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A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?

Angústia e Trabalho

A relação sujeito-trabalho-organização
na contemporaneidade e a psicanálise:
porta de saída ou pacto com o diabo?1
Matheus Cotta de Carvalho

Resumo
O objetivo do artigo é estudar a relação sujeito/trabalho/organização a partir do ponto de vista da
psicanálise. No ambiente organizacional o capital demanda um novo perfil de profissional, dife-
rente daquele da era industrial, e diante dessa nova realidade o sujeito busca se inserir. Qual o
papel que cabe à psicanálise, tanto em sua dimensão clínica como em sua extensão, diante desses
novos desafios trazidos pela contemporaneidade? Será a psicanálise uma possível porta de saída
para os impasses trazidos ao mercado de trabalho pela modernidade?

Palavras-chave
Discurso do capital, Desejo, Gozo, Pós-modernidade.

O objetivo deste artigo é fazer uma arcabouço teórico desenvolvido a partir


reflexão sobre a questão da relação sujei- das idéias originais de Freud, a psicanálise.
to-trabalho-organização na contempora- Além disto, procurando observar essa
neidade, do ponto de vista da psicanálise. mesma realidade de um outro ponto de
A relevância desta abordagem decorre da vista, e levando em conta a importância
constatação de que restringir a análise das que assume o trabalho no âmbito das or-
realidades organizacionais, fundamental- ganizações, a partir do início do século XX,
mente caracterizadas pelas relações huma- deve-se verificar o espaço que ocupa o tra-
nas, aos conhecimentos da moderna ad- balho no afeto do homem moderno, em
ministração seria limitar o grau de enten- particular no que se refere à dinâmica de-
dimento deste complexo objeto de análi- sejo/gozo.
se. Principalmente tendo em vista o fato De início torna-se importante desta-
de que estes espaços tornaram-se, no capi- car que no âmbito deste trabalho enten-
talismo avançado, ambientes propícios ao dem-se os indivíduos a partir da perspecti-
desenvolvimento de uma série de doenças va freudiana que os enxerga como sujeitos
denominadas de laborais, inclusive, gran- singulares, divididos e incompletos e, por-
de parte delas, de origem psíquica. Assim, tanto, seres de desejo. Isto já marca uma
nada mais natural, diante desta realidade contraposição com a visão estabelecida no
de sofrimento humano, do que recorrer ao campo da Administração de Empresas em

1. Agradeço as contribuições dos membros do Grupo de Estudos sobre Psicanálise e Organização, vinculado ao
CPMG, e, em particular, a Eliana Rodrigues Pereira Mendes.

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que o indivíduo racional e senhor de si é Segundo Dor, “a noção de pai intervém


