heleni.
tudantil que fazia frente ao regime militar - e era uma
Trabalhávamos intensamente sem ter a menor noção
liderança bastante barulhenta - foi presa. De alguma
de qual seria o resultado. Líamos os jornais e separáva-
forma, nosso público, o público do teatro que vinha de
mos aquelas matérias que mais nos interessavam. É im-
forma organizada assistir os espetáculos, aqueles com
portante lembrar que vivíamos sob uma ditadura que se
quem dialogávamos em nossas peças, foram presos. A
situação de resistência criada nos teatros paulistanos
“Cruzávamos notícias era muito emocionante. Não raras vezes os estudantes
garantiram a realização dos espetáculos. Essa resistên-
aparentemente cia visava a preservação do teatro, a preservação da
contraditórias para revelar liberdade de expressão, e para isso foi necessário uma
ação quase constante de desobediência civil. O próprio
as mentiras da grande Boal estreou A feira paulista de opinião em quatro ou
imprensa.” cinco lugares. Todo mundo estava junto nessa história,

vintém 7 • 47
tudo isso nos envolvia. Mas esse público que nos garantia
tinha estava preso e desorganizado. A liderança desse
“A idéia do Teatro Jornal
público tinha sido desmontada com a prisão de Ibiúna. O era mostrar o que o
momento era de perplexidade diante da violência do AI-5
e da violência da Operação Bandeirantes, com muitas
jornal não mostrava.”
prisões, muitas mortes. Um clima de terror nos atingia. torno do grupo de teatro. Explico melhor: as pessoas que
Não atingia o conjunto da sociedade brasileira, mas nos censuravam o teatro não poderiam censurar a sala de jan-
atingia pesadamente. tar, a sala de aula, e nem alguns espaços que ainda eram
Nós pesquisávamos o Teatro Jornal, mas para efeti- indevassáveis, os espaços privados. Se transformássemos
varmos a nossa experiência tínhamos que mostrar para o jogo teatral num jogo de salão estaríamos, de alguma
o público. Não podíamos abrir a bilheteria oficialmente, maneira, driblando a censura ou respondendo à censura.
então começamos a chamar alguns amigos para assistir as Esse foi o espírito com que Boal organizou o Teatro Jornal
apresentações. Eram apresentações clandestinas e muito primeira edição, como uma aula de como jogar teatro com a
violentas, porque a idéia do Teatro Jornal era mostrar o mesma simplicidade que se joga futebol. Todo mundo joga
que o jornal não mostrava. A notícia teatralizada era uma futebol e conhece as regras, por isso quando vai assistir
maneira de revelar o que aquela notícia impressa não es- um jogo no estádio consegue assistir com qualidade um
tava revelando. Existiam as famosas receitas, as famosas espetáculo de futebol. Por que o teatro não é popular?
citações de Os lusíadas, como protesto contra a censura Porque as regras do teatro são muito restritas. Então Boal
e nada mais A tortura jamais era expressa nos jornais. O propôs que a gente popularizasse as regras do jogo tea-
Notícias populares estampara a seguinte manchete: “Rou- tral. E o que a gente fez? Começamos a formar grupos de
baram a peruca de uma mulher na Praça da República!” estudantes. Em pouquíssimo tempo tínhamos 40 grupos
A nossa abordagem evidentemente não foi na linha da que eram nosso público fixo e que, de alguma maneira,
manchete sensacionalista do jornal popular, não o roubo faziam o Teatro Jornal em vários lugares da cidade. Não so-
da peruca, mas a situação da cadeia, em alusão direta à mente nas universidades, mas também nos bairros. Grupos
prisão política da época. Percebemos que a simples leitura que acabavam se multiplicando, a ponto de você perder a
de uma notícia em um espaço insólito para o tema poderia conta. A idéia do Boal vingou. Por isso Boal considera o
possuir uma teatralidade, assim a leitura sobre a fome e a Teatro Jornal como o início do Teatro do Oprimido, onde o
seca do nordeste num restaurante granfino ou mesmo no teatro deixa a sala de espetáculo e ganha outros espaços.
restaurante universitário era eficiente e comunicava. Per- Onde o público ganha a cena e a voz. Na época consegui-
cebemos que se lidássemos com a edição das matérias cru- mos publicar com o apoio do Sindicato dos Bancários um
zando notícias aparentemente contraditórias poderíamos estudo do Boal chamado Categorias do teatro popular, onde
revelar as mentiras e o cinismo da grande imprensa cen- ele colocava a forma mais desenvolvida que seria o Teatro
surada. Criamos muitas formas de transformar jornal em Jornal, no qual o povo realiza o seu próprio teatro a partir
teatro e começamos a apresentar para amigos e começou de seu próprio ponto de vista.
a vir gente. Muita gente! Cada vez vinha mais gente. Isso Na verdade o Teatro Jornal cumpriu uma função te-
começou a chamar a atenção do Boal e do Guanieri. Muitos atral, mas cumpriu também uma função política. Num
dos que vinham nos assistir pediam nossa orientação para primeiro momento, o Teatro Jornal funcionava como
desenvolverem seus próprios grupos de Teatro Jornal. uma “varinha de vodu”. Quem era de esquerda se ache-
Boal veio conversar com a gente nos apontando uma gava. O momento seguinte ao teatro era para organizar
possibilidade de trabalhar a organização das pessoas em e reorganizar o grêmio, o Centro Acadêmico, a forma de

48 • vintém 7
organização do próprio movimento estudantil e social, bandeiras suaves, coisas muito tranqüilas. Eles usavam

augusto boal
que estava desorganizado. De alguma maneira, servimos uma música de Bach ao fundo. Tudo era perfeito nes-
para isso, o que nos rendeu outra prisão um pouco mais sa imagem paradisíaca. Usávamos a mesma música de
adiante. Evidentemente as organizações se utilizavam fundo enquanto bonecos de plástico eram queimados
dessa forma para fazer seu trabalho político. O Teatro durante a leitura da notícia. A música do Bach ia saindo
Jornal também foi muito importante porque funcionava e, bem ao fundo, ouvia-se um discurso político. Eram
como uma senha, no momento certo, um sinal para as coisas muito diretas, muito concretas, politizadas e
pessoas se juntarem e fazerem teatro e depois outras emocionantes. Sentíamos que o momento exigia isso.
coisas não menos importantes. E foram experiências O Teatro Jornal realmente fez muito sucesso aqui. E
fantásticas. Lembro do espetáculo do grupo da Medi- também motivou uma critica militante do teatro que in-
cina. Eles fizeram a apresentação na sala de anatomia, felizmente não existe mais desde então. O Teatro Jornal
cheirando a formol, com todos os cadáveres utilizados gerou reflexões estéticas importantes de Sábato Magal-
para as aulas fazendo parte da cena. O contraponto da di e de Anatol Rosenfeld. Anatol dedicou dois artigos no
cena principal, que era sobre economia, com aqueles caderno literário do Estadão sobre Teatro Jornal ques-
cadáveres tinha um efeito indescritível. Tinha espetácu- tionando o lugar da realidade e o da ficção e as ques-
los que a gente fazia no restaurante do CRUSP. Surpre- tões éticas advindas dessa formulação. Até que ponto
endíamos aquele cotidiano viciado com uma atividade o teatro deve pretender a realidade? Até que ponto ele
diferenciada. Algumas notícias, lidas em determinado não trai a sua realidade ao pretender colocar no palco a
espaço, tinham em si um efeito teatral. Tinham formas realidade? Uma defesa brilhante da ficção.
mais elaboradas como a que chamávamos de “concreção
da notícia” . Notícia sobre os carvoeiros. A empresa de Começamos a fazer sucesso. O Arena fez uma viagem
carvoaria pertencia a um grande grupo empresarial. O para a Argentina e Boal incluiu no repertório o Teatro
forno, para ser aberto, tinha que passar por cinco dias Jornal. Boal percebia que tinha que fazer alguma coisa
de resfriamento. Os carvoeiros tinham que aumentar a fora do país, pois aqui as coisas estavam muito com-
produção e começaram a abrir com quatro dias. As pes- plicadas. Ele tinha armado ir para o festival de Nancy
soas entravam dentro do forno para retirar carvão. Com com o elenco principal e com a gente também, porque
o aumento da necessidade de produção começaram a a partir de um determinado momento nós íamos sempre
abrir em três dias, até que uma pessoa, ao entrar dentro com o Teatro Jornal. Fomos para Buenos Aires, Montevi-
desse forno, morreu com o sangue coagulado, fervido déu, e íamos para Nancy.Antes da viagem à França, Boal
dentro do próprio corpo. Fazíamos essa notícia de uma acabou seqüestrado pela OBAN. Foi um choque muito
forma politicamente violenta. Naquela época a propa- grande para nós. A gente achava que o Boal já tinha
ganda política se desenvolveu muito. Tinha o “Brasil
um nome brasileiro e internacional que o protegeria um
ame-o ou deixe-o”, onde o Brasil aparecia como uma
pouco mais da violência da ditadura. Triste ilusão a nos-
ilha de paz e tranqüilidade no mundo inteiro. Aqui era o
sa. Nunca fomos presos oficialmente. Éramos seqüestra-
único lugar onde existia progresso, apareciam crianças,
dos. Sabíamos onde eram esses cativeiros. Um era no
Ibirapuera, perto de onde depois foi o DOI-COD. A gente
“Por que o teatro não é percorria o DOPS, alguns quartéis, porque sabíamos que
ele devia estar em alguns desses lugares. A Cecília ficou
popular? Porque as regras do muito chocada, nós todos ficamos chocados. A Heleni já
teatro são muito restritas.” estava presa, não tinha desaparecido ainda, o Boal até

vintém 7 • 49
se cruzou com ela na prisão. O que iríamos fazer? Iríamos O raio da bomba era trinta centímetros
para a França ou não? Coletivamente decidimos reforçar E o raio de seu alcance efetivo sete metros
a contrapropaganda: iríamos para a França falar aos qua- Contendo quatro mortos e onze feridos.
tro ventos o que estava acontecendo. Nosso trabalho lá E ao redor deles, num círculo maior
fora serviria de garantia para que o Boal tivesse uma De dor e tempo, estão espalhados dois hospitais
prisão menos violenta possível. Jaques Lang, diretor do E um cemitério. Mas a rapariga,
festival e depois ministro da cultura da França, foi muito Enterrada no lugar de onde veio,
importante nesse processo. E nós acabamos indo para lá. A uns cem quilômetros daqui,
Na França tínhamos esse papel militante, mas também Aumenta bem o círculo.
tinha o lado extremamente prazeroso e divertido. Todos E o homem solitário chorando essa morte
achavam que a gente teria uma metralhadora debaixo do Nas províncias de uma terra do Mediterrâneo,
Inclui no círculo o mundo todo.
poncho, da japona, a Latino América era um mito. Boal
E vou omitir o prantear de órfãos
foi nos encontrar em Paris e a partir daí começou o seu
Que alcança o trono de Deus
longo exílio.
E vai além, e amplia o círculo
Ao terminar esse pequeno reconhecimento, olhando
Pro sem fim e pro sem Deus.
trinta anos depois desse tempo que relato, num mundo
onde todos os continentes rendem honra e homenagem a Boal é uma anti-bomba, também com um raio de ação
Augusto Boal não só como teatrólogo, mas como homem progressivo e infinito.
da paz, transcrevo um poema de Yehuda Hamichai:
Celso Frateschi é ator, diretor e autor,
um dos fundadores dos grupos Teatro Núcleo
Independente, Teatro Pequeno e Ágora

50 • vintém 7
Lembranças de Boal

augusto boal
Iná Camargo Costa Quem dispunha dessas informações tinha alguma
percepção do caráter de resistência, ou no mínimo de
1. Noticiário político-cultural crítica, dessas manifestações à ditadura militar que, por
Os jovens que tinham 15, 16 anos, como eu em 1968, e sua vez, tratava de barbarizar reprimindo manifestações
se interessavam por teatro, sabiam de Augusto Boal e do estudantis com cavalos e outras amabilidades: Botucatu
teatro de Arena de São Paulo por diferentes meios e de ma- tem inúmeros episódios deste tipo em sua crônica polí-
neira indireta, isto é, nós sabíamos sem saber muita coisa. tica. E quem já correu dos cavalos, ou viu as instalações
É o que se chama “informação”, de que somos abastecidos de um grêmio estudantil depredadas pelos agentes da
pela indústria cultural. Basta lembrar que uma das músicas repressão, sabia que a censura à produção cultural era
brasileiras de maior sucesso em 1965 foi Carcará, gravação parte do mesmo jogo.
de Maria Bethânia. Só vim a saber muito tempo depois que Na escola onde estudei no período 1968-1970, havia
ela integrava o Show Opinião, que Augusto Boal participou alguns grupos teatrais, formados sobretudo a partir dos
da produção deste espetáculo e assegurou a pessoa jurídi- núcleos de amigos em sala de aula. Nós dispúnhamos
ca necessária à sua estréia através do Teatro de Arena, pois de um teatro (construído por uma rede de cinemas em
o Teatro Opinião só foi criado depois do espetáculo. terreno da escola) no qual podíamos ensaiar quase que
Para dar mais um exemplo, a música Upa, neguinho, em tempo integral e fazer nossas apresentações que às
gravada por Elis Regina, e proveniente do espetáculo vezes duravam um dia inteiro, a propósito dos mais di-
Arena conta Zumbi, também tocou muito no rádio e no versos motivos, inclusive e sobretudo os institucionais,
ano de 1965 era regularmente interpretada por ela em como festas em datas comemorativas. Pois bem: se foi
seu programa de televisão, O fino da bossa. Por essa nesse teatro que assisti à peça Liberdade, liberdade,
via, a série Arena conta... e os nomes de Augusto Boal também foi aí que tive a minha primeira experiência
e Gianfrancesco Guarnieri, sobre os quais era possível com a censura direta. Organizáramos um festivalzinho
saber alguma coisa no noticiário dos jornais, passaram de teatro que foi simplesmente proibido pelo delegado
a incendiar a nossa imaginação. de plantão. É claro que nenhum de nós atinou com as
Não é preciso multiplicar os exemplos: já está claro razões daquele ato de arbítrio, pois nenhuma das peças
que os jovens que moravam nos confins do Estado de que seriam apresentadas continha a menor referência
São Paulo – como eu, primeiro em Chavantes e depois de aos assuntos da ordem do dia... Já não me lembro mais
1967 em Botucatu – passaram a acompanhar com o má- quais eram seus títulos, mas acho que uma delas era O
ximo interesse, através de revistas, jornais, programas beijo no asfalto, de um dramaturgo que escrevia sema-
de rádio e de televisão, toda a produção cultural daque- nalmente no Estadão em defesa da ditadura, ou atacan-
la geração, que se tornou referência para muitos de nós. do os nossos aliados, como aqueles artistas já citados
Em primeiro lugar os cantores e intérpretes e depois ou os padres que no momento questionavam publica-
os compositores, como Edu Lobo e Guarnieri, autores mente o apoio da Igreja à ditadura. Como entender?
de Memórias de Marta Saré, defendida no IV Festival da Naquele ambiente que agregava sobretudo os es-
Record, em 1968, por Marília Medalha, também atriz do tudantes com interesses artísticos (músicos, composi-
Arena (ver post scriptum, abaixo). tores, poetas, dramaturgos, atores, atrizes e curiosos

vintém 7 • 51
Valter Campanato
Teatro Procissão da Marcha, MST

como eu), as notícias sobre o que acontecia em São Paulo Uma experiência pessoal pode ilustrar: por alguma razão
chegavam de viva voz: os que já estavam na universidade já esquecida, um grupo começou a ensaiar um dos autos de
traziam notícias dos espetáculos a que assistiam e se Gil Vicente e me pediu para fazer a sonoplastia. Fiquei intei-
esmeravam no relato sobre como eram as cenas, os figu- ramente livre para definir uma trilha e tratei de usar um cri-
rinos, as músicas, etc. Os espetáculos do Arena e do Ofi- tério brechtiano (que na altura não conhecia nem de orelha-
cina passaram a fazer parte das nossas referências desde da) para uma cena em especial. Tratava-se de uma espécie
logo pelo modo épico: as narrativas eram tão vivas que de conversa amorosa um tanto quanto melosa para o nosso
era como se os tivéssemos assistido! Isso valia também gosto adolescente. Pesquisando numa discoteca, encontrei
para filmes e outras experiências culturais que nossos uma versão para orquestra da “Barcarola” (de Offenbach,
amigos universitários nos transmitiam. E nós tratávamos Contos de Hoffmann) que serviu às mil maravilhas para o
de fazer por nossa conta o que achávamos ter equivalên- objetivo da encenação: produzimos o efeito cômico-crítico
cia com o que ouvíamos. desejado, pois muita gente riu durante a apresentação!

