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Rafael: As núpcias da Virgem Maria, 1504. Uma obra típica da Alta Renascença.
Pinacoteca de Brera
Por outro lado, o período não foi de negação completa dos referenciais clássicos, já que
muito das suas feições ansiosas e dinâmicas refletem justamente uma aguda consciência
da perda e ausência daquela harmonia, mesmo que ideal e fictícia, e boa parte dos
recursos técnicos e formais e das temáticas abordadas ainda olham para o classicismo
em busca de inspiração, e considerando que os problemas culturais do século e as
contradições entre a tradição e a inovação deveriam ser resolvidos dentro de uma esfera
racional, assim como pregavam os renascentistas, ainda que hoje se perceba que esse
seu racionalismo estava cheio de subjetividade [7]. Segundo Hauser,
Características gerais
A arte maneirista mostra tipicamente figuras com proporções alongadas e em posições
dinâmicas, contorcidas ou em escorço, em grupos cheios de movimento e tensão, muitas
vezes de paralelo impossível com a realidade, e daí seu caráter ser considerado
artificialista e intelectualista, em oposição à gravitas [12] tão prezada no Alto
Renascimento. Nota-se um senso de experimentalismo no tratamento de temas
tradicionais, com a intensificação do drama, e fazendo uso de muitas referências
literárias e citações visuais de outros autores, o que tornava as obras de difícil
compreensão pelo espectador inculto [13]. O estilo é fortemente palaciano em suas
origens e difusão e seus principais expoentes participavam dos círculos ilustrados das
cortes e eram eles mesmos muitas vezes perfeitos intelectuais [14].
O Maneirismo foi uma tendência marcada pela heterogeneidade, tanto mais que o estilo
não se limitou à Itália onde apareceu primeiro, e se espalhou por quase toda a Europa
absorvendo diferentes históricos artísticos e estilos regionais. São encontrados até
mesmo numa mesma região artistas que trabalham em estilos mais naturalistas, e outros
que extrapolam todo o naturalismo e chegam a construir atmosferas de intenso
misticismo, como é o caso típico de El Greco, ou de pesadelo, como em Brueghel. O
formalismo anda a passo com o informalismo, o concreto com o abstrato, o lógico com
o emotivo e o irracional, numa mescla sintomática da fragmentação da unidade clássica
conquistada no Alto Renascimento e logo perdida. De certa forma o Maneirismo foi
uma tentativa de conciliar a espiritualidade da Idade Média com o realismo da
Renascença [15].
Contexto e desenvolvimento
O ambiente que deu origem ao Maneirismo foi marcado por profundas mudanças na
economia, na política, na cultura e na religião. Na política a invasão da Itália pela
França, Alemanha e Espanha entre o fim do século XV e o início do século XVI levou a
uma radical alteração no equilíbrio de forças do continente, culminando no Saque de
Roma de 1527, que foi um imenso choque, causando uma devastação que causou
espanto mesmo para os padrões da época e levando a uma fuga de artistas e intelectuais
para outras paragens. Neste período Maquiavel sintetiza em seu O Príncipe, publicado
em 1532, as práticas políticas correntes, legitimando o uso da força para controle dos
súditos e pregando uma moral dupla e um pragmatismo frio e inescrupuloso na
administração pública, obra que teve enorme repercussão em sua época e cujo realismo
político influiu até mesmo na condução do Concílio de Trento.
A agitação da Reforma Protestante pôs um fim à primazia do Catolicismo e do Papado,
mas logo em seguida nasceu a Contra-Reforma, numa tentativa de refrear a evasão de
fiéis para o lado protestante e a perda de influência política da Igreja, ao mesmo tempo
tentando moralizar os hábitos corruptos e materialistas do clero e alterando a atmosfera
de relativa liberdade de pensamento da fase anterior para uma de dúvida, ceticismo,
austeridade e medo, com o aparecimento de várias seitas de revivalismo religioso e
filosofias contestadoras, e a eclosão de guerras religiosas.
