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ESTADO E PODER:
Ditadura e Democracia
CONSELHO EDITORIAL
Adilson Francelino Alves
Antonio de Pádua Bosi
Beatriz Helena Dal Molin
Cárliton Vieira dos Santos
Clodis Boscarioli
Eurides Kuster Macedo Júnior
Gláucia Maria Figueiredo Silva
Gustavo Biasoli Alves
Jefferson Andronio R. Staduto
José Ricardo Souza
Lavínia Raquel Martins de Martins
Loreni Teresinha Brandalise
Lúcia Helena Pereira Nóbrega
Luis Francisco Angeli Alves
Marina Kimiko Kadowaki
Mário Luiz Soares
Samuel Klauck
Soraya Moreno Palácio
Wilson João Zonin
Yolanda Lopes da Silva
Estado e poder: Ditadura e Democracia 3
Carla Luciana Silva
Gilberto Grassi Calil
Maria José Castelano
Paulo José Koling
(Organizadores)
ESTADO E PODER:
Ditadura e Democracia
EDUNIOESTE
CASCAVEL
2011
4 Estado e poder: Ditadura e Democracia
© 2011, dos autores
Capa:
André Crepaldi
Diagramação:
André Crepaldi
Ficha Catalográfica:
Marcia Elisa Sbaraini Leitzke CRB-9/539
ISBN 978-85-7644-236-3
Impressão e Acabamento
Gráfica Universitária
Rua Universitária, 1619
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Fax (45) 3324-4590
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Caixa Postal 701
Estado e poder: Ditadura e Democracia 5
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................................. 07
APRESENTAÇÃO
Os termos democracia e ditadura usualmente
aparecem no vocabulário corrente de forma absolutizada,
naturalizada e a-histórica. Este uso corrente, ao mesmo
tempo, articula-se com uma abordagem simplificadora dos
processos de “redemocratização”, tidos como prontos e
acabados, situados em uma temporalidade passada e cujo
legado teria sido o “reestabelecimento da democracia”,
supostamente efetivado e concluído. Uma análise dos
processos históricos concretos que leve em consideração as
tensões, conflitos e embates constitutivos da totalidade social
permite qualificar a reflexão em torno das ditaduras e
democracias, redimensionar o debate situando os processos
em sua processualidade, identificar distintos projetos e
concepções de democracia e variadas formas de combinação
entre coerção e consenso. A reflexão em torno dos processos
chamados de “transição” à democracia na América Latina, com
suas contradições e imperfeições, nesta perspectiva, pode
permitir a identificação dos distintos agentes sociais que se
confrontam no intuito de afirmar diferentes projetos e
concepções de democracia, agentes sociais que propuseram e
encaminharam a superação mais ou menos radical do legado
das ditaduras, ou ainda afirmaram distintas formas de
conciliação e de combinação entre elementos forjados e
impostos pelas ditaduras e procedimentos característicos do
Estado Democrático de Direito.
Este livro é constituído por sete artigos que abordam,
sob perspectivas distintas e complementares, processos de
transição e formas de disseminação de projetos políticos e
afirmação de hegemonia(s), em um contexto histórico de
particular importância para o Cone Sul, qual seja as décadas
de 1970 e 1980, marcado pelas ditaduras terroristas de Estado,
pelas formas de resistência e pelos tensos e contraditórios
processos de transição ao Estado Democrático de Direito,
mantendo-se, no entanto, em diferentes medidas e condições,
parte do legado das ditaduras brasileira, argentina e uruguaia.
8 Estado e poder: Ditadura e Democracia
Os estudos reunidos neste livro articulam uma reflexão
teórica que permite abordar em perspectiva crítica a afirmação de
ditaduras, os processos de transição e as contradições das democracias
que a ele se seguem. Ao mesmo tempo, na especificidade de cada
artigo, trazem elementos particulares decorrentes de pesquisas
empíricas e estudos concretos, no diálogo entre referencial teórico e
prática de pesquisa que possibilita o avanço do conhecimento
histórico. A utilização do referencial gramsciano, a partir da reflexão
em torno de distintas categorias – Estado, hegemonia, coerção e
consenso, revolução passiva, aparelhos privados, etc – favorece a
articulação entre as discussões realizadas e estabelece um marco de
unidade. Em particular, destaca-se a ênfase nos sujeitos sociais, na
luta de classes e nos processos de construção/reconstrução de
hegemonia por parte dos agentes sociais e suas organizações políticas.
A ação orgânica de veículos de imprensa, considerados como
instrumentos de grupos e frações atuantes na luta de classes e
disseminadores de projetos políticos e ideológicos é um claro exemplo
desta perspectiva. É presente ainda a análise da intervenção política
de outros aparelhos privados de hegemonia e seu papel no
encaminhamento dos processos de afirmação, contestação ou
superação das ditaduras e na conformação dos percursos dos processos
de transição.
As temáticas abordadas pelo livro em seus capítulos
representam um desdobramento e aprofundamento coerente de
pesquisas que, com seus estudos de caso e dados empíricos,
enriquecem o campo de análise. Além disso, o rigor metodológico,
teórico e conceitual, a escolha coerente - sem ser dogmática - no
campo marxista, presente em todos os textos, cumpre com o objetivo
de mapeamento da historiografia sobre o tema, bem como estabelece
um importante e profícuo diálogo com outros campos do
conhecimento, notadamente as Ciências Sociais. Os compromissos
com o avanço da pesquisa e a disseminação de conhecimentos na
área de estudos apresentam condições favoráveis para o êxito da
proposta, configurando contribuição efetiva para a historiografia
sobre Estado e as relações de poder no Brasil contemporâneo.
O texto de abertura, A Universidade sob ataque: ensino e
autoritarismo no Uruguay da Segurança Nacional, de Enrique Padrós,
analisa o processo de cerceamento, intervenção e refundação que o
Estado e poder: Ditadura e Democracia 9
sistema de ensino uruguaio, em especial o universitário, sofreu no
período entre 1968 e 1985, marcado em seus primeiros anos pelo
avanço do autoritarismo, ainda durante o regime democrático, cujos
contornos foram consolidados e aprofundados a partir do golpe de
Estado que instaurou uma ditadura civil-militar (1973-1985). O
trabalho contribui para uma profunda reflexão sobre os fundamentos
e mecanismos repressivos do Estado sobre o sistema educacional
uruguaio e seus desdobramentos.
As categorias de Gramsci e a transição política no Brasil (1974-
1989), de David Maciel, utiliza categorias gramscianas como Estado
integral, sociedade política, sociedade civil, hegemonia, bloco
histórico, intelectual orgânico, entre outras, para a análise do processo
de transição política ocorrido no Brasil entre 1974 e 1989. Em especial
faz uso das categorias revolução passiva, transformismo e cesarismo,
para a análise da passagem da forma ditatorial para a forma
democrática do Estado autocrático-burguês brasileiro no período
acima considerado; num processo de transição política marcado por
mudanças moleculares, dirigido por um governo cesarista militar
com vistas a preservar/aperfeiçoar a autocracia burguesa diante de
uma situação de crise conjuntural que posteriormente evoluiu para
uma crise de hegemonia. Para tanto teria sido necessário desenvolver
um movimento transformista de longo prazo sobre as oposições,
desde a oposição burguesa até a oposição popular. Concretamente,
tal método, baseado nas categorias revolução passiva ou revolução-
restauração, consistiu em potencializar as possibilidades de
participação política previstas pela própria institucionalidade
autoritária na primeira etapa (1974-1977) e em promover reformas
institucionais sucessivas nas etapas posteriores (1977-1982; 1982-
1985 e 1985-1989), em resposta a situações de acirramento da luta
de classes e de questionamento do governo militar e/ou da própria
autocracia burguesa.
Grande imprensa brasileira: Ditadura apagada e Democracia forjada,
de Carla Luciana Silva, tem como objetivo principal a investigação
das formas políticas de atuação da grande imprensa brasileira no
período da Ditadura Civil-militar de 1964 até o presente. Ao analisar
as fontes e a historiografia, a autora problematiza a concepção de
democracia e o papel social que a própria imprensa atribui a si mesma,
confrontando-a com a ação orgânica concreta dos mesmos
10 Estado e poder: Ditadura e Democracia
veículos, suas contradições e seus vínculos políticos e de classe.