52 • vintém 7
Não posso garantir, mas tenho a impressão de que, amplas possibilidades libertadoras do vínculo estreito

augusto boal
pelo conhecimento indireto do trabalho desenvolvido entre teatro e educação acreditam que foi por defender
por Boal no Arena e Zé Celso no Oficina, nós já estáva- esta bandeira que ela não teve a menor chance quando
mos descobrindo por conta própria algumas possibilida- caiu nas mãos dos gorilas da repressão...
des do teatro épico. Mas então veio o AI-5, a censura
inclusive aos jornais que apoiavam a ditadura, como o 3. Pesquisa sobre os anos 60
Estadão, e tudo ficou muito mais difícil, inclusive para Em fins dos anos 70 formou-se na FFLCH-USP um
nós naquele fim de mundo. grupo de pesquisa sobre os anos 60, que eu passei a
integrar por entender que sua função seria uma espécie
2. Prisão e exílio de resgate da memória das experiências que eu mesma
Quando passei a morar em São Paulo, fiquei logo sa- tinha tido de modo indireto. Seria a oportunidade de
bendo do livro sobre a prisão e o exílio de Augusto Boal, conhecer os próprios textos, reconstituir a história dos
que me lembro de ter lido num volume que circulava de grupos Arena e Oficina em São Paulo e CPC e Opinião no
mão em mão, quase que clandestinamente. Este relato Rio de Janeiro (para ficar nos mais conhecidos). Nesta
foi o meu primeiro contato, por assim dizer, direto com o pesquisa, coordenada por Otília Arantes, que depois foi
Boal. A partir de então comecei a ler a obra dele, como o minha orientadora na pós-graduação, acho que com-
Teatro do Oprimido. É também dessa época (estamos em pletei o trabalho de construção da imagem de Augusto
meados dos anos 70, e já estou fazendo graduação em Boal, com o qual aprofundei a minha relação de admira-
Filosofia na USP) o meu encontro com a obra de Anatol dora, mas também desenvolvi uma relação crítica.
Rosenfeld (O teatro épico foi a primeira coisa dele que Na parte da admiração, que a pesquisa consolidou,
li). Agora meu interesse mais sistemático é o combate à encontra-se a constatação de que ele realizou um dos
ditadura, por um lado, e teatro político, por outro. Pau- mais importantes feitos da dramaturgia do início dos
tado sobretudo por aquele livro do Boal. Vocês podem anos 60, que foi a escrita e direção de Revolução na
entender, portanto, que ele foi uma espécie de referência América do Sul. Tratava-se de avaliação provisória que
fundamental em minha vida. Por isso, quando o conheci até hoje não foi descartada, e não serei eu a fazê-lo:
pessoalmente, foi uma espécie de reencontro de velhos como demonstrei em meu doutorado, com esta peça o
amigos, que se entendiam por meias palavras... Acho que teatro brasileiro (dramaturgia e cena) já entrara para
só estive com ele umas três ou quatro vezes. o campo do teatro épico. Acho ainda (e escrevi) que A
Em tempo: a prisão do Boal é apenas um exemplo do mais valia vai acabar, seu Edgar, do Vianinha, estabele-
que estava em andamento em matéria do combate que ce com esta peça de Boal um diálogo crítico dos mais
a ditadura travou contra os nossos melhores ativistas produtivos, sempre tendo em vista a incorporação, pela
do processo cultural. Heleni Guariba, assassinada pela dramaturgia brasileira, dos procedimentos e possibilida-
ditadura, era desta geração e todos os que apostam nas des do teatro épico. Ainda neste capítulo, está o projeto
do teatro do oprimido, que fez do Boal um dos mais
importantes homens de teatro do mundo.
“As narrativas sobre os Entre companheiros de luta, a admiração não pode
espetáculos do Arena ofuscar a capacidade crítica. Minhas restrições a Boal
estão todas no plano da teoria pois, para o meu gosto,
eram tão vivas como se os ele não acompanhou em termos de exigência teórica o
tivéssemos assistido!” que realizou no âmbito prático (que envolve teatro e

vintém 7 • 53
política ao mesmo tempo). Mas este é um assunto que O passo seguinte, naturalmente, aconteceu no con-
pode ser tratado em outra oportunidade. Digamos que, gresso de 2000, onde se discutiu a necessidade de re-
independente das objeções e da diferença de trincheiras, tomar, na teoria e na prática, a relação entre cultura e
no que diz respeito à luta pela democratização do fazer política, levando em conta que o MST é um movimento
teatral, eu me considero sua companheira. político. Ficou decidido que começariam pelo teatro e
enviaram uma comissão para falar com o Augusto Boal,
4. Boal vive! no Centro do Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro. Eles
Falar do trabalho de Boal no MST é uma entre muitas já sabiam da luta histórica do Boal e tinham notícias do
maneiras de assegurar que Boal está muito mais vivo do que o Teatro do Oprimido fazia.
que possam imaginar os nossos inimigos, podendo mesmo Este ponto é da maior importância para quem se inte-
parecer inacreditável para quem não está acompanhando ressa por cultura e política: a iniciativa de se aproximar do
a lógica do processo social e político. Boal foi do movimento e não o contrário, como geralmente
Em 2000 o MST realizou um de seus congressos. O se pensa, sobretudo entre as pessoas que fazem teatro. Ime-
movimento foi criado em 1984, 1985, e mais ou menos diatamente o Augusto Boal organizou uma oficina de Teatro
quinze anos depois foi feita uma avaliação geral do pro- do Oprimido para os primeiros militantes do MST. A par-
cesso, das condições da luta, enfim, o programa normal tir desta oficina, os seus participantes foram organizando
dos congressos de partidos e movimentos políticos. brigadas de teatro pautadas pelo método do Teatro Fórum,
Alguns integrantes da direção martelavam uma tecla principalmente, e do Teatro do Oprimido em geral. Vocês
já fazia tempo: nós precisamos dar mais espaço para a não imaginam a revolução cultural que aconteceu interna-
cultura no movimento. O MST foi o primeiro movimento mente no MST por conta disso. Eu fui abordada por um dos
social da história do Brasil que começou a discutir a sério militantes da Brigada Nacional Patativa do Assaré na altura
a importância da cultura. E começou a tomar providên- de 2003, 2004, quando fiquei sabendo desta história e des-
cias concretas pela questão da cultura natural dos seus
de então tenho acompanhado os trabalhos da Coordenação
integrantes, que é a moda de viola. Por conta disso, eles
Nacional de Cultura, participando de vários tipos de ativi-
fazem encontros de violeiros, que acontecem em Ribeirão
dades. Mas o mais importante é que aquilo que o MST faz no
Preto. Como eu mesma sou caipira e adoro moda de viola,
plano do teatro é prioritariamente voltado para o próprio
fiquei impressionadíssima com o que acontece nesses en-
movimento. E eles descobriram, pela experiência e pela me-
contros. O movimento recebe o apoio de violeiros pesqui-
todologia, que eles têm algumas questões que, se não for
sadores como o Ivan Vilela e, entre outros projetos, está
pelo teatro fórum, não dá pra enfrentar. Sobretudo o pro-
interessado em catalogar as linguagens da viola, que são
blema do machismo dentro do movimento e as questões que
de uma variedade impressionante no Brasil.
colocam a luta pela igualdade de gênero em todos os planos,
inclusive no que diz respeito à titulação de propriedade nos
“Falar do trabalho de Boal assentamentos e tal. Isto vai muito longe, mas vou encerrar
no MST é uma entre muitas este depoimento com um pequeno relato: eu assisti, num
encontro cultural do movimento em Recife, a uma sessão de
maneiras de assegurar que Teatro Fórum. Ali eu descobri o segredo do Teatro Fórum: se
Boal está muito mais vivo ele for feito com um número reduzido de pessoas, ao apre-
sentar uma provocação que chega ao âmago do problema,
do que possam imaginar os põe todos os presentes em questão e eles têm que se mexer,
nossos inimigos.” porque são diretamente interpelados. A outra vantagem que

54 • vintém 7
eu descobri com esta experiência é que, quando o tea­tro da cultura em seu programa político, é responsável por

augusto boal
fórum é feito entre companheiros, ele acontece de maneira seu resgate. Em muito breve tempo a peça Mutirão em
mais animada e divertida do que numa situação em que os novo sol estará disponível pra todos.
presentes não se conhecem nem sabem muito bem o que (Comentário de uma testemunha da apresentação em Re-
está rolando. Porque a interpelação é uma interpelação de cife): Foi um espetáculo incrível, primeiro foi um escânda-
companheiro: “Ô, meu, você viu?, vem aqui ver. Como é lo. O teatro cheio de camponês, como assim? E a reação da
que você resolve este problema? É uma encrenca familiar. platéia toda. O Luís Mendonça fazia o coronel e teve que
Na sua família, como é que vocês fazem?” Era nessa base. sair escondido porque eles queriam matar o coronel, foi
Eles não adotaram uma formula ortodoxa de Teatro Fórum, uma coisa alucinante. Lindo. Emocionante. Maravilhoso.
eles foram desenvolvendo. Como é natural. E eu fiquei re-
almente impressionada com a força de uma técnica que, 5. Post Scriptum
como o Boal mesmo dizia, está aí para ser transferida por- Em 2003 Solano Ribeiro, conhecidíssimo como orga-
que todo mundo pode ser ator, basta começar. Uma técnica nizador dos Festivais de Música Popular Brasileira, pu-
passa a funcionar como uma dica geral, expõe um “como se blicou um livro, Prepare seu coração, no qual esclarece
faz” meio provisório e convida a fazer. Neste caso do MST, uma série de relações entre teatro e música naquele
o teatro tem esta função prioritária de formular questões período. Ele mesmo foi estudante da Escola de Arte Dra-
para serem debatidas. O Teatro Fórum é uma arma preciosa mática, onde conheceu o próprio Boal e todo o pessoal
no teatro do MST. do Arena. Para não ir muito longe, basta lembrar que ele
Para concluir esta parte, tenho a notícia de que um
mesmo substituiu o Flávio Migliaccio no final da tem-
militante das brigadas de teatro do MST resgatou a peça
porada de Eles não usam black-tie a convite de Augusto
Mutirão em novo sol, que estava perdida. Ela vai ser re-
Boal e depois, entre outros trabalhos, integrou o elenco
posta na roda. É um trabalho coletivo sobre um processo
de Revolução na América do Sul.
de luta pela terra ocorrido no estado de São Paulo, que
Das histórias que conta sobre Boal no livro, uma das
tem o máximo interesse para o MST, como interessava no
mais interessantes diz respeito ao espetáculo Arena canta
início dos anos 60 para as Ligas Camponesas. Essa peça
Bahia, que em 1965 lançou em São Paulo (no TBC) artistas
foi apresentada em Recife. Nelson Xavier participou da
redação e dirigiu o espetáculo que aconteceu em Recife, então desconhecidos como Gilberto Gil, Tom Zé, Caetano
com apoio do Movimento de Cultura Popular, o MCP. A Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. Solano Ribeiro partici-
história tem lógica e o MST, por ter incluído a questão pou do projeto e testemunhou em Salvador a prática de um
dos métodos de pesquisa de Boal: “eu acompanhava Boal
pelas bocas soteropolitanas. Com um gravador, ele fazia
“Quando o tea­tro fórum é às pessoas das mais variadas atividades a pergunta: ‘Você
acha que a Bahia é a terra da felicidade?’” Estamos em me-
feito entre companheiros, ados dos anos 60, Boal ainda nem sonhava com a necessi-
ele acontece de maneira dade de propor alguma coisa como o “Teatro do Oprimido”,
e ele já estava esboçando a técnica do Teatro Invisível...
mais animada e divertida.
Porque a interpelação Iná Camargo Costa é professora do Departamento de
Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP.
é uma interpelação de Autora de, entre outros, A hora do teatro épico no
companheiro.” Brasil (Graal, 1996) e Sinta o drama (Vozes, 1998).

vintém 7 • 55
Para uma introdução à prática
do Teatro do Oprimido
Sergio Audi E aí entra o teatro como arte que lida basicamente
com a ação como forma de expressão e como matéria-pri-
Convencionou-se chamar Teatro do Oprimido a metodo- ma. O estudo das ações e suas conseqüências, o fortaleci-
logia e prática sistematizada nas últimas quatro décadas mento do indivíduo para que ele possa agir em situações
por Augusto Boal e seu Centro de Teatro do Oprimido adversas e o conhecimento de seu próprio instrumento de
(CTO-Rio), e praticada em mais de 70 países através da ação: o corpo, o pensamento, a palavra, a imaginação, a
ação política disseminadora do CTO, órgão de referência criatividade, a imagem e o som.
para tudo o que se relaciona com o Teatro do Oprimido. Uma das maneiras de começar este fortalecimento é
O TO parte de premissas que, por si só, já são um gran- com o descondicionamento de seu próprio corpo e senti-
de avanço nos paradigmas dominantes. dos. A vida cotidiana do mundo do capital e do trabalho
A primeira delas é a de que a arte não é privilégio estranhado (ou trabalho alienado) limitam as possibilida-
de artistas, mas sim patrimônio e direito de todas as des humanas a sua perspectiva mais imediata, condicio-
pessoas, incluindo-se aí a criação, a fruição e a crítica. nando o próprio corpo e os sentidos a enxergar e praticar
Portanto, a prática artística não seria um privilégio de apenas o repertório de seu raio de ação, repetido cons-
uma casta de “iluminados” que teria o “dom” de realizá-la tantemente por uma prática cotidiana alienante.
para o deleite e o entretenimento dos demais mortais. Parte fundamental do trabalho do TO é o descondi-
A segunda premissa relaciona-se com a própria função cionamento do corpo, dos sentidos e do raciocínio, am-
social da arte: trata-se de um direito e um patrimônio pliando suas formas de expressão e sensibilidade. Sua
universal, porque a criação artística é um dos motores finalidade também é a de proporcionar possibilidades de
fundamentais da emancipação humana, e não apenas novas atitudes e pontos de vista. Por isso, para uma ini-
mercadoria de entretenimento. ciação no TO, são fundamentais experimentar exercícios
O TO é antes de tudo uma prática política. Utiliza o e jogos numa seqüência que Boal classificou em cinco
teatro como forma de avançar em questões que oprimem categorias:
um ou mais cidadãos, em função da libertação destes 1. Sentir tudo o que se toca, procurando “diminuir a
cidadãos, da “desopressão” através de ações práticas no distância entre sentir e tocar”
universo da vida material. 2. Escutar tudo o que se ouve
Esta desopressão é ensaiada no plano lúdico do jogo 3. Desenvolver os vários sentidos ao mesmo tempo
teatral, para fortalecer o cidadão quando na situação 4. Ver tudo o que se olha
concreta de opressão e para o seu entendimento das 5. Ativar a memória dos sentidos
cadeias de opressão com as quais se relaciona. Porém,
além do entendimento, o fundamental é a ação na vida Estes jogos e exercícios estão descritos em várias
cotidiana. obras, mas foram especialmente sistematizados em Jo-

56 • vintém 7
gos para atores e não-atores1, onde essas categorias são Mas alguns pontos podem ser indicados:

augusto boal
obedecidas na série descritiva dos jogos. Começando pelos jogos de aquecimento, avaliando
Porém, antes de conduzir os jogos com qualquer cole- sempre as necessidades específicas de cada grupo. O ob-
tivo, se faz necessário, em nossa reflexão, experienciar jetivo do aquecimento é inicialmente sensibilizar o indi-
estes jogos e exercícios como “jogador”. O conhecimen- víduo com ele mesmo, descortinando outras possibilida-
to dos jogos teatrais só pode ser completo com a expe- des adormecidas de seu aparelho sensorial-emocional, e
riência sensorial-cognitiva da imersão no jogo, agindo começar a desenvolver a confiança em si mesmo e nos
e nos relacionando com outros jogadores em condição parceiros.
de igualdade. Esta é a primeira premissa para se poder A segunda fase do aquecimento é a integração: a
“entender” o TO: a experiência prática. descoberta/constatação que coletivamente se anda
O ato de “curingar2” – coordenar os exercícios, jogos mais e melhor; a perda do medo do outro; a desmecani-
e cenas gerados pelo TO – só pode ser efetivado ple- zação da competição instaurada em nosso cotidiano; o
namente com a vivência interna dos jogos e o estudo despertar para o trabalho em prol de um coletivo, e não
de suas finalidades, obedecendo a um sistema que foi contra os outros; em prol de uma individualidade.
criado – ou, nas palavras de Boal, “descoberto” –, com A formação da consciência do grupo é um estágio
uma prática essencialmente política de intervenção na fundamental na dinâmica do TO. Esta consciência pode
realidade social. demorar um tempo para surgir, mas sem ela os resulta-
A consecução desta prática está, sobretudo, subor- dos são sempre muito limitados.
dinada ao princípio básico: a busca da emancipação A partir daí, podemos avançar: como abordar os te-
através de uma postura ética, através da estética e da mas que realmente nos interessam? O que pode ser per-
solidariedade, gerando ações concretas. tinente a determinado grupo? O que reflete os desejos
Portanto, é fundamental não encarar o TO simples- de uma coletividade em um determinado momento?
mente como um “método” ou um mero arsenal de pro- Começamos então com jogos que aos poucos des-
cedimentos que poderiam ser utilizados em quaisquer cortinam os mecanismos da improvisação e introduzem
situações. Esta, aliás, é a grande impostura de grupos a noção de fórum e de intervenção concreta através da
e entidades que se utilizam das técnicas de TO para ação. Praticamente obrigatória é a introdução de uma
meramente pacificar conflitos e amenizar contradições ou mais demonstrações de fórum, exemplificando qual é
onde estas, por coerência política e compromisso ético,
o objetivo de uma sessão de Teatro-Fórum.
deveriam ser aguçadas.
A técnica denominada Teatro-Fórum tem um gran-
Mas voltemos ao princípio básico deste texto: como
de valor, e, provavelmente, é um dos expedientes mais
começar a fazer TO?
avançados do arsenal do TO. Trata-se de uma dinâmica
Qualquer receita prévia poderá ser ineficaz, visto que
onde histórias reais de opressão são encenadas, termi-
a aplicação de jogos depende da leitura que o curinga
nando a encenação no ponto de crise ou no momento
tem do grupo e do momento específico enfrentado.
em que a opressão se configura através da ação e se
1
Boal, Augusto. Jogos para atores e não atores. Ed. Civilização produz o impasse: o que fazer nessa situação? A partir
Brasileira: São Paulo, 1999. daí, a platéia – ou os “espect-atores”, no dizer de Boal
2
Uma noção básica no TO é a noção de curinga. O curinga é – intervém na cena propondo alternativas de encami-
a pessoa que tem experiência em TO e coordena os exercícios nhamento daquela situação de opressão.
e jogos, tendo amplo conhecimento dos princípios do Teatro Através dos depoimentos reais de acontecimentos
do Oprimido. ocorridos com cada grupo, das histórias efetivas vivi-

vintém 7 • 57
das pelos indivíduos, chegaremos a uma
questão que mobilizará a totalidade dos
membros de um grupo. Identificando-nos
com uma opressão vivida por outrem, nos
mobilizamos para tentar solucioná-la.
Para se chegar a essa cena, é neces-
sário inicialmente que todos relatem
histórias de opressão que tenham vivido
ou presenciado e que de alguma maneira
os mobilizem individualmente. A escolha
final da cena a ser trabalhada deve ser
uma escolha coletiva, após aprofundado
debate com todo o grupo.
Para que as cenas produzidas tenham
realmente um efeito mobilizador, é ne-
cessário que os conflitos estejam claros
e que todos os participantes tenham
pleno conhecimento da questão levan-
tada e das suas funções na cena. Para
aprofundar estas necessidades, realizam-
se Técnicas de Ensaio3 na preparação e
montagem das cenas.
A partir daí, realiza-se a sessão pú-
blica de Teatro-Fórum, onde as opres-
sões-tema levantadas serão estudadas
e encaminhadas publicamente, num
processo político-artístico que procura
resultar em ações concretas para forta-
lecer os indivíduos ante as opressões
estudadas.
Arrisco-me a afirmar que Boal, atra-
vés do Teatro-Fórum, avançou na ques-
tão proposta por Brecht ao enunciar o
conceito de “peça didática”: um expe-
diente onde todos, atores e espectado-
res, aprendem e avançam politicamente.

