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Bilinguismo infantil e suas implicações cognitivas

Ângelo Horst / Leandro Kruszielski


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Introdução

O presente artigo oferece uma breve reflexão sobre o bilinguismo e suas implicações nos desenvolvimentos
neuropsicológico e cognitivo de crianças em idade escolar.

Tratando especificamente do Brasil, ressalta-se que a população bilíngue se torna cada vez mais crescente (Flory & Souza,
2009a), a ponto de, se considerados bilíngues aqueles que aprendem uma segunda língua na escola, certamente o número
de monolíngues será bastante inferior ao monolíngues na população brasileira. Tal cenário condiz ao que ocorre
internacionalmente, onde se estima que mais da metade da população utilize duas ou mais línguas para interagir na
sociedade (Pereira, 2012).

Conforme Savedra & cols. (2010), atualmente são identificadas 6909 línguas, usadas por 5.959.511.717 falantes. Esses
números refletem a diversidade de culturas a que estamos expostos e a importância de compreendermos e nos fazermos
compreendidos com competência perante a sociedade em que vivemos. A obrigatoriedade da oferta de ao menos uma
disciplina de língua estrangeira presente nas escolas municipais e estaduais das redes públicas e particulares do sistema de
ensino brasileiro, além de sustentar parcialmente a tese de Almeida Filho (2007) de que todas as sociedades (independente
de seu grau de desenvolvimento) reconhecem a importância do ensino de uma segunda língua, é prova de que cada vez mais
se faz necessário conhecer como o cérebro processa e organiza as informações em crianças bilíngues, bem como que a
exposição a novas culturas pode afetar a cognição, manter ou modificar comportamentos.

Caracterização do bilinguismo

São várias as definições do termo bilinguismo encontradas na literatura. Conforme Pereira (2012), pode-se dizer que até os
anos 60 o sujeito bilíngue era caracterizado a partir de duas concepções principais: a) a hipótese do duplo monolíngue, que
considerava o bilinguismo como a soma de dois monolíngues em um único sujeito, com o mesmo desempenho e proficiência
em ambas as línguas (Saer, 1923, apud Pereira, 2012), e; b) àquele que consegue controlar duas línguas de forma
semelhante a um nativo (Bloomfield, 1933, apud Pereira, 2012).

Percebe-se que as definições citadas focavam a proficiência, sem considerar a idade de aprendizado ou a frequência com
que a segunda língua seria utilizada. Com o avanço das pesquisas novas definições surgiram, ampliando as possiblidades de
uso do termo, de acordo com o contexto estudado:

1. Baseadas em códigos linguísticos (posições estruturalistas): bilinguismo coordenado - sugere a existência de


representação de conceitos separados para duas palavras (uma de cada língua falada pelo bilíngue); bilinguismo subordinado
- sugere a existência de um ’interruptor mental’ para uso da língua alvo em que uma palavra é acessada por intermédio de
sua tradução na primeira língua (Roberts, 1939, apud Pereira, 2012); bilinguismo composto - considera que duas palavras
(uma de cada língua falada pelo bilíngue) representam um único conceito combinado (Weinreich, 1953, apud Pereira, 2012);

2. Baseadas no desempenho individual: bilinguismo balanceado - sugere proficiência similar nas duas línguas;
bilinguismo dominante - acontece quando há proficiência apenas em uma, que se sobressai em relação à outra (Lambert,
1962, apud Pereira 2012);

3. Baseadas na idade e ordem de aquisição/aprendizado da segunda língua: as classificações em questão levam em


consideração a possibilidade de existência de um período crítico que facilitaria a aquisição de uma segunda língua. Encaixam-
se nesse grupo as definições de bilinguismo precoce (onde a aquisição de ambas as línguas acontece na infância) e
bilinguismo tardio (quando a aquisição da língua adicional ocorre após a infância) (Butler & Hakuta, 2006, apud Pereira,
2012). Destacam-se também as classificações de Butler & Hakuta, 2006, de bilinguismo simultâneo (quando duas ou mais
línguas são adquiridas ao mesmo tempo) e bilinguismo sequencial (quando a segunda língua é adquirida após a masterização
completa da primeira). Ambas independem da idade, mas focam a sequência de aquisição;

