You are on page 1of 7

O MITO DA CAVERNA INTERTEXTO DO CASO DOS EXPLORADORES

DE CAVERNAS?

José Erigutemberg Meneses de Lima1

Resumo

É comum apontar-se como fator de textualidade a referência a outros textos.


Nomeia-se esse diálogo como intertextualidade2. Platão constitui uma referência
inevitável no pensamento ocidental ao longo de muitos séculos. A República, ao
idealizar o Estado perfeito, é fonte inesgotável onde os juristas buscam uma melhor
compreensão da justiça e das leis. Diante dessas circunstâncias, o objetivo deste
trabalho é investigar se o Mito da caverna de Platão está presente (intertextualmente) na
obra de Lon Fuller O caso dos exploradores de cavernas.

Palavras-chave: Platão. Justiça. Saber. Intertextualidade. Mito.

1 Introdução

Concordam os críticos que alguns autores, na reflexão teórica ou na produção


literária, utilizam obras consagradas na fundamentação das próprias teses, sob a
influência de processos mentais conscientes. Estes, reconhecem ser de outrem a idéia-
suporte desenvolvida em seus textos. Contudo, pode ocorrer que, em virtude de
processos mentais subconscientes, leituras remanescentes, adormecidas, manifestem-se
em outros que nem percebem estar explorando argumentação alheia.
Erasmo de Rotterdam ilustra bem o primeiro caso. Em Elogio à Loucura3, esse
autor faz notar que é a demência que traz o homem ao seu estado natural, em
detrimento das ciências que afastam o homem do que é intrínseco da sua existência.
Quanto mais próximo da natureza, mais próximo da felicidade.
No texto, Erasmo demonstra que as pessoas têm diferentes realidades e que
conseguem viver felizes independentemente de qualquer realidade. Para melhor ilustrar
sua justificativa, remete ao Mito da Caverna, de Platão. No entanto, Erasmo inverte o

1
Acadêmico do curso de Direito da Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB.
2
Na teoria literária, a noção de intertextualidade foi introduzida por Julia Kristeva, em 1966, por
influência da noção de dialogicidade que M. Bachtin desenvolveu no livro Estética da Palavra.
3
Libelo do teólogo Erasmo de Rotterdam (1469-1536), publicado em Paris em 1509.

1
sentido do Mito, mostrando que independentemente de haver um mundo melhor, cada
homem pode ser feliz dentro da sua realidade, mesmo essa não sendo a verdadeira. 4
A caverna, de José Saramago, também, foi inspirada nas reflexões dessa
poderosa crítica à condição dos homens, escrita há muitos séculos atrás. 5 Os críticos já
haviam apontado o Mito como um dos intertextos de Ensaio sobre a cegueira. Em A
caverna, é o próprio autor que o elege como o principal intertexto.
Não há indicações de que Lon Fuller tenha, intencionalmente, utilizado a
alegoria de Platão para dar estrutura ao enredo de O caso dos exploradores de cavernas.
É, contudo, perfeitamente, possível se imaginar que tenha decalcado a idéia platônica
em seu texto, com base em reminiscências ou lembranças tênues. Se Erasmo inverteu a
premissa para justificar sua obra, Fuller estruturou seu texto com o subconsciente atento
ao Mito platônico.
Ele que estudou Economia e Direito em Stanford e atuou como professor de
Teoria do Direito, inicialmente, nas Faculdades de Direito de Oregon, Illinois e Duke e,
a partir de 1940, na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, obviamente, teve
contacto amiúde com a obra clássica.
Aqui cabe considerar que no campo da realidade intertextual, não há obra
original em essência, pois como diz Michel Foucault, em Arqueologia do saber (The
archeology of knowledge): “As fronteiras de um livro jamais são nítidas: o título, a
primeira linha, o ponto final, a configuração interna, a forma autônoma, tudo isto está
envolto em um sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases; o livro
é como se fosse um pequeno elo numa vasta cadeia.” 6
Assim, entendida intertextualidade como a relação de um texto com outros
textos de autores diferentes, o objetivo deste trabalho é verificar se O caso dos
exploradores de cavernas, de Fuller, está baseado no Mito da caverna, de Platão, fonte
de intertextualidade para diversos textos.

2 As obras e as inferências intertextuais

“Imagina ainda o seguinte – prossegui – Se um homem nessas condições


descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao
4
SANTOS, Ynaê Lopes dos. A reforma. op. cit.
5
Num mundo em rápido processo de extinção outro cresce e se multiplica como um jogo de espelhos
onde não parece haver limites para a ilusão enganosa. Neste mundo uma família de oleiros compreende
que deixou de ser necessária à vida.
6
FOULCAULT, M. A arqueologia do saber, op. cit.

