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Acórdãos TCAS Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul

Processo: 01766/98

Secção: Contencioso Administrativo

Data do Acordão: 03-05-2001

Relator: António de Almeida Coelho da Cunha

Descritores: INFRACÇÃO DISCIPLINAR


CONCEITO DE INFRACÇÃO
ARTº 3º Nº 1 DO E.D.
CULPA IN VIGILANDO

Sumário: A omissão do dever de fiscalização a que alude o nº 1 do artº 57º do Regulamento


dos Serviços dos Registos e Notariado, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº
55/80, de 8 de Outubro integra o conceito de "culpa in vigilando", constituindo o
funcionário no dever de reposição, no caso de ter havido irregularidade na gestão
dos dinheiros públicos.

Aditamento:
1
Decisão Texto Acordam na 1ª Secção (2ª Subsecção) do T. C. A.
Integral:

1. Relatório.
M..., notária na situação de aposentação, residente
em Setúbal, veio interpor recurso contencioso de
anulação do despacho do Sr. Ministro da Justiça, de
9.6.98, que a puniu com a sanção disciplinar de 120
dias de suspensão substituída pela perda de pensão
por igual tempo.-
Por despacho do Sr. Ministro da Justiça de 19.10.98
foi declarada amnistiada a pena de suspensão
aplicada à recorrente.
A recorrente, a fls. 149 veio, não obstante, requerer o
prosseguimento dos autos, alegando que o despacho
do Sr. Ministro da Justiça que declarou amnistiada a
pena disciplinar manteve a decisão sob recurso na
parte em que esta compele a recorrente à reposição
de diversas quantias.
Foi, assim, por acordão de 17.6.99, ordenado o
prosseguimento do recurso e a notificação das partes
para alegações, nas quais a recorrente formulou as
conclusões seguintes:
1º) Para que se verifique uma responsabilidade civil
conexa com a responsabilidade disciplinar é
necessário que o dano seja objectivamente causado,
ao abrigo de um juizo de causalidade adequada, por
uma conduta do funcionário ou agente - acção ou
omissão - que lhe seja subjectivamente imputável à
luz de um juizo de culpa;-
2º) No caso dos autos a recorrente foi, no âmbito do
processo disciplinar contra si instaurado, civilmente
co-responsabilizada pela reposição de diversas
quantias que constituiriam prejuizo de diversos entes
públicos, prejuizo esse ocasionado por actuações
dolosas e negligentes imputadas a um seu co-arguido
no mesmo processo disciplinar;-
3º) Sustentando-se, na decisão recorrida e no
relatório final do processo em que se louvou, a
existência de tal responsabilidade civil numa culpa “in
vigilando”, ou seja, num pretenso incumprimento ou
cumprimento defeituoso de deveres da recorrente de
fiscalização, orientação e vigilância dos serviços sob a
sua direcção;-
4º) Simplesmente, quer na nota de culpa quer na
decisão de processo disciplinar, não se assacam à
recorrente quaisquer actos ou omissões concretas de
que pudesse resultar um incumprimento ou defeituoso
cumprimento do seu dever de vigilância;-
5º) Pelo que a decisão de responsabilização da
recorrente, escudando-se apenas no facto de a
mesma ser a responsável máxima pelo serviço onde
foram praticados os actos de que derivou o prejuizo
que se pretende ressarcir através das reposições,
sem se terem apurado quaisquer factos concretos, por
mínimos que fossem, de onde pudesse resultar um
incumprimento dos seus deveres funcionais, sustenta-
se numa presunção de culpa e, consequentemente,
numa responsabilidade objectiva inadmissível em face
do disposto no artº 483º do Código Civil e artº 3º nº 1
do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local;-
6º) Pelo que a decisão recorrida, ao responsabilizar
civilmente a recorrente sem lhe imputar quaisquer
factos concretos que pudessem consubstanciar uma
culpa “in vigilando”, ou seja, a omissão de deveres
concretos de fiscalização, orientação e vigilância,
violou, por erro de interpretação, aquelas disposições
legais.
A autoridade recorrida contra-alegou, formulando as
conclusões seguintes:
1º) Os prejuízos que a recorrente foi condenada a
ressarcir emanam de factos próprios e de factos de
terceiro, pelos quais se constitui solidariamente
responsável;-
2º) Quanto a estes, ao ter omitido um especial dever
de vigilância que lhe incumbia atento o disposto no nº
1 do artº 37º do Regulamento dos Serviços do Registo
e do Notariado, incorreu a recorrente em
responsabilidade solidária assente em “culpa in
vigilando”;-
3ª) Não se mostram violados os preceitos legais
invocados pela recorrente.
A Digna Magistrada do Ministério Público emitiu douto
parecer no sentido de ser negado provimento ao
recurso.-
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.-
xx
2. Matéria de Facto
Emerge dos autos e do instrutor a seguinte
factualidade relevante:
a) A recorrente é notária na situação de aposentação,