Sergio Audi é diretor, ator e


integrante do Teatro Coletivo.
3
idem, pp. 284-96

58 • vintém 7
Falando

augusto boal
de disgus
Helen Sarapeck

Lição me lembra escola, matéria, aula,


professor e aluno. Boal não gostava de
ter alunos – palavra de conotação, no
mínimo estranha, para quem aprende:
sem luz – mas amava ter gente por per-
to. Tinha clareza da necessidade da edu-
cação, mas apreciava mais a pedagogia.
Acreditava na idéia de que só se aprende
quando se ensina.
Certa vez Boal descobriu que na lín-
gua do País de Gales a palavra disgu as-
sume dois significados: aprender e en-
sinar. Passou a usá-la e hoje faz parte
do glossário do Teatro do Oprimido. Por
isso, prefiro, ao invés de lições, falar de
disgus, os quais tivemos incontáveis, eu
e toda a equipe do Centro de Teatro do
Oprimido (CTO), nesses 23 anos de histó-
ria juntos. Aqui deixo registrado apenas
alguns dos maiores.
Boal era muito mais que um inte-
lectual, diretor de teatro, dramatur-
go, escritor, pai e filho de padeiro.
Boal foi o criador do Teatro do Opri-
mido (TO), um método teatral simples
e revolucionário. Através dele, o ser
humano se redescobre capaz e forte
o suficiente para uma mudança neces-
Boal e curingas do CTO sária em sua vida, e em conseqüência,
na vida do planeta. Acreditar que o

vintém 7 • 59
mundo pode, deve e será diferente será sempre nosso do ser humano e do potencial de cada um através da
maior disgu. arte. Boal inicia seu último livro, A Estética do opri-
A proposta do TO é fazer com que o oprimido se apro- mido, para o qual o CTO foi fundamental colaborador,
prie do fazer teatral, deixando de ser mero consumidor e falando sobre a castração estética a que estamos sub-
passando a produzir sua própria cultura. Deixando de ser metidos. Fala do analfabetismo estético que aliena o
espectador para virar protagonista de sua própria histó- indivíduo da produção da arte e do exercício criativo,
ria. Quem faz TO assume a luta em busca de um mundo reduzindo pessoas potencialmente criadoras à condi-
mais justo. Luta contra a discriminação social, racial e de ção de objetos receptivos. Anuncia assim a 3º guerra
gênero. Luta contra a homofobia, a xenofobia e a intole- mundial: a guerra dos sentidos.
rância religiosa. Luta contra a injustiça social, o abuso Somos bombardeados diariamente com músicas esta-
de poder e o massacre da população. dunidenses que ouvimos nas rádios ou filmes que vemos
Usamos os princípios e disgus primordiais da meto- na TV. Nossa mente é ensinada a consumir o que o pen-
dologia: ética e solidariedade. Toda ação do CTO deve samento dominante impõe. É uma guerra silenciosa, trai-
estar baseada na ética do bem. Aprendemos e ensinamos çoeira e cruel.
que nenhuma busca é justa e honesta se não for realiza- A proposta do Teatro do Oprimido é descobrir os sons
da com ética. Não posso pegar um dinheiro que não me e ritmos que não existem nas rádios, mas existem em
pertence, assim como não posso usar a metodologia para nós; as palavras que não estão nos livros, mas em nossas
fins que não são do interesse dela. O Teatro do Oprimido cabeças; a imagem que somos capazes de pintar em um
tem uma filosofia, que se expressa através de um método.
quadro; a dança que nossos corpos podem inventar para
Quem trabalha com ele são pessoas que aderiram a essa
lutarmos contra esse massacre.
filosofia e a esse método.
Podemos usar a arte para estimular o indivíduo a
“Fazer Teatro do Oprimido é o resultado de uma es-
pensar, a dar sua opinião, como podemos usar a mesma
colha, de uma tomada de partido em favor dos oprimi-
arte para fazê-lo engolir uma mensagem ou uma opinião
dos. Transformar o TO em mero entretenimento seria
pré-estabelecida por uma classe dominante. Aqui reside
desconhecê-lo, transformá-lo em arma de opressão,
a essência ética da arte, pois ela pode ser usada para
seria traí-lo”, reforça Boal em uma de suas mensa-
gens eletrônicas trocadas com a equipe de Curingas1 dinamizar ou anestesiar. Cabe a cada um decidir de que
do CTO. lado da guerra está.
Quem faz TO tem um compromisso e obrigação moral Usando a ética como base, a solidariedade como força
com os oprimidos. A solidariedade é a força do método. O e a estética como arma, seguimos combatentes, assim
trabalho desenvolvido em comunidades, penitenciárias, como era desejo de Boal e será sempre o do Centro de
centros de atenção psicossocial, escolas, acampamentos Teatro do Oprimido. Além de todos os disgus que tivemos
do MST, remanescentes de quilombos, tribos indígenas, juntos, Boal nos ensinou, há 23 anos atrás, que “a luta
entre outros, é nevralgicamente solidário. Quando nos não é fácil, mas necessária”. Portanto, estamos na guerra
associamos a uma causa, estamos apoiando-a e sendo do lado do bem.
co-responsáveis por ela. “Ser solidário é correr o mesmo Obrigada, meu querido amigo, mestre e companheiro
risco”, já dizia Che Guevara. de luta, Augusto Boal.
Para que eticamente esse teatro solidário seja efi- Viva Boal!
caz, é preciso que colabore para a descoberta estética
Helen Sarapeck é coordenadora do
1
Especialistas na metodologia, capacitados para multiplicar. Centro de Teatro do Oprimido

60 • vintém 7
Notas sobre a prática

augusto boal
dialética de Boal*

Sérgio de Carvalho múltipla atuação. De tudo Boal fez um pouco: foi dra-
maturgo, diretor, professor, ensaísta. Sempre excessi-
Augusto Boal mudou o lugar do teatro. E realizou o va e brilhantemente. E sua visão dialética enfatizava a
gesto através de uma reflexão teórica única, capaz de temporalidade das coisas: tinha uma atenção toda espe-
inaugurar uma prática de ativação popular trans-esté- cial à vida em fluxo. Enxergava nas partes as dinâmicas
tica. O paradoxo é que seu projeto contém, ao mesmo do todo. Sabia que toda afirmação é uma supressão.
tempo, uma negação da arte e a geração de campos de
autonomia estética, com vistas a uma práxis igualitária. Laboratórios e seminários
Assim, em cada afirmação esperançosa sobre as possibi- Boal se decide pelo teatro nos anos 1950, quando se
lidades de ação humana transformadora, Boal inscreveu matricula no curso de Dramaturgia de John Gassner, na
também um não fundamental, porque desde cedo foi Universidade de Columbia, Estados Unidos, em paralelo à
um dialético. Não conheci ninguém mais interessado na especialização em Química. Nas horas vagas acompanha-
mobilidade, na incerteza, na ambigüidade. va também oficinas no Actor´s Studio. Em dois anos, per-
Em suas “memórias imaginadas” que têm o título deu o interesse pelas metamorfoses de substâncias, cada
curioso de Hamlet e o filho do padeiro (Record, 2000), as vez mais pautadas pela pesquisa industrial, submetidas
evocações da trajetória familiar e profissional deflagram aos interesses das trocas mercantis. Preferiu a imprecisão
mais do que a luta entre o ser e o não ser, a verificação do teatro, sua construção precária, também sujeita às
de uma unidade relativa ao tempo. “A tragédia de Ha- imposições da mercadoria, mas sempre algo anacrônica e
mlet não é ser ou não ser: é ser e não ser. Hamlet é os artesanal quando comparada à serialização cultural.
dois (...) e só não sabe ser ele próprio. Sou especialista Em todos os trabalhos importantes que realizou, Boal
nessa dicotomia.”, diz Boal. imprimiu a herança científica que o levou ao estudo de
A arte, segundo essa visão, é uma produção humana química. Não é à toa que usou a forma dos laboratórios
que tem sentido ao produzir o desconhecido, ao inventar para transmitir seus conhecimentos ao elenco do Teatro
um lugar sempre mais além, chamado “outro”. Boal criou, de Arena, grupo dirigido por José Renato, onde ingres-
nessa perspectiva, condições estéticas (e extra-estéticas)
sou em 1956.
que permitem exercícios de autonomia crítica e política.
Mal se iniciava como diretor de cena, Boal valoriza-
Talvez tenha sido essa tendência de espírito que o
va o processo para desautomatizar o produto. Criou um
fez, ainda muito moço, trocar a carreira de químico pela
sistema de ensaios feito de exercícios preparatórios de
de fazedor de teatro, expressão vaga que não abarca sua
aproximação psicofísica ao papel, com base em Stanis-
* Este artigo é uma versão compacta e revisada do texto Um lavski, distendendo o tempo de ensaio e coletivizando
idealista prático, publicado em Carta na Escola, edição 37, São os procedimentos para além da simples marcação do
Paulo, Editora Confiança, Junho-Julho 2009, pp.52-55. texto decorado.

vintém 7 • 61
Boal antes de sessão solene simbólica do teatro legislativo. Londres, 1998

Na área da dramaturgia, depois de um curso interno de sua ação no Seminário de Dramaturgia. O que parece
oferecido ao grupo para compartilhar a chamada carpinta- ter ocorrido ali é uma superação do modelo aprendido em
ria aprendida nos Estados Unidos, ele funda o famoso Se- Nova Iorque em função de outros fatores, entre os quais o
minário de Dramaturgia, aberto a escritores e estudantes, sucesso temático de Eles não usam black-tie, de Guarnieri,
com a tarefa de estimular a escrita de textos nacionais. que punha em cena embates da vida operária e trazia
Naquele tempo, ele acreditava em estruturas dramáticas um modelo em que o conteúdo social pressiona o mo-
clássicas: a peça teatral nasce do entrechoque de vontades ralismo da forma dramática. Refuncionalizava-se, assim,
individuais rumo a sua reviravolta. Mas essa técnica se re- a forma do conflito psicológico em nome de um projeto
lativizava na prática experimental de intercâmbio com os crítico de arte popular e brasileira. A técnica estrutural
jovens integrantes politizados do Arena (Vianinha e Guar- aprendida com Gassner, de base hegeliana, se convertia
nieri eram filhos de artistas ligados ao Partido Comunista na procura sistemática de uma dialética do drama, am-
e discípulos de Ruggero Jacobbi, o mais culto dos encena- pliada com a leitura do próprio autor da Fenomenologia
dores italianos que passou pelo TBC de São Paulo). do Espírito. Instaurava-se a prática do debate político
Mesmo sendo difícil avaliar o período em função da sobre uma cena em que o risco do patrulhamento era
escassez de documentos, não há dúvida que o trabalho de um mal menor diante da impressionante mobilização dos
Boal foi o catalisador de uma revolução estética a partir sentidos cênicos para o momento histórico agudo em que

62 • vintém 7
o país entrava. Tudo isso se imagina por depoimentos algo que não se representa, mas se pressente. Uma vitali-

augusto boal
da época, e pelos resultados no trabalho de tanta gente dade indefinível que nasce de uma concretização singular
que começou a escrever do dia para a noite. Muitos dos mas não absoluta, de uma capacidade de trânsito livre e
melhores dramaturgos do país que depois migraram à ativador entre palco e platéia.
televisão – penso em Lauro César Muniz e Benedito Ruy Sua diferença em relação ao projeto de Brecht se deve
Barbosa – devem seu conhecimento técnico a Boal. também a uma interpretação sobre a situação histórica
Mas a lógica dialética que Boal transmitia em seus do Brasil na década de 1960. A crítica dos principais ar-
cursos, impunha a ele próprio uma atitude de negação. tistas da época ao populismo do pré-1964 partia de uma
A melhor peça escrita por ele no período, Revolução na verificação dolorosamente palpável: houve ilusões em
América do Sul, de 1960, se afasta do padrão do conflito relação ao projeto de uma arte socialmente integrado-
inter-subjetivo, a ponto de se converter em outra coisa. ra no luminoso período entre 1960 e 1963, comparável
A saga cômica do famélico Zé da Silva rumo a uma in- ao engano de acreditar que a burguesia progressista do
compreensão cada vez maior sobre o funcionamento do país combateria do lado das reformas socializantes pre-
sistema econômico está mais próxima da palhaçada do tendidas pela equipe de João Goulart.
circo, em sua estrutura despedaçada. São episódios de Mas os equívocos populistas do teatro experimental
uma ingenuidade, na forma de números irônicos. Não se de conscientização política – cujo mais avançado exem-
vê ali o realismo autoconsciente com desenlace positivo plo é o CPC da UNE, liderado por Vianinha – são insigni-
que anima peças sociais do período. Boal dialoga, mais ficantes diante dos enormes avanços artísticos surgidos
do que nunca, com a técnica do teatro épico de Brecht, da nova relação de trabalho surgida. Ao se aproximarem
autor que admirava e conhecia bem, mas que não lhe dos despossuídos da cultura, essa geração de artistas
falava ao coração luso-brasileiro, talvez por seu mate- mudou. Aprendeu a expor a fragilidade de uma produção
rialismo por demais cortante e distanciado. cultural que precisa reinventar suas formas e sentidos.
Mas ambos são dialéticos. E mesmo que Boal tenha Por mais que em algumas ocasiões Boal partilhe da de-
sido, do ponto de vista filosófico, um idealista, sabia preciação injusta lançada sobre os CPC da UNE, o Teatro
transmudar essa tendência numa prática artística cam- do Oprimido não existiria sem esse passado, assim como
biante, feita de atitudes gestuais críticas e reflexivas. o CPC não existiria sem Boal.
Como muitos artistas modernos, Brecht e Boal quiseram Com o fechamento político do pós-64, ele se vê em
que o teatro fosse outra coisa além de “teatro”. Que fos- uma nova situação imposta pela conjuntura, o que mo-
se capaz de desmontar o imaginário social dominante, difica a fase de sua invenção laboratorial. Nos espetá-
ao preço de ter que se negar – no sentido hegeliano de culos da série Arena conta sobre figuras históricas bra-
aprofundar para superar – a dimensão estética. sileiras (Zumbi de Palmares e Tiradentes) Boal põe em
O ator se transforma em personagem. O palco real ins- prática uma forma de atuação em que o elenco assume
taura mundos irreais. É comum que essa qualidade con- o espetáculo como evento narrativo. Criava, assim, o
traditória do teatro seja cultuada em termos idealistas: a sistema do Coringa, em que a personagem era transmi-
essência do teatro estaria nesse constante ser-no-outro. tida de um ator para outro. Como convenção da troca,
Mas a obra brilhante de Boal é um testemunho de que a um dedilhar musical forte no violão e a repetição de um
dialética deve incidir sobre si própria. Daí seu movimento gesto marcante pelo intérprete seguinte. Vários atores
de recusa do teatro. Não basta saber que o teatro aproxi- conduzem a mesma personagem, ajudados por um mes-
ma os contrários, é preciso algo mais do que a conciliação tre de cerimônias, o Coringa, que comenta a ficção. A
abstrata. Como artista da ficção mimética, ele procurava idéia de um gesto social citável e de um teatro narra-

vintém 7 • 63
tivo e musical são heranças brechtianas. Servem agora multiplicação de células. A ferramenta deveria ser capaz
como suporte para uma alegoria lírica sobre o país diante de se adequar à mão de quem usa.
de seu passado imediato. Massacre imposto e equívoco Com sua prisão no início da década de 1970 e subse-
dos intelectuais. Sempre que voltava a esse assunto, Boal qüente exílio, no período mais violento dos assassinatos
costumava comentar a frase de Brecht segundo a qual da ditadura, essa disposição científica, ligada a uma prá-
é “triste um país que necessita de heróis”. E lembrava tica artística comunitária, sofreu um grande abalo.
que o nosso é triste porque precisa dos atos individuais Isolado, restou a Boal, no fracionamento imposto
libertadores. Em que pese aí uma insistência discutível pelo exílio, a tarefa de produzir sentido em relação à
na importância de uma dramaturgia capaz de criar mi- experiência passada. Assim como Brecht escreveu a parte
tos (ao contrário do que argumentava a crítica de Anatol mais famosa de sua obra nos anos de fuga da guerra e
Rosenfeld na época), o idealismo dramático expõe suas do nazismo, foi no deslocamento entre Argentina, Peru,
franjas e mangas no avesso: era dialetizado pela prática Portugal e França, que Boal constitui as bases de seu
coletiva dos ensaios. Boal escrevia Zumbi com Guarnieri, trabalho mais conhecido, o Teatro do Oprimido.
ao mesmo tempo em que Edu Lobo musicava as letras. No Todo grande artista ligado a uma prática coletiva sen-
ensaio da noite, o texto se corrigia pela interação com os tirá como trágica a experiência de ter que atuar à distân-
atores. Trabalho coletivizado e não especializado. O sen- cia, em abstrato, através de textos que não passam pela
so agudo de individualidade de Boal precisava do grupo. prova do confronto com o público. Brecht considerava
E para ele o teatro de grupo só existe quando o projeto certas peças da maturidade como uma “regressão técni-
se torna transmissível, citável, como os gestos dos atores ca”, necessária diante do novo contexto de sua produção.
no sistema coringa. Alguns dos primeiros trabalhos de Boal no exílio indicam
a modificação de curso: da experimentação teatral dialé-
Luta no exílio tica ele passa a procurar fórmulas que superem as con-
As mais interessantes e modelares experiências ar- tradições do projeto de uma arte popular crítica e radical
tísticas de Boal durante a existência do Teatro de Are- que parecia ter fracassado. “É preciso cunhar fórmulas”,
na estiveram ligadas ao desejo de interferir no tempo já disse Brecht, mas a redução que facilita a circulação é
histórico. Mas quando o governo militar decide fechar o a mesma que traz a perda da complexidade.
cerco sobre o movimento estudantil, e por tabela sobre Talvez haja um deliberado recuo necessário nas re-
a vida cultural, cuja contestação ainda era admitida nos flexões de Boal contidas no mais famoso de seus livros,
anos anteriores, ficou nítido quem conduzia o processo. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, publicado
Enquanto foi possível atuar coletivamente no campo do pela Civilização Brasileira, de Enio da Silveira, em 1974.
teatro, a imaginação laboratorial de Boal produziu novos É uma compilação de trabalhos críticos ligados aos anos
experimentos: o Núcleo 2 do Teatro de Arena difundia anteriores do Teatro de Arena, reorientados por uma idéia
exercícios de Teatro Jornal, em que o noticiário do dia que seria decisiva para ele a partir de então: a tradição
era encenado em perspectiva crítica à noite. Mais uma do drama ocidental se baseia na intimidação poética e
vez Boal sublinhava a perspectiva metodológica do exer- política do espectador. Seria, portanto, preciso ir além e
cício. Não era só o assunto jornalístico que o público via, ativar literalmente o público: “O espectador, ser passivo,
mas uma técnica transmissível que ele próprio poderia é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo,
reproduzir para ter acesso a outras imagens da realidade. restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua pleni-
Boal procurava retomar o agitprop (o teatro jornal foi tude.” Em outros termos, é preciso que alguém diga stop
muito usado por Vianinha no CPC) aliado ao conceito da e o próprio espectador suba ao palco e conte sua versão

64 • vintém 7
vel etc.): transmitir a qualquer um os

Arquivo MST

augusto boal
meios de produção teatral como ferra-
mentas para uma consciência pedagó-
gica. E essa pesquisa não cessou até
sua morte, como testemunham os tan-
tos trabalhos em movimento que Boal
publicou ao longo da produtiva vida.
Enio da Silveira estava certo quando
batizou o livro famoso de Boal nos ter-
mos de Paulo Freire. A ênfase saía de vez
do campo estético e passava ao apren-
dizado teatral através do jogo anti-ide-
ológico, em que não há mais a palavra
autorizada, mas a experiência comum.
Uma leitura do conjunto de seus es-
critos revela o cuidado com que o dialé-
tico Boal procurava extrapolar o esque-
ma dualista em que se funda a oposição
opressor-oprimido. Libertar-se é trans-
Boal em conversa com grupo teatral do MST gredir, ele dizia. Mas ao mesmo tempo
em que a fórmula parece fazer abstração
da história, como ocorre na técnica que Boal batizou da luta de classes e das categorias políticas do conflito
depois de Teatro Fórum. social, Boal exigia que os casos de opressão pessoal discu-
A simplificação teórica está em dizer que o ato de tidos por seus grupos fossem exemplares segundo pontos
espectação é necessariamente passivo. E que o público, de vista políticos e sociais. A ferramenta do teatro a ser-
por estar sentado, é desde sempre vítima do consumo viço da mudança, em todos os níveis da existência. Como
das imagens. Como bom dialético, Boal sabe que exer- hegeliano, Boal trabalhou por um sistema. Como artista,
cer a imaginação, o senso crítico e a sensibilidade são manteve-o inconcluso, à espera da modificação prática.
atividades produtivas. Depende do modo como a relação No simbolismo de que todos nós podemos ser atores
teatral se configura. Mas como em outras ocasiões, esse se encontra o desejo radical de que os oprimidos pelas
limite idealista da teoria é autonegado pelas demonstra- dinâmicas da exploração se tornem sujeitos da história.
ções práticas que surgem nos livros posteriores, todos Daí sua inversão revolucionária do sentido do teatro,
manuais de prática teatral: Técnicas latino-americanas daí a constatação de que esse trabalho depende sempre
de teatro popular, 200 exercícios e jogos para o ator e do outro, de continuados intercâmbios com agentes da
o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro, luta social, o que inclui sua experiência como vereador
Stop: c´est magique! Nenhum artista brasileiro até então e o belo trabalho com o MST nos últimos anos.
produziu uma síntese tão inventiva de procedimentos de Pouca gente amou tanto o teatro como Augusto
trabalho teatral com vistas a sua utilização deslocada. Boal. Ele, que nos ensinou a desmontar a teatralidade
Em Stop: c´est magique! Boal revela o principal mo- opressiva entranhada nas formalizações culturais e nos
tor das várias técnicas abarcadas sob o título Teatro mostrou que o teatro deve ser praticado com risco, pois
do Oprimido (a do Fórum, da Imagem, do Teatro Invisí- o que está em jogo é o combate pela vida.