Em face a tantas e tão drásticas mudanças, a cultura italiana não obstante conseguiu
manter seu prestígio internacional, e o espoliamento de bens que a Itália sofreu pelas
grandes potências no fundo serviu também para disseminar sua influência para os mais
afastados recantos do continente. Mas a atmosfera reinante já era completamente outra.
A convocação do Concilio de Trento (1545 a 1563) levou ao fim a liberdade nas
relações entre Igreja e arte, a teologia assume o controle e desde então tudo devia ser
submetido de antemão ao crivo dos censores, desde o tema, a forma de tratamento e até
mesmo a escolha das cores e dos gestos dos personagens. Veronese é chamado pela
Inquisição para justificar a presença de atores e bufões em sua Ceia em casa de Levi, os
nus do Juízo Final de Michelangelo têm suas partes pudendas repintadas e cobertas de
panos, e Vasari já se sente inseguro de trabalhar sem a presença de um dominicano ao
seu lado. Apesar disso, a arte em si não foi posta em questão, e as novas regras se
dirigiam mormente ao campo sacro, deixando o profano relativamente livre. De fato,
antes do que suprimir a arte, a Igreja Católica a usou maciçamente para propagar a fé
em sua nova formulação, e ainda mais como um sinal distintivo em relação aos
protestantes, já que Lutero não via qualquer arte com bons olhos e condenava as
representações sagradas como idolatria. Variantes do Luteranismo como o Calvinismo
foram ainda mais rigorosas em sua aversão à arte sacra, dando origem a episódios de
iconoclastia.
O resultado disso tudo foi um grande conflito espiritual e estético, tão bem expresso
pela arte ambivalente, polimorfa e agitada do período: se por um lado a tradição
clássica, secular e pagã, não podia ser ignorada e continuava viva, por outro a nova idéia
de religião e suas conseqüências para a sociedade como um todo destruíram o prestígio
dos artistas como criadores independentes e autoconscientes, que fora conquistado a
duras penas há tão pouco tempo, e também revolucionaram toda a estrutura antiga de
relações entre o artista e os seus patronos e o seu público, sem haver ainda um substituto
consolidado, tranqüilo e consensual. A saída para uns foi se encaminharem para o puro
esteticismo, para outros foi a fuga e o abandono da arte, para outros foi a aceitação
simples do conflito como não resolvido, deixando-o visível em sua produção, e é nesse
conflito entre a consciência individual do artista e as forças externas que demandam
atitudes pré-estabelecidas que o Maneirismo aparece como o primeiro estilo de arte
moderna e o primeiro a levantar a questão epistemológica na arte. A pressão deve ter
sido imensa, pois, como diz novamente Hauser,
"Despedaçados por um lado pela força e, por outro, pela liberdade, (os artistas)
ficaram sem defesa contra o caos que ameaçava destruir toda ordem do mundo
intelectual. Neles encontramos, pela primeira vez, o artista moderno, com o seu
interior, o seu gosto pela vida e pela fuga, o seu tradicionalismo e a sua
rebelião, o seu subjetivismo exibicionista e a reserva com que tenta readquirir o
último segredo de sua personalidade. De então em diante, o número dos
maníacos, dos excêntricos e dos psicopatas, entre os artistas, aumenta de dia
para dia" [18].