Destaca, em especial, os processos e mecanismos de imposição
de uma dada memória, legitimadora e apassivadora, em
consonância com os limites e contradições do processos de
democratização brasileiro.
De Perón a Videla: revisão histórica e historiográfica do
Terrorismo de Estado na Argentina (1973-1978), de Marcos Vinícius
Ribeiro, apresenta uma análise histórica e historiográfica do
período ditatorial argentino a partir da categoria “terrorismo
de Estado” (TDE), argumentando em torno de sua pertinência
para a análise e interpretação da ditadura argentina. Ressalta-
se ainda o destaque dado à contribuição de grupos organizados
no interior da sociedade civil e que intervém como agentes
políticos que contribuíram concretamente para o
desencadeamento da repressão, o que se verifica muito
particularmente no caso da Triple A (Aliança Anticomunista
Argentina).
A “conciliação das elites”: projeto hegemônico de democracia
na revista Veja – a redemocratização de 1984, de Luis Fernando
Zen, desenvolve uma análise crítica da atuação da revista Veja
durante o processo de transição entre a ditadura militar e a
formação de um novo regime conhecido como processo de
redemocratização brasileira. A análise concentra-se nos eventos
ao longo do ano de 1984, até janeiro de 1985, marcado pelas
tensões dos movimentos sociais e políticos e período em que
ocorreram as eleições indiretas que elegeram Tancredo Neves
e José Sarney para a presidência. A questão central é a analise
de como a revista Veja se utilizou de sua capacidade de
inserção na sociedade, criando consenso em torno de seus
interesses, apresentando-os como interesses oriundos da
“vontade popular”.
O aparelho de hegemonia filosófico Instituto Brasileiro de
Filosofia / Convivium (1964-1985), de Rodrigo Jurucê Gonçalves,
tem como foco a análise da atuação de duas organizações,
compreendidas como aparelhos privados de hegemonia, em
sentido gramsciano: o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF)
- criado em 1949 por setores mais tradicionais da
Estado e poder: Ditadura e Democracia 11
intelectualidade paulista, ligados a Faculdade de Direito do
Largo São Francisco -, e a revista Convivium - periódico que
congregava uma intelectualidade católica liberal, que fora
apoiada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
– como elementos orgânicos na construção do golpe de 1964.
Para tanto, fundamenta a pesquisa na análise de fontes a partir
de pressupostos marxistas e, em especial, gramscianos, com
destaque para a utilização da categoria “revolução passiva”.
Finalmente, o texto Articulações burguesas e o Estado em
Toledo, de Ivanor Mann de Souza, tendo também por base o
referencial teórico gramsciano, pretende contribuir para a
compreensão do Estado e sua relação com as articulações
burguesas e a luta de classes. Para tanto delimita a análise à
cidade paranaense de Toledo, acompanhando as atividades dos
homens efetivados nos cargos públicos e sua relação e posição
dentro da luta de classes, no contexto do polêmico governo
municipal de Avelino Campagnolo (1964-1968). A análise
centra-se no confronto entre o governo Campagnolo e parte
da burguesia local, a qual criou um jornal - “A Voz do Oeste”
-, configurando-o como aparelho privado de hegemonia
voltado ao combate à administração municipal, em
contraposição à Rádio Guaçu de Toledo, pertencente a Avelino
Campagnolo.
Este livro é a terceira coletânea publicada em conjunto
pela Linha de Pesquisa Estado e Poder do PPGH-Unioeste e
pelo Grupo de Pesquisa História e Poder, integrando a Coleção
Tempos Históricos. 1 Constituido em torno de uma
problemática central para a problemática de Estado e Poder,
o livro coloca em destaque a interlocução com pesquisadores
e grupos de pesquisa que desenvolvem reflexões e produzem
pesquisas a partir de perspectivas teóricas próximas, na
investigação de objetos semelhantes; e também socializa parte
1
Os anteriores são: Estado e Poder: abordagens e perspectivas (2009) e Estado e
Poder: questões teóricas e estudos históricos (2011). Também vinculados à Linha e
ao Grupo de Pesquisa, foram publicados os livros de Carla Luciana Silva, Veja: o
indispensável partido neoliberal (2009) e Gilberto Calil, Integralismo e hegemonia burguesa:
a trajetória do PRP, 1945-1965 (2010).
12 Estado e poder: Ditadura e Democracia
dos resultados produzidos através das dissertações de
mestrado desenvolvidas no âmbito da Linha de Pesquisa
Estado e Poder. As contribuições de Enrique Padrós e David
Maciel são excelentes exemplos da mencionada interlocução,
com contribuições que permitem a problematização de
questões relevantes acercas das ditaduras uruguaia e brasileira.
Os artigos de Marcos Vinícius Ribeiro, Luis Fernando Zen,
Rodrigo Jurucê Gonçalves e Ivanor Mann de Souza – todos
eles mestres em História pelo PPGH-Unioeste e integrantes
do Grupo de Pesquisa História e Poder -, propiciam a
socialização de parte dos resultados produzidos pelas pesquisas
desenvolvidas, ressaltando a relevância da reflexão sobre
poder, política e os embates constituídos em torno da
hegemonia, que configuram o campo de debate no qual
“ditadura” e “democracia” devem ser situados para que possam
ser compreendidas e analisadas em sua complexidade e na
processualidade própria.
Por fim, cabe um convite a uma leitura atenta sobre
os diferentes processos históricos analisados, tanto no tempo
como no espaço, mas que pode contribuir para pensarmos
como e por que existem ditaduras, como elas são sustentadas
e como elas são superadas. Não se deve procurar respostas
acabadas, afirmações categóricas, mas reflexões críticas e
consistentes que formam um mosaico para essas e outras
questões.
**
Professor do Departamento de História e dos PPG-História e Relações
Internacionais/UFRGS.
14 Estado e poder: Ditadura e Democracia
concretos ou potenciais, e como tal foram tratadas. Tal situação
pode ser colocada sob uma perspectiva histórica maior,
hemisférica, no bojo das complexas relações de subordinação
e dependência entre América Latina e Estados Unidos. A
experiência confirmou: a educação e a cultura foram alvos
estratégicos na imposição das ditaduras de segurança nacional.
2
Jornada, ano 1, nº 0, setembro 1984. Órgão da FEUU e da ASCEEP.
16 Estado e poder: Ditadura e Democracia
No dejes que te maten tus sentimientos de uruguayo,
llevándote a sueños de tierras extrañas. Todo lo que ves
en América ha sido programado desde Moscú, desde
Pekín, desde La Habana... Defiende tu tierra frente a los
uruguayos traidores. Ponte de pie. [Alusão direta ao
bando de extrema-direita Juventud Uruguaya de Pie/JUP]
Arráncales el disfraz de los que se dicen “socialistas”
que en nuestra tierra son los que abren las puertas a
quienes nos destruyen como país libre. Arráncales el
disfraz a los que se ponen el título de universitario, o de
Rector o de Decano […], a los ‘sacerdotes progresistas’ y
a los que invocan para defenderse títulos de Obispos, o
párrocos o Pastores, disfraces que se ponen para que tú
no te enteres de su complicidad con asesinos comunistas.
[…].
Coronilla3
3
La Mañana, Edición del Interior, 03 set. 1970.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 17
tensa com o crescimento da ação da guerrilha tupamara bem
como do ativismo de outros movimentos radicais. O ano de
1968 foi intensamente vivido. O avanço do autoritarismo e os
recortes orçamentários (particularmente na educação) se
entrelaçaram.4 Em 1968, o movimento estudantil sofreu as
primeiras mortes. Líber Arce, Susana Pintos, Hugo de los
Santos e Heber Nieto foram vítimas da violência estatal, fato
que comoveu uma sociedade uruguaia que não estava
acostumada a esse grau de confrontação política. Utilizando
medidas constitucionais de exceção, as denominadas Medidas
Prontas de Seguridad (MPS), proibindo partidos políticos,
colocando fora da lei organizações sociais, intervindo o
Conselho de Ensino Secundário e impondo a censura, o
governo tentou reverter a situação. Em relação à Universidade,
entre outras medidas, tentou controlar a informação a ela
vinculada, como mostra a seguinte correspondência do Chefe
de Polícia de Montevidéu ao redator do semanário Marcha:
4
O ano de 1968 foi um ponto de clivagem quanto à redução dos investimentos
destinados à educação. Iniciava-se um período de queda pronunciada. Se em 1967
o investimento era da ordem de 26,1% do orçamento nacional, em 1968, diminuía
para 19,7%. (APPRATTO; ARTAGAVEYTIA: 2004)
5
Marcha, 15 ago 1968, p. 7.