vintém 7 • 65
O trabalho de Piscator e Brecht
A inferência nem sempre vem justificada pelo elemen-
to que dá origem e sentido ao emprego destas técnicas: a
procura por um teatro político correspondente aos obje-
tivos da luta do proletariado. Todos os recursos técnicos
avançados da cena de Piscator visavam a uma conversão
da cena privada em cena pública, a uma ampliação da
perspectiva histórica da narrativa dramática, a uma epi-
cização política da forma. Não por coincidência, será o
mesmo projeto que determina a aproximação com o dra-
maturgo Bertolt Brecht.
A perspectiva do teatro de Piscator, seja nos traba-
lhos como diretor convidado do Volksbühne (de 1924 a
1927), seja nas fases nas quais trabalhou com companhia
própria (alugando o Teatro Lessing ou o Teatro Central
e implantando o Teatro Piscator no Nollendorftheater),
era “elevar o cênico ao histórico, aplicar a dialética mar-
xista no teatro”1.
Cenário de vários pisos para Oba, estamos vivendo Já em sua época, o problema da desvalorização da
dimensão política em relação à estética incidia sobre
É o trabalho como dramaturgista com Erwin Piscator
o trabalho de Piscator. Não eram incomuns os elogios
da imprensa que frisavam os ganhos técnicos de suas
(1893-1966), que permite a Bertolt Brecht formular suas
encenações, reconhecidos apesar da “tendenciosidade”
reflexões sobre o teatro épico. O projeto brechtiano de
presente.
uma teatralidade narrativa, capaz de superar a forma in-
Um caminho mais verdadeiro de compreensão do seu
dividualizante do drama, pode ser lido como um desdo-
teatro pode ser encontrado na formulação discutida por
bramento das pesquisas cênicas de um diretor radical que Walter Benjamin em O autor como produtor2 : sua qualida-
centralizou os debates sobre arte política na República de de advêm precisamente desta tendenciosidade, o que no
Weimar. O debate aqui publicado, em torno da possível caso se traduziria pela tomada de posição política expli-
encenação de Tambores na noite, é um vivo testemunho citada na cena.
dessa relação de trabalho. Em uma das notas referentes à Piscator em A compra
O nome de Erwin Piscator costuma ser associado às suas do latão3, os seguintes comentários de Brecht nos ajudam
inovadoras proposições técnicas na encenação. Grandes es-
truturas mecânicas – como esteiras rolantes, palco giratório 1
Citação do diretor, p. 157. Em Piscator, Erwin. O teatro político.
ou tetos móveis que recortavam cenas – eram capazes de Rio de Janeiro:Ed. Civilização Brasileira,1968.
conferir uma mobilidade espacial inédita e se associavam a 2
Texto publicado na coletânea Magia e técnica, arte e política.
projeções de filmes, fotografias e desenhos animados que Benjamin, Walter. São Paulo, Brasiliense, 1985.
interferiam não apenas na cenografia, mas na atuação. 3
Brecht, Bertolt. A compra do latão. Lisboa: Veja, 1999.

66 • vintém 7
a imaginar como este projeto era concretizado: liga de início aos meios de se criar a dimensão histórica:
enquanto Piscator investe nos elementos cênicos, Brecht
“O próprio teatro como instituição artística aposta na escrita teatral e no modo de representação do
modificava-se quase violentamente com cada tare- ator, no caminho de uma dialetização radical da forma
fa que se propunha, em certas alturas já só mui- dramatúrgica.
to pouco tinha a ver com arte.(...) Mesmo o pal- O projeto de teatro político de Piscator, muito ativo
co tinha mobilidade. Duas cintas movidas a motor em relação aos movimentos sociais da época, era consti-
permitiam a representação de cenas de rua. Havia tuir o “teatro do proletariado”. Muitas vezes se opondo à
coros falados e cantados. Os projetos eram tão im- cúpula dirigente do Volksbühne, seu empenho estava não
portantes como aquilo que se acabava ou que ficava apenas em incluir os grupos proletários nas platéias dos
a meio, pois coisas completamente acabadas nunca teatros – esse era um pressuposto geral da própria casa
se viam. (...) [Piscator] mostrava o seu amor pela teatral em que atuou por anos – mas antes, em aprofundar
maquinaria, que muitos lhe reprovavam e outros lhe a perspectiva comunista dos temas e modificar fundamen-
elogiavam sobremaneira, apenas na medida em que talmente toda esfera da produção teatral.
servia a sua imaginação cênica. Ainda assim, pro- Da matéria dramatúrgica às estruturas arquitetônicas,
vava ter o sentido da simplicidade – o que o levou no modo de trabalho que coletivizava a relação entre ato-
também a ver o estilo de representar do homem de res, diretores e técnicos, todos os níveis da produção ga-
Augsburgo como aquele que melhor servia as suas nhariam uma nova perspectiva e consciência a partir de
intenções -, pois a simplicidade estava de acordo suas realizações. À maneira dos russos, Piscator criou o
com o seu objetivo que era por a nu e reproduzir Estúdio, espaço no qual toda a equipe – que nesta épo-
os mecanismos do mundo para que seja mais fácil ca reunia centenas de pessoas, sem contar os sócios do
o seu manejo”4 teatro – freqüentava aulas e formava frentes de trabalho
específicas para suprir as necessidades de cada montagem
Era uma época que pedia novas formas. O Naturalis- (como o laboratório dramatológico, que produziu quatro
mo, que pela primeira vez trazia o proletariado como textos teatrais para serem encenados).
classe para a literatura, esbarrava nos limites do re-
Com alguma semelhança à refuncionalização bre-
trato; a crítica moral não avançava para a crítica da
chtiana, já despontava em Piscator o interesse sobre
sociedade dividida em classes; o Expressionismo prefi-
como superar a condição de ser apenas um abastecedor
gurava uma revolução formal centrada no indivíduo. A
de produtos da cena teatral alemã. A crítica ao apare-
época, ao mesmo tempo, com a formação do KPD5 e a
lho teatral surgia como dimensão constitutiva de suas
Revolução Russa, impunha a luta por novos modelos de
encenações.
organização social.
Por seus tantos impactos estéticos, técnicos e políti-
O teatro de Piscator nasce justamente da inexistência
cos, a pesquisa de Piscator representa um marco históri-
de uma dramaturgia que tivesse como matéria esse quadro
co do teatro europeu. Entretanto, apesar de sua enorme
político e artístico. Cenário, projeções, os programas dis-
tribuídos ao público, tudo isso desempenhava uma função repercussão nos anos 1920, o próprio diretor fazia ques-
dramatúrgica a partir da concepção de encenação política. tão de assinalar o caráter transitório da sua produção.
Intervinham como comentários e interrupções da ação do Mas é dessa consciência da transitoriedade que ele gerou
palco. A diferença entre o trabalho de Piscator e Brecht se sua força única, modelo para toda ação e reflexão sobre
a cena politizante.
4
A compra do latão, obra citada, p. 121-122.
5
Partido Comunista Alemão Lia Urbini e Gabriela Itocazo

vinté m 7 • 67
Reflexões
sobre
“Tambores
na Noite”
Bertolt Brecht, Erwin Piscator, Fritz Sternberg

Os três homens tinham entrado em acordo sobre a pos-


sibilidade de montar essa peça de juventude «à la Piscator-
Bühne». O projeto não iria adiante. O texto aqui proposto é
uma transcrição das discussões que aconteceram em Berlim
entre 18 e 24 setembro de 1928.

Brecht: Seria necessário modificar totalmente a peça


se quisermos que ela tenha por efeito acusar Kragler1. Daí
as proposições no sentido de evitar a mudança completa.
É preciso então examinar se a personagem de Kragler é
defensável. A partir da sua vivência, ver se a personagem
pode mesmo ser defendida. Brecht afirma: sim, ao abor-
darmos a revolução alemã do ponto de vista do destino
deduzido do indivíduo.
Piscator: Então, um drama individual.
Sternberg não concorda com a idéia de drama individual
Erwin Piscator
e apóia Brecht. Caso se trate do drama de Kragler, a peça
poderá ser didática. Brecht: Como fazer a revolução? Como não fazê-la? Era
de fato uma revolução?
1
Tambores na Noite é a segunda peça de Brecht, depois de Baal. Sternberg: Se nos interessamos por Kragler – no mo-
O fato contado se passa num tempo real: inverno de 1918. É mento da revolução de 1918 havia três grupos: o mais
uma peça escrita no calor da hora. Brecht não viveu diretamen- importante, de socialistas majoritários, dizia «sim», que
te os acontecimentos, que ocorreram em Berlim. Mas fez parte participaria das tarefas; um grupo menor, os independen-
do conselho de trabalhadores e soldados de Augsburg e pôde tes, com uma posição pacifista face à guerra; e um peque-
descrever a desilusão dos revolucionários depois que a ordem foi no grupo que declarava «não» à guerra e «sim» à revolu-
reestabelecida pelo social-democrata Frederich Hébert. ção (Liebknecht, Luxemburgo, Radek) –; então, se essa

68 • vintém 7
personagem, Kragler, é um proletário, há 99% de chances Piscator: Seria verdade se não houvesse gente para
de que, durante a guerra, ele não tenha pensado na revo- mostrar a ele o que devia fazer. Mas havia Liebknecht,
lução, entretanto, ele poderia ter dito: «como sair dessa? Luxemburgo.2 Assim que os soldados voltaram da guerra,
Como desertar?» É por ter o desejo de «se esquivar» que muitas vezes lhes foi indicada a verdadeira direção a se-
ele está contra a guerra, contra seus superiores, contra guir: «Participem dos conselhos de soldados e operários!
os ricos, sem se dar conta que ser contra a guerra é estar Temos que mudar as coisas sem perda de tempo. O homem
contra uma classe. Ele volta à sua casa avesso à guerra é prisioneiro! A situação é a mesma! Lutem em torno do
e participa dos acontecimentos que se apresentam. Ele Vorwarts3.» As palavras de ordem proletárias, todo mundo
segue, como grande parte desses que seguem, e se deixa as conhece. Só um idiota para não entendê-las. Kragler
facilmente envolver. seria tão ignorante a ponto de ficar de fora dos aconte-
Piscator: Na obra de Brecht, as forças contrárias não cimentos? É nisso que ele é um caso individual e não um
são apresentadas. 2
Sobre os acontecimentos na Alemanha de 1918, comenta o
Brecht: E o que são essas forças contrárias?
historiador Eric Hobsbawn: “Parecia claro que a Alemanha im-
Piscator: As forças que deveriam obrigá-lo a seguir
perial era um Estado de considerável estabilidade social e políti-
adiante, o próprio proletariado. Ele volta para sua famí-
ca, com um movimento operário forte, mas no fundo modera-
lia (burguesa), depois vai ao restaurante. Por todos os
do, que por certo não teria experimentado nada semelhante a
lugares só se fala de revolução. Ela não é feita nunca. E
uma revolução armada, não fosse a guerra. (...) Contudo, esse
Kragler não precisa de sua confirmação. Brecht descreve
era o país onde os marinheiros revolucionários levaram a ban-
através dele a revolução. O problema parece estar aí. deira dos sovietes por todo o território, onde o diretor de um
Sternberg: É aí que devemos trabalhar. soviete de operários e soldados de Berlim nomeou um governo
Piscator: Isso que é preciso fazer. Naquele momento, socialista, onde Fevereiro e Outubro pareciam ser um só, pois
quais eram as forças agitadoras? Hoje, drama individual. o poder de fato na capital já parecia estar nas mãos de socia-
O poeta só mostra as situações em relação ao homem. listas radicais assim que o imperador abdicou. Era uma ilusão,
Ele mostra como, através dele próprio, o homem as torna devido à total, mas temporária paralisia dos velhos exércitos.
eficientes. Kragler é o herói do drama. Os acontecimentos (...) Após uns poucos dias, o velho regime republicanizado logo
revolucionários seriam então o herói do drama. estava de volta na sela, não mais seriamente perturbado pelos
Brecht: Eu escrevi essa peça há dez anos. Hoje estou socialistas, que não conseguiram nem ganhar maioria nas pri-
relativamente distante da coisa. O que eu vi era impor- meiras eleições, embora se realizassem poucas semanas depois
tante. Talvez haja muitas coisas que eu não tenha visto. A da revolução. Viram-se menos perturbados ainda pelo recém
impressão do conjunto é falsa: Kragler, drama individual. improvisado Partido Comunista, cujos líderes Karl Liebknecht e
Uma descrição da revolução alemã, sim, mas ao mesmo Rosa Luxemburgo foram assassinados por pistoleiros de aluguel
tempo isso não era um drama individual. Eu o vejo voltar do exército. Apesar disso, a revolução alemã de 1918 confirmou
da guerra. Ele encontra seu país devastado, sem lugar para a esperança dos bolcheviques russos (...). Além disso, a decep-
ele. Mostra-se aquilo que sucede ao homem. Não se mos- ção com os social-democratas logo radicalizou os trabalhado-
tra, por exemplo, que o homem é um material grandioso; res alemães, muitos dos quais transferiram sua lealdade para
não é mostrado dentro de uma situação de utilidade para os socialistas independentes e, depois de 1920, para o Partido
a revolução; não se mostra que essa revolução não tira Comunista, que portanto se tornou o maior desses partidos
proveito dele. Lênin o veria da seguinte maneira: esses fora da Rússia soviética.” Era dos Extremos: o Breve Século XX,
quatro anos não o tocaram, mas ele viveu um crescente 1914-1991, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 74-75.
processo revolucionário. Se ele se negasse a participar, a 3
O jornal Vorwärts era o órgão de imprensa do Partido Social-
peça seria ruim. Mas não é o caso. Democrata.

vinté m 7 • 69
operário típico. Não é também um fura-greve, não tem época do espartaquismo4, 8 milhões de operários voltam
vontade de ser a favor ou contra a revolução. Ela não para suas casas, 2% são participantes.
podia tocá-lo. Aí está a tragédia, mas o trágico de Kragler Piscator: Os anacronismos, só os faremos com Brecht.
não é o ponto de partida. Com Shakespeare também. É necessário ainda lançar um
Brecht: Ele não é trágico. olhar atual sobre as coisas.
Piscator: É necessário que o mundo que o envolve apa- Brecht: Não é o caso de modernizar uma peça de
reça como trágico. O trágico é que a revolução alemã não 1918.
tenha vingado; foi o que fez com que as pessoas não par- Piscator: Você não pode negar que, apesar de tudo,
ticipassem efetivamente. hoje percebe as coisas como antes não percebia. Você tem
Brecht: Trágico ou não trágico: erro cometido contra sobre o assunto uma visão de conjunto nova e atual. Não
os interesses da revolução. Comete-se um erro quando não quero hoje em dia pôr em cena os profetas. Não é possível.
vamos em direção às pessoas. Os novos pontos de vistas são diferentes. É necessário
Piscator: Bem pensado. O homem retorna. Ele foi priso- utilizá-los. Voltei a Berlin no começo de janeiro. Usinas
neiro. O acaso determina toda a situação. Ele deve sempre inteiras estavam em greve, todos os operários enfileirados
evitar os acasos. na avenida Unter den Linden com cartazes gigantescos.
Sternberg: É preciso colocar a revolução de 1918 como De outro lado, operários com cartazes «Liebknecht, Lu-
pano de fundo. Minha opinião é que hoje, quando exis- xemburgo». Disputavam-se os cartazes. As querelas che-
te uma Frente Vermelha, o Partido Comunista Alemão gam a tiros. O mundo do operariado, em sua totalidade,
(KPD), temos tendência a aplicar a nossa realidade a estava nas ruas. Por todos os lugares, pequenos grupos de
dos dias de 1918. Instintivamente Brecht evitou isso. O homens discutiam.
slogan «Transformar a guerra em guerra civil!» somen- Brecht: Façam dele um puro historiador. Klager está no
te apareceu no começo da revolução. Há uma diferença meio da multidão. De todos os lados, ele ouve coisas di-
entre a Rússia, país que já em 1905 tentou transformar ferentes: «É preciso salvar a Revolução – É preciso conti-
a guerra em guerra civil, e a Alemanha, onde a social- nuar a Revolução – É preciso retornar para casa, construir
democracia estava presente. (Hoje, em um novo número – Forma atual de governo: a república burguesa etc.» Ele
da publicação Luta de Classes, de 11 de setembro, Ébert é matéria prima. Ele conta o dinheiro que tem no bolso e
enfim volta para casa. É exatamente a mesma coisa que
ainda queria salvar a monarquia, e era o chefe da social-
quatro anos antes, e ele volta para casa.
democracia!) Veja a situação em 1918, no momento em
Piscator: Que acomodamento monstruoso à realidade,
que as tropas voltam para suas casas. É dentro dessa
com consciência plena!
situação sociológica que estão não sei quantos milhões
Brecht: Um ébertiano, para quem de fato a vida priva-
de trabalhadores. Eles tinham o programa da maioria
da tem mais importância.
socialista: «esperamos voltar logo!» O peso das forças
Piscator: Nesse caso, é preciso estabelecer os limites.
pacifistas, que chegam a afastar um trabalhador da revo-
Quando não se está em contato com o sujeito, perde-se
lução, tem que ser muito grande!
o aspecto dramático. A peça sofre poeticamente. Brecht
Brecht: Ele precisa de todas as forças para reencontrar
percebeu mais o indivíduo que se destaca do movimento
sua noiva.
Sternberg: Não é porque sua noiva foi embora que ele 4
Liga Spartacus, foi um movimento de esquerda, marxista e re-
fará a revolução. Mas trata-se de um operário alemão que volucionário, fundada em 1915 por Karl Liebknecht, Rosa Luxem-
foi jogado dentro da guerra, que foi muito maltratado. burgo, Clara Zetkin, entre outros. Seu período de maior atividade
Ao ouvir certo número de slogans, ele será infinitamente foi durante a Revolução de 1918 na Alemanha, quando preten-
mais conseqüente em seu engajamento revolucionário. Na deu incitar uma revolução socialista no país.