pressuposto das abordagens teóricas. no campo conceitual da psicanálise como um
É relevante ainda destacar que a ética operador simbólico e a-histórico”2.
da psicanálise é a ética do desejo humano, Além disto, Dor afirma que “é porque
que por natureza é subversivo, e é por meio esse pai simbólico é universal – daí a essência
deste olhar que devemos caminhar, evitan- de sua necessidade – que nós não podemos
do a tentação de articular qualquer “saída” deixar de ser tocados pela incidência de sua
para os impasses da existência em socieda- função, que estrutura nosso ordenamento psí-
de, cuja abordagem deve partir do sujeito quico na qualidade de sujeitos. Com efeito,
em sua demanda singular. Assim, evita-se nenhuma outra saída é proposta ao ser falan-
situar o arcabouço psicanalítico numa po- te a não ser curvar-se ao que lhe é imposto por
sição de articulação dos interesses do capi- essa função simbólica paterna que o assujeita
tal e do trabalho, o que seria eticamente numa sexuação”. E conclui: “Nenhum pai é
inaceitável. detentor e, a fortiori, fundador da função sim-
Por outro lado, deve-se demandar da bólica que representa. Ele é seu vetor”.
psicanálise mais do que a crítica social. E para isso, prossegue Dor, “a prescri-
Em suma, cabe à psicanálise também ção simbólica dessa lei supõe uma negociação
apontar novas formas de interpretar essa imaginaria prévia que se desenrola entre os
complexa realidade e vislumbrar possibi- diversos protagonistas familiares: Pai-mãe-fi-
lidades de ação e, no limite, ancorar as lho, reunidos comunitariamente sob a égide
pessoas que buscam alternativas de inser- da triangulação edipiana”. “Nesse sentido, o
ção social. estatuto do pai simbólico pode, pois, ser legi-
Para efeito deste trabalho destaco três timamente remetido, como menciona Lacan,
pontos da obra de Freud que são essenciais ao estatuto de um significante que ele desig-
para fundar as considerações apresentadas na, então, de Nome-do-Pai”.
adiante. O primeiro ponto refere-se à arti- Em suma, Lacan funda o importante
culação dos fenômenos singulares com os conceito de Função Paterna no âmbito da
sociais. relação edipiana, como uma função essen-
Sigmund Freud via a dimensão do ho- cialmente simbólica, que tem como obje-
mem em sua natureza singular como fun- tivo básico o estabelecimento da lei que
damentalmente articulada com a dimen- interdita o acesso da criança à sua mãe.
são social a ponto de considerar que, de Dessa forma, por meio da operação da Fun-
certa forma, esta separação perde impor- ção Paterna, nos tornamos seres de falta,
tância quando olhada de perto, já que a divididos. E exatamente nesse espaço de
articulação com o outro é sempre relevan- falta é que se colocam o desejo e o gozo,
te, seja como um modelo, um objeto, um na busca de uma completude perdida.
oponente, de maneira que chega a afirmar Lacan desvincula a função biológica,
que a psicologia individual é de certa for- necessária à paternidade, da Função Pater-
ma também psicologia social. na, também inexorável, já que somos se-
Posto isso, torna-se importante apre- res sociais, mas da qual somos todos, in-
sentar o conceito de função paterna – a clusive os pais biológicos, “apenas repre-
partir do entendimento de Lacan da obra sentantes”.
de Freud – e o seu papel, do ponto de vista Posto isso, torna-se importante desta-
da metapsicologia, como elemento de li- car o caráter de ligação entre as esferas do
gação entre as dimensões da natureza e da individual e do social que o conceito de
cultura, do indivíduo com o social.
Mas, afinal, em qual esfera se originou 2. DOR, Joel. O pai e sua função em psicanálise. Rio de
o conceito de “Função Paterna”? Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

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A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?

Função Paterna assume, já que é exatamen- “o grito ou choro não se constituem ape-
te por meio da operação da Função Pater- nas como descarga motora, mas estabele-
na que se permite a internalização por par- cem-se como signos de uma demanda, de-
te do sujeito – sujeito já barrado – das leis manda ao outro” 3, a ajuda externa não se
básicas de convivência em sociedade. Isto limita a atender a uma necessidade como
porque para Freud é exatamente a interdi- também introduz o infante na ordem do
ção do desejo incestuoso que marca a pas- simbólico.
sagem da ordem natural para a ordem cul- Para Freud, portanto, o desejo refere-
tural. se principalmente a desejos inconscientes,
O segundo ponto a destacar é o signi- formados a partir de experiências e signos
ficado de desejo e gozo nas obras de Freud infantis indestrutíveis e constitui-se no ele-
e Lacan. mento essencial de introdução do ser hu-
Para Freud, a vivência de satisfação mano na ordem do simbólico.
constitui-se na base do desejo humano. Assim, a partir dessa referência que
Esta noção está conectada com a situação buscamos em Freud, vamos introduzir al-
de desamparo humano, já que o ser huma- gumas idéias lacanianas seguindo sempre
no é incapaz de garantir, por seus próprios a orientação segura dos textos de Rabino-
meios, “a ação específica capaz de suprimir a vich, em particular, do capítulo primeiro
tensão resultante do afluxo das excitações en- do livro Clínica da pulsão4.
dógenas; esta ação necessita do auxílio de uma Toda a reflexão de Rabinovich situa-
pessoa exterior (fornecimento de alimentação, se no esforço de entender a articulação do
por exemplo); o organismo pode então supri- chamado objeto a com o mais de gozar e
mir a tensão”. com o desejo, a partir de uma leitura dos
Pode-se esclarecer que para Freud essa textos originais de Lacan. Segundo a au-
vivência de satisfação constitui a base do tora, o objeto a funciona como uma espé-
desejo humano, mas não se confunde com cie de dobradiça de articulação com a fun-
ele, na medida em que essa experiência de ção causa do desejo e com a função do mais
necessidade nasce de uma tensão interna de gozar. E aí encontra-se a importância
e encontra a sua satisfação por meio de do correto entendimento dessas relações
uma ação específica – o aleitamento ma- já que o objeto a, como real, oscilará entre
terno, por exemplo. O desejo, por sua vez, duas dimensões: a dimensão da causa do
encontra-se ligado a traços mnésicos e sua desejo e a dimensão do mais de gozar.
realização ocorre na reprodução alucina- A primeira dimensão refere-se ao de-
tória das percepções que se tornaram si- sejo tanto em Lacan quanto em Freud. Já
nais dessa satisfação. a segunda dimensão, a do mais de gozar, é
Em suma, será a partir dessas primeiras uma elaboração que se encontra em La-
experiências infantis, da satisfação de ne- can, e diz respeito ao conceito de objeto
cessidades e da formação de traços mnési- pulsional “inseparável da definição do gozo
cos e na sua realização alucinatória, que o como satisfação pulsional”.
desejo humano irá se articular em torno Deve-se estabelecer de partida que
do que Freud denominou de “a coisa” ou Lacan definiu no Seminário 7, A Ética da
“das Ding”, que pode ser entendido como Psicanálise, o gozo como a satisfação da
o resíduo “do que há de comum a todas as
percepções relativas à presença do Outro, não
se reduzindo a um componente perceptivo 3. GARCIA-ROZA, L. Alfredo. Introdução à metapsico-
banal”. logia freudiana, v.1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,
p.161.
Observa-se ainda, conforme pon- 4. RABINOVICH, Diana. Clínica da pulsão: as impul-
tua Garcia-Roza, que na medida em que sões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