2
regressar subitamente da luz do Sol? – Com certeza. – E se lhe fosse necessário julgar
daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no
período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se
habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso e não diriam dele que, por ter
subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão: E
a quem tentasse solta-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o
matariam?” 7
A transcrição acima pertence ao Livro VII de A República. Platão, em forma
dialética, explica para Glauco o caso de um grupo de pessoas cuja existência se resume
a permanecer, eternamente, aprisionadas em uma caverna subterrânea. No ambiente em
penumbras, todos estão acorrentados de tal forma que só conseguem enxergar a parede à
frente. Ali, se percebem sombras de figuras humanas em movimento, produzidas pela
chama de uma fogueira postada atrás de uma tela. Toda a realidade conhecida pelos
habitantes da caverna são essas sombras.
Com essa parábola, o pensador grego, fazendo alusão à vida de seu mestre
Sócrates, morto pela assembléia ateniense sob a acusação de influenciar negativamente
os jovens, pretendia demonstrar que o planeta terra é uma grande caverna, sendo os
fenômenos da natureza meros reflexos das idéias. Os homens, aprisionados pela
ignorância, apenas, conseguem perceber, através dos sentidos, esses reflexos: as
sombras. Somente os sábios, por meio da razão, conseguem descobrir a realidade.
A seqüência dessa estranha alegoria retrata, exatamente, isso. Certo dia, um dos
habitantes da caverna liberta-se e descobre a origem das sombras. Ultrapassando a
entrada da caverna, vê-se diante da verdadeira fonte de luz e compreende a realidade.
Vinte e cinco séculos separam o texto citado acima e o que se reproduz a seguir,
extraído de O caso dos exploradores de cavernas:
“Quando os homens foram finalmente libertados soube-se que, no vigésimo
terceiro dia após sua entrada na caverna, Whetmore tinha sido morto e servido de
alimento a seus companheiros. Das declarações dos acusados, aceitas pelo júri,
evidencia-se que Whetmore foi o primeiro a propor que buscassem alimento na carne de
um dentre eles, sem o que a sobrevivência seria impossivel.”8
O texto de Fuller, enquanto relato em forma de narrativa com caráter explicativo
e repleto de personagens e situações simbólicas, constitui igualmente um mito. Em

7
Platão. A República, p. 212
8
FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas, p. 5-6

3
resumo, versa sobre um grupo de exploradores de cavernas que, em uma das
expedições, fica confinado no interior de uma gruta sendo obrigados a se alimentar com
a carne de um deles que foi sacrificado para a sobrevivência dos demais. Resgatados, os
sobreviventes são levados a julgamento no Tribunal do Júri por homicídio.
Nesse pequeno, mas importante texto, Fuller aguça a curiosidade dos calouros de
Direito, inaugurando-os no pensamento legal, levando-os, gradativamente, à formação
de uma consciência crítica sobre a realidade jurídica. Desta forma, vislumbra-se a
aplicação da técnica da história metafórica, tomando como exemplo O mito da caverna
de Platão.
Platão, no uso da dialética, procurava despertar no espírito dos patrícios o
entendimento do saber, que viria de modo extensivo a desaguar na compreensão do
próprio conceito de Justiça, aplicada injustamente ao mestre, figurado como o que
abandona a escuridão da caverna.
O jusfilósofo norte-americano, que foi ligado ao movimento do realismo jurídico
desejava que do case study, hipotéticamente engendrado, os alunos percebessem,
através das várias opiniões dos juízes fictícios, as diferentes correntes da filosofia do
direito, e delas consubistanciasse o entendimento do que fosse a justiça, praticada nos
tribunais que poderiam igualmente sentenciar pessoas injustamente.
Em Platão, o personagem, em sentido ascendente, galga as escarpas íngremes
em busca da luz. Metaforicamente, a ação pode ser entendida como a busca do saber, do
conhecimento e por extensão do significado da justiça. Ao perceber a nova realidade,
faz o caminho inverso para compartilhar com os demais prisioneiros, mantidos escravos
no obscuro meio rochoso, o novo significado de vida, liberdade e justiça.
O contrário é percebido no texto de Fuller. O grupo de exploradores,
suficientemente, plenos de consciência do que é certo e justo, em sentido descendente,
brutalizam-se quando aprisionados no interior da caverna.Em meio à luta pela
sobrevivência, apaga-se no espírito de todos os resquícios de conhecimento e de justiça
do mundo real que sabe existir por detrás das grossas paredes de calcáreo. A ignorância
da animalidade substitui a consciência. A sobrevivência contrapõe-se a qualquer
conceito do que seja correto e justo.
É, igualmente, possível se inferir vestígios do pensamento platônico no
procedimento dos magistrados da Corte Suprema de Newgarth. Pelo prisma do Mito, os
juízes agiram como os prisioneiros da famosa caverna. Olharam para o fato e aplicaram
a norma como se estivessem enxergando apenas a parede. Não pararam para refletir se