70 • vintém 7
do que o próprio movimento. Hoje Brecht faz um retorno Piscator: A revolução: romântica, do meu ponto de
científico à revolução. Naquela época, era um poeta. vista, podemos dizer. Não aquela de Liebknecht e Lu-
Brecht: É sempre Klager que se dá conta de certas coi- xemburgo.
sas. As pessoas dizem para ele segui-las. É necessário Sternberg: O que ele disse corresponde à interpretação
que ele escolha: ir atrás ou não. Ele não segue. Ele tem de Piscator. Ele funciona ao acaso. Ele acha essa revolu-
consciência pesada. Poderia-se dizer que é um canalha. ção romântica.
É um teatro muito ordinário. No final ele diz: «Eu sou um Brecht: Falaram muitas besteiras.
canalha, e o canalha volta para casa.» Piscator: Para os social-democratas, a revolução não
Sternberg: Aí está o problema. Piscator tem razão. era romântica. Eles nem mesma a queriam. Uma manobra
Brecht: Ele se desvia da revolução. Ele é partidário de política para controlar o movimento. Liebknecht e Luxem-
uma forma de romantismo e recusa a revolução. (A revo­ burgo, ditadura do proletariado, conquista para os conse-
lução russa: clássica, não a alemã.) lhos dos soldados. Se tudo aquilo tivesse se realizado com
seriedade, teria dado certo.
Sternberg: Isso só podia conduzir ao fracasso. O ro-
mantismo dentro de certas camadas.
Brecht: Luxemburgo, tipo puro de romântico, como em
1840. A revolução, clássica ou romântica, ponto de vista
estético.
Sternberg: Sem antítese. Ele polariza demais, mas a
coisa não é exata. É preciso examinar o segundo plano da
revolução. Não é uma categoria romântica, mas efetiva; é
preciso sublinhar isso se quisermos entender que persona-
gem é Klager. É muito diferente da revolução sociológica.
Ela era composta por Ébert, Haase e, em ínfima parte,
por Spartakus. (Mostrar, pelas imagens cinematográficas,
porque Ébert representa a maioria).
Piscator: Klager é então obrigado a declarar sua von-
tade.
Brecht: Ele então volta definitivamente para casa. Ele
volta realmente. Nós o reencontramos em Moabit.

Sternberg: A revoluçãode 1918 fracassou porque Ébert


e Scheidemann eram canalhas e Noske um duplo canalha.
O que é verdade, é que a transformação da infraestrutura
econômina ainda não agiu no nível da superestrutura, por-
que os velhos canalhas ainda estão lá. Eles estavam entre
a maioria, os canalhas. Quando uma classe operária tem
salários cada vez mais altos, o indivíduo desinteressado
está do lado da maioria.
Os proprietários, caricatura realizada em 1920 por George Piscator: No fundo, o movimento revolucionário está
Grosz, um dos principais colaboradores de Piscator. lá, e dela se descola o indivíduo.

vinté m 7 • 71
Brecht: Liebknecht e Luxemburgo foram mortos por
uma bala, a grande massa prossegue seu caminho.
Piscator: Por que eles estão em suas casas em Moabit?
Klager, porque ele considera a revolução uma estupidez?
Muito disso também porque eles estão decepcionados.
Brecht: Kragler, seja quem for, permanece Kragler. Todos
esses que você viu: Kraglers. Havia um tipo de indivíduo,
que não era Kragler, era o verdadeiro revolucionário, in-
fluenciado por Rosa Luxemburgoo e Karl Liebknecht. Eram
sujeitos conscientes, não eram típicos. Kragler era típico.
Era o meu revolucionário.
Sternberg: É necessário que nós tenhamos para tudo
isso mais documentos cinematográficos, para mostrar por
que razões eles eram a maioria.
Brecht: E eles tomaram seu caminho. Tambores na noite, 1922
Piscator: Isso era Tambores... antes. Ele quer tipificar.
Os Kraglers estão em casa. É preciso em seguida mostrar a Brecht: E como poeta.
dinâmica da revolução. Mas não é suficiente. Não é assim Sternberg: Não tem a ver com isso. É preciso conhecer
que a gente descobre a personagem de Kragler. Não é a re- o segundo plano da revolução.
volução que é romântica, ele é que é. É um ser por demais Brecht: A história de Kragler. A grande massa era as-
apolítico. A revolução não lhe diz respeito. sim.
Brecht: Kragler é típico de milhões de pessoas. Essa Piscator: Eu não acho que possamos dizer isso hoje.
personagem inventou uma coisa esquisita. A existência Seu destino não é tão automático. Ele só podia se desviar
apolítica. Por que essa personagem é apolítica? Quatro porque o movimento não estava suficientemente forte. A
anos sem relação com a economia. Hoje já é melhor! Hoje peça não é antirevolucionária, mas lírica. O senhor Kragler
eles dependem de novo da economia. A necessidade tudo é como Brecht.
politiza. Todas os dias na usina, ele se politiza, ele não Brecht: Isso não é exato. Veja como nós superestima-
pode mais ser apolítico. Durante quatro anos nada pesou mos a revolução.
sobre ele, nenhuma pressão das circunstâncias. Piscator: Sua reação é ir ao encontro de qualquer coisa
literária. Não podemos projetar uma pequena variante que
Sternberg não tem nada contra essa personagem, nada só interessaria aos homens de letras.
contra seu modo de ser, nada contra a evolução das resis- Piscator: É exato na medida em que era preciso que
tências dramáticas que ela encontra. Ele não é típico de Kragler fosse um intelectual. Para Kragler, a história do
todo um grupo de apolíticos. É um caso individual. Kragler, «homem-zero» não tem importância.
a personagem, torna-se um individialista. Brecht: Uma importância decisiva.
Piscator: No fundo ele não será pacifista por reação
Piscator: Eu considero que o modo de Sternberg inter- contrária à guerra. Ele nunca precisou ouvir falar do « ho-
pretar as coisas é falso. mem-zero».
Brecht: Sternberg pede verificação. É impossível que Sternberg: Esse ponto de vista é preciso. Sua conse-
nossos pontos de vistas sejam totalmente falsos. qüencia é a seguinte: desde o momento em que a Re-
Piscator: Eu vejo isso de fora como um encenador. volução de 1918 está como pano de fundo, desde esse

72 • vintém 7
instante, Brecht tira consequências dela em relação aos não se discutiria a respeito da falação de uma mulher
atos de Kragler. Ela não pode servir de segundo plano histérica.
aos outros e permanecer nesse tipo de equilíbrio. Nós Piscator: A necessidade da greve, para os sindicatos,
temos, então, que adotar esse ponto de vista: como se é também romântica. Eles não podiam fazer a greve,
faz a revolução, quando Kragler não move uma palha e pois os militares levaram os cofres dos sindicatos. A
nada mais se passa – a alma alemã, por natureza, não personagem de Kragler é um individualista. Ele é capaz
é revolucionária. É preciso mostrar com clareza porque de ser receptivo. A outra personagem, mais capaz de
Ébert estava com a maioria e não está mais hoje. Nós de- atacar por justiça.
vemos mostrar por que a personagem de Kragler em 1918 Sternberg: O arquétipo do sindicalista desinteressado
não foi a campo: porque não era uma verdadeira revolu- politicamente. Na Inglaterra, até 1900, votava-se sempre
ção. A infraestrutura se transformou de uma maneira tão num  conservador ou num liberal. Uma época em que os
decisiva que a personagem de Kragler não poderia mais burocratas eram sempre desinteressados na política. Essa
ser considerada como típica. E não é mais porque hoje personagem conserva, ainda, uma certa inércia, num pe-
ela está politizada. Nova pressão é exercida sobre ela. Os ríodo em que os salários não aumentam mais. Desde 1918
salários aumentam ou os salários baixam. Ele participa as crises estão cada vez mais agudas, cresce o desempre-
de novo da economia. Hoje ele ouviria: «Aumentos de go. (E desde que 100 000 trabalhadores aderem à greve, o
salários na região do Ruhr». Então ele não se poderia Estado entra em jogo). Eu imagino, sem dificuldade, que
dizer que isso é estupidez. Kragler pertenceria hoje ao Partido Comunista Alemão,
Piscator: A realidade era, naquela época, algo que se que ele seria um verdadeiro comunista. Um sujeito sim-
opunha ao que era produzido durante a guerra. ples que, atualmente, não seria mais típico. Ele seria um
Brecht: Quando ele ouve as metralhadoras, foge. novo submisso à lei dos baixos salários, e não veria mais
Sternberg: É preciso ver nos fatos de 1918 o que se deu a revolução como uma bobagem. O tipo de homem que
com os russos em 1905. hoje evoluiu.
Brecht: Nós já avançamos bastante. A história do li- Brecht: Na prática, veja como é: um homem está aí,
rismo é exata. hoje, em 1928, e ele fala de 1918. É uma discussão bem
Piscator: Excelente coisa que Kragler não seja mais tí- diferente daquela de 1918. (Com uma politização cres-
pico hoje. Mas extremamente difícil de definir. cente dos debates.) Na época, ele não tinha outra coisa
Brecht: Se tivéssemos uma cena em que pudéssemos na cabeça além de sua noiva.
mostrar... uma cena que nos permitisse remeter constan- Piscator: O que sobra é o caso isolado do drama indi-
temente à realidade, mostrar continuamente as oposições, vidual. E a visão de um homem que não se sente tocado
os contrastes, nós veríamos as diferenças. Só se vê aqui o pelo movimento.
percurso de Kragler. Uma linha. Nós podemos hoje cienti- Brecht: Não se pode dizer isso. Ele é tão tocado como
ficamente afirmar: veja seu rastro. É assim que nós vemos milhões de outros.
Kragler avançar. Isso que permite ver a diferença. Sternberg: Nós seguimos um homem e mostramos o que
Piscator: Havia na época gente para dizer: «O que eram todos em 1918.
isso tem a ver, revolução?» Eu quero meu salário, meu Piscator: Uma carga trágica. A revolução só podia fal-
trabalho! Eram pessoas que diziam que tudo não passava har sob o golpe de tamanha falta de participação. É o
de sonhos românticos. Contra essa indolência, nenhuma sentido da peça quando ele volta para casa.
panacéia. Sternberg: Porque o velho Kragler não é mais típico
Sternberg: Indolência de massa. Moção Rosa Luxem- hoje?
burgo. Declarava-se, sob aplausos bem animados, que Piscator: O mundo que ele tem diante de si é sem-

vintém 7 • 73
pre imenso. Procura-se sempre explicar um homem único. As palavras de ordem são lançadas, eu não as escuto,
O destino privado do ginecologista – existem, contudo, porque eu me interesso nesse momento por minha vida
100.000 outros ginecologistas – se dá assim pela conste- profissional.
lação do acaso. Brecht: É evidente que ele não tem a disposição de
Sternberg: A maioria era kragleriana? Sim, a maioria espírito de um apaixonado que vê a noiva como superior.
era apolítica. Não era contra-revolucionária. Ele já está politicamente contra as pessoas que ganham
Brecht: Os melhores tinham a consciência pesada. «Eu dinheiro.
sou um canalha, eu volto para casa.» Sternberg: Revoltado sociologicamente contra os apro-
Sternberg: Liebknecht votou pelos créditos. Muito inte- veitadores da guerra. Essas pessoas sempre se politizam
ressante que ele tenha sido depois o único a votar contra. num aspecto preciso. Nunca nós as escutaremos repetir o
Essencial para a situação alemã. slogan: «Transformar a guerra em revolução!». Estão re-
Piscator: Se houvesse guerra hoje, eu não seria pelos voltados porque longe de suas mulheres. O front, as re-
créditos. messas. Mesmo os oficiais em Breslau que eram massacra-
Sternberg: Nós vemos muito bem aqui a diferença en- dos acreditavam que o capitalismo é eterno. Era preciso
tre a economia e os papéis. Os russos se apegaram aos explicar a eles a relação entre isso e as indústrias. Kragler
papéis, porque isso correspondia a uma reserva. Os russos pode dar certas respostas.
desenvolveram sua organização desde o primeiro dia. Na Brecht: Viraram eleitores hoje.
Alemanhã, 17 votos contra. (Em dezembro, somente Lie- Piscator: O vencedor da inflação: Senhor Murk.
bknecht contra.) Na ocasião do terceiro sufrágio, dois. No Brecht: Ele chega na família, aprendemos coisas sobre
quarto, quatro da USP5. Nenhum sinal de que tenhamos ele. Não ouvimos mais falar nele desde o momento em que
ido tão longe quanto Lênin. É uma guerra, não a nossa. ele vai à rua. Pois ele se encontra com pessoas que são a
Nós não votamos a favor, nós não fazemos nada contra. escória da sociedade.
Então, não adianta dizer que eram canalhas. Era possível Sternberg: Os comunistas conseguem que os reservis-
ter acreditado que a social-democracia alemã seria contra. tas entoem a Internacional quando a comida é ruim. É um
Não a francesa, ou a inglesa. elemento típico que não existia antes.
Piscator: O aumento dos salários tornou os homens
Piscator: Antes, não sabíamos como fazer uso disso.
despolitizados, a guerra os politizou. Em 1914, todo
Sternberg  : Nós reagíamos por oposição. Kragler, «A
mundo ficou desempregado. Três ou quatro anos depois,
chance de ir em frente com os outros.»
aquele que tem problemas no trabalho é enviado ao
Piscator: Por que encenar esta peça?
front. Então, as correntes políticas mais fortes se for-
Brecht: Para explicar as razões pelas quais as pessoas
mam no exército. Um exército não politizado partiu para
voltam para casa. O porquê a revolução falhou. Explica-
a batalha, um exército politizado voltou da guerra. (Car-
ção histórica. Ela falhou por causa de um tipo de indi-
tas de família. Fome.) Daí as pressões. A esperança na
víduo: ele.
revolução, o poder dali em diante poderia ser subvertido.
Piscator: Porque é preciso mostrar como a revolução
É isso que era romântico. Sigamos a personagem de Kra-
gler, não podemos saber o que ele fez antes. É preciso se poderia ter dado certo.
perguntar em que momento, no plano psicológico, Kra-
gler reagiu. Ele não reagiu. O operário mobilizado reagiu. Primeira parte do diálogo editado por Werner Hecht. Essa
tradução foi feita a partir da versão francesa de François
5
U.S.P.D. - Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlan- Mathieu e Régine Mathieu, Entretiens avec Brecht, Éditions
ds - Partido Social Democrata Independente da Alemanha, fun- Messidor, Paris, 1988, pp.73-95. Tradução em português de
dado em 6 de abril de 1917. Gabriela Itocazo. Colaboração de Sérgio de Carvalho.

74 • vintém 7
Companhia do Latão
Belfort & Rodriguez

vintém 7 • 75
Companhia do Latão legitimam. Para que esse objetivo se viabilize é necessá-
rio um regime de trabalho e de criação de caráter cole-

7 peças e Introdução tivo, apoiado na pesquisa constante e na constituição de


diálogos permanentes com setores sociais para os quais o
do teatro dialético exercício do pensamento crítico não se separa da idéia de
transformação da sociedade.
– experimentos da Com essas premissas de trabalho a Companhia do Latão
reuniu, em seus dez anos de existência completados em
Companhia do Latão1 2008, um lastro de criações onde o épico é o elemento
fundamental tanto para o experimentalismo dramatúrgico
como para o exercício de uma crítica apoiada no diálogo
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Companhia do
com frentes historicamente anteriores de ação cultural,
Latão 7 peças. Prefácio: Iná Camargo Costa. São
como as do Centro Popular de Cultura nos anos 1960, ou
Paulo: Cosacnaify, 2008, 416 páginas.
contemporâneas, como as em atividade dentro do Movi-
mento do Sem Terra, no contexto nacional, e no Berliner
Carvalho, Sérgio (org,) Introdução do teatro dialético
Ensemble no contexto europeu.
– experimentos da Companhia do Latão. São Paulo:
As experiências de criação, as estratégias de trabalho
Editora Expressão Popular, 2009, 300 páginas.
cênico e o conjunto das interlocuções constituídas durante
todos esses anos encontram-se reunidas em dois volumes
Maria Sílvia Betti
lançados recentemente: Companhia do latão 7 peças, lan-
Um trabalho teatral épico e dialético como o realizado çado em 2008, reúne os registros dramatúrgicos criados e
produzidos ao longo desses dez anos de pesquisa, reflexão
pela Companhia do Latão não resulta apenas da mobiliza-
crítica e criação coletiva pelo grupo, fundado em São Paulo
ção de um coletivo artístico em torno de uma plataforma
em 1997 e dirigido por Sérgio de Carvalho. Introdução ao te-
de intenções: é fruto da constante análise das relações e
atro dialético - experimentos cênicos da Companhia do Latão,
principalmente das contradições que se apresentam entre
lançado em 2009, compila as reflexões teóricas e críticas
teoria e prática, entendidas como esferas inseparáveis e
internas e externas desencadeadas em torno da criação dos
mutuamente determinadas de criação e pensamento. Os
trabalhos e de suas encenações.
critérios estéticos envolvidos precisam ser depreendidos
das lutas políticas locais e mundiais, e estas oferecem Os textos das sete peças, escritas por Sérgio de Carva-
matéria social continuamente renovada e não necessa- lho, Márcio Marciano e colaboradores, estão organizados
riamente passível de figuração através dos expedientes em três blocos temáticos, estruturados de acordo com a
dramatúrgicos disponíveis. Torna-se essencial, para isso, natureza da matéria representada e da estratégia refle-
desenvolver parâmetros eficazes para a análise das formas xiva e formal empregada: Imagens do Brasil, o primeiro
dominantes, e ao mesmo tempo para a abertura de pers- dos três, reúne peças que lançam um olhar crítico sobre
pectivas de criação situadas na contramão da indústria o processo histórico do país; O nome do sujeito, de 1998,
cultural e das estruturas de pensamento e de ação que a discute a oposição entre a arte popular das ruas e a arte
para pagantes na Recife do século XIX; A comédia do tra-
1
Obs. O conteúdo relativo à resenha crítica de Companhia do La- balho, de 2000, examina o processo de luta de classes
tão 7 Peças foi anteriormente enviado para publicação na Revista no contexto de desmonte contemporâneo do mundo do
Sala preta, do programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da trabalho; e o Auto dos bons tratos, de 2002, aborda, à luz
ECA-USP em abril de 2009. do processo instaurado contra Pero de Campos Tourinho,