4. Baseadas em aspectos multidimensionais: conforme tais concepções, o bilinguismo é um comportamento linguístico


psicológico e sociocultural complexo, composto de aspectos multidimensionais (Butler & Hakuta, 2006, apud Pereira, 2012).
De forma semelhante, Zimmer, Finger e Scherer (2008) reforçam que o bilinguismo é algo mais complexo do que o
ambiliguismo, porque condições físicas e psicológicas afetam o grau de proficiência e a capacidade de diálogo.
Haja vista as várias definições descritas, bem como a importância de aspectos multidimensionais na conceituação e
caracterização do termo, consideramos que a proposta por Pereira (2012) seja, hoje, a mais condizente com aquilo que
entendemos por indivíduo bilíngue:

"Tornar-se ou ser um bilíngue é portanto uma consequência influenciada por diversos fatores agindo isoladamente ou
correlacionados, os quais incluem contextos educacionais, contextos socioeconômicos, de imigração, de residência em
países de outra língua que não a materna, de uso de uma língua adicional por membros da família, propósitos para uso de
uma segunda língua, condições físicas e psicológicas, entre outros" (Pereira, 2012, p. 24).

Desvantagens associadas ao bilinguismo

As possíveis desvantagens associadas ao bilinguismo estiveram até a década de 60 muito mais relacionadas a aspectos
ambientais do que aos efeitos do bilinguismo propriamente dito (Flory & Souza, 2009b). Esta afirmação também é
compartilhada por Butler e Kakuta (2009) apud Nobre & Hodges (2010), que sugeriram um controle inadequado da
inteligência não verbal, nível socioeconômico e da língua em que eram realizadas as entrevistas, abrindo precedentes para
que os resultados encontrados tivessem interpretação associada com a pouca disponibilidade de recursos socioeconômicos e
acesso à informação.

Nobre & Hodges (2010) relatam, ainda, que tais pesquisas apontavam o bilinguismo como um dos fatores que poderiam
causar baixo quociente intelectual, confusão linguística e mudança de personalidade. Por exemplo, Flory & Souza (2009b)
citam que as hipóteses de Peal e Lambert pressupunham que monolíngues teriam desempenho equivalente a bilíngues em
testes de inteligência não verbal e melhor desempenho em testes de inteligência verbal. No entanto, mesmo tais hipóteses
sendo refutadas, haja vista que o estudo apresentou resultados opostos ao esperado, Baker e Prys-Jones, citados por Flory &
Souza (2009b), pedem cuidado na interpretação dos resultados. Segundo os autores, a confusão entre causa e efeito não
pode ser esclarecida porque falhas metodológicas não permitiram ao pesquisador saber se foi o fato de o indivíduo ser
bilíngue balanceado que o levou a um aumento no QI ou se foi o fato de já serem crianças com QI elevado que as levou a
desenvolverem um bilinguismo balanceado.

Vantagens associadas ao bilinguismo

Atualmente sabe-se que as vantagens associadas ao bilinguismo são evidentes, sobretudo quando dizem respeito à
resolução de conflitos e melhora nas funções executivas. A exposição a duas línguas diferentes pode favorecer
significativamente a diferenciação cognitiva nestes sujeitos que, conforme Nobre & Hodges (2010), ampliam suas
competências verbais se ainda estiverem na fase da infância. Percebe-se que quanto menor a idade, mais capaz se torna o
indivíduo de se apropriar dos diferenciais sintáticos e fonológicos de duas línguas.

Além de maior facilidade para se apropriar dos diferenciais acima descritos, bilíngues que aprenderam uma segunda língua
logo no início da infância tendem a ter um melhor desempenho em tarefas de atenção, monitoramento e troca de tarefas
(Emmorey et al., 2008, apud Nobre & Hodges, 2010), visto que o uso regular de duas línguas requer maior controle
atencional e seleção de linguagem. Esses impactos nos aspectos cognitivos relacionados às funções executivas podem ser
visualizados em tarefas de mesmo domínio de conhecimento, onde bilíngues ignoram informações inadequadas e controlam
a atenção com mais rapidez e propriedade do que monolíngues.

Diaz e Klinger (2000), apud Flory e Souza (2009b) apontam que bilíngues precoces mostram vantagens consistentes em
tarefas que envolvem habilidades verbais e não verbais e habilidades metalinguísticas avançadas, especialmente
manifestada em seu controle sobre o processamento da língua. Além disso, também podem ser encontradas vantagens
cognitivas e metalinguísticas em situações bilíngues que envolvem o uso sistemático das duas línguas (como a aquisição
simultânea ou a educação bilíngue propriamente dita). É importante ressaltar que tais efeitos aparecem no processo de
tornar-se bilíngue com certa rapidez e, diferente da suposição de muitos, não requerem alto nível de proficiência para que
sejam alcançados.