tendo sido titular do 2º Cartório Notarial de Setúbal,
onde exerceu a sua actividade profissional nos anos
que antecederam a sua passagem à reforma;-
b) Por despacho do Sr. Ministro da Justiça de 9-6-98,
foi a recorrente punida com a sanção disciplinar de
suspensão por 120 dias, obrigatoriamente substituida
pela perda de pensão por igual tempo;-
c) O mesmo despacho ordenou à recorrente a
reposição de diversas quantias, no montante global
de Esc. 629.450$00, solidariamente com o co-arguido
José Florêncio da Silva Martins;-
d) Relativamente à ora recorrente, no Relatório Final
do processo disciplinar foram considerados provados
provados os factos especificados na alínea B) do
Capítulo VI do dito Relatório, cujo teor aqui se dá por
reproduzido (cfr. fls. 85 a 104 da certidão de fls. 13 e
ss);-
e) A recorrente interpôs o presente recurso em
14.9.98, apenas contra o despacho que a puniu com a
sanção disciplinar de 120 dias;
f) Em 19.10.98, o Sr. Ministro da Justiça proferiu
despacho declarando amnistiada a pena de
suspensão aplicada à recorrente, e requerendo nestes
autos a declaração de extinção da instância por
inutilidade superveniente da lide;
g) Por acordão de 17.6.99 foi, todavia, ordenado o
prosseguimento dos autos, para apreciação da ordem
de reposição aludida.
xx
3. Direito Aplicável
Na tese da recorrente, o acto recorrido baseia-se,
apenas, no facto de a mesma ser a responsável
máxima do serviço em que foram praticados os actos
de que derivou o prejuizo que se pretende ressarcir
através das reposições, sem que se tenham apurado
quaisquer factos concretos dos quais se possa
deduzir a existência de incumprimento dos deveres
funcionais, o que equivale a uma inadmissível
presunção de culpa.-
Ou seja, e como diz a recorrente na conclusão 5ª das
suas alegações, a decisão que optou pela sua
responsabilização meramente objectiva é
inadmissível, em face do disposto no artº 483º do
Código Civil e artº 3º nº 1 do Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central,
Regional e Local, dispositivos que, assim, terão sido
violados.
Vejamos se lhe assiste razão, recordando desde logo
que, em face da amnistia decretada e do teor do
acordão de 17.6.99, o objecto do presente recurso se
circunscreve à parte do acto recorrido que impôs à
recorrente a obrigação de repor determinadas
quantias.-
No seu douto parecer, a Digna Magistrada do
Ministério Público defende que tal questão não pode
ser conhecida neste processo, uma vez que na
petição de recurso não foi questionada a legalidade
da ordem de reposição, sendo certo que não pode
nas alegações finais invocar-se novos vícios, sob
pena de ampliação ilegal do objecto do recurso.
Por outro lado, considera ainda a Digna Magistrada do
Ministério Público que é duvidosa a competência do
Tribunal Administrativo para aferir da legalidade da
mencionada ordem de reposição.-
É esta a questão a analisar.-
É certo que na petição inicial a recorrente se refere
apenas ao despacho do Sr. Ministro da Justiça de
9.6.98 que a puniu com a sanção disciplinar de 120
dias de suspensão substituida pela perda de pensão
por igual tempo.
Todavia, no acordão de 17.6.99 considerou-se que a
recorrente impugnou um acto administrativo composto
por dois segmentos distintos:
- aplicação da pena de suspensão por 120 dias;-
- imposição do dever de reposição das quantias
indicadas no Relatório Final, em solidariedade com o
co-arguido José Florêncio Martins.
E, como aí se disse, muito embora a recorrente, no
introito da petição inicial tenha mencionado,
expressamente, apenas a sanção disciplinar de 120
dias de suspensão, manda a boa-fé processual que
se considere o acto na sua globalidade.
Na verdade, a factualidade articulada na petição inicial
é a que esteve na base, tanto da aplicação da pena
como da mencionada ordem de reposição da quantia
de Esc. 629.450$00, pelo que se nos afigura
manifesta a utilidade da lide para aferir da legalidade
de tal ordem, que não obstante a amnistia decretada
continua em vigor e a projectar-se na esfera jurídica
da recorrente.
Aliás é visível que já no âmbito da petição inicial a
recorrente alegava a inexistência de qualquer violação
dos seus deveres funcionais, nomeadamente do
dever de fiscalização, vigilância e orientação dos
actos praticados pelos seus subordinados, concluído
que o acto recorrido ofendia a garantia fixada no artº
32º da C.R.P. e o disposto no nº 1 do artº 3º do
Estatuto Disciplinar.
Assim, e com o devido respeito pelo parecer da Digna
Magistrada do Ministério Público, entendemos que o
teor das alegações finais não é susceptível de tipificar
uma questão nova ou alegação de um vício novo,
sendo antes um mero desenvolvimento lógico da
petição inicial, perfeitamente admissível.