76 • vintém 7
Companhia do Latão
Lenise Pinheiro
em 1547, a contradição entre igreja e empreendedores na escra-
vização de nativos.
O segundo bloco, Cenas da mercantilização, compõe-se de dois
textos que tratam das formas impregnadas pela exploração nas
relações sociais e de trabalho. O primeiro é O mercado do gozo, de
2003, que examina as raízes da violência urbana e a exploração
da prostituição na São Paulo de 1917, por ocasião da grande greve
operária; o segundo, Visões siamesas, de 2004, inspira-se parcial-
mente no conto As academias de Sião, de Machado de Assis, e em
escritos da literatura clássica oriental, fazendo a síntese simbólica
da história da classe trabalhadora brasileira.
O terceiro bloco temático do volume, intitulado Releituras,
alinha, com base em reflexões originadas por outros traba-
lhos dramatúrgicos e literários, duas peças voltadas ao exame
dos desafios enfrentados pela consciência revolucionária: o
primeiro, Ensaio para Danton, de 1996, parte de A morte de
Danton, de George Büchner, e faz a crítica das contradições
da revolução burguesa; Equívocos colecionados, de 2004, é o
segundo texto deste bloco, e inspira-se em entrevistas de
Heiner Müller, em sugestões apresentadas pelo teórico Hans
Thies Lehman e em trechos do filme Terra em transe, de Glau-
ber Rocha, colocando em foco os sobreviventes espectrais do
processo de cooptação e de desqualificação da consciência re-
volucionária dos anos 1960.
Trata-se de um conjunto de trabalhos criados dentro da estrutura
de Ensemble que caracteriza o Latão, e que envolve processos coleti-
vizados e desenvolvidos em diálogo com a sala de ensaios e com os
experimentos propostos e/ou vivenciados pelos artistas participan-
tes. O ponto de partida para a criação dramatúrgica é sempre a pes-
quisa e o debate de material histórico-crítico, político ou filosófico.
A concepção cênica dos textos apresenta as marcas do forte influxo
de estímulos gestuais e corporais trazidos dos ensaios, e que reme-
tem, ao final, à extensa e diversificada relação de fontes de pesquisa
O mercado do gozo, Companhia do Latão a partir das quais o material foi proposto e discutido.
Esse cunho coletivo e processual faz que a finalização editorial
das peças não as apresente como versões definitivas e irretocáveis,
mas como resultantes de uma seleção que não renega ou exclui
outras variantes de cada um dos textos, às quais se alinham sem
hierarquização. O trabalho do Latão mantém distância crítica em
relação ao conceito de “obra” geralmente experimentado pelo pu-
blico nas relações de consumo cultural. O épico é tomado como fer-

vinté m 7 • 77
ramenta de expressão e como método de pensamento: os

Gustavo Motta
sinais das diversas camadas de trabalho coletivo mobilizado
são mantidos visíveis e claros em cada um dos trabalhos, ao
contrário do que ocorre no âmbito da mercadoria, onde as
marcas processuais costumam ser apagadas indelevelmen-
te. A dialética revela-se, acima de tudo, pelo processo de
pensamento figurado na estrutura dramatúrgica e cênica:
o caráter épico se configura não apenas porque as peças
tratam de questões coletivas e históricas sob a perspectiva
da classe explorada, mas porque fazem por extrair da re-
presentação dessas questões a análise de processos sociais
que encerram contradições e que precisam ser superados.
O foco principal do trabalho incide sobre os mecanis-
mos evidenciados dentro da tessitura miúda e episódica das
ações em cada cena, requerendo assim do espectador um
padrão de recepção bastante diverso do usual no campo da
cultura dominante e do entretenimento. Na cena 4 de O nome
do sujeito, por exemplo, Carneiro, o comerciante, interage
em dois planos simultâneos com dois personagens aos quais
ensina uma “nova maneira de ver o mundo”2 : a Wagner, en- O nome do sujeito, Companhia do Latão
carregado do poderoso Barão, Carneiro impinge um binóculo
de ópera e um frasco de perfume, itens de consumo identifi- “Como aumenta!” [...] Wagner procura impregnar-se dos va-
cados com o perfil de alguém em processo de ascensão social lores do mundo patronal ao qual quer integrar-se, e confiden-
naquele contexto; a seu próprio empregado Antonio Lyra, cia ao comerciante uma das frases do Barão, que anotou para
imigrante português do qual extorque intermináveis juros de si próprio numa caderneta: “O homem aspira ao absoluto”. O
uma dívida, o comerciante mostra que o débito contraído comerciante, que paralelamente, ouve Antônio no fundo da
num curto espaço de tempo levará uma eternidade para ser loja calculando e recalculando a dívida improcedente, res-
pago3. A simultaneidade dos planos é funcional para o pro- ponde “com as narinas”: “Aspira. Se vais à ópera, por que
cesso crítico na cena: as palavras de Carneiro, alardeando as não levas uma essência?”5. A relação de simultaneidade na
qualidades do binóculo, aplicam-se com exatidão à trajetória cena produz a representação crítica da dinâmica social das
de ascensão social de Wagner: “o pequeno fica grande, o lon- classes que nela dialogam. É significativo que precisamente
ge fica perto. É oriundo dos Países Baixos”4. O contraponto Carneiro, movido pelo desejo de vender e de lucrar, seja o
das exclamações admiradas de Wagner, que aponta o recém responsável por apresentar a “nova maneira de ver o mundo”,
adquirido binóculo em diferentes direções, acaba servindo anunciada no título episódico da cena, e que atue como o
de contraponto irônico aos comentários desolados de Anto- prenunciador dos sentidos históricos da sociedade colonial
nio sobre a dívida: “Espantoso!” [...] “É assombroso!” [...] em transformação.
O resultado crítico não está no conteúdo específico das
2
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Companhia do Latão. 7 falas em si, mas na mecânica dos diálogos e nas associações
peças. São Paulo: Cosacnaify, 2008, p 46. por eles produzidas, expondo ao espectador a engenharia e
3
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. O Nome do sujeito In Com- as contradições das relações sociais representadas.
panhia do latão 7 peças. São Paulo: Cosacnaify, 2008, p 48.
4
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Op. Cit. P 47 5
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Loc. Cit.

78 • vintém 7
Outro exemplo que atua em sentido análogo se encon- opera pela ambigüidade, pela ironia e pelo paradoxo, e
tra na cena 17 de O mercado do gozo, cujo título episódico é encenada de modo desconstruído, com os atores diri-
é “Burgó espanca um mendigo à maneira de Baudelaire”6. gindo-se abstrata e ficticiamente a câmeras destinadas a
Bubu, o cáften, leva Burgó, jovem burguês em crise, ao registrar suas imagens. As oposições de classe e de pen-
encontro de um vendedor de cocaína. No caminho encon- samento em seu interior são neutralizadas e esvaziadas
tram um mendigo que lhes pede uma moeda, e Bubu apro- pela distorção do princípio da coerência. Bubu, a quem
veita o fato para ilustrar na prática a resposta que dera Burgó não casualmente chama de “meu demônio”10, acre-
a Burgó a propósito da idéia de liberdade: “só é digno de dita na existência de princípios universais ligados à idéia
liberdade aquele que a conquista na marra”7. Para Burgó da liberdade como conquista, e incita o jovem a agredir
idéias como essa não funcionam no Brasil, e Bubu, com o mendigo para lhe apontar na natureza deste a ausência
o intuito de provar a pertinência de seu ponto de vis- dos traços do homem livre. Burgó, duvidando da pertinên-
ta, incita o rapaz a esmurrar e chutar violentamente o cia das idéias de Bubu, aceita a sugestão do cáften e exe-
mendigo encontrado. A conclusão que extrai da cena (“É cuta a agressão, mas se cala diante da ilação final que ele
um verme, está provado, não tem orgulho nem vontade extrai (“Não é teoria, eu disse. Veja como ele entendeu. É
de homem livre.”8), cai por terra logo a seguir, pois o universal.”) estendendo por fim a moeda ao pedinte.
mendigo, aproveitando o momento de distração de Burgó, A perplexidade experimentada pelo mendigo ao retirar-
revida e atinge-o com forte murro. Diante do acontecido, se é compartilhada pelo espectador, pois este tem diante
o pensamento de Bubu se recompõe prontamente através de si, na verdadeira encruzilhada de sugestões que se apre-
do cinismo mais deslavado: “Milagre, a carcaça reagiu. senta, uma pequena amostra da estrutura de pensamento
Agora sim. [Controla a briga e fala ao mendigo.] O senhor que preside as relações sociais nela figuradas: a referência
provou que é igual a ele. Merece a moeda.”9 a Baudelaire ganha força na imagem metafórica e crua da
A cena reproduz passo a passo, desde a sugestão do “carcaça” (termo que Bubu aplica ao mendigo) e no esva-
título, o conteúdo de um poema em prosa de Baudelaire ziamento final do gesto de Burgó, que tem sua atenção so-
escrito em 1863 e intitulado Espanquemos os mendigos: licitada, logo a seguir, pelo assunto que o mobilizara desde
nele o poeta, desejoso de sair às ruas e aplicar de forma o início da cena, ou seja, a compra de cocaína.
prática os ideais utópicos de que se impregnara em quinze O conteúdo das ações é, em si, aparentemente corri-
anos de reclusão entre livros, depara-se com um mendigo queiro, e pouco acrescentaria a uma linha tensional de ação
que lhe pede uma moeda. A aparição se lhe afigura como dramática em progressão se esta fizesse algum sentido para
a intrusão aversiva de um mundo de miséria, e o poeta a peça. O sentido crítico é ativado pela tensão que imobili-
acaba por dar ouvidos aos sussurros de uma voz demonía- za as personagens em falsos antagonismos argumentativos:
ca que lhe diz que a liberdade verdadeira só é conquistada Bubu e Burgó discutem suas idéias sem que nenhuma pers-
pelos que são dignos dela. Sentindo-se incitado a partir pectiva de transformação do mundo à volta deles se realize.
para a ação, o poeta dispõe-se a atacar o mendigo com o Tanto um como outro se mantém rigorosamente alheios à
intuito de fazê-lo reagir e assim readquirir sua dignidade, miséria materializada na figura do pedinte: a lógica do ar-
espancando de volta seu agressor. gumento que debatem é a lógica do mundo que se pretende
Apoiando-se tão fortemente no poema a ponto de re- regido por idéias, e que continuará produzindo miseráveis
meter explicitamente “à maneira de Baudelaire”, a cena enquanto a angústia das consciências individuais em crise
puder resolver-se no consumo da droga apaziguadora.
6
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Op. Cit. P. 247 A consecução prática de uma dramaturgia dotada de
7
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Op. Cit. P.248 tal aguçamento crítico e de análise exige, efetivamente,
8
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Op. Cit. P.248
9
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Loc. Cit. 10
Carvalho, Sérgio & Marciano, Márcio. Loc. Cit.

vintém 7 • 79
não apenas o enfrentamento de um verdadeiro “cipoal” das pela indústria da cultura. Para fundamentá-lo, tanto
de referências de estudo, mas a articulação de caminhos as perspectivas praticadas de criação como a relação
que consigam atravessá-lo sem dispersão, e que extraiam crítica com a herança cultural do país são densamente
dele expressões de imagens e de pensamento eficazes e historicizadas, ou seja, abordadas como inerentes a um
compatíveis com cada proposta temática. Essa empreitada conjunto de circunstâncias historicamente determinadas
é, em grande medida, viabilizada pela coletivização das e, portanto, transformáveis. Trata-se de uma opção que
tarefas internas de leitura, pesquisa, debate e criação, pressupõe, necessariamente, uma pesquisa constante
abrindo assim espaço para o projeto continuado de estudo tanto de recursos de expressão artística como de tex-
e de formação de pensamento crítico. Todas as peças do tos e formas artísticas historicamente precedentes e
volume trazem relações detalhadas das edições, dos acer- que integram o legado cultural de gerações anteriores.
vos de pesquisa consultados, e do processo de preparação Trata-se, ao mesmo tempo, de uma frente de criação e
teórica ou de interlocução crítica que precedeu a estréia, pensamento em cuja base está uma tomada radical de
permitindo assim que o caminho de leituras e debates seja posição em face da cultura globalizada e submetida às
compartilhado e discutido. leis do mercado: todo o empenho de criação e raciocí-
A dramaturgia da Companhia do Latão coloca, assim, nio é mobilizado com o objetivo de investigar meios de
elementos importantes para a (re)discussão analítica e conferir substância dramatúrgica a relações alienadas e
crítica tanto das questões levantadas pelo CPC da UNE nos “coisificadas” de vida e pensamento.
anos 1960, em torno de uma ação cultural transformadora, O desafio é grande, pois o Latão não se alinha aos seto-
como das formas de teatro politizante praticadas dentro res pós modernos da pesquisa artística contemporânea, que
do Movimento dos Sem Terra na atualidade. vêem nas formas exacerbadas do lirismo subjetivista e da
O volume intitulado Introdução ao teatro dialético – ex- desconstrução abstrata as únicas perspectivas capazes de
perimentos da Companhia do Latão realiza, no plano teó- flagrar e figurar com profundidade os descompassos e con-
rico-crítico, uma compilação de natureza semelhante, re- tradições entre gesto e fala e entre pensamento e ação.
presentativa dos dez anos de pesquisa e de interlocuções Ao procurar o foco artístico da matéria representada nas
e debates desenvolvidos pelo grupo. O livro divide-se em relações sociais e históricas do mundo produtivo, o Latão
quatro partes intituladas, respectivamente, Escritos teóri- impregna seu teatro de uma radicalidade reveladora, ma-
cos, Entrevistas, Fragmentos de crítica e Peças teorizantes. nifestada não apenas na matéria dramatúrgica, mas tam-
Parte dos textos resulta de transcrição de material oral, bém no experimentalismo dinâmico utilizado na figuração.
proveniente de gravações de encontros e debates com in- Trata-se de um trabalho que o próprio grupo designa como
terlocutores internos ou externos ao grupo. “estética das contradições”, entendendo-se aqui a contra-
O fato de a edição se iniciar com os Escritos teóricos e dição como o pivô central do processo dialético.
se encerrar com as Peças teorizantes comprova a natureza Dada a natureza das operações de análise e de críti-
dialética do trabalho do Latão: a pesquisa teórica ativa ca visadas, o pensamento e as perspectivas cênicas do
discussões, improvisações e experimentos proto-cênicos teatro épico de Bertolt Brecht são pontos de referência
de criação dramatúrgica; a dramaturgia por sua vez, fruto fundamentais para o Latão. O conceito brechtiano de ges-
dos debates e das estratégias de figuração desenvolvidas, tus tem papel determinante para o grupo, pois uma das
estimula a elaboração de análises críticas e arrola interlo- características predominantes nos processos de trabalho
cutores externos provindos ligados às esferas de trabalho desenvolvidos é precisamente o seu caráter gestual: o
artístico, intelectual e político da sociedade. gestus contém, potencialmente, o exercício dialético ma-
O trabalho resultante tem caráter politizador e colo- terializado na cena através das contradições entre palavra
ca-se na contramão das formas estéticas mercantiliza- e ato. Também as forças produtivas estão em contradição

80 • vintém 7
constante com as relações de produção na sociedade ca- na base destas observações de análise, não é a pesqui-
pitalista, e a possibilidade de dar expressão dramatúrgica sa de um conteúdo ou de um conjunto de conteúdos a
e cênica a essa contradição é permanentemente explorada ser examinado e desvelado, mas a procura sistemática de
de forma investigativa no teatro da Companhia do Latão. processos que permitam aflorar paradoxos e contradições
O que torna dialética essa forma de trabalho é o fato de só apreensíveis dentro da esfera dinâmica e concreta das
ela só poder ser efetivamente compreendida a partir de transformações históricas em sentido amplo.
exemplos e de situações concretas, nas quais se materiali- Na base destas formulações encontra-se subentendido
za uma forma de análise ou uma operação de pensamento um longo percurso de leituras e de estudos e debates in-
que não é plenamente depreendida do conteúdo puro e ternos e externos ao grupo, sugerindo um mergulho ana-
simples do material narrativo apresentado. lítico nos trabalhos de dramaturgos como Jorge Andra-
A radicalidade do trabalho visado pelo Latão identifica- de, Gianfrancesco Guarnieri, Antonio Callado e Oduvaldo
se plenamente, assim, à radicalidade do teatro de Brecht, Vianna Filho, uma leitura problematizada da ficção macha-
ligando-se às formas como este dialoga com os processos diana e um diálogo constante com a crítica materialista
vivos da sociedade, e procurando lançar sobre eles a luz de Roberto Schwarz, particularmente em Idéias fora do
investigativa do estranhamento e da historicização. lugar e em Nacional por subtração11. A pesquisa aqui bre-
Característica importante de Introdução ao teatro dia- vemente resumida evidencia o que se poderia chamar de
lético é o fato de um dos importantes eixos de reflexão a plataforma de trabalho do Latão ao longo dos seus dez
provir do debate interno do Latão sobre a dramaturgia e anos: investigar perspectivas formais épicas e dialéticas
a literatura historicamente relevantes para o debate das em diálogo constante com a matéria social historicamente
transformações políticas e culturais do país. Também a nova, e desenvolver essa investigação através da análise
este respeito a abordagem é dialética desde a base, ex- dos processos culturais e históricos consolidados na he-
traindo suas reflexões de um olhar analítico sobre a di- rança dramatúrgica e literária do país.
nâmica histórica das formas e dos impasses colocados a É, de fato, nos processos que se encontra o foco fun-
damental do trabalho do Latão, entendendo-se aqui que
partir delas: numa sociedade onde grande parte das for-
a idéia de processo diz respeito tanto aos mecanismos
mas culturais dominantes é importada e remete em algu-
dinâmicos de expressão artística investigados, como às
ma medida à herança cultural burguesa, fazer a crítica
várias camadas de trabalho coletivo mobilizado pelo gru-
dessas formas significa ter que lidar, no que diz respeito
po para lhes dar forma e movimento como trabalho teatral
à figuração artística, com o conceito de individualidade
de natureza épica e dialética.
como categoria central.
A edição de Introdução ao teatro dialético permite que
Ocorre que as análises e leituras realizadas pelo La-
o Latão socialize e coloque em debate o percurso de expe-
tão encontraram, a este respeito, um significativo ponto
rimentação crítica e criadora que vem trilhando, e que faz
nodal de contradições, revelado, aliás, no campo da dra- do grupo um ponto de referência para se pensar a insti-
maturgia: diante da incipiência histórica na constituição gante pertinência do épico como perspectiva de trabalho
de uma burguesia nacional propriamente dita, os campos no teatro do mundo contemporâneo.
da individualidade se mostraram sempre, na tradição cul-
tural do país, pouco nítidos e bastante indefinidos; as Maria Silvia Betti é professora do Departamento de Letras
realizações mais bem acabadas de representação des- Modernas, com foco em dramaturgia, na FFLCH-USP
sa individualidade, na dramaturgia, vieram a ser execu-
tadas precisamente por dramaturgos de esquerda numa
era de adensamento burguês, e por meio de personagens 11
Schwarz, Roberto.in Que horas são? São Paulo: Companhia das
não burgueses em sua condição de classe. O que se tem, Letras, 1987 e Cultura e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