Como se pode observar, a literatura apresenta mais efeitos positivos do que negativos relacionados ao bilinguismo.
Portanto, pode-se inferir que não há indícios problemáticos em alfabetizar uma criança em duas línguas (Nobre & Hodges,
2010).

Implicações sociais

Segundo Tussi e Ximenez (2010), é possível dividir os bilíngues em dois grupos: os que possuem envolvimento emocional,
simbólico e cultural com as línguas e os que utilizam a segunda língua de forma instrumental.
As pessoas do primeiro grupo podem ser emigrantes, de regiões fronteiriças ou de famílias com origens linguísticas diversas.
Nesses casos, pode ocorrer o bilinguismo substrativo, quando a língua materna entra em desuso ou diminui
significativamente sua frequência em decorrência do uso mais intenso da nova língua. Geralmente este fenômeno está
associado ao pertencimento a grupos étnicos minoritários e comunidades com um nível socioeconômico baixo em que o
preconceito linguístico se encontra presente. Muitas vezes a segunda língua pode ser aprendida apenas em contexto escolar
(Tussi; Ximenez, 2010; Flory et al., 2009).

Pessoas que vivem em região fronteiriça ou cujos pais, por exemplo, são de nacionalidades diferentes, além de dominarem
diferentes idiomas podem apresentar variações linguísticas, sobreposições de vocabulários e formas gramaticais distintas
(Sternberg, 2010). Tais transformações linguísticas são resultado do contato de grupos de línguas diferentes e não estão
necessariamente presentes em bilíngues nem caracterizam o bilinguismo em si. No entanto, apesar de se caracterizar como
um fenômeno linguístico genuíno, é visto com preconceito, assim como outras variantes regionais comuns em países com
dimensões continentais como o Brasil (Bagno, 2011).

Já no outro grupo de bilíngues, a segunda língua é muito mais um ferramental, sendo fruto da exigência da realidade
contemporânea globalizada. A fluência linguística servirá para resolver demandas comerciais, que envolvem apenas breves
excursões a um campo étnico (Tussi; Ximenez, 2010). É possível conjecturar que as pessoas pertencentes a este grupo
geralmente possuem um nível socioeducacional e econômico mais elevado e que, portanto, estariam muito mais distantes
do preconceito e outros aspectos negativos que acompanhariam o bilinguismo do primeiro grupo. Ao contrário, o domínio
de uma segunda língua é tido como um valor buscado, haja vista o aumento crescente de escolas particulares que têm
oferecido a educação bilíngue, muitas vezes em período integral e/ou com modelos educacionais de outros países. Nestes
casos pode ocorrer da segunda língua limitar-se ao contexto escolar, exatamente como mais uma habilidade e competência
desenvolvida pela educação formal.

Considerações finais

O bilinguismo é um fenômeno complexo e não permite que respostas simplórias possam explicá-lo. Contudo, a breve revisão
de literatura aqui presente pode apontar para algumas direções importantes.

De maneira geral, as vantagens cognitivas e neuropsicológicas do bilinguismo superam suas desvantagens. As supostas
desvantagens do aprendizado de mais de uma língua estão relacionadas a erros metodológicos de pesquisas iniciais sobre o
tema e/ou ao preconceito às comunidades de bilíngues de outrora. Mas, mais do que buscar vantagens ou desvantagens, o
importante é ressaltar as diferenças entre bilingues e monolíngues para uma real compreensão do fenômeno.

Para que o bilíngue possa ter acesso ao máximo de benefícios cognitivos, é preciso que haja uma valorização de ambas as
línguas. A aprendizagem de uma segunda língua em detrimento da utilização da língua materna ou uma aprendizagem que
não atinja um limiar significativo pode não resultar nas vantagens cognitivas discutidas. Mesmo a alfabetização, que poderia
apresentar indícios problemáticos em ocorrer em diferentes idiomas, se acompanhada com cuidado, pode ser beneficiada
pelo contato de outras línguas, na estimulação da reflexão metalinguística. Importante ressaltar ainda que, embora crianças
menores possuam maior facilidade na aprendizagem de um novo idioma, não significa que a aprendizagem posterior não
possa levar a uma proficiência adequada.

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