O artista da Renascença tinha a natureza como fonte de inspiração, era ela quem
fornecia os padrões que o artista deveria buscar imitar, e seu sucesso se media na
proporção em que essa imitação era fiel e sua representação verossímil. O Maneirismo,
em contraste, rejeita a cópia servil da natureza e a ela equipara a arte como a fonte da
criação e dos padrões, e teóricos como Giovanni Lomazzo e Federico Zuccari
acreditavam que a arte tinha um nascimento espontâneo no espírito do artista. Lomazzo
considerava que o artista criava sua arte assim como o gênio divino criava a natureza, e
Zuccari via a elaboração artística interna, mental, o disegno interno, como uma
manifestação do divino na alma do artista. Contudo, ao mesmo tempo se patenteava o
problema de onde essa arte autônoma buscava sua verdade, e se essa "verdade" era
crível e aceitável. A solução encontrada foi a reafirmação do conceito das idéias inatas,
encontrado já em Platão e atualizado pelos maneiristas, e assim a verdade do artista é
verdadeira e deriva de sua participação no espírito divino. Os maneiristas, porém,
davam uma maior ênfase à espontaneidade do gênio criador, e Giordano Bruno afirmou
que "as regras não são a única fonte da poesia, mas a poesia é que é a fonte das
regras, e há tantas regras quantos há poetas verdadeiros". Nascia uma noção
individualista e subjetiva de que arte não se ensina e não se aprende, e de que o artista
nasce pronto e não se faz [19].
Fases do Maneirismo
O período é comumente dividido em duas (ou três, conforme o autor) grandes etapas
principais. A primeira vai de c. 1515 a c. 1530 (ou segundo outros até c. 1550 [21] [22]),
aparece primeiro em Florença, e logo em Roma, e é chamado de fase anti-clássica do
Maneirismo. Seus principais representantes haviam amadurecido ainda sob a influência
da Alta Renascença, e a obra que desenvolveram forma por isso um contraste mais
nítido em relação ao classicismo anterior. Jacopo da Pontormo e Rosso Fiorentino são
os nomes principais em Florença, donos de um estilo brilhante, nitidamente cortesão,
com formas elegantes e cores arrojadas, inspirados na fase madura de Michelangelo, a
esta altura considerado o maior gênio vivo nas artes. Em Roma atuavam Parmigianino e
Giulio Romano, e apesar da presença do próprio Michelangelo, a influência maior era
de Rafael, tornando o estilo um pouco mais austero e equilibrado [23] [24], e em Siena a
escola local tinha em Beccafumi um precursor. Esta primeira fase também é marcada
pelo êxodo de artistas de Roma após o saque de 1527, fortalecendo por toda a Europa a
influência do Renascimento italiano que já se notava em alguns pontos desde o século
XV, fundando novos centros regionais e estimulando o trabalho de maior número de
artistas. Em grande parte desses países o elemento italiano vai encontrar forte tradição
tardo-gótica ainda viva, dando origem a singulares estilos híbridos que definem o
Maneirismo nesses locais [25].
Outras artes
Até agora foram abordados aspectos do Maneirismo principalmente no que toca à
pintura e escultura, mas o estilo teve repercussão também em outras áreas artísticas,
como a arquitetura, a literatura e, com menor evidência, a música.
Arquitetura [28]
Juan de Álava, Rodrigo Gil de Hontañón e Martín de Santiago: Igreja de Santo Estêvão,
Salamanca
Michele Sanmicheli, Giovanni Rusconi e Alessandro Vittoria: Palazzo Grimani, Veneza
Nos outros países da Europa a tradição clássica misturou-se a raízes locais, derivadas do
Gótico e do Românico, dando origem em Portugal, por exemplo, ao manuelino, com seu
monumento máximo no Mosteiro dos Jerónimos, onde o Gótico ainda é a influência
mais importante, e deixando marcas também nas suas colônias do Brasil e da Índia, e na
Espanha, ao plateresco, um caso único de mescla entre influências clássicas, góticas e
mouriscas, com exemplos significativos na Universidade Sancti Spiritus de Oñate, na
Universidade de Salamanca, na Igreja e Convento de Santo Estêvão também em
Salamanca, na Universidade de Alcalá de Henares e nas colônias americanas do México
e Peru. O final do século veria na Espanha uma retomada do classicismo, com abandono
dos excessos decorativos e adoção de maior austeridade.