18 Estado e poder: Ditadura e Democracia
melhores condições de ensino e a manutenção da autonomia
universitária, denunciava o autoritarismo estatal, o atraso no
repasse dos valores do orçamento destinados à educação, as
políticas excludentes e a corrupção e lutava contra a ingerência
dos EUA no país e na região. Enquanto isso, o governo
acumulava perda de credibilidade.
Em 1971 houve um processo eleitoral presidencial que
garantiu a continuidade do projeto vigente com a vitória de
Juan María Bordaberry, pelo Partido Colorado. Durante os
primeiros meses da nova administração o confronto chegaria
ao paroxismo. A entrada em cena das Forças Armadas para
acabar com os focos “subversivos” foi determinante para a
aceleração do processo que levaria ao golpe de Estado em junho
de 1973. Entretanto, antes disso, o novo presidente e seu
ministro da Educação, Julio Maria Sanguinetti 6, iniciou
profunda mudança no sistema educativo através de um projeto
de lei, a Ley de Educación General, finalmente aprovado pelo
parlamento, em janeiro de 1973, seis meses antes do golpe de
Estado.7
6
Julio Maria Sanguinetti, do Partido Colorado, foi o primeiro presidente eleito
após o final da ditadura. Governou o país entre 1985 e 1990. Voltaria a fazê-lo entre
1995 e 2000.
7
Convicción, 29 mayo 1984, p. 13.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 19
questionamento do statu quo.8
Na prática, a nova lei acabava com a autonomia dos
diversos Conselhos de Ensino. No seu preâmbulo indicava a
inspiração nas experiências do Brasil e da Argentina, nesse
momento países governados por ditaduras. A alusão às
experiências dos países vizinhos era vista como provocação e
ameaça. Que uma ditadura se espelhasse em outra, era
compreensível. Mas que o fizesse um governo democrático
era motivo de extrema preocupação. No fundo, os
representantes dos setores dominantes estavam confirmando
a simpatia por regimes baseados na DSN e na cruzada contra-
insurgente.9 O reitor da Universidad de la República, Oscar
Maggiolo, questionou fortemente o teor do documento e a
forma como fora encaminhado. Nesse sentido, denunciou os
elementos considerados perniciosos, originados na legislação
fascista italiana de 1924 (monopólio da educação pelo Estado,
rigorosa normatização e intenção punitiva contra a comunidade
escolar em caso de desrespeito às novas regras. Maggiolo
estranhou, ainda, a urgência com que a lei tramitou no
Parlamento, considerando-se que se tratava de algo tão
estrutural, complexo e estratégico para o país e para as futuras
gerações. Assim, o reitor defendeu, com veemência, a rejeição
do projeto.10
O impacto negativo e dramático que a imposição da
nova lei traria para a sociedade uruguaia foi percebida com
muita clareza, por setores que compreendiam que função a
mesma desempenharia, no processo autoritário em
implementação:
8
Para Todos (Terrorismo contra la enseñanza), n° 17, setiembre 1972, p. 17.
9
Informe ante la Comisión de Instrucción Pública de la Cámara de Representantes.
In: LEY DE EDUCACIÓN GENERAL. Análisis Crítico. Montevideo: Fundación
de Cultura Universitaria, 1972, p. 66.
10
Ídem, p. 77.
20 Estado e poder: Ditadura e Democracia
las dos terceras partes de las disposiciones normativas
de este proyecto de ley - son normas penales,
disciplinarias, y prohibitivas, son normas que contienen
amenazas, son normas que tipifican faltas y delitos, son
normas que regulan penas.11
16
LEY DE EDUCACIÓN GENERAL, op. cit., Art. 33.
17
Ídem.
18
CASTRO, Julio. La caza de brujas. Cuadernos de Marcha, noviembre 1972 (Ley
de Enseñanza).
Estado e poder: Ditadura e Democracia 23
toda atividade sindical ou estudantil; fomento de delação e
colaboracionismo nos espaços de ensino e familiares;
afastamento massivo de professores, funcionários e estudantes
considerados “subversivos” ou suspeitos de ligações
“subversivas”.19
19
Informações contidas no artigo “La Enseñanza es del pueblo porque la defiende
el pueblo”. La Voz de la Mayoría, 12 jul 1984 e do material específico sobre educação
do documento: URUGUAY 1973/1978. Informe apresentado pela Organización
Internacional de Periodistas à Conferência Geral da UNESCO. Paris, 1978.
24 Estado e poder: Ditadura e Democracia
da censura, etc., são alguns exemplos concretos. Em termos
de perseguições aos movimentos sociais, a Federación de
Estudiantes Universitarios del Uruguay foi dissolvida por decreto,
em 1º de dezembro de 1973, e, no 16 de abril de 1975, foi a
vez da Federación de Profesores de Enseñanza Secundaria. Sempre é
importante frisar que a Ley de Educación foi aprovada por um
Parlamento receptível a um Executivo autoritário, mas ainda
em um cenário anterior ao golpe de Estado que instalaria a
ditadura civil-militar.
A instalação da ditadura aprofundou a reforma do
sistema educativo em marcha. Até 1975, a mesma estava
marcada pela concomitância entre a sua elaboração e a aplicação
de medidas repressivas de “descontaminação”, mais imediatas.
Em um segundo momento, entre 1975 e 1984, houve uma
reformulação visando a modificação de condutas,
mentalidades, rotinas, pautas de comportamento e o caráter
dos indivíduos. (CAMPODÓNICO; MASSERA; SALA: 1991,
107)
Das principais formas de repressão e modificação
propostas pelo projeto militar na área do ensino constavam
ações inibitórias, como o fim da autonomia acadêmica e da
liberdade de cátedra, a exclusão dos docentes “subversivos”
(ou suspeitos de sê-lo), e a expulsão de estudantes militantes.
Entre as ações de reformulação constavam a restrição de
campos de conhecimento ideológico e a reformulação
curricular (programas, bibliografias, teorias) nos mais variados
campos do ensino. (RAMA et al.: 1983, 74) Quanto à
Universidade, o golpe de Estado e a decorrente Greve Geral
convocada pela CNT (que tentou resistir sem sucesso),
tornaram-na palco de inúmeros confrontos. Logo após a
oficialização do golpe, a Universidade se pronunciou através
do Consejo Directivo Central:
20
Declaración del Consejo Directivo Central de la Universidad de la República, 27/
06/73. (Apud RICO, 1989, 64)
26 Estado e poder: Ditadura e Democracia
democráticas. Somente 2% votaram em branco; estes eleitores
foram identificados como a base aproximada de simpatia de
que dispunha a ditadura dentro da Universidade.
O resultado das eleições universitárias confirmava a
configuração de um novo foco de resistência à nova ordem.
O regime só aguardava um pretexto para intervir; fato que
ocorreu quando explodiu uma bomba manipulada por um
estudante no interior da Faculdade de Engenharia. O Reitor e
os Decanos foram detidos, a Universidade sofreu intervenção
e iniciou a perseguição massiva de docentes.21
O próprio ministério de Educação e Cultura, coronel
Edmundo Narancio, assumiu como interventor da
Universidade. Enquanto procurava apresentar-se com um
perfil relativamente moderado e pedia um voto de confiança
à comunidade, mostrava-se duro com o alvo das suas ameaças:
o ensino fundamentado no “marxismo-leninismo”.
Independente dos seus apelos Narancio não podia ocultar que
era parte do mesmo regime que acabava com a autonomia
universitária, destituía professores, eliminava o concurso
como forma de ingresso, indicava os quadros de confiança
para ocupar as vagas de docentes e funcionários, ilegalizava a
FEUU e suprimia todas as atividades de extensão
universitária.22
Cidadãos A, B, C
21
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 9. Uma excelente crônica sobre este processo
se encontra na obra de Álvaro Rico, La Universidad de la República: desde el golpe
de Estado a la intervención (2003).