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Matheus Cotta de Carvalho

pulsão, em sua dimensão real e não imagi- Em “O Mal-Estar na Civilização”


nária e simbólica, e que essa satisfação en- Freud irá defender a busca da felicidade
volve necessariamente o corpo. Corpo, por como sendo o propósito básico da vida
sua vez, comprometido pela ação do sig- humana. Após constatar a dificuldade da
nificante e não o organismo biológico. tarefa e como o homem tem-se mostrado
Segundo Rabinovich, “Este corpo é, por incapaz de responder satisfatoriamente a
excelência, sua sede, só se pode falar de gozo essa questão, pelo menos sem recorrer à
enquanto gozo do corpo”. religião, em cuja solução não acreditava,
Para Lacan, o gozo não é prazer mas Freud observa que, pelo comportamento
aquilo que está além do prazer. Nesse sen- humano, pode-se considerar que os ho-
tido, para Lacan, o gozo encontra-se na mens “querem ser felizes e assim permane-
dimensão da pulsão de morte, subordina- cer”.
do a Tânatos. “O gozo faz, portanto, limite Freud observa, no entanto, que esse
com a dor”, nos termos de Rabinovich. desejo nada mais é do que o programa do
Assim, o conceito de gozo como limí- princípio do prazer que, por sua vez, en-
trofe à dor explicita uma nova ética hu- contra-se em completo desacordo com o
mana que é aquela que está fundada no mundo inteiro “tanto com o macrocosmo
sujeito dividido e que tem em seu objeto a quanto com o microcosmo”. Além desse
– formado pelos restos dessa divisão – um aspecto, Freud observa que o homem deri-
elemento capaz de articular simultanea- va prazer do contraste mais do que de um
mente o desejo e o gozo. Gozo como ele- determinado estado de coisas. Em suma, a
mento limítrofe da dor. Assim, a ética do felicidade humana é restringida por sua
ser humano não está fundada na busca do própria natureza.
prazer apenas, mas também na busca do No que se refere à infelicidade huma-
gozo. na, no entanto, é possível para Freud citar
Posto isso, torna-se importante obser- pelo menos três causas básicas:
var que para Lacan o mais-de-gozar não é “De nosso próprio corpo, condenado à
somente o objeto a; o objeto a pode captar decadência e à dissolução, e que nem mesmo
o mais-de-gozar de quatro outras manei- pode dispensar o sofrimento e a ansiedade
ras: voz, olhar, fezes e peito. Ou seja, pode- como sinais de advertência; do mundo exter-
se observar uma diversificação do gozo indo no, que pode voltar-se contra nós com forças
além da mera articulação com o objeto a. de destruição esmagadoras e impiedosas; e, fi-
E é por meio da ciência que esse mais- nalmente, de nossos relacionamentos com os
de-gozar vai se apresentar, já que a ciência outros homens. O sofrimento que provém dessa
desenvolveu novas possibilidades por meio última fonte talvez nos seja mais penoso do
da criação de novos objetos que vieram nos que qualquer outro”5.
ofertar uma gama de “possibilidades mas- Observa-se, portanto, para efeito do
turbatórias”. Assim, “esses gadgets tendem a objetivo proposto, o que interessa focar é
isolar-nos e a produzir, ao mesmo tempo em a causa da infelicidade que Freud conside-
que uma massificação, um gozo cada vez mais ra a mais importante: aquela que tem sua
auto-erótico e autista”. Ou seja, o mais-de- origem no relacionamento humano. As-
gozar se realiza por meio de novos objetos sim, contra esse tipo de infelicidade Freud
produzidos pela ciência e é capturado pelo sugere alguns tipos de defesa e uma
objeto a. delas nos interessa em particular.
Finalmente, o terceiro ponto é aquele
em que realço a visão de Freud sobre a
5. FREUD, S. O mal-estar na civilização. Edição Standard
questão do trabalho e sua relação com a Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
felicidade humana. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XXI, p.65-148.