Na França o Renascimento foi logo acolhido com entusiasmo desde fins do século XV,
produzindo muitos monumentos arquitetônicos de grande valor como o Castelo de
Chambord, o Castelo de Fontainebleau, e partes do Palácio do Louvre, que realizam
uma síntese maneirista associando traços medievais aos da Renascença. Da mesma
forma nos Países Baixos formou-se um estilo de construção palaciana bastante peculiar,
compacta, muito decorada e com um frontispício elevado, onde a Prefeitura de
Antuérpia é um exemplo típico. Em outros países são significativos o Palácio de
Frederiksborg na Dinamarca; na Polônia a Prefeitura de Poznań e o Palácio dos Tecidos
em Cracóvia; partes do Castelo de Heidelberg na Alemanha; o Hardwick Hall, a
Burghley House e a Longleat House na Inglaterra, apenas para citarmos um punhado.
Música
Literatura
Na literatura o Maneirismo se caracteriza, como nas artes visuais, principalmente pela
perda da unidade clássica, que reflete de fato a consciência dramática de que todo um
ciclo cultural e civilizatório, que deixara uma impressão de grandeza e estabilidade,
estava encerrando. Tornam-se comuns na produção dos maiores autores da época
sentimentos de dúvida, fracasso, ambigüidade, duplicidade e ironia, e o fantasioso surge
como uma fuga dos tumultos da realidade concreta, elementos que denunciam um
desejo intenso de ordem e paz, ou atestam que sua conquista é inexeqüível. Três nomes
notáveis, na poesia, prosa e teatro, podem ser tomados como paradigmas da literatura
maneirista: Tasso, Cervantes e Shakespeare. Torquato Tasso, em sua Gerusalemme
liberata (1575) longo poema épico de grande difusão, mostra seu herói Godofredo de
Bulhões enfrentando a nulidade de seus ideais diante do testemunho dos fatos, e sofre
grande pesar vendo que seu desejo de construir uma comunidade de homens valorosos e
leais se torna impossibilitado pela mesquinhez, ambição e hedonismo das pessoas, que
são levadas mais pelas pulsões da paixão e do materialismo do que pelos princípios
éticos [35].
Ilustração de Gustave Doré para o Dom Quixote, na cena em que o Cavaleiro da Triste
Figura embate contra moinhos de vento imaginando que são gigantes
A outra grande figura da literatura maneirista, que nos auxilia a compreender o estilo, é
o polimorfo e prolífico Shakespeare, cuja obra sofre uma transformação ao longo do
tempo que ilustra bem a passagem da atmosfera renascentista humanista, idílica e
classicista, para o maneirismo e sua melancolia, desencanto, complexidade e pathos, e
já apontando para os contrastes do Barroco. Sua dramaturgia reflete sua experiência de
que "a idéia pura não pode se realizar na terra, e que ou a pureza da idéia tem de ser
sacrificada à realidade, ou se deve manter a realidade não afetada pela idéia", um
conceito que em si não era novo, mas acrescentando uma dimensão trágica nova a esse
casamento impossível, pelo fato de que a vitória moral do herói se dá muitas vezes em
virtude de sua derrocada, numa visão sobre o destino que diverge da clássica [37]. Em
termos de forma suas peças se realizam, como em Cervantes na prosa, com quebras de
continuidade, com um tratamento livre e desigual do espaço e do tempo, na recusa da
economia, ordem e linearidade clássicas, na contínua e extravagante expansão e
variação do seu material, na caracterização psicológica inconsistente, ambígua e
imprevisível dos seus personagens, na justaposição de recursos altamente formalistas e
convencionais com outros tirados do prosaico, do improvisado e do vulgar. É também
um típico maneirista quando se vale de metáforas obscuras e sobrecarregadas, do
mágico e do fantástico, de antíteses, assonâncias e trocadilhos, do intrincado e do
enigmático, e quando põe em crua evidência os pontos fracos dos heróis, que podem ser
muitos e profundos, e que por isso mesmo os tornam aos olhos modernos tão reais,
vivos e verdadeiros [38].