22
Cadernos do Terceiro Mundo, nov. 83, p. 51.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 27
de Fe Democrática), documento que docentes e funcionários da
Universidade eram obrigados a preencher, para continuar nos
seus cargos e através do qual deviam confirmar a adesão ao
sistema democrático e jurar não ter pertencido a nenhuma
organização “subversiva”. Caso assumissem que, no passado,
estiveram integrados a partidos políticos ou organizações
populares (que eram perfeitamente legais no seu tempo), eram
destituídos e levantavam suspeitas sobre si, de acordo com
os critérios da nova ordem. Se mentissem e fossem
descobertos sofriam processo penal da Justiça Militar. A
constatação da “falta de fe democrática” foi um dos critérios
para destituição massiva. Os serviços de segurança e
inteligência informavam aos interventores sobre a existência
de dúvidas ou certezas quanto à filiação democrática dos
funcionários existentes e dos novos candidatos. A exigência
de subscrever tal declaração era motivo de perplexidade para
os contemporâneos, pelo fato de que “[...] un régimen que
disolvió el parlamento por la fuerza y usurpó la voluntad
popular reclamara la adhesión... al sistema republicano
democrático de gobierno”.23
Pouco depois, essa exigência era estendida a todo o
funcionalismo público. Outros atestados semelhantes
começaram a ser exigidos, também, dos secundaristas e
universitários, no início de cada ano letivo. Com o tempo, a
Declaração de Fe se tornou uma espécie de atestado de bons
antecedentes. A falta do mesmo, ou a falsa declaração (aferida
pelo serviço de inteligência) acarretava em não atendimento
de qualquer solicitação junto à administração estatal,
destituição e, dependendo do caso, prisão. Um fator agravante
residia em que, se fosse feita alguma denúncia ou se
imputassem atitudes incompatíveis com o regime, o ônus da
prova era do funcionário em questão; ou seja, não era o regime
que tinha que provar a culpabilidade do acusado, mas era este
quem devia provar sua inocência, o que, em um cenário de
terrorismo de Estado, era praticamente impossível de ocorrer.
23
Declaración de Fe Democrática. In: URUGUAY 1973-1978, op. cit.
28 Estado e poder: Ditadura e Democracia
Não satisfeito com as destituições que conseguia
justificar mediante o sistema de “disponibilidade” ou da
exigência da “declaração de fé democrática”, o regime passou
a exigir, desde 1976, ao funcionário público, uma “constância
de habilitação para cargos públicos” fornecida pelas delegacias
de polícia dos bairros. Este documento nada mais era que
uma classificação do requerente, codificada nas letras A, B ou
C. Tal classificação era decidida por um parecer elaborado pelos
serviços de inteligência a partir dos antecedentes daquelas.
As pessoas eram divididas nessas categorias sem saber como
isso era feito, onde estava normatizado e quais os critérios
utilizados. Sabiam só que A significava estar isento de qualquer
relação ou vinculação com pessoas, organizações ou atividades
consideradas “subversivas”. O B apontava alguma relação
indireta ou participação, há muito tempo, em atividades que
não eram “subversivas”, mas inspiravam cuidado (o cidadão
classificado como B sofria monitoramento). Quanto ao C era
uma categoria associada à “subversão” e passível de severas
punições. Os funcionários públicos eram o maior alvo deste
sistema de controle e, dependendo da categoria imputada,
eram imediatamente sancionados.
Repressão e Refundação
24
Na Faculdade de Química perderam seus cargos 65% dos professores; na
Veterinária, 45 docentes renunciaram ou foram destituídos e na Medicina 250 docentes
renunciaram em solidariedade com os primeiros destituídos. URUGUAY 1973-
1978, op. cit., p. 14.
25
A título anedótico mencionamos um fato surrealista ocorrido em uma estação
experimental no departamento de Paysandú. Nesse local, criava-se um rebanho de
ovinos altamente selecionados, resultado de mais de quinze anos de cuidadosas
experiências genéticas. Com a desativação da pesquisa, as experiências foram
suspensas e os animais foram entregues aos soldados da tropa que ocupavam a
estação, os quais comeram o rebanho geneticamente melhorado, fruto de tantos
árduos anos de pesquisa. (Idem, p. 23)
32 Estado e poder: Ditadura e Democracia
conceito havia sido importante fator de mobilização contra a
“subversão”, o “comunismo” e o “terrorismo”; de fato, aqueles
acusados de defender “idéias estranhas” à consciência nacional
e à família uruguaia eram identificados como antidemocratas
e defensores de um modelo totalitário de organização social.
Portanto, era necessário usar todos os meios para garantir a
sua defesa e proteção. Tal situação levou a justificar o golpe
de 1973, paradoxalmente, como necessário para defender essa
democracia (aliás, semelhante ao que ocorreu nos demais
golpes de Estado do cone sul). A imposição da ditadura, com
perspectiva de longo prazo, esvaziou a retórica da “defesa da
democracia”, substituindo-a, gradualmente, pelo discurso da
moral e do moralismo (as condições morais do novo homem
a ser construído pelo novo regime). A austeridade, o
comportamento regrado, o respeito aos símbolos nacionais e
religiosos e às instituições, a valorização da disciplina e o
patriotismo passaram a ser elementos marcantes da utopia
imposta pelo novo regime: a ordem e a estabilidade (e o medo
e o silêncio).
É dentro dessa perspectiva que se faziam sentir
influências da matriz integrista e de outras escolas filosóficas
conservadoras (reatualizadas pela vigência do hispanismo e
do catolicismo-franquista). Esvaziando o conhecimento
humanista, laico e questionador os defensores dessas
concepções conservadoras procuraram aproximar religião e
estado e incidiram nos conteúdos da nova disciplina de Moral
e Cívica. Valores como pátria, nação, família, ordem natural e
sentimento cruzadista se encontravam e interagiam, na medida
do possível, com os conceitos propostos pela DSN (inimigo
interno, fronteiras ideológicas, geopolítica, objetivos
nacionais). Tais idéias marcaram uma rigorosa normatização
comportamental que visou, prioritariamente os
estabelecimentos públicos de ensino.
Dentro dessa lógica, os estudantes sofreram a
imposição de uniformes, as “recomendações” sobre que tipos
de roupas usar e de como fazê-lo (proibição de minissaias,
jeans), regras específicas para as meninas sobre o uso de cabelo
Estado e poder: Ditadura e Democracia 33
comprido, e a proibição deste e de barba para os varões, nos
estabelecimentos de ensino. Tudo justificado com pretensos
argumentos “históricos” ou “cívicos”, mas, particularmente,
procurando distanciar as novas gerações da essência política,
comportamental e estética da “geração 68”.26 Evidentemente,
todas estas restrições se acumulavam, mais ainda, no interior
da sala de aula e das instituições de ensino. Mas também é
verdade, que as pequenas transgressões contra tais
regramentos persistiram até o final da ditadura. Efetivamente,
mesmo nos tempos mais sombrios da cultura do medo e da
repressão mais violenta, quando as formas de resistência mais
visíveis e organizadas se tornaram quase inexistente, foram
as pequenas atitudes individuais, no cotidiano da sobrevivência
e, aparentemente, sem maior consequência, o que manteve,
de alguma forma, reduzidas trincheiras de coragem e de
dignidade.
Não é objetivo deste artigo trabalhar com a dimensão
da resistência ao regime. Mas cabe ressaltar que ela nunca
deixou de existir. Porém, a partir de 1980, o plebiscito que
rejeitou a proposta de uma constituição proposta pelo regime
se constituiu em um verdadeiro ponto de inflexão, gerador
de crescentes mobilizações populares e de recuperação de
espaços de atuação política por parte de alguns setores da
oposição. Nesse sentido, o movimento estudantil foi
protagonista essencial dessa nova etapa de luta contra a
ditadura.
Apesar do esforço do regime, o consenso obtido
diante da sua política sempre ficou limitado a setores
minoritários da sociedade uruguaia. A propaganda oficial, a
política repressiva ou novas orientações para o sistema de
ensino se mostraram pouco eficientes para capitalizar simpatias
e adesões. É verdade que o oportunismo, o carreirismo, e a
despolitização de alguns setores ajudaram a preencher os
26
Na prédica dos setores autoritários, barba e cabelo comprido, marcas de identidade
da geração dos anos 60/70, foram associadas à traição, covardia, sujeira, falta de
virilidade e, é claro, subversão, castrismo, etc.
34 Estado e poder: Ditadura e Democracia
vácuos gerados com a dura intervenção no serviço público
nos primeiros anos da ditadura. Entretanto, não surgiu uma
nova geração de intelectuais vinculados ao regime.