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Trata-se da sublimação que ocorre de- do capitalismo para o qual evoluímos nos
vido ao deslocamento de libido que o apa- últimos anos. Essa era caracteriza-se pela
relho mental possibilita e que lhe confere prevalência do conhecimento como força
flexibilidade. Como exemplo Freud cita a motora básica de sua dinâmica. Nos ter-
alegria do artista ao criar, em dar corpo às mos de Peter Drucker, o que diferencia essa
suas fantasias, ou a do cientista em solu- fase do capitalismo das demais é a aplica-
cionar problemas ou descobrir verdades. ção do conhecimento ao próprio conhe-
Freud observa, no entanto, que se trata de cimento. O capitalismo desenvolve-se,
um método reservado a poucos “com do- portanto, em sua fase atual, tendo como
tes e disposições especiais”. base máquinas (organizações) de produção
Nesse ponto, Freud faz uma referência de riqueza, que devem estar preparadas
sobre a importância do trabalho e sua re- para inovar permanentemente, e, nesse
lação com a busca da felicidade que, em processo, eliminar a riqueza antiga. Dessa
minha opinião, merece bastante atenção: forma, o capital garante a sua reprodução
“Nenhuma outra técnica para a conduta e acumulação e atinge seu objetivo funda-
da vida prende o indivíduo tão firmemente à mental de remunerar o capital investido
realidade quanto a ênfase concedida ao tra- pelos capitalistas.
balho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um Trata-se de mudança substancial, já
lugar seguro numa parte da realidade, na co- que a sociedade industrial baseou-se na
munidade humana. A possibilidade que essa chamada administração científica cujo
técnica oferece de deslocar uma grande quan- expoente máximo foi F. W. Taylor que, já
tidade de componentes libidinais, sejam eles no final do século XIX, desenvolvia mé-
narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para todos de analisar e organizar o trabalho
o trabalho profissional, e para os relaciona- visando aumentar sua eficiência e produ-
mentos a eles vinculados, empresta-lhes um tividade. Foi com base nas idéias de Taylor
valor que de maneira alguma está em segun- que toda a indústria nascente do início do
do plano quanto ao de que goza como algo século XX se estruturou como organiza-
indispensável à preservação e justificação da ções.
existência em sociedade. A atividade profis- Assim, pode-se concluir que estamos
sional constitui fonte de satisfação especial, passando por uma transição de fundamen-
se for livremente escolhida, isto é, se, por meio tal importância na história do homem: de
de sublimação, tornar possível o uso de incli- uma sociedade industrial em que havia
nações existentes, de impulsos persistentes ou uma relativa estabilidade das instituições
constitucionalmente reforçados. No entanto, e em que o acúmulo de capital se dava prin-
como caminho para felicidade, o trabalho não cipalmente por meio do aumento de pro-
é muito prezado pelos homens. Não se esfor- dutividade decorrente, principalmente, do
çam em relação a ele como o fazem em rela- controle sobre o trabalho humano, para
ção a outras possibilidades de satisfação. A uma outra sociedade cuja dinâmica baseia-
grande maioria das pessoas trabalha sob a pres- se na inovação permanente, e o trabalha-
são da necessidade, e essa natural aversão dor tem como papel primordial ser agente
humana ao trabalho suscita problemas soci- da inovação e que, portanto, não precisa
ais extremamente difíceis”. de controle, mas de motivação e criativi-
Postos esses elementos de cunho teó- dade.
rico, devem-se explorar aspectos da socie- Essa era do capitalismo conhecida
dade contemporânea, em particular, do como sendo a do conhecimento, e que os
mundo do trabalho. sociólogos denominam de pós-moderna,
A sociedade do conhecimento, ou pós- também se caracteriza por uma orientação
industrial, é como se denomina o período para o mercado com a utilização intensiva