Isto posto, entremos no cerne da questão.
Como resulta da factualidade provada, relativamente
à ora recorrente, no Relatório Final do processo
disciplinar foram considerados provados os factos
especificados na alínea B) do Capítulo VI do dito
Relatório (fls. 85 a 104 da certidão ali referida).-
A recorrente sustenta que a decisão impositiva do
dever de reposição, parte integrante do acto
recorrido, é ilegal por assentar na mera presunção de
culpa, configurando uma situação de responsabilidade
objectiva incompatível com a responsabilidade
disciplinar, havendo em seu entender violação do artº
3º nº 1 do E.D. e do artº 483º do Cód. Civil.-
E isto porque não lhe foram assacados quaisquer
actos ou omissões de que pudesse resultar um
incumprimento ou cumprimento defeituoso do seu
dever de vigilância.-
Não lhe assiste, porém, qualquer razão.-
Muito embora o conceito de infracção disciplinar
vertido no artº 3º nº 1 do E.D.F.A.A.C.R.L.
pressuponha a existência de responsabilidade
subjectiva, com ligação do facto ao agente, tal
responsabilidade pode assumir a forma de mera culpa
(cfr. Leal Henriques, “Procedimento Disciplinar”, 3ª ed.
p. 38 e seguintes; Vitor Faveiro, “A Infracção
Disciplinar”, C.C.T.F., 113, pág. 118), não
necessitando de ser dolosa.
Na verdade: “a substituição da expressão “facto
voluntário” (do anterior Estatuto) pela de “facto
culposo” ou “meramente culposo” deve ... ser
entendida como a deliberada adopção do princípio da
culpa, ainda à maneira clássica, englobando o dolo e
a negligência” (João Castro Neves, “O Novo Estatuto
Disciplinar (1984) - Algumas questões”, Rev. Mº Pº, 5º,
20, 15).
No mesmo sentido Teresa Pizarro Beleza (Direito
Penal, 1º vol. 2ª ed. A.A.F.D.L., 1985, 76 e ss).-
Ora, como clara e abundantemente o demonstram os
autos, encontra-se provada a culpa “in vigilando” que
originou a condenação da recorrente, por factos
integrativos das infracções subsumíveis ao disposto
no artº 24º, nº 1, al. b) do nº 4 do artº 26º, 14º nº 1 e
30º do Estatuto Disciplinar detectados no curso da
inspecção que abrangeu o período de 1 de Outubro
de 1992 a 24 de Outubro de 1994.-
Como detalhadamente se explica no Relatório Final,
as infrações apontadas na acusação, deduzida contra
a recorrente, radicam, por um lado, no desinteresse
por si manifestado relativamente ao dever que lhe
competia de ter fiscalizado pessoalmente o trabalho
da repartição, nomeadamente durante o período em
que o co-arguido José Florêncio prestou serviço no 2º
Cartório Notarial de Setúbal e, por outro, da aceitação,
ainda que de forma indirecta, de certas vantagens
patrimoniais para o Cartório que dirigia (cfr. fls. 1086 e
1087).
Trata-se, portanto, não de qualquer responsabilidade
objectiva, mas de infracções derivadas da falta de
fiscalização do serviço executado pelo co-arguido
José Florêncio, o qual havia sido incumbido da
contabilidade das despesas dos Serviços Sociais do
Ministério da Justiça e de arquivar os documentos que
serviram de suporte a essas despesas, tarefa no
âmbito da qual o mesmo se apropriou ilicitamente da
quantia global de Esc. 815.219$00.-
O dever de fiscalização é um dever da recorrente,
cujo não cumprimento acarreta consequências legais,
sendo assim esta, solidariamente, responsável com o
dito co-arguido pelo pagamento das quantias
discriminadas na acusação e no Relatório Final, nos
termos do artº 497º do Código Civil, atento o disposto
na parte final do nº 1 do artº 57º do Regulamento dos
Serviços dos Registos e do Notariado, aprovado pelo
Decreto Regulamentar nº 55/80 de 8 de Outubro.-
Acresce, no entanto, que muitas das irregularidades
detectadas (cfr. fls. 1084) são da responsabilidade
exclusiva da recorrente e originam, igualmente, o
dever de reposição, como é o caso da verba relativa
ao imposto de selo.-
Ou seja, e concluíndo, a responsabilização da arguida
e ora recorrente decorre com clareza do disposto no
nº 1 do artº 57º do Regulamento dos Serviços do
Registo e do Notariado, aprovado pelo Decreto
Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro, por força do
qual os notários devem fiscalizar pessoalmente o
trabalho da repartição.-
A omissão de tal dever, pela forma supra descrita,
traduz sem qualquer dúvida uma forma de culpa “in
vigilando”, não se mostrando assim violados os
preceitos legais invocados pela recorrente nas suas
alegações.-
xx
4. Decisão.
Em face do exposto acordam em negar provimento ao
recurso.-
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça e a
procuradoria, respectivamente, em Esc. 30.000$00 e
Esc. 15.000$00.-
Lisboa, 3.5.01
as.) António de Almeida Coelho da Cunha (Relator)
Carlos Evêncio Figueiredo Rodrigues de Almada
Araújo
José Cândido de Pinho

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