Basicamente, a massa crítica da ditadura era composta de
militares e de intelectuais que desde posições políticas
conservadoras e/ou ultracatólicas e/ou anticomunistas já haviam
aderido desde a preparação do golpe de Estado. A isso deve
somar-se o desgaste político produzido pelo exercício do poder,
a acentuação da concentração de riqueza, o empobrecimento
de significativos setores da população, o custo do
endividamento externo, a nova conjuntura internacional, o
descontentamento de setores econômicos importantes que
haviam perdido com as políticas de desnacionalização da
economia, e a perda do medo por parte da população. No
início dos anos 80 era retomado um processo de luta contra o
regime. Ao fim do processo, a ditadura recuaria, embora
negociando em posição de força as condições da retirada.
No campo do ensino, o novo cenário se mostrou
efervescente. O movimento estudantil se recompôs e confluiu
na fundação da Asociación Social y Cultural de Estudiantes de la
Enseñanza Pública (ASCEEP). Suas consignas fundadoras
mostram o caráter universal das suas demandas e, apesar de
tantos anos de silêncio e tentativas de depuração, a persistência
de uma linha de continuidade direta com as demandas da
geração anterior: retomada de um ensino democrático;
recuperação das liberdades e da democracia; anistia; modelo
econômico nacional e popular; fim imediato da intervenção
no ensino; revogação da Ley de Educación e recuperação da
autonomia e da co-gestão. Se a ditadura apostara na destruição
da “geração perdida” e na formação de novas gerações afinadas
com seus valores e visão de mundo, o resultado não poderia
ser pior. A aposta na doutrinação das novas gerações se mostrou
muito longe das expectativas iniciais. O final da ditadura
uruguaia mostraria que sequer a apatia ou a despolitização
dos jovens tinha sido atingida, apesar da inegável iniciativa
em destruir as bases e a qualidade do ensino publico.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 35
Reflexões finais
27
Cadernos do Terceiro Mundo, nov. 1983, p. 52.
36 Estado e poder: Ditadura e Democracia
dimensões inéditas. Há uma avaliação feita pela UNESCO,
em 1978, registrado em um documento denominado Uruguay
1973-1978, à qual sempre é importante voltar. Após descrever
o panorama geral das perdas na área do ensino e da ciência,
em todos os níveis possíveis, o informe concluía que: “Aún
cuando la dictadura no dure más de cinco años, sus
consecuencias sobre el nivel educacional del país, se sentirán
por lo menos, durante 20 años.” 28 O diagnóstico, nesse
momento já se mostrava profundamente perturbador e,
certamente, o passo dos anos não lhe retira credibilidade nem
diminui os resultados da sua análise. Entretanto, o quadro
geral de deterioração se mostrou muito pior que aquele
apontado. E isso não ocorre por um problema de metodologia
na abordagem do problema e sim por uma simples questão
contábil: a ditadura não durou somente cinco anos. Além
destes, ela persistiria, ainda, por mais sete longos anos. Logo,
o retrocesso produzido pela intervenção “saneadora” da
ditadura de segurança nacional no sistema de ensino básico e
universitário uruguaio, certamente foi muito maior que o
marco de 20 anos originalmente apontado.
Referências Bibliográficas
David Maciel*
Introdução
1
Segundo Florestan Fernandes, autor da mais importante elaboração sobre a
autocracia burguesa brasileira, ocorre uma “forte dissociação pragmática entre
desenvolvimento capitalista e democracia; ou numa conotação sociológica positiva,
uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia. Assim,
o que é “bom” para intensificar ou acelerar o desenvolvimento capitalista entra em
conflito, nas orientações de valor menos que nos comportamentos concretos das
classes possuidoras e burguesas, com qualquer evolução democrática da ordem
social” (FERNANDES, 1987, p. 292).
42 Estado e poder: Ditadura e Democracia
e irreversível, com a edição do AI-2 (1965) e do AI-5 (1968)
constituindo-se como momentos importantes de aceleração
e redimensionamento brusco; modelando a arena da disputa
política ao ponto de eliminar a oposição anti-autocrática e
popular e submeter a oposição burguesa anticesarista à uma
posição de acomodação à situação vigente. O substrato material
de tal processo foi o desenvolvimento do capitalismo
monopolista no Brasil, beneficiado pela intensificação da
dependência externa, por fortíssima intervenção estatal, pela
superexploração do trabalho e por um período de crescimento
econômico jamais visto antes ou depois, denominado “Milagre
Brasileiro”.
O período posterior da Ditadura (1974-1985) foi
configurado por um processo de reformas na
institucionalidade autoritária que se prorrogou pelo primeiro
governo pós-ditatorial, governo Sarney (1985-1990), até sua
substituição definitiva por uma institucionalidade democrática
com a Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989.
No entanto, como afirmamos acima, tal movimento de
transição política não implicou na abolição da autocracia
burguesa, mas na sua reforma.
3- O cesarismo e os militares
Considerações finais
Referências bibliográficas
1
No que diz respeito à posição da revista Veja, ver o artigo, nesse livro: ZEN, Luis
Fernando Guimarães. A “conciliação das elites”: projeto hegemônico de democracia
na revista Veja. 1982 a 1985, fruto de sua Dissertação de Mestrado que discute essa
questão.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 79
2
A primeira abordagem que fizemos dessa questão está em SILVA, Carla. 2005.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 83
contra a postura do “maior jornal do país”. Marcelo Ridenti
interviu de forma incisiva: “Ditadura: nunca mais!” Ele ressalta
o caráter do que chama paradoxo: “a ditadura foi instaurada em
nome da democracia, supostamente ameaçada. Nunca se assumiu como
ditadura, no máximo como “democracia relativa”. Será isso um
paradoxo ou apenas uma estratégia ideológica que reproduzia
um processo histórico em curso? Se democracia é um termo
tão ambíguo que permite fazer sentido na fala da Ditadura,3
será ele um termo que signifique algo positivo fora dela? No
mínimo, como ressalta Ellen Wood, haveria que problematizá-
la como democracia liberal.
O que nos chamou atenção é que uma boa parte das
intervenções surgidas no calor do debate foram de claro apoio
à ditadura, especialmente através de blogues em que os leitores
se sentem mais à vontade para tecer seus comentários
“politicamente incorretos”.
Houve também historiadores que deixaram bem claro
sua posição de apoio ao uso do termo, como Marco Antonio
Villa, posição criticada entre outros por Jânio de Freitas que
enfatiza que “historiadores à brasileira” (título do artigo de
Villa em defesa dos “lados positivos da Ditadura”). Segundo
Freitas, “não sabem que ditaduras vão até onde lhes é vitalmente
necessário, e enquanto podem”.4
Nesses instrumentos, especialmente nos meios
eletrônicos, os editores parecem estar testando os limites da
“opinião pública”, atestando a ressonância de suas idéias,
especialmente as reacionarias. Assim podemos ler vários posts
em blogs defendendo uma postura claramente favorável à
Ditadura. Sob o título Ditabranda II Paulo Henrique Amorim
colocou em seu blog um vídeo no qual aparece a imagem do
jornalista Herzog “enforcado” (suicídio simulado) pela
Ditadura. (www2.paulohenriqueamorim.com.br/?p=7347).
Alguns leitores se colocaram na posição de concordância com
3
Como bem mostra Freda Indurski. A fala dos quartéis e outras vozes. Campinas,
Edunicamp, 1997.
4
Jânio de Freitas responde a Marco Villa: historiador á brasileira. Disponível no
Home Blog Anistia.
84 Estado e poder: Ditadura e Democracia
o tom proposto por Amorin ao tentar mostrar, com a imagem,
a prática assassina da Ditadura. No entanto, chama atenção
que de 13 postagens, 3 foram francamente a favor da Ditadura.
E das contrárias algumas foram bastante lacônicas em suas
colocações. O espaço de argumentação foi utilizado de forma
mais enfática pelos favoráveis ao regime. Suas falas foram:
Referências Bibliográficas
1
Ver: KUCINSKI, Bernardo. Abertura, a história de uma crise. São Paulo, Brasil
Debates, 1982.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 121
se a necessidade de transformar os meios de dominação antes
que aquela situação se agravasse ainda mais. Com o
agravamento da crise econômica e social, a hegemonia
burguesa na sociedade começava a sofrer suas primeiras
ameaças. Embora essas ameaças fossem ainda muito restritas,
já que as classes operárias estavam ainda em um processo de
reorganização e reestruturação de suas bases, somente depois
disso poderiam ter condições de conduzir um processo de
mobilização e transformação social e econômica.