4
se deparavam com uma realidade verdadeira ou não, se acomodaram às correntes de
suas ideologias.
A entrada da caverna jurídica, contudo, permite a penetração de tênue luz
exterior, que se representa pela visão do direito natural. É através dele que, na semi-
obscuridade, se vê as sombras de uma melhor interpretação e aplicabilidade das leis se
movendo no interior das instituições do Judiciário.
Assim, as duas parábolas abordam aspectos comuns mesmo que tratados de
forma subreptícia e inversa: o saber e a justiça. É corrente que no pensamento de Platão
faz justiça somente quem souber o que é justiça. E para se saber o que ela é, o
conhecimento (a luz) é fundamental, tanto quanto o é para se saber se foi justa ou não
as sentenças prolatadas pelos juízes do caso proposto por Fuller.

3 Considerações finais

O Mito da caverna é intertexto de O caso dos exploradores de cavernas? Como


ficou visto, a exemplo dos personagens de Platão, os exploradores estavam aprisionados
na caverna subterrânea dos costumes e da justiça. Em seu mundo de conforto nem os
exploradores, a sociedade e ou os juízes de Newgarth imaginavam ver as coisas em si,
surgidas a partir de tamanha adversidade.
Ao se depararem com as trevas do instinto desconhecido, redescoberto, se
ofuscaram. Não se sabe se os juristas em suas consciências refizeram o caminho de
volta. Se o fizesse, talvez, da compreensão da experiência dos homens sentenciados à
morte surgisse uma justiça renovada, aperfeiçoada, por se basear no mundo real e não
na fictícia realidade extraída dos ordenamentos jurídicos.
É conhecido que o embasamento do livro de Fuller está nos votos dos juízes da
Corte Suprema de Newgarth que variaram entre as diversas teorias da filosofia do
direito, oferecendo uma lição sobre a essência de cada teoria, notadamente sobre o
jusnaturalismo e o positivismo. E também dar a conhecer como se comportam os
julgadores de acordo com a corrente de pensamento jurídico adotada.
Os exploradores, sentenciados à morte, calaram-se diante da letargia dos
magistrados que viram na aparência das coisas aquilo que verdadeiramente não é.
Satisfizeram-se com as sombras dos objetos na parede da caverna, por estarem em
avançado estágio de alienação ideológica.

5
Não se pode esperar destino diferente para aquele que volta à caverna para
“libertar seus irmãos do julgo da ignorância e dos grilhões que os prendiam. 9” Os
antigos companheiros de infortúnio certamente, como os juízes da Corte Suprema
escarneceriam dele, não acreditando em suas razões. Se não conseguissem silenciá-lo
com as caçoadas, o fariam espancando-o. Se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o
que viu e os tentasse convencer a sair da caverna, acabaria morto, sentenciado pela
ignorância.
A partir dessas considerações, conclui-se que o Mito da caverna fundamenta o
artigo de Lon Fuller, sendo importante intertexto. Como Erasmo de Rotterdam fez uso
da temática platônica de modo inverso em sua estratégia narrativa, dadas as
“referências” encontradas, pode-se afirmar que Fuller fizera o mesmo,
inconscientemente, tal Saramago no Ensaio sobre a cegueira.
É conveniente, por último, reafirmar que intertextualidade não significa plágio,
mas a interação entre textos, um diálogo entre eles. Não há como falar em plágio sem
falar em consciência e intenção e ambas faltaram a Fuller na construção de sua
magnífica obra.
O autor, ao inverter o sentido da caminhada no interior da caverna (ignorância-
treva → conhecimento-luz // conhecimento-luz → ignorância-treva), deu nova feição ao
mito, tirando-o de sua forma original, caracterizando o que se chama de
intertextualidade fraca, diluída ou pouco explícita.
A respeito de o estado natural exposto no Mito da Caverna propiciar mais
felicidade do que o estado positivista, previsto em O caso dos exploradores de
cavernas, nada se pode afirmar. Tecer qualquer opinião acerca do tema, além de fugir do
objeto da pesquisa, seria incorrer na loucura tão bem elogiada por Erasmo de
Rotterdam.

Referências

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FULLER, L. Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Tradução: Plauto Faraco de

Azevedo. Porto Alegre: Fabris. 2000.

PLATÃO. A República, tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
9
PLATÃO. A república, op. cit.

6
ROTERDAN, Erasmo. Elogio à Loucura. São Paulo: Sapienza. 2005.

SANTOS, Ynaê Lopes dos. A Reforma. Disponível em

<http://www.klepsidra.net/klepsidra6/areforma.html>. Acesso em 16 jul