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t Iéías e palavras

Ida ciencia
u leitura ..••.e escrita:
.
que a ClenCla .
rn a ver com isso?
I I r~t\R V. MACHADO LOPES
( I t\1~ FERREIRA DULAC

palavras são sombras


as sombras viram jogos
palavras pra brincar
brinquedos quebram logo.
Britto e Frommer (Titãs)
.•.
A linguagem escrita, com certeza, é uma das grandes construções
I, lnnnanidade. Vem de muito longe a necessidade de se constituir/ )
r. li' csontar uma realidade/significante através do uso das palavras/sig-

ri' 1'1qlle ultrapassem a tradição oral, perpetuando-se por símbolos im-

jlll'.NOS que permitam avançar além do uso da memória como forma


.unscrvação do conhecimento produzido.
Neste texto procuramos destacar a leitura e a escrita como prá-
I I- 111 sociais e culturais, buscando ir além da discussão tradicional
l1 h,1t 11 ra e da escrita, que distingue a humanidade em analfabetos
til 11 bctizados e que se traduzem em dados obtidos dos censos po-
111I111l:ionais realizados no País. Acreditamos que esta dicotomia
111111'11 ~etos/alfabetizados não contempla a complexidade das im-
IIÍlIH,lÕCS sociais do ler e escrever: o que é ler e escrever? quem sabe
I " escrever? que textos são lidos? que textos podem ser lidos?

Iflll••t' palavras na/da ciência ou leitura e escrita ... 37

,-
quem pode ler e escrever? como se lê e como se escreve? quem tem "1\, ':rcnte a esta situação ...nos vemos empurrados a correr quando
acesso à leitura e à escrita? '/'r"/lIISsabemos andar. .. (Pozo, 1996, pAO) e percebemos ameaçadas
Assim parece premente a necessidade da discussão de como se 1Il1"III1H possibilidades de auto-reflexão e depensamento crítico, umã_
lê e se escreve e de como os leitores/escritores se relacionam com os quc estes meIOSapresentam o evento, interpretam, discutem e con-
textos e como criam significados a partir dos mesmos. Estas relações uu-m, frente a nossQs olhos q~penas assistem. -
texto/leitor podem ser analisadas, por exemplo, através dos motivos desenvolvimento destastecnologias, construído conforme as
que levam o leitor ao texto, tais como imposições profissionais e/ou Iol~ dn rãciãilãIiãaOe capi1ãIista, ~iulorIiiãs de domínio e con-
escolares, formação pessoal, prazer, entretenimento, necessidades co- 111 dl\ que parecem mais se opor do que ampliar as possibilidades de
tidianas, utilidade ocasional ou imediata etc. I uumcioacão hum,ana.
Em nossa sociedade, constatamos que, para muitas pessoas, a
experiência de ler e escrever, como prática cultural habitual, reduz-se
aos espaços escolares. A aprendizagem e aquisição do hábito de leitu- A minha escola tem gente de verdade
ra vêm restringindo-se ao ambiente escolar e à área de língua mater-
na, desconsiderando as possibilidades educativas de outros contextos, A importância da linguagem escrita em sit.!J1lçõesde aQrendiza-
tais como as das demais áreas e do ambiente familiar e de trabalho. 1II <.:séolaré myi~oc1ãfaJiesde as séries ~is, o aprender a k,Le-
/( Parece que nesta sociedade, onde a tradição da linguagem escri- I u-vcr é tarefa do ensino escolar. Todavia desde este nível de ensino