Quando a classe trabalhadora começou a se mobilizar
(a partir de 1978 com as greves operárias principalmente entre
os metalúrgicos do ABC paulista) e disputar espaço no cenário
político nacional, as classes dominantes também se
mobilizaram para reformular suas práticas de dominação.
Nesse momento, aumentaram as necessidades de realização
de uma transformação política que viesse a reorganizar o
quadro econômico e social e com isso, dar bases para a sua
reorganização. Nesse sentido, cabe investigar o papel
desempenhado pela Veja. Ela atuou no sentido de minimizar
os conflitos sociais reduzindo as contradições de classe ao
campo estritamente político, daí uma investigação mais
detalhada na sua forma de exercer a “política do dia-a-dia”, ao
mesmo tempo em que ela estava demarcando o campo
possível de disputas no seu sentido mais amplo.
O ano de 1985 ficou marcado pelos comícios em prol
da proposta das “Eleições diretas” que passaram a ser o grito
de ordem que ecoava nas praças e ruas, o reflexo dessas
manifestações aparecia semanalmente na Veja. A revista
exaltava os organizadores pela sua capacidade de mobilização
e pela ordem apresentada nos comícios, as únicas críticas eram
contra a presença de algumas lideranças e das muitas “bandeiras
vermelhas” que acompanhavam as manifestações. Assim ela
mantinha sua política de descaracterização em relação a
qualquer tendência à esquerda.
A campanha que se seguiu até agosto daquele ano, foi
propiciada pela proposta do deputado mato-grossense Dante
de Oliveira do PMDB. A proposta do deputado era a de
122 Estado e poder: Ditadura e Democracia
eleições diretas para presidente em 1985. A partir daí, “diretas
já” passaram a ser discutidas como a principal proposta de
transformação política do país, como se ela pudesse resolver
todos os seus problemas. Esse clima de transformação
permaneceu até a votação e rejeição da Emenda em 25 de agosto
daquele ano.
Outro marco fundamental para o desenrolar daquele
processo transitório foi a vitória de Paulo Maluf na convenção
do PDS. Até aquele momento, considerava-se que o vencedor
das prévias do partido do governo seria o virtual vencedor
das eleições presidências, tendo em vista que o partido tinha
a maioria no Colégio Eleitoral, isso na forma indireta dava a
garantia ao partido do governo fazer também o seu sucessor.
É nesse momento que se consolida a fragmentação do
PDS. Alguns setores do partido já vinham se alinhando sob a
chamada “frente liberal”, a vitória de Maluf ajudou a acelerar
essa desarticulação do partido governista. Esse racha do PDS
foi decisivo também em relação aos rumos que a revista Veja
tomaria, tão logo a “frente” se consolidava e surgia como um
fator decisivo no processo sucessório, Veja acompanhou essa
trajetória e definiu a partir de então, seu claro apoio à frente
liberal, conforme ela já vinha sinalizando.
Essa linha de argumentação utilizada pela revista ficou
muito mais clara a partir de agosto de 1984, quando consolidou-
se o racha do partido governista. Com a fragmentação do PDS
os dissidentes deste partido organizaram-se através da
chamada “Frente Liberal”. Ao mesmo tempo em que essa
chamada “frente” alinhou-se com a “oposição” Veja seguiu
claramente o mesmo caminho.
O processo transitório ficou marcado por diversos
fatores, vamos abordar aqui apenas duas delas, a defesa de
uma política liberal2 e o campo das disputas entre os candidatos
e a atuação da revista diante dos fatos.
2
Concomitantemente a defesa de uma política liberal, Veja dedica grandes esforços
para traçar uma política de descaracterização de qualquer possibilidade de frente à
esquerda. Esse tema é importante, porém não cabe aqui discutir essas questões
tendo em vista a amplitude do tema.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 123
A perspectiva de análise feita pela Veja em trabalhar
separadamente os assuntos referentes à eleição, sendo essa
perspectiva no sentido de construir a defesa de uma eleição
direta ou indireta, apoiar esse ou aquele candidato e/ou partido
nos passa a impressão de que a revista está fazendo uma
cobertura independente de cada candidato, na verdade, ela
está fazendo o que Gramsci chama de “política do dia-a-dia”,
ou “pequena política”. Para Gramsci,
Grande política (alta política) – pequena política
(política do dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de
intrigas). A grande política compreende as questões ligadas à
fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa,
pela conservação de determinadas estruturas orgânicas
econômico-sociais. A pequena política compreende as questões
parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma
estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela
predominância entre as diversas frações de uma mesma classe
política. (Gramsci, 2003, p. 21)
Veja fez as duas coisas o tempo todo, quando ela noticia
cada passo de cada candidato, ela esta fazendo a pequena política.
Quando ela está tratando das alianças e coligações entre os
candidatos, ela está fazendo a grande política. Quando ela fala
(ou omite) as questões de âmbito econômico, social ou mesmo
político, ela está fazendo grande política, quando ela está
apresentando os projetos em disputa no país, quando ela está
criticando a esquerda, quando ela está difundindo idéias que
remetam a uma construção hegemônica de democracia sem
que se rompa com a estrutura de poder vigente na sociedade
até aquele momento, ela está fazendo “grande política”3. Para
Gramsci, “é grande política tentar excluir a grande política do
âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena
política”. (GRAMSCI, 2003, p. 21)
3
Gramsci desenvolve essas questões nos Cadernos do Cárcere, ele está se referindo
basicamente ao contexto europeu do início do século XX. Ele se refere à “grande
política” como a política de formação de novos Estados, no caso desse trabalho, o
conceito de “grande política” no contexto histórico que essa pesquisa está
abordando, referindo-se a formação de uma nova política-econômica que o país
estava buscando desenvolver.
124 Estado e poder: Ditadura e Democracia
A “grande política” da revista, ou seja, defesa de uma
política liberal e crítica a qualquer possibilidade à esquerda,
referente ao processo de transição ganham novas
características na Veja a partir de 1983. Com as eleições para
governadores estaduais, esses dividiram as responsabilidades
que antes eram atribuídas somente do Governo Federal. Agora,
segundo a Veja, passam a ser compartilhadas pelos estados: “é
preciso agora que Brasília aproveite esta oportunidade e administre em
favor da estabilidade o fato de não ser mais o alvo único de todas as
queixas.” (Veja, 16/03/1983, p.20)
O governo tentou ainda alternativas para a solução da
crise econômica, foi “à televisão falar sobre a crise e pedir à
nação que se una para superá-la” (Veja, 02/03/1983, p.20). Ao
mesmo tempo em que ela da voz ao governo, ela busca apontar
caminhos possíveis ao futuro do país.
4
Ver: SILVA, Carla Luciana. Veja: o indispensável partido neoliberal (1989-2002).
Cascavel-Pr, Edunioeste, 2009.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 125
econômicas.
O que mais chama a atenção nesse caso não é nem a
crise política ou econômica, mas é a solução, nesse caso,
começam a aparecer quais eram as propostas da Veja.
Primeiramente a democracia que já vinha aparecendo a algumas
edições, mas principalmente uma democracia liberal, isso
vai aparecer novamente em outras edições,
5
Sobre esses temas ver: MACIEL, David. A Argamassa da Ordem da ditadura
militar à nova República. São Paulo Xamã, 2004. Ou: MENDONÇA, Sonia Regina.
FONTES. Virginia Maria. História do Brasil Recente 1964 – 1980. São Paulo, Ática,
1991.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 127
elites”.
Se no período anterior a 1984 ela traçava todas as
alternativas em torno dos possíveis candidatos do PDS, a partir
de 1984 ela abre caminho para novas tendências oriundas das
duas correntes políticas mais importantes até aquele momento
mantendo a mesma linha de ataque as frações de esquerda.
Nesse período ela abre o caminho tanto para o partido do
governo quanto para o PMDB enquanto alternativas possíveis
para o futuro governo.