vintém 7 • 81
Pedro Maffei
Entre o céu e a terra,
um experimento
videocênico
82 • vintém 7
Luiz Cruz
Companhia do Latão oportunidade de trabalhar como amadores – no sentido que
profissionalmente você tem que fazer um trabalho, e amado-
O processo de produção do vídeo Entre o céu e a terra da ramente você gostaria de fazê-lo.” 1
Companhia do Latão, que atualmente integra o repertório Assim estávamos sempre buscando um meio de produção
do grupo, começou com uma pesquisa da obra de Machado menos engessado, mais horizontalizado, em que a participa-
de Assis. A idéia original do projeto era uma ação ficcional ção da equipe fosse mais intensa em todas as decisões e o set
em que os gestos dos personagens tivessem privilégio, uma de filmagem fosse mais aberto ao acaso, sem um planejamen-
vez que a proposta era realizar um vídeo sem som direto, to rígido da ordem de filmagem. Sem dúvida, o fato do vídeo
sem diálogos, a ser sonorizado no teatro por atores e mú- ser mudo facilitou esse ambiente de trabalho, uma vez que
sicos. A cartomante nos pareceu uma escolha apropriada, não tínhamos a necessidade de captar frases e diálogos, e a
uma vez que nesse conto Machado de Assis se vale de ações improvisação dos atores podia ser mais livre. As ações con-
claras e específicas em sua crítica à mistificação idealista. cretas que iam surgindo compunham os planos de filmagem,
Sem deixar nenhum momento do conto de fora, fizemos um sem numerações prévias ou classificações da cartilha formal
roteiro pensando nos ambientes e nas ações dos persona- cinematográfica (primeiro plano, plano geral, close-up, etc.) A
gens. Ao mesmo tempo, houve um trabalho de pesquisa decisão da forma de enquadrar uma cena era decidida no set,
teórica para criar outra camada de intervenção crítica so- no momento da gravação, sempre tendo como baliza restriti-
bre a obra, o que nos possibilitou explorar uma visão que va o conteúdo das ações e os personagens envolvidos. A idéia
não estivesse limitada ao conto unicamente, mas antes ao era deixar os atores o mais livre possível para o improviso,
universo machadiano em geral. sem nunca parar uma cena antes dela ter terminado; a técnica
Com o roteiro pronto, com os atores escalados e com a funcionava para os atores, a câmera era uma ferramenta para
equipe de gravação e de set escolhida, começou a realização captar o que eles nos davam. Queríamos que a interpretação
do vídeo. Vale a pena citar aqui um cineasta americano, cuja dos atores ditasse o ritmo e o rumo da técnica.
obra esteve sempre presente em nossas discussões antes e Além dessa preocupação de cunho formal, tínhamos
outra questão no âmbito temático que fatalmente teríamos
durante as gravações; trata-se de John Cassavetes. Além dos
que encarar na hora de decidir a forma de uma cena. Seria
debates formais em cima da obra de Cassavetes, houve um
uma simplificação injusta da obra machadiana se deixásse-
estudo sobre o modo de produção no qual ele realizava seus
mos de lado questões sobre a formação da sociedade bra-
filmes. Isso nos interessava muito, uma vez que ele foi o pri-
sileira. Nas palavras de Paulo Arantes: “A razão de nosso
meiro cineasta a questionar a profissionalização hierarquiza-
modo de ser dual está nos avanços do capital e não numa
da e especialista do modo de produção dos grandes estúdios
compartimentação local idiossincrática. O Brasil é dois em
americanos: “Eu gosto de fazer filmes pequenos. Eu gosto da
virtude do passo conservador da Colônia à nova periferia
relação um a um em um filme pessoal. Se você tem muitas
organizada pelo imperialismo. Nossa discrepância interna
pessoas a sua volta em um set de filmagem, as coisas come- está por assim dizer mundialmente orquestrada.”2 E mais
çam a ficar histéricas. Basicamente o que está errado com adiante, ao discutir a função do narrador machadiano, o
Hollywood é que você não consegue ter trabalho em equipe. qual buscávamos interpretar com a câmera: “(...) a perma-
Eu não conseguiria fazer um bom filme sem isso. Uma vez nente reversibilidade de norma e infração que define a gan-
que você estabelece uma relação empregado-empregador, gorra caprichosa em que balança o narrador machadiano
você divide as pessoas. É só quando não há nada a perder ou
tudo a ganhar que cada um dá o máximo no filme. Em certo 1
Carney, Ray. Cassavetes on Cassavetes. Londres: Faber and Fab-
sentido, a maioria das pessoas em Faces eram amadores. Eu er Limited, 2001, p.148
trabalho melhor como amador, longe das convenções do sis- 2
Arantes, Paulo Eduardo. O Sentimento da Dialética. Rio de Ja-
tema de estúdio. Eu acho que muitos de nós esperamos uma neiro: Paz e Terra, 1992, p.89

vinté m 7 • 83
estiliza a convivência descompassada de Antigo regime co- ver as linguagens do vídeo, do teatro e da música de forma
lonial e país burguês.” Como gravar um jantar pomposo de independente, unindo-se no momento da execução.
inspirações européias, sem deixar de lado a contradição por
Luiz Cruz é videasta e pesquisador de cinema, integrante
trás da figura do homem brasileiro parcialmente aburgue- do núcleo de vídeo da Companhia do Latão
sado do final do século XIX? Esses escritos teóricos sobre a
dialética do aburguesamento da nossa sociedade, em espe-
cial os do crítico Roberto Schwarz e Paulo Arantes, nos de- Prólogo de Entre o céu e a terra, Companhia do Latão
ram um pressuposto formal sempre atento a essa dualidade.
No fundo, nossa preocupação não era fazer uma adaptação
do conto de Machado de Assis para o vídeo, e sim, colocar
as questões debatidas sobre a formação da sociedade e do
sujeito brasileiro nos moldes da dialética entre o arcaico e
o novo. Esses detalhes eram sempre debatidos antes e du-
rante as gravações, desde a arte, com relação aos objetos
e aos figurinos, até a escolha dos ambientes (Vila Maria
Zélia, na zona leste de São Paulo), dos atores e a relação de
dualidade que surgiam entre eles.
A única parte do processo mais fechada, onde poucas
pessoas participaram, foi a edição do material, uma vez que
o próprio meio para tal tarefa restringe uma participação
mais ativa da equipe. Por se tratar de um filme mudo fomos
buscar influências do cinema russo do começo do século XX,
em especial a teoria da montagem dualista de Eisenstein. A
preocupação era montar uma história que fizesse sentido sem
som, apenas através das imagens e das ações. Interessante
notar que esse processo, que geralmente significa a última
etapa de finalização de uma obra audiovisual, em Entre o céu
e a terra ainda teríamos que lidar com mais uma etapa.
Depois de montado o vídeo, ainda tínhamos a etapa fi-
nal, um processo que se mostrou inteiramente novo para
todos os participantes da obra. Depois de todas as camadas
de interpretação, do roteiro inicial até a montagem final,
ainda restou outra que tinha a capacidade de criar uma
força de interpretação totalmente nova. A sonorização do
vídeo com sons, falas e citações abriram um campo de pos-
sibilidades muito maior que nós esperávamos. E esse último
passo transformou-se ele próprio no espetáculo. Por isso,
a obra se apresenta como processo e não como resultado,
uma vez que essa última camada é realizada ao vivo, mos-
trando para o espectador o processo de criação em estado
bruto, permitindo um recuo crítico de quem o assiste ao

84 • vintém 7
A cartomante do Latão
João Carlos Guedes da Fonseca

Lia Urbini
A Companhia do Latão, entre 2007 e 2008,
produziu uma série de materiais críticos e
documentos sobre sua história de dez anos.
No conjunto, encontram-se edições em li-
vros que contemplam suas peças, parte de
sua fortuna crítica, textos publicados na
revista Vintém e versões em vídeo das ence-
nações. Debruçar-se sobre o que já foi feito
revelou a fidelidade a um projeto político
de pesquisa estética e, consequentemente,
levou, ao que parece, o Latão a refletir tam-
bém sobre o lugar que ocupa na cena teatral
brasileira. A longevidade da Companhia pos-
sibilitou-lhe a demarcação de um território
próprio frente aos outros grupos de teatro e
a produções comerciais. Caracterizar as pe-
ças do Latão como reação à mercadoria e às
forças a ela vinculadas tornou-se um mote
recorrente.
É preciso também considerar que esse
processo de elaboração de um conjunto de
referenciais estéticos próprios ocorreu si-
multaneamente ao esvaziamento das forças
políticas com as quais o Latão sempre am-
bicionou dialogar. Os últimos anos da histó-
ria do pais presenciaram um fortalecimento
da lógica de mercado, a intensa cooptação
de setores reagentes ao Capital pelo apare-
lho de estado e, com isso, a afirmação da
via de mão única. Ao passo que alguns dos
potenciais interlocutores da Companhia se
dissolviam e perdiam o lastro com a feição
política do seu projeto estético, o Latão
viu-se impelido a reafirmar, com veemência,

vintém 7 • 85
a finalidade de sua existência como grupo teatral com re-
forços sucessivos dos temas e elaborações formais presen-
tes desde Danton, sua primeira encenação.
A fidelidade a esse projeto, somado ao avanço das
forças regressivas da nossa sociedade, enquadradas por
novos pactos com o Capital, condicionou a produção da
Companhia a uma recepção, prioritariamente, estética. Se
a produção do Latão alinhava cada uma das peças que
o integram num corpo orgânico, ela também evidenciou
um repertório de formas que lhe conferem um caráter.
É possível, pois, identificar recorrências temáticas, so-
luções dramáticas retomadas em um ou outro projeto e,
sobretudo, o comprometimento com uma tradição críti-
ca de esquerda. Em tempos de esvaziamento políticos e
de avanço do entretenimento, o Latão tornou-se uma voz
dissonante no debate cultural de nosso tempo. Todavia,
Entre o céu e a terra
pelos mesmos motivos, a dissonância se transformou-se
numa linguagem em parte decifrável. esforça-se para atuar no contrapé da manipulação ideoló-
Dez anos depois, o Latão foi obrigado a reconhecer-se gica, dos valores consolidados como verdades universais
nessa encruzilhada. A despeito das intenções e da inces- na sociedade moderna e contra a massificação de modelos
sante reflexão sobre o próprio trabalho, o Latão, quan- dramáticos característicos do drama burgês.
do feito o balanço de uma década de intensa produção, Não creio ser possível compreender a última monta-
tornou-se, ele mesmo, um problema a ser enfrentado. gem da Companhia sem considerar que ela reflete uma
consciência sobre a necessidade de superação das pró-
*** prias conquistas, questão que aparece no grupo, a bem da
A história da Companhia do Latão revela-se, sobretu- verdade, desde a origem mas se intensifica desde Visões
do, por dois vetores preponderantes: de um lado, a fide- siamesas. Afinal, a compreensão do movimento histórico,
lidade aos caminhos apontados por Brecht no que tange possivelmente, seja o principal mote desse retorno a Ma-
a necessidade de que o projeto estético não ignora as chado de Assis intitulado Entre o céu e a terra. Essa auto-
formas usuais de entendimento do publico; de outro lado, intitulada imitação do conto A cartomante, apresenta-se,
ainda no caminho delineado por Brecht, o comprometi- numa primeira aproximação, de caráter geral, como um
mento político da produção. Se o segundo vetor aponta estranho no ninho frente aos outros trabalhos do Latão.
para uma espécie de moto-contínuo da dramaturgia do Posta ao lado do conjunto de obras produzidas ao longo
Latão, o primeiro é resultado de uma compreensão dos de uma década, essa montagem acentua uma superação
modos pelos quais se forma a recepção do público de suas de padrões recorrentes em obras precedentes, seja pela
peças. Há, na dinâmica da Companhia, um exercício de sua forma, seja pela sua concepção cênica ou ainda pela
investigação que se utiliza do método de análise do ma- incorporação do conflito amoroso como centro da drama-
terialismo histórico e de sensibilidade para decodificar as turgia. O explicito recuo lírico da ação dramática soma-se
balizas estéticas que orientam a recepção do público. Isso à supremacia do vídeo em relação ao palco e, sobretudo,
porque é justamente no trânsito entre o palco e a platéia a rejeição de algumas fórmulas de encenação próprias de
que o Latão opera a sua dimensão política. A Companhia outras montagens.

86 • vintém 7
Esse movimento é intencional. Há algo de pensado na efeito, em certa medida dispersivo, opera como mecanis-
concepção de Entre o céu e a terra que, de fato, dialoga mo de vigilância e impede que nos entreguemos, com-
com uma certa predisposição do publico. No dia em que pletamente, às emoções despertadas pelo infortúnio do
assisti a montagem, havia como prólogo a apresentação triângulo amoroso. Em Entre o céu e a terra, há algo mais
de uma pequena cena inspirada em uma crônica de Ma- importante do que a traição de Rita, algo que condiciona
chado de Assis, A cena do cemitério, que versa sobre a es- a vida daquelas personagens à esfera material da vida e
peculação da bolsa de valores. A encenação concentrava que, malgrado o desejo de concentrarmos a responsabili-
um certo desenvolvimento dramático que a aproximava dade das ações ao caráter dos três diabos, enraiza a tragé-
de uma linguagem própria dos trabalhos precedentes da dia na vida material. O Latão reverbera os ensinamentos
Companhia do Latão. Embora o público fosse advertido de de Machado de Assis.
que esse prólogo tinha a intenção de revelar a atualidade Essa qualidade da montagem não impede que a ence-
da obra de Machado de Assis, A cena do cemitério concen- nação imprima um tom recolhido que convida a platéia a
trava, em grau elevado, certos traços de uma produção acompanhar o desenlaçe do triângulo amoroso. Os enqua-
dramática consolidada. A materialidade evidente do tema, dramentos exploram os closes, a intimidade das persona-
a representação dos atores e os cantos, que pontuam a gens e permitem que nos aproximemos das cenas como se
ação, animavam a narrativa da crônica de Machado de delas fossemos testemunhas oculares. A graça de Rita e
Assis. Para todos os efeitos, a montagem do prólogo re- a tensão de Camilo, aliados à figura séria de Vilela, refor-
verberava algo d’A comédia do trabalho, d’O auto dos bons çam a tese de que estaríamos diante de um típico drama
tratos e de O mercado do gozo. romântico. As cenas se organizam a apartir de uma estru-
A empatia do público com a encenação de A cena do tura de causa e consequenqüência de modo que a platéia
cemitério era evidente. Cada chiste e afirmação do cor- é apresentada a história da paixão de Rita e Camilo e,
po de referências estilísticos do Latão reafirmava uma consequentemente, ao seu desfecho violento. Todavia, o
cumplicidade entre o palco e a platéia, um reiteração das vídeo revela uma trama que, sem muito alarde, abre-se
expectativas de quem se encontrava no teatro. A Compa- para além dos limites impostos pelo drama pessoal. A nar-
nhia consolidava o seu caminho e, consequentemente, es- rativa pontua os elementos materiais sobre os quais se
treitava laços de cumplicidade. O conforto, contudo, não ergue a traição, evidencia o favor como moeda de troca
tardou a desfazer-se em certo mal estar com o início da daquela sociedade e, sobretudo, persegue a violência que
segunda parte da apresentação da noite, a montagem de se encontra mascarada pela ”generosidade” das elites. A
Entre o céu e a terra. matéria histórica invade a restrição do enquadramento e
os ex-escravos e as camadas mais baixas da sociedade im-
***
põem a sua presença. Tal qual fantasmagoria, eles se so-
Uma engenhosa armação organiza a montagem de En- brepõem aos pequeninos dramas provocados pela traição
tre o céu e a terra: ao fundo do palco, um vídeo mudo matrimonial. Em Entre o céu e a terra, os explorados não
encadeia a narração das desventuras de Rita, Camilo e são ignorados pela câmera ou pela montagem do vídeo.
Vilela; na lateral do palco, os atores, ao vivo, lêem os di- Ainda que eles não se apresentem como protagonistas da
álogos de cada personagem sem que haja um compromisso ação, a sua presença é constante. Eles são sempre intro-
à sincronia da imagem com o som; na outra lateral, vê-se duzidos na narrativa como pano de fundo das cenas ou em
dois instrumentistas a tocar uma música que acompanha a longos closes que intrecalam a trajetória dos três prota-
representação. O público é obrigado a dividir a sua aten- gonistas. Os miseráveis estão na intimidade do triângulo
ção entre as três frentes da encenação, de modo que o amoroso, de modo a impedir a completa reclusão da ação
olhar permanece em constante movimento pendular. Esse dramática à esfera do drama pessoal.

vinté m 7 • 87
O despiste parece ser o procedimento preponderante na sua estrutura formal, reforça o impasse sentido pela
de Entre o céu e a terra, utilizado com extrema ironia pela Companhia quando confrontada com a sua história e com
Companhia. Tudo parece ganhar novo contorno à medida as delimitações de sua época: o esgotamento. É dessa
que se organiza a montagem do vídeo. O texto clássico compreensão que parece se delinear o traço político da
de Machado de Assis, comumente lido como uma tragédia montagem de Entre o céu e a terra. Se Machado de As-
amorosa, a despeito da qualidade da obra e da intenção sis não pode ser condicionado a uma leitura meramente
do autor, torna-se, aos olhos do Latão, a matéria em que formalista, o próprio Latão não deve, ou não pretende,
se explicitam o favor, a promiscuidade entre o público e ser enquadrado como um grupo exclusivamente experi-
o privado na sociedade brasileira; a opção intimista dos mental. O problema de sua dramaturgia é material e essa
enquadramentos da câmera concorrem com a frieza da lei- consciência assume o centro dos desenganos de Entre o
tura dos diálogos pelos atores postos na lateral do palco; céu e a terra.
a música tocada, ainda que acompanhe toda a projeção do É preciso reforçar a tese de que a leitura a respeito da
vídeo, recusa-se a pontuar as emoções das cenas, de modo produção estética do Latão, a partir de um recorte estilís-
a impedir que o público se entregue ao ritmo cadenciado tico, encontra razão, sobretudo, no avanço do entreteni-
da montagem e as belas imagens. mento como moeda de troca fundamental da forma mer-
A ambição parece se encontrar no acontecimento or- cadoria. Com o esvaziamento do caráter reativo das forças
dinário da vida, a traição amorosa, a matéria necessária progressistas de nossa sociedade, motivado por pactos
para revelar quais são os vínculos entre as relações so- sucessivos com o capital, as tentativas de enfrentamento
ciais mais amplas e a sigularidade de cada vivência. Em da barbárie, no âmbito estético, são interpretadas como
Entre o céu e a terra, esse procedimento é desenvolvido, discurso ultrapassado de um tempo que não mais existe.
como em outras encenações do Latão, a partir do exame O processo de esvaziamento das obras que se recusam a
verticalizado do prosaico. Se o centro da dramaturgia da pactuar com as formas cristalizadas pela massificação são
Companhia é a revelação das maquinações da ideologia interpretadas a partir do prisma da estilização, desguar-
para revelar-lhe o caráter falso, é surpreendente como a necidas de vínculos com a vida. Nesse sentido, Entre o céu
estrutura da representação do triângulo amoroso explora, e a terra estreita se serve de referenciais característicos
em múltiplas camadas, esse procedimento. Afinal, esta- das formas cristalizadas, mas, sempre, com a intenção de
mos diante de uma narrativa de cunho lírico, mas que revelar-lhes algo de falso, de impróprio.
se apresenta, quando visto o seu conjunto, enraizada na O grau de maturidade com o qual a Companhia en-
matéria histórica bruta. Ao mesmo tempo, a leitura dos frenta o impasse de sua produção é notavel, sobretudo,
diálogos pelos atores dificulta a entrega da atenção do pela incorporação do vídeo como a principal plataforma
público à representação fílmica, estrito senso, o que, em da encenação. Se o problema que anima a montagem do
tese, lança a encenação para o terreno do teatro, do aqui Latão é o esgotamento, seja estético, social ou políti-
e agora. A cristalização da imagem captada por artífício co, o vídeo torna-se um meio que, sob a lógica da re-
técnico é confrontada com a imprevibilidade do palco, de produtibilidade técnica, se mimetiza o tema central da
modo que, no âmbito da montagem de Entre o Céu e a peça. O esvaziamento precipita-se na forma. A tarefa
Terra, mimetiza-se, em certo grau, o movimento de um não é fácil e exige uma mediação com a artificialidade
enraizamento reagente contra as formas eternizadas pela do processo. Os atores e os músicos no palco desem-
câmera de vídeo. penham, aqui, papel decisivo à medida que ancoram a
Nada é, de fato, o que parece. Há um jogo de trai- representação na materialidade da vida, impedindo o
ções sucessivas das expectativas que lançam o especta- trânsito livre das imagens e a cumplicidade com o de-
dor para um estado de desconforto. Afinal, a montagem, senvolvimento dramático. Nos diálogos, surgem trechos