ta fica restrita a ambientes escolares/acadêmicos, a forma de comuni- 111 (\ nível superior e quiçá nos cursos'de pós:graduação deparamo=-
cação que predomina é a visual, mais especificamente a televisiva, que 111'1 rom professores enfrentando problemas comuns, cõmo pobreza
impõe um tipo de discurso fragmentado e descontínuo, com informa- Ir vocabulário, falta de habilidade em-colnpreender o sentido de fra-
ções descontextualizadas, em que a novidade, o impacto, o choque, a o usar sinais de pontuação, dificuldadede fazer an?~ã~Ões,jroble-
fugacidade e o ritmo incessante dão a tônica de um tipo de discurso IIII'~de leitura e compreensão de textos e!D geral.
cuja recepção não requer aprendizagem ou esforço demasiado. Mesmo frente a todos estes problemas expostos, ler e escrever são
It utificados como processos "naturais" na escola. Após a "alfabetiza-
li I (rudicional", os demais professores partem do pressuposto ele que
Tudo que a antena captar meu coração captura "IIIIINsabem ler e escrever (naturalmente) e estas "habilidades" são na-
1I111t1111ente necessárias para as áreas específicas do conhecimento. VI-
II'1llIlssandoesta visão restrita, podemos identificar a linguagem escrita _
'11111) um dos meios escolares mais usuais pelos quais aprendemos, com-
l'III'lIdemos, construímos e comunicamos o conhecimento.
, Nesta perspectiva nos restam muitos questionamentos: o desen-
I I1 v Imente da linguagem é responsabilidade apenas da área de língua
"!lIII'rna? ou corresponde a todas e a cada uma das áreas? apenas cor-
11,,11' erros ortográficos significa responsabilizar-se pelo ler e escrever
111IHIa área? as áreas de ciências necessitam, também, dar conta do
I. I o escrever?
Acreditamos que a atividade de ler e de escrever (apenas para
I IjI~I\llvi6Iverhabilidades, sem contexto), em geral, parece ser um pou-
- .-- --' - --,- _. - .-........;~.
IIvllzià, um vazio que é preenchido pelo
.)----...-:::---
que se lê do mundo, um mun-
,I li IlltI<.: é~nstruído por l1!~iode cada lelior, em cada ciência, e em cada
1 I 'lI. Desta forma acreditamos que ler e escrever é específico e, por-

Ler e escrever !i!,\liIIl


c palavras na/da ciência ou leitura e escrita ... 39
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tanto, compromisso de todas as áreas escolares. Nesta persQectiva,.o Idl deve possibilitar a ampliação da leitura de mundo, questionando
trabalho na área específica das ciências naturais ~~I,!!:ilizadas habili- il'll'Ncntando novas perspectivas para análise dos eventos que cer-
dadês ae-letturae esúita em diferentes situações de aUla, que5a-ãaes- liIIIN/II:)alunos/as. No entanto, o que percebemos de forma geral é
de-aelaboração de questionários, de apontamentos, até a interpreta- I( 11)111 sua linguagem esotérica e desconectada da realidade de alu-
ção e construção de representações gráficas diversas. Porém, mais im- 111"/11'1, esconde bem mais do que revela novas perspetivas de ver o
portante que estes usos funcionais, a linguagem escrita pode sercon- 11I1I1dll, propiciando, deste modo, a construção de um outro mundo - o
siderada êomo um dos meios mais efic~es através dos quais !l ciênc!a IIlIldl)das ciências - que tem suas próprias palavras para explicá-lo,
constitui-se e constrói realidades. ----- '11110do mundo que vivemos, dos acontecimentos cotidianos e da
A constituição das ciências naturais e de seus conceitos pode tam- 1I'IIIIgCITI coloquial.
bém ser entendida como uma construção semântica, sustentando-se no IJiunte do que está colocado até então, temos claro que a ciência
significado compartilhado de determinadas palavras. Na escola, estas 111III1IUlinguagem específica, particular para explicar e construir o