A vitória de Maluf nas prévias do PDS causaram um
grande impacto no partido do governo, não cabe aqui discutir
os motivos da rejeição ao candidato, mas os desdobramentos
que tal fato acarretou. Com a fragmentação do partido, abria-
se a possibilidade real para que Tancredo Neves saísse das
eleições indiretas como vencedor. Fato que até o início de
1984 não se cogitava.
Paulo Maluf era um nome que vinha sendo trabalhado
pela Veja desde 1982, quando esse foi classificado pela revista
como “Maluf: um candidato forte”. Na mesma edição a
matéria de capa trazia o seguinte destaque: “Maluf deixa o
governo de São Paulo já como candidato à Câmara Federal e à
sucessão presidencial”. (VEJA, 19/05/1982, p. 28) A partir daí,
o pré-candidato era presença constante na Veja.
Esse quadro só começa a mudar em 1984, no mesmo
período em que ocorre definitivamente o “racha” do PDS
que origina entre outras correntes, a chamada Frente Liberal,
Referenciais Bibliográficos
1
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação (PPGH) da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). jurucemattos@yahoo.com.br
142 Estado e poder: Ditadura e Democracia
congregava uma intelectualidade católica liberal, que fora criada
pelo famigerado Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES). Como demonstraremos mais a frente, as duas
organizações atuaram organicamente na construção do golpe
de 1964.
Quando fizemos o levantamento de nossas fontes, nos
deparamos com um imenso emaranhado composto pelas obras
da intelectualidade ibeefeana (vide, por exemplo, a quantidade
de livros escritos por Miguel Reale) e pelos mais de 25 anos
de publicações periódicas da Convivium. Para conferir
inteligibilidade a todo este material abrimos dois flancos: (i)
selecionamos as obras de referência destes intelectuais no
campo da história e os artigos de combate, de polêmica da
revista; (ii) só conseguimos entender a complicação toda
quando passamos a utilizar certas ferramentas intelectuais para
ordenar o problema posto: principalmente a categoria da
revolução passiva, elaborada por Antonio Gramsci, e do aparelho
de hegemonia filosófico, desenvolvida por Christine Buci-
Glucksmann. Nesse sentido, vejamos nossos referenciais
teóricos, para, em seguida, retomar nosso objeto.
Um de nossos pressupostos fundamentais emana de
Karl Marx e Friedrich Engels, quando definiram que:
***
2
Lucas Nogueira Garcez (1913-1982) foi presidente da ARENA em 1970, entre 1966
e 1975 foi diretor das Centrais Elétricas de São Paulo (CESP) e, entre 1979 e 1982, foi
presidente da Eletropaulo. Isto indica, como o leitor verá, que Garcez era
estreitamente ligado à Miguel Reale.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 151
campo da história, para a ideologia brasileira.
Mercadante lança a tese de que, na história do Brasil,
as soluções políticas tem sido marcadas pelo compromisso
político, pela moderação. Neste sentido, o coroamento da
conciliação de classes teria sido a Independência (1822),
caracterizada pelo autor da seguinte maneira: “O temor à
revolução teria sido um dos esteios do movimento pela
independência. [...] Todos acabariam acordando com a forma
de arranjo político, pelo qual se operaria o movimento, e do
mesmo modo conformados com a ausência de participação
popular. O povo fora advertido [...] de que sua atuação nos
acontecimentos importantes sempre poderia proporcionar um
doloroso saldo de tragédia” (MERCADANTE, 2003, p. 107-
8). Ou seja, a moderação justifica-se historicamente pelas
ocorrências funestas próprias da atuação popular, na concepção
de Mercadante. O grande receio, diz, era que ocorresse no
Brasil, o que ocorreu no Haiti, ademais as lembranças do
quilombo dos Palmares: “Que tudo viesse com vagar, de forma
suave, sem a temerária participação jacobina” (MERCADANTE,
2003, p. 100). Encontramos em Mercadante aquilo que
Gramsci chama de “temor pânico” (GRAMSCI, 2006, p. 291)
de movimentos de qualquer intervenção das massas populares
nos processos como fator de progresso histórico.
Mercadante não é o tipo de intelectual que vê a história
como morta. Ao contrário, sua análise respalda-se num
historicismo para lançar a de que o “espírito da conciliação”
de classes não apenas marcaria a cultura e a especificidade
nacional como habitaria a fisiologia dos brasileiros
(MERCADANTE, 2003, p. 248-51). Toda a história do Brasil
seria mera expressão fenomênica do “espírito da conciliação”
de classes. Nesse sentido, a obra publicada no calor do golpe
de 1964 traz uma mensagem explícita unívoca de adesão ao
então novo regime, como podemos ver nos dois trechos a
seguir: “tudo que existe possui valor nominal e positivo em
razão de sua existência lenta e gradual” (MERCADANTE,
2003, p. 274); “A escola da autoridade é a única legítima; porque
é a única realizável; um governo filho da revolta não pode
152 Estado e poder: Ditadura e Democracia
marchar um só dia em virtude de seu princípio, e expira, se o
não combate” (MERCADANTE, 2003, p. 290).
A obra de Mercadante é um resgate histórico do
conservadorismo do século XIX. Busca trazer as raízes
históricas da reação brasileira. É com talento que o autor
cumpre essas tarefas que são as de um intelectual orgânico
que, cooptado pela burguesia e alinhado à direita após a ruptura
com o PCB, adere ao golpismo e ao que havia de mais
reacionário. Mais do que um “resgate”, Mercadante atuava
com plena consciência; colaborava na criação da estrutura
ideológica de convencimento de que o país apenas seguia o
seu destino. O golpe seria “apenas” um momento fenomênico
do espírito nacional.
***
Referências Bibliográficas
O Governo de Campagnolo
2
Inserimos este termo para nos referenciarmos às produções financiadas pelo próprio
poder público do município, que contratou obras para divulgarem certos nomes e/
ou políticos.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 159
incondicionais ou combate sem trégua3.
3
SILVA, Oscar. Toledo e a sua História, Gráfica da Universidade de Caxias do sul
– Caxias do Sul – RS, Projeto História – Prefeitura Municipal de Toledo, 1988, p.
335.
4
Depoimento dado por Anésio Vitto, formado em filosofia pela Unioeste Campus
de Toledo, professor QPM do Estado do Paraná e responsável pelo Museu Histórico
de Toledo.
5
SILVA, p. 335 e 336.
160 Estado e poder: Ditadura e Democracia
É verdade que na época e até hoje Avelino Campagnolo
é dono da Rádio Guaçu de Toledo, no período em questão, a
única rádio do município, portanto o “populismo”, que, para
Anésio Vitto vinha de seu “jeito humilde”, talvez estivesse
mais relacionado aos programas da rádio, que é claro, sempre
o divulgavam e elogiavam diante da população. Como na gestão
inicial de seu mandato de prefeito, em Toledo não havia
nenhum jornal diário, semanal ou mensal para noticiar os fatos,
as “verdades” eram transmitidas pelo Rádio Guaçu, onde o
próprio Avelino tinha seu programa diário, ele mesmo
comentava as questões políticas e os problemas do município.
Sendo prefeito municipal, radialista e médico, tornando-se o
centro de todas as atenções.
Ainda segundo Anésio Vitto, o “populismo” de Avelino
Campagnolo também está relacionado ao seu nacionalismo6,
o que o levou a ter uma orientação por organizar o município
com forças próprias, sem depender de empresas externas que
poderiam a qualquer momento não corresponder com as
atividades necessárias ao desenvolvimento do município.
Campagnolo preferira investir na sustentabilidade do
município com ações coordenadas pela própria Prefeitura
Municipal. A análise de Anésio Vitto a Campagnolo deve ser
entendida como ao grupo que compunha o poder público
municipal, porque a administração municipal não está
representada na pessoa do prefeito, mas na administração que
compunha o poder público. Embora que, o “nacionalismo”
apontado por Vitto, pode ter outras compreensões, que
estejam além do fato da administração querer primar pela
autonomia do município em empresas locais, o que poderia
tornar a economia do município inviável até mesmo para o
grupo representado pelo prefeito.
6
Termo que se aproxima da forma de conduzir a administração de Getúlio Vargas,
que se preocupava em nacionalizar a indústria brasileira, sem depender do capital
internacional, que poderiam boicotar ou apenas explorar o Brasil. Modelo seguido
pela administração de Avelino Campagnolo, que também preferia administrar o
município sem depender de forças externas.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 161
7
A VOZ DO OESTE, de 14 de Dezembro de 1967, p. 16. Arquivo do Museu
Histórico de Toledo.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 163
para fazer frente ao “populismo” do então prefeito. A fundação
do jornal “A Voz do Oeste” pelo cronista Pedro Ary Pinto de
Andrade, que num primeiro momento veio a Toledo para
gerenciar o Frigorífico Pioneiro, que mais tarde seria adquirido
pelo Grupo Sadia, foi também editor gerente do Jornal Oeste,
fundado nos anos 80 do século passado, foi Secretário
Municipal de Expansão Econômica e um dos responsáveis pela
ampla divulgação em termos nacionais da Festa do Porco no
Rolete, festa que tem hoje um reconhecimento internacional
dentro do cardápio gastronômico deste município. Pedro Ary
Pinto de Andrade como fundador do jornal tinha muitas
responsabilidades e desde o início já justificava a sua presença
nesta cidade:
11
A VOZ DO OESTE, 21 De Janeiro de 1968, p. 16. Arquivo do Museu Histórico de
Toledo.
168 Estado e poder: Ditadura e Democracia
parceria entre esses dois grupos (jornal e ACIT) que lutam
juntos por interesses em comum:
12
Idem, Ibidem, p. 14.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 169
cedendo à pressão e assinou as documentações que efetivaram
a conexão via micro-ondas.
13
FUNDAÇÃO DO LIONS CLUBE DE TOLEDO, Por Ondy H. Niederauer, 12
de agosto de 1977, Arquivo do Museu Histórico de Toledo.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 171
IMEDIATO DE FORNECER ENERGIA PARA AS
NECESSIDADES DE NOSSAS INDÚSTRIAS, [as
letras em maiúsculas fazem parte da própria edição do
jornal]14.
14
A VOZ DO OESTE, de 10 de Fevereiro 1968, p. 15. Arquivo do Museu Histórico
de Toledo.
15
A VOZ DO OESTE, de 25 de Fevereiro 1968, p. 02. Arquivo do Museu Histórico
de Toledo.
172 Estado e poder: Ditadura e Democracia
Ao mencionar as donas de casa o jornal tenta agregar a
“sua luta” a classe trabalhadora, pois esta começa a ser
relacionada, segundo o jornal, como uma prejudicada pelas
ações do governo municipal. Para os editores do jornal, era
urgente a intervenção junto à comunidade para que esta
incorpore a campanha pelo desenvolvimento do município,
mesmo que para isso seja necessário enfrentar a posição do
próprio prefeito municipal, que devido a algumas “birras” não
aceita que à Toledo chegue o tão “necessário
desenvolvimento”:
16
Idem, de 10 de Março de 1968, p. 08.
174 Estado e poder: Ditadura e Democracia
e, para aumentar o clima de insatisfação, inclusive na opinião
popular, o jornal traz uma reportagem mostrando que a
administração municipal está atuando de forma ilegal:
17
A VOZ DO OESTE, de 10 de Março de 1968, p. 12. Arquivo do Museu Histórico
de Toledo.
18
Idem. Ibidem.
176 Estado e poder: Ditadura e Democracia
No texto do jornal, fica a impressão, que se Toledo
quisesse ter o fornecimento de energia elétrica via COPEL,
agora com os débitos da prefeitura, isto não seria possível.
Fato que continua chamando a atenção para as camadas
populares, fazendo-as tomar consciência do que está
acontecendo no município, prática que apenas tem o objetivo
de questionar o então prefeito.
19
Idem, p. 16.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 177
Pedro Viriato Parigot de Souza, que não foi possível um
entendimento entre COPEL e Prefeitura, tendo em vista
o desinteresse que demonstrou o Executivo pelo assunto
(...).
A Associação Comercial e Industrial de Toledo, tão logo
recebeu esse ofício, convocou os associados para uma
reunião, tendo gentilmente convocado o Chefe do
Executivo (...).
É possível senhores leitores, que quando estiver
circulando a presente edição desse jornal, o Senhor
Prefeito Municipal, sentindo a pressão do trabalho de
uma Entidade de Classe, já tenha ido a Curitiba, e no
regresso, ocupado o (SEU MICROFONE) para dizer ao
povo que (ELE) está tratando do assunto e que fiquem
tranquilos(...) A realidade porém é bem outra. Agora, o
Senhor Prefeito está forçado, obrigado, a fazer alguma
coisa. Terá de firmar convênio com a COPEL, porque a
questão está levantada. O assunto está adiantado e a
solução para Toledo é só esta: COPEL20
21
Idem, Maio de 1968, p. 15. Assinatura do texto: “os vigilantes”.
22
Para chamar a atenção dos leitores, esta edição fora feita toda em azul, letra azul,
diferenciando de todas as demais que sempre foram em letra preta.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 179
Com as fotografias procurava-se demonstrar que os
populares estavam insatisfeitos com o governo de Toledo e
na sequência aparece a manchete: “Passeata da velas...!
CONSEQUENCIA NATURAL DE UM PROBLEMA
TOLEDENSE - - DEPOIMENTOS E DECLARAÇÕES
REGISTRADOS”23; e o texto começa fazendo um histórico
do problema de energia em Toledo, relatando que o problema
não começou com a atual administração, mas que esta apenas
agravou o problema e o transformou numa questão pessoal,
“em questão de direito”.
A passeata realizada fez com que o prefeito tomasse
uma postura mais enérgica, pois agora o grupo de oposição o
atingia, usando do artifício de que seria o povo que estaria
enfrentando o prefeito municipal através de um “movimento
popular”, e, para mostrar ao grupo que o estava enfrentando,
que o mesmo não seria parada fácil, e dentro dos rigores da
lei e dos poderes a ele conferidos como prefeito municipal,
reage como notícia o jornal “A Voz do Oeste”:
23
A VOZ DO OESTE, 18 de agosto de 1968 – nº 13, p. 08 e 09. Arquivo do Museu
Histórico de Toledo.
180 Estado e poder: Ditadura e Democracia
DECRETA:
1º - Estado de calamidade pública no município de
Toledo.
2º - Este decreto entrará em vigor na data de sua
publicação, revogando as disposições em contrário.
Gabinete do prefeito municipal, em 1º de agosto de 1968.
Dr. AVELINO CAMPAGNOLO
Prefeito Municipal24
26
Idem, 18 de agosto de 1968 – nº 13, p. 09.
Estado e poder: Ditadura e Democracia 183
orientação técnica aplicável à espécie, reservando-se a
municipalidade o direito de retirar. Na época oportuna,
a rede de distribuição, os postes, fios, isoladores e
transformadores que vierem a ser substituídos.
Art. 3º- Fica, outrossim, o Poder Executivo autorizado a
vender energia elétrica, em bruto, oriundo da Usina
“Carlos Aloísio Mathias Becker”, à COPEL, a preço a
ser convencionado pelas partes, até que esta supra sua
deficiência de produção, com o aproveitamento do
potencial hidro-elétrica da Usina de Chopin 2.
Art. 4º- Fica, finalmente, o Poder Executivo
autorizado a subscrever ações preferenciais a COPEL,
integralizando as mesmas ações com o produto de venda
da energia elétrica da Municipalidade, indicada no item
anterior, feita as deduções dos gastos correspondentes
aos consumos de iluminação pública e dos próprios
municipais.27
27
ARQUIVO DA CÂMARA MUNICIPAL DE TOLEDO – PREFEITURA
MUNICIPAL DE TOLEDO - ESTADO DO PARANÁ - PROJETO DE LEI Nº
37/69, Lei: 511/69, de 05 de setembro de 1969.
184 Estado e poder: Ditadura e Democracia
não deixava de impor as suas vontades, os seus
posicionamentos.
O presente texto é parte da Dissertação de Mestrado
e na sua sequência, no texto integral, podemos perceber que
até mesmo as eleições municipais são vencidas pelos
adversários de Campagnolo, demonstrando que a constituição
do jornal alcançara os seus objetivos, desconstituindo a
popularidade de Avelino Campagnolo e efetivando no poder
o grupo burguês de oposição, que organizado agora teria o
município a seu dispor para o seu desenvolvimento
econômico.
Referências Bibliográficas
Assessoria Especial
do Gabinete da Reitoria Lucia Helena Pereira Nóbrega
Laurenice Veloso
Hélio A. Zenati