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das técnicas de marketing visando ocupar Em suma, trata-se de uma era marca-
espaços crescentes na acirrada luta por es- da por mudanças profundas da infra-estru-
paço no mercado consumidor. É a época tura econômica, com mudanças na esfera
da prevalência do consumidor já que a pro- social e cultural, abrindo oportunidades de
dução industrial se dá de maneira mecani- novas inserções no social sem as mesmas e
zada, sem a mesma necessidade do traba- rígidas estruturas da era industrial, mas por
lhador operário que havia na sociedade outro lado, com a presença marcante do
industrial. discurso capitalista que desconhece o de-
Portanto, o capital busca acima de sejo humano e mesmo as leis sociais e cul-
tudo o conhecimento do consumidor, seus turais e que busca apenas sua própria va-
supostos desejos de consumo e o entendi- lorização máxima.
mento dos mecanismos de escolha do in- Nesse contexto, o trabalho deixa de
divíduo consumidor. Neste sentido, preva- ser o lugar seguro que permitia ao sujeito
lece o chamado discurso do capital, con- desenvolver o seu projeto de vida e passa
forme demonstra Lacan, uma variação do a se caracterizar como um conjunto de
discurso do mestre, em que o agente capi- experiências isoladas, o que dificulta so-
tal faz com que a ciência desenvolva gad- bremaneira a construção de narrativas a
gets para o gozo do sujeito, reduzido à con- respeito de sua própria experiência. Flexi-
dição de consumidor. A partir desta leitu- bilidade é o que caracteriza o mercado de
ra, inclusive, Lacan conclui que o discur- trabalho em que os interesses são compos-
so capitalista não é capaz de gerar laço so- tos por circunstâncias entre o empregador
cial, já que toda a relação entre o agente e e o empregado, gerando inúmeras relações
o outro a quem o discurso se dirige se dá de trabalho durante uma vida útil.
por meio de objetos. A predominância do Mesmo do ponto de vista ético, o tra-
discurso capitalista gera uma economia balho muda sua função já que não mais
centrada no consumismo que responde à faz sentido pensá-lo como uma construção
demanda do sujeito – travestido de consu- que pode exigir, em um primeiro momen-
midor – por meio do gozo proporcionado to, sacrifício a ser no futuro recompensado
pelo consumo. por meio de algum tipo de reconhecimen-
Segundo importantes sociólogos, to social. Ao contrário busca-se o prazer
como Zygmund Bauman, é um período (gozo?) em cada experiência em si mes-
marcado pelo estabelecimento de relacio- ma, ou seja, o trabalho passa a ser visto
namentos fluidos e instantâneos e pela fra- como um objeto de consumo como outro
gilidade dos laços humanos. O que vale é qualquer que precisa gerar algum tipo de
o instante em que se vive, e perde-se pro- satisfação imediata.
gressivamente a noção do passado e mes- O que se verifica, portanto, é um rom-
mo do futuro. O que vale é o hoje. pimento dos laços que ligam o trabalho ao
Ao se colocar como objeto passivo di- capital. Observa-se que se trata de rompi-
ante do discurso do capitalismo, como mento unilateral já que foi o capital que
mero consumidor em detrimento da posi- adquiriu uma autonomia em relação ao tra-
ção de sujeito, busca-se usualmente negar balho no capitalismo pós-industrial. Pelo
a própria condição humana de castrado e, menos do trabalhador manual que não
portanto, a lei do pai, caracterizando uma contribui com aquilo que o capital precisa
era que uma corrente de psicanalistas de- para se reproduzir em escala ainda maior:
nomina como de declínio da função pa- criatividade capaz de se transformar em
terna, responsável pela transmissão da tra- inovação. E inovação que possa, por sua
dição cultural do homem, conforme já vis- vez, gerar aumento de produtividade ou
to anteriormente. realimentar o ciclo de consumo.
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A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?