palavras, através das quais procuramos aproximar o/a aluno/a da rea- IIllIdl!que nos cerca, a nós mesmos e a todas as inter-relações possí-
lidade que a ciência constrói, devem partir do pressuposto que este é I ('01idianamente temos uma outra linguagem que explica estes
um processo comunicativo que implica existência de um conjunto de IIIIISeventos,
significados socialmente compartilhados, que se apresentam nas sa- Ihlçando alguns paralelos poderíamos dizer que a linguagem da
las de aula sustentados em interações verbais. Donde cabe perguntar 10 111 111 csrã muito mais próxima da escrita, buscando- a objetividade
se todos os significados são socialmente compartilhados, tendo em vista I, '''llliliricação de coisas e processos por registros impressos, enfati-
que para um mesmo grupo podemos ter diferentes significados para 1111111 produtos do trabalho científico, na maioria das vezes apresen-
uma mesma palavra. Por exemplo, a palavra "evaporação" pode esta- I., tll\ modo impessoal e explicativo através de conceitos que gene-
belecer múltiplas conexões semânticas num coletivo de alunos, tais 1111111
J eventos. Contrariamente, a linguagem cotidiana, em geral, es-
como: desaparecimento de matéria, queima, reação química, mistura , Illuis próxima da fala, enfatizando o mundo dos acontecimentos;
de algo com o ar, processo de mudança de estado exclusivo da água, 11t~llIlIlizada,porém intrincada, apresentando-se na perspectiva dos/
mudança de estado físico, entre outros. ,11VIII'Sos/asnarradores/as; sendo, muitas vezes, mais automática do
Frente a esta natureza complexa e dinâmica dos significados, des- , I uusciente.
tacamos a importância da análise semântica da linguagem empregada Roprcsentar e ler este mundo tem uma amplitude maior que en-
pelos alunos, já que podemos conceber a aprendizagem como algo sus- jlll I (tS conceitos cristalizados pela linguagem científica. Implica,
cetível de ser representado por processos de diferenciação e globaliza- 1 11111, perceber a ciência-linguagem científica como um recorte da
ção semânticos. Sendo assim, ler e escrever na área das ciências trans- 1111 IIlIleque deve ter um compromisso com o todo, estabelecendo re-
cende o simples ato, tomando-se uma das principais formas de aprendi- mifícativas com as demais formas de ler este mundo.
zagem utilizadas, não podendo considerar-se a linguagem somente como Lor o mundo pode sig!!i.ficar a{2ropriar:se.das diversas formas de
mais uma habilidade do ser humano, mas atribuindo-lhe o caráter de 111·,111 que ecoam neste planeta e das diversas formas de explIcar os
construtora de realidades, do conhecimento e da ciência. 1IIIIII(1110S que ocorrem em nosso cotidiano, assim como estabelecer
l'II,I\iIN entre os diferentes saberes que fazem parte da nossa cultura.
111111 lca, o ler e o escrever se instituem não como meros instrumen-
o que foi escondido é o que se escondeu I~ 1I',\ricosde apropriação da cultura, mas como fazendo parte de um
il\ '-IN(1 mais amplo de_{2ossi~iJi.<!ªges; onde ... aJ!itura do mundo E':ll:....
A ciência escolar, termo que utilizaremos para identificar as ci- " leitura da palavra e a leit!!:!E.fJesta_f!!!.plzea f} çonll~da-
ências naturais ensinadas no ambiente escolar, difere da ciência prati- {" (I "I'cire, 1993, p.20r
cada pela academia tanto em relação aos seus objetivos como em re- ",II'1ldar conta desta necessidade, muitos autores se referem ao
lação às suas práticas, ou seja, difere na sua constituição. A ciência es- 11I1I11I(labetização em ciências, assim como nas outras áreas, no sen-