88 • vintém 7
Entre o céu e a terra

de Joaquim Nabuco, enunciações dissonantes, no tom e de fato, o objeto a ser investigado. Por isso, a presença
na intenção, com a ação dramática, de modo que se põe dos escravos libertos, sempre recolhida na intimidade da
em xeque a naturalidade com a qual as representações casa dos proprietários, também implica na anulação do
do vídeos se desenrolam. espaço da coletividade. Há uma certa afinidade eletiva
A ambição da montagem é evidente. Não se trata ape- entre o século XIX de Machado de Assis e o ano de 2009
nas de rever o caminho percorrido ao longo de dez anos, para Companhia. O que, em outra chave, talvez explique o
mas de tentar dimensionar a sua razão em um movimen- abandono, na montagem, da voz de um coro que sempre
to mais amplo de uma história que, no início do sécu- pontuou as peças anteriores do Latão. Essa consciência
lo XXI, presencia o absolutismo da forma mercadoria e altera a disposição estética da nova montagem da Compa-
a massificação das formas estéticas. Parece que, nesse nhia e desloca, com certa perplexidade, as preocupações
novo estágio, o Latão reconhece o esgotamento das for- para o campo de batalha em que ocorreu o esgotamento:
ças progressistas da sociedade brasileira e do seu próprio a reprodutibilidade técnica e a sua relação com as forças
trabalho, o que não implica, em hipótese alguma, o de- regressivas da sociedade brasileira.
saparecimento da opressão e da violência. Em Entre o céu
e a terra, a voz emudecida pela submissão material, dei- João Carlos Guedes da Fonseca é professor da Facom/Faap
xa de ser uma personagem, um sujeito social, e torna-se, e doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo

vintém 7 • 89
Companhia do Latão
Uma oficina
reconhecer nosso objeto de estudo e passar a interpretá-
lo sobre a perspectiva de uma adaptação para a TV.
Após a leitura do poema nos dedicamos a sua análise.

sobre a
Nos versos sobre a superprodução do café, a paralisia in-
dustrial, o êxodo rural, o desemprego e a incapacidade de
não se revoltar do povo, enxergamos pontos de conexão

revolução
com o presente, em especial nas passagens sobre a crise
econômica, que tornam explicitas as fraturas do capitalis-
mo. O debate crítico se deteve com maior verticalidade na
seqüência de superação do capital. Três fatores levanta-
Diogo Noventa dos como necessários para a reestruturação da cena pau-
taram a reflexão:
“O ovo que recebe uma quantidade adequada de
calor transforma-se em pinto, enquanto que o calor 1. A revolução surge como um movimento espontâ-
não pode transformar uma pedra em pinto, já que neo, sem método e organização;
as respectivas bases são diferentes.” 2. A cena é estruturada sob a ótica de quem observa
Mao Tse-tung. a luta, vendo-se as sombras dos combatentes que
ganham corpo apenas quando o líder cai ferido nos
braços das mulheres do subúrbio; e
Entre os dias 22 e 28 de novembro de 2008, a Companhia 3. No momento de escrita do poema o espectro de
do Latão e a Brigada do Audiovisual da Via Campesina revoluções era menor do que hoje, sendo talvez o
realizaram uma oficina conjunta de criação audiovisual grande referencial a Revolução Russa. Era preciso
proposta pelo Ponto Brasil, programa piloto da TV Brasil. mostrar as dificuldades da organização revolucio-
O tema de trabalho foi o poema “Café” de Mario de nária e potencializar seu referencial histórico.
Andrade, libreto de ópera política que dialoga com o tema
da revolução social a partir do contexto de uma crise eco- A soma dos três fatores gerou um quarto: é possível
nômica mundial. representar a Revolução?
A primeira ação da oficina foi criar condições para a Lênin, criticando o dirigente comunista húngaro Bela
melhor integração entre todos os envolvidos no processo: Kun, dizia: “Ele descurava aquilo que é o mais essencial,
onze integrantes da Companhia do Latão, sete do Ponto a alma viva do marxismo, a análise concreta de uma si-
Brasil, quarenta militantes da Via Campesina de todo país1 tuação concreta”. A partir da analise a contradição foi
e dois convidados da TV VIVE, da Venezuela. exposta e com ela nossa condição: construir uma leitura
atual e crítica ao texto de 1945 para um meio que no geral
Reunidos no Estúdio do Latão, realizamos coletivamen-
está impregnado de fórmulas estéticas e modos de pro-
te a leitura do poema de Mário de Andrade no sentido de
dução pré-estabelecidos que independem das variações
1
Via Campesina é uma organização internacional de luta pelo qualitativas. Pela construção de nosso trabalho passamos
direito dos camponeses. Na oficina citada, participaram militan- a entender nossas contradições internas em ligação e in-
tes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), do teração com as condições estabelecidas. Desde o início
MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e da CPT (Comis- a postura crítica nos vez agir na contramão da afirmação
são Pastoral da Terra), três dos principais movimentos que inte- de imutabilidade da contradição entre forças produtivas
gram a Via Campesina no Brasil. e relações de produção. Em nosso caso, o único processo

90 • vintém 7
a superficialidade. Nosso objetivo
era conhecer de fato nosso objeto
e contexto. Para isso, como dizia
Lênin: “é necessário abarcar e es-
tudar todos os seus aspectos, todas
as suas ligações e mediações. Nós
nunca o conseguiremos de maneira
integral, mas a necessidade de con-
siderar todos os aspectos prevenirá
dos erros e da rigidez”.
A última etapa de nosso estudo
foi a revolução, gravada com todos
os participantes da oficina na inten-
ção de potencializar a construção da
cena objetivamente, sob a totalida-
de dos seus aspectos e levando em
conta as características da contra-
dição no seu conjunto, identificados
na análise da obra. Sem estarmos
presos a uma ordem clássica de pro-
dução, gravamos, avaliamos, dis-
cordamos, gravamos, comentamos,
mudamos o texto e gravamos. A
montagem do vídeo não tornou este
Gravação de Café momento linear, tornou documental
a construção da cena, revelou pro-
que nos fez avançar na linguagem foi o desenvolvimento
cedimentos, contradições e o ambiente coletivo – experi-
dessas contradições.
ência mais próxima da representação de uma ação revolu-
Longe do desejo piedoso de “criticar aderindo ou
cionária que este programa de TV poderia produzir.
aderir criticando” partimos para a prática de trabalho
Neste processo a Companhia do Latão e a Brigada do
como critério da verdade. Sempre divididos em grupos Audiovisual da Via Campesina construíram uma perspec-
exercitamos versões das cenas que foram realizadas com tiva dialética no modo de produção televisivo; as condi-
estrutura técnica muito simples e horizontalidade nas ções externas constituíram a condição desta modificação
relações de produção. Tais condições defendidas por nós, e as condições internas foram a base dessas modifica-
menos por elogio ao precário do que pela garantia de um ções, tornando a vivência menos mecanicista onde as
ambiente favorável a troca de experiências, somadas à causas externas atuaram por intermédio do que foi cons-
perspectiva de crítica social dos indivíduos envolvidos truído internamente.
foram a base para a descoberta das possibilidades de se
fazer uma leitura atual do texto dentro de um registro
estético experimental. Diogo Noventa é videasta e pesquisador de cinema. É
Durante o trabalho todos tínhamos uma especial aten- coordenador do Pontão Estúdio do Latão e integrante do
ção em evitar a subjetividade, os exames unilaterais e núcleo de vídeo da Companhia do Latão

vinté m 7 • 91
Fragmentos cênicos da
Comuna do Latão*
Gustavo Motta 2. No palco
A tomada seguinte – a primeira imagem – se inicia
1. No vazio abruptamente, num corte seco. Ela apresenta, no que se
No início do Ensaio da Comuna (2009) – vídeoexperi- refere aos conteúdos veiculados, uma discussão sobre a
mento da Companhia do Latão – uma frase é pronunciada, fatura de uma cena teatral. A primeira fala enuncia três
ou antes, enfaticamente recitada por uma voz em off: questões gerais sobre a prática, que regem as interven-
ções seguintes: a improvisação (o ‘espontaneísmo’?); a
– Não existe melhor defesa para os vencidos do que o discussão e as informações externas (a teoria?); e a orga-
simples e sincero relato da sua história. nização formal (o resultado prático da ação).
É o duplo em negativo da primeira tomada com a tela ne-
A voz ressoa seca, sóbria e… estranhamente desacom- gra e a voz em off. Ela duplica a anunciação da estratégia
panhada. A tela, completamente negra, permanece, dian- construtiva do vídeo. Ao mesmo tempo, choca-se com o enun-
te dos olhos, impassível: no se puede mirar. Mas é possível ciado proposto inicialmente de “contar a história dos venci-
– narrar. É necessário narrar, diz a voz. Trata-se de um ví- dos”, frustrando aparentemente esta primeira proposição ao
deo, o espectador se encontra diante apresentar uma reflexão metalingüística sobre o teatro. Mas
de uma tela, mas aqui é a voz (e não a metalinguagem é uma armadilha: um vídeo não é uma peça
a imagem) que inicia o discurso. Na de teatro. O que se revela documentalmente é apenas parte de
verdade, é a imagem (e não a voz) sua produção. A constatação é óbvia, mas esclarecedora – do
que está, latente, em off. ponto de vista da câmera – da função que exerce aqui o teatro.
Este procedimento inicial enun- Trata-se da demonstração de sua realidade produtiva. Trata-se
cia uma estratégia fílmica: para esta também de um juízo: a colisão de jogo teatral com a propo-
montagem o protagonista imediato sição de “contar a história dos vencidos” identifica um com o
é aquilo que narra a voz. A voz que outro. O vídeo identifica, assim, teatro com luta.
narra instaura “o ponto de vista da A associação não é, no entanto, puramente mecânica,
morte”, a dizer, dos vencidos. Black mirror, e coloca a questão em via dupla. De primeira, ela anuncia
Antonio Dias – de forma relativamente simples – a abertura presente
do problema: a revolução (que se representará) como jogo
teatral – pour qu’on joue. O teatro como alegoria da revo-
* Em fevereiro de 2009 a Companhia do Latão realizou uma lução (perdida). Mas o que se verá a seguir é a dificuldade
oficina entitulada Ensaios da Comuna, utilizando como texto deste jogo, o “problema da prática”, que é para o teatro
base Os dias da Comuna, de Bertolt Brecht. O experimento um enunciado literal – relativo às dificuldades da constru-
videográfico resultante recebeu o mesmo nome da oficina. ção da cena a partir do texto.

92 • vintém 7
3. Na câmera
Companhia do Latão saio sobre o latão, 1997; e o Ensaio da Comuna, na versão
No plano da imagem videográfica, o problema da prática teatral, 2001). Num outro sentido, propriamente cine ou
se enuncia de outro modo, em que o aspecto produtivo não é videográfico, o “ensaio” flerta com a forma não-hegemô-
mostrado, mas demonstrado. A câmera persegue as faces dos nica (ou até mesmo marginal) do filme-ensaio, da unidade
atores como se não soubesse fazê-lo, ou como se não soubesse entre teoria e prática artística, à qual diversos elementos
o que exatamente filmar. A aparência é documental, mas um – como o “enquadramento” do filme pela fala inicial ou o
documental que ainda não encontrou seu objeto (pois não se uso volátil dos letreiros e legendas – apontam.
trata obviamente de um making-of). As vozes falam, mas de Ainda aqui, na apresentação do título, o som se adian-
quem são elas? A câmera tampouco parece saber. ta e invade os limites da imagem (que virá a seguir). A
seqüência apresenta fragmentos de cenas de combate e
W. Benjamin: Não ressoa nas vozes a que damos ouvido discussão. A montagem intercala combate representado e
um eco das que estão, agora, caladas? discussão (ou estudo) real, ou antes, soma um ao outro.
A câmera não pára de procurar em meio às faces. E
A câmera procura incessantemente. subitamente encontra.
E ao procurar os atores, os sujeitos que enunciam o
conteúdo, ela divide, em idas e vindas, os rostos em na- W. Benjamin: A verdadeira imagem do passado passa
rizes, bocas e orelhas. Mas, ao contrário do que se po- célere e furtiva. É somente como imagem que lampeja jus-
deria imaginar, a imagem produzida não é vacilante. A tamente no instante de sua recognoscibilidade, para nunca
câmera opera como uma faca, a imagem é o resultado mais ser vista, que o passado tem de ser capturado.
do corte ao qual a objetiva submete os corpos filmados.
A filmagem funciona como um processo de mortificação. A tela negra reaparece, agora propondo um diálogo
Os movimentos e cortes duros, bem como a proximidade, mudo. Ela se dirige ao espectador: o letreiro introduz a
reforçada pela luz saturada, que procura extrair como que narrativa dos fatos da Comuna de Paris.
fisicamente as cores dos corpos, dão a impressão – ou
antes, fazem uma demonstração – de que a câmera está 5. Na faca
obstinada em encontrar algo. H. Müller: Acredito que mesmo as peças tardias de Bre-
O que filmar? Esta é uma decisão a ser tomada imediata- cht contêm bastante material incendiário. Apenas acho que
mente, ainda que as coordenadas não estejam claras. É uma elas precisariam ser estripadas.
ação no presente, arriscada, que é irrepetível, e não pode ser
descartada sem custo. O cameraman materialista sabe disso. A organização desta narrativa da Comuna começa
(mais uma vez) com a proposição de uma estratégia, des-
4. Na fábula ta vez figurada como documentário. Uma atriz propõe a
O letreiro apresenta aquilo que pode ser o título do seus pares modelos diversos de construção de cena, que
vídeo – Ensaio da Comuna –, mas que deve ser entendido se intercalam. A estratégia é justamente este intercalar,
também como parte do procedimento repetido de enun- no qual a um modelo de jogo teatral sucede outro. De
ciação de suas estratégias construtivas. Compreende-se alegoria da revolução e da luta, o teatro passa a encarná-
“ensaio”, assim, como um enunciado de mão dupla. Primei- las. Pois não se trata de ecletismo ou volubilidade, mas
ramente, se recupera o procedimento de work-in-progress, de estratégia rítmica que faz avançar o jogo em módulos
sempre presente nas montagens teatrais da Companhia, conexos, com avanços e recuos, tal uma guerrilha. Justa-
inclusive na alusão direta no título aos diversos “ensaios” mente como fará avançar a narrativa, no resto do filme, a
realizados anteriormente (Ensaio para Danton, 1996; En- intercalação entre a apresentação de estratégias teatrais

vintém 7 • 93
e representações de fragmentos sintéticos da dramaturgia luz ou movimentos de câmera) são tomados e manuseados
de Brecht em Os dias da Comuna. na montagem em sua realidade concreta objetual e, enquan-
Mas “intercalar” não descreve exatamente o proce- to tal, autônoma. Entretanto essa autonomia é sempre rela-
dimento. A montagem videográfica na verdade retalha a tiva, pois não resulta em autonomia formal positivada, mas
narrativa cênica original – à qual ela também documenta, sim, implica a dimensão negativa que a pretensa autonomia
mas apenas parcialmente. As duas dimensões encontram- de um elemento solto exerce em relação aos outros elemen-
se em lapso, pois, imbricadas uma na outra, dimensão tos constitutivos da unidade fílmica.
narrativa ficcional e dimensão documental não existem De imediato, é possível notar que o texto de Brecht se
enquanto tais. A câmera saqueia o teatro – enquanto re- encontra sintetizado ao máximo. As narrações dentro das
sultado ou produto e enquanto atividade produtiva (ou cenas são multiplicadas em relação ao texto original. A
trabalho) – transformando tudo em fragmento e imagem. fábula está resumida a uns poucos episódios-chave (den-
Este processo de pilhagem por parte da câmera serve a tre os mais importantes: a cena dos canhões que deflagra
outro processo, o da montagem, no qual a utilização modu- a revolução, a hesitação no ataque a Versalhes e a chama-
lar dos jogos ou as estratégias teatrais passam a retrançar da das eleições gerais da Comuna, a fuga dos burgueses
os esparsos fios (compostos por falas, ações e expressões) para Versalhes, as negociatas de Favre e Bismarck, o recuo
num outro tecido. A narrativa maior – que não se limita à na tentativa de expropriação revolucionária do Banco Na-
narrativa ou fábula brechtiana – começa a tomar corpo. cional, a convocação da Guarda Nacional e a cena final da
semana sangrenta) e a citações de inúmeros outros.
Afinal, segundo o mesmo Müller: Não se pode escrever
apenas fragmentos. Isso não é possível. Mas é preciso reagir 7. No espaço-entre
às histórias que encontram sua conclusão no palco. W.Benjamin: A sociedade sem classes não é a meta final
do progresso na história, mas sim, sua interrupção, tantas
6. No texto vezes malograda, finalmente efetuada.
A constituição modular, mais do que fragmentária,
garante o caráter manuseável da dramaturgia, da concre- A fábula ou a coerência narrativa não fica absolutamen-
tização cênica e da montagem audiovisual. A criação de te prejudicada pelos cortes, edições e resumos do texto. De
imagens praticáveis do mundo depende aqui da praticabi- fato, esses “vácuos” criados na narrativa exigem um espec-
lidade do mundo das imagens. tador disposto a tomar parte ativa. Nota-se que as citações
O caráter épico da fábula brechtiana original adquire ou alusões de episódios, em caráter fragmentário, arranca-
assim, em imagem, um movimento marcadamente dialéti- das à totalidade cênica, funcionam como as cargas nega-
co. Texto, cena e câmera se imbricam e ao mesmo tempo tivas no circuito elétrico do texto brechtiano. Em suma: o
se opõem um ao outro. Os textos a serem supostamente in- instante da rememoração do passado vencido é o instante
terpretados pelos atores são vulgarmente lidos na cena; as do encontro com os vazios ou as brechas da montagem, em
cenas coletivas (dos comunards) são filmadas – de maneira outras palavras, a brecha no progresso da história.
invasiva? – em closes ou em primeiríssimo plano; por oposi-
ção, as cenas individuais (dos governantes franceses e prus- H.Muller: A ferida pode ser usada como arma porque re-
sianos) são filmadas – respeitosamente? – em planos médios presenta o buraco na rede, a lacuna no sistema, aquele vão
e americanos; os letreiros se adiantam ou se sobrepõem às livre entre o animal e o homem, que se vê continuamente
falas cênicas; a montagem faz invadir sons de uma cena na ameaçado e que precisa ser continuamente reconquistado,
imagem de outra. Os diferentes elementos que compõem o no qual relampeja a utopia da comunidade humana. O pás-
filme (cena ficcional, cena documentária, som, utilização da saro que manca desfigura o vôo.

94 • vintém 7
Benjamin dizia que o teatro épico brechtiano havia abstrato) naquele vácuo inicial, como (não) imagem opa-
transformado o palco em tribuna. A Companhia do La- ca e negra à qual se dirige a voz da primeira tomada: a
tão, ao experimentar um outro passo com Heiner Müller tela mesma. É uma constatação e um juízo. É também uma
(Equívocos colecionados, 2004) havia figurado a tribuna na provocação. A dizer: um estímulo.
personagem de um juiz que identificava simbolicamente Num mundo regido pela lógica mercantil (do qual a forma-
autor e audiência. Aqui Müller e Brecht se encontram na imagem é, segundo Debord, o momento de máxima acumu-
visão benjaminiana. lação), a interrupção do fluxo de imagens, ainda que por um
O vídeo se alça à virtualidade da figura do especta- instante, só pode ser identificado como… uma abertura.
dor – a quem cabe o juízo ativo. Mas o faz projetando
ou figurando o espectador (que é também um consumidor Gustavo Motta é mestrando em Artes Visuais na ECA-USP

Oficina Ensaios da Comuna

vintém 7 • 95
A Companhia do Latão é filiada à Cooperativa Paulista de Teatro

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