E que perfil de profissional interessa ao tem subestimado a importância do traba-


capital na atualidade? Trata-se de um mer- lho na busca de sua própria felicidade e
cado de trabalho que busca aqueles com desconsiderado sua própria história na de-
capacidade de abrir mão de seu próprio finição de suas vocações.
passado, aceitar a fragmentação e o per- Em suma, a psicanálise pode apontar
manente deslocamento. De um profissio- novas possibilidades e estratégias às pes-
nal criativo e competitivo. Um profissio- soas e permitir um novo posicionamento
nal sem gravidade, para usar um termo de – menos passivo – perante uma realidade
Charles Melman. É uma elite que, nos ter- dominada pelo discurso do capital e pelo
mos de Sennett, “leva a mesa toda, enquan- declínio dos valores sociais. Ou seja, exis-
to a massa dos perdedores fica com miga- te um importante espaço de atuação para
lhas para dividir entre si”6. a psicanálise, seja no âmbito da clínica, seja
Esta realidade do mercado de traba- em sua extensão. Torna-se necessário, no
lho impõe aos que não possuem esta capa- entanto, observar que o discurso do capi-
cidade de lidar com essa relação fluida, tal tem uma enorme capacidade de “dige-
acima descrita, sofrimentos de ordem psí- rir” os discursos diferentes do seu, incor-
quica que se apresentam por meio das sín- porando-os já numa versão “bem compor-
dromes do pânico, depressão e, no limite, tada” e rentável. Assim, o desafio que se
o burn out, ou seja, o esgotamento com- coloca à psicanálise é apresentar-se como
pleto do indivíduo em decorrência da pres- um discurso alternativo, subversivo em re-
são no ambiente de trabalho. lação ao discurso do capital, e fiel aos seus
Não devemos desconhecer, por outro princípios e à sua própria ética. Evita-se,
lado, que para os profissionais preparados assim, o risco do que denomino de “pacto
para essa realidade de um mercado de tra- com o diabo”.
balho fluido e mutante, surgem oportuni- Em suma, gostaria de terminar minha
dades de experiências profissionais que apresentação com uma citação de um tra-
podem ser satisfatórias e alinhadas a voca- balho de Carmen Gallano que a meu ver
ções ou escolhas pessoais. Isto porque o resume bem minha posição no que se re-
perfil que hoje se demanda é mais variado fere às possibilidades do sujeito diante do
e complexo do que o do profissional ob- discurso do capital:
sessivo capaz de se submeter às rotinas, tí- “A saída do discurso capitalista é uma
pico da sociedade industrial. saída que não faz ruído revolucionário, nem
A meu ver pode a psicanálise, dian- barulho de protesto. Diria que é uma saída
te dessa realidade, desempenhar um papel na ponta dos pés, em uma destituição subjeti-
relevante do ponto de vista dos interesses va daquela produzida pela ciência. Na ponta
da sociedade, ao revelar os mecanismos de dos pés, mas com o passo decisivo do ato que
captura do sujeito, que passa pela arti- cria um desejo que não anda em conformida-
culação desejo/gozo na dimensão do pe- de com essa lógica. Trata-se, portanto, de fa-
queno objeto a, e que inserem o sujeito zer surgir um sujeito transformado pela aná-
neste jogo do capital, e ao apontar a posi- lise, de maneira que seu desejo obedeça a uma
ção passiva que o sujeito assume ao ser re- lógica que não a da rentabilidade, ou seja, de
duzido à condição exclusiva de consumi- um desejo que não dá rentabilidade ao Outro
dor. Pode também indicar como o homem pelo gozo”7. j

7. GALLANO, Carmen. Um sujeito-outro: há uma sub-


versão psicanalítica do sujeito sem o outro do capita-
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Matheus Cotta de Carvalho

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A relação sujeito-trabalho-organização na contemporaneidade e a psicanálise: porta de saída ou pacto com o diabo?

pitalismo? Stylus - Associação do Campo Lacaniano,


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RECEBIDO EM: 04/08/2008


APROVADO EM: 11/08/2008

SOBRE O AUTOR

Matheus Cotta de Carvalho


Economista. Participante do Fórum
de Psicanálise do Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais – CPMG.

Endereço para correspondência:


Rua Professor Antonio Aleixo, 358/1502
30180-150 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31) 3295-2854
E-mail: matheus.cotta@terra.com.br

Reverso • Belo Horizonte • ano 30 • n. 56 • p. 93 - 102 • Out. 2008 101

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