40 Ler e escrever pntavras na/da ciência ou leitura e escrita ... 41


tido de que nesta sociedade dita científico-tecnológica faz-se nece ,,111 nlmoçarnos em um restaurante natural que propaga comida
sária uma ciência escolar que possibilite a seus membros a análise c III,d. produtos químicos (sabemos o que é um produto quími-
~1\1I1

.tica cfosdiversos fatos que ocorrem no cotidiano e que são veiculad !I"'IIlOS que algo sem produtos químicos não existe?), quando
'I'I,IIII()S um produto de limpeza com o prefixo bio (sabemos o que
pelos mais diversos meios como, por exemplo, os livros, as revistas,
TV e o cinema. É preciso saber discemir sobre as informações q Il'ollh;u? o que tem a ver este prefixo com o ato de limpar?). As-
I '111 i!I estes, poderíamos citar mais exemplos que nos levam a uma
"êa~m" ~oQre_nQ§~~ciso ter alguns conhecimentos-qúepe@1iÍa
10, purudoxal: enquanto a valorização social da ciência e da tec-
ler es!as informações sob ~~a perspectiyg crítica.
'1,111 nnmcntam, seu entendimento continua sendo negado à maio-
Até agora a ciência escolar parece ter apenas enriquecido o v
cabulário de alunos/as com palavras da ciência, esquecendo-se de r, "'I"lplllação (Llórens, 1991, p.13).
lacioná-las com seus significantes e atribuindo-Ihes significados v
zios, para os não iniciados na ciência. Aprende-se a respeitar a ciênci
e sua linguagem. Isto significa aprender ciência (?), isto talvez a esc •••ethor forma de enxergar no escuro
Ia fique devendo. Este não estabelecimento de relações significativ
entre o conhecimento científico trabalhado na escola e a ciência e te Ilfll nos deixa a clara necessidade de formar leitores capazes de
nologias presentes no cotidiano das pessoas e a conseqüente const 1'11,111(101' a linguagem da ciência e não apenas ledores da ciência
jj,l'I rhndo por Vifiao Frago, [1993?]). Ser leitor requer seleção,
ção do status de superioridade da ciência para a leitura do mundo, te
'10 lu h pretensão totalitária do texto escrito, estabelecimento de
propiciado a utilização aleatória da linguagem da ciência como garan
lI'lj IIno superficiais entre o que se conhece e o que se lê e requer
de qualidade de produtos e também a disseminação dos termos co
"comprovado cientificamente", "testado cientificamente" etc., co "111I1" leitura e escrita (Vifíao Frago, [1993?]). Afinal, quando es-
111111' sobre o que conhecemos ou estamos a conhecer refletimos
identificadores de um discurso de verdade, que tanto pode ser usa
'"114 ('11 pazes de qualificar nossa relação com o conhecido.
para melhorar a vida da humanidade como também pode ser utiliza
111 mportarn as modalidades de leitura ou escrita; o que importa
para iludir, enganar, vender, destruir etc. Da mesma forma que a ciê
'1111111 leitura e a escrita influenciam e determinam nossas vidas,
cia não é detentora da verdade dos fatos, também temos a clareza q
,,' IIIIN fazem sentir, ver e construir realidades. Não se trata de ler
esta não é neutra, que serve a quem a domina.
\ IVI'I', nem de viver para ler, mas sim de viver quando se lê e ler,
Identificando a ciência e a tecnologia no âmbito das construçõ
hlIH\ vive, no livro da vida (Vifiao Frago, [1993?]).
da humanidade, estamos localizando-as no espectro da cultura, po
tanto junto à pintura, à dança, à literatura, à religião, ao teatro. Log
despida do manto de superioridade e possível de ser entendida e co I h1 livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem sub-
IIlIlndo~a investigações. Diante de um livro não devemos nos pergun-
preendida por todas as pessoas. Porém cabe perguntar se este carát 1;11 !l que diz, mas o que quer dizer. (Eco, 1986)
da ciência é possível dentro da sociedade que vivemos.
Nosso modelo de sociedade capitalista necessita apoiar seu p
der de decisão em pilares incontestes, como os oferecidós por esta v d'(,rências bibliográficas
são distorcida sobre a ciência, e acessíveis a poucos especialistas. P,
demos perceber que o debate técnico-científico está cada vez mais pa I, I1 () nome da rosa. Rio de Janeio: Record, 1986._, _~ ~
tando o cenário político, cumprindo a função de legitimar o poder e.
I 11'I'"I'.A importância do '~to de te;.: ~m três ãi-tig~s que se completam~
tabelecido ou contestá-lo. Podemos perceber este poder mágico que 1',"tllI: Cortez, 1993. _ '}
ciência-linguagem científica exerce sobre nós quando nos vemos su v' - -_ _ •. __
cetíveis à publicidade e compramos um detergente em pó que conté I IIIINH.~,A, Comenzando a aprender química: ideas para el diseiio cur-
/.// Mndríd: Visar, 1991.
uma enzima XXXXXase que garante sua ação branqueadora (sabem
o que fazem as enzimas? o que sua ação tem a ver com a limpeza I L , I. Aprendices y maestros. Madrid: Alianza, 1996.

I'ulllvras na/da ciência ou leitura e escrita ... 43


42 Ler e escrev
SALINAS, Pedro. Defensa de Ia lectura y defensa implicita de los viejos
analfabetos. In: Ensayos completos. Madrid: Taurus, 1981. p. 249- 359 e 402.
415 citado por VINAO FRAGO, A. Por una historia da lectura como pra-
tica cultural: problemas y cuestiones. Murcia: Universidade de Murcia,
[1993?]. Mimeo.
VINAO FRAGO, A. Por una historia da lectura como pratica cultural: pro-
blemas y cuestiones. Murcia: Universidade de Murcia, [1993?]. Mimeo.

Agradecimento especial aos grupos musicais Legi~O Urbana e


Titãs pela inspiração dos subtítulos deste artigo.

44 Ler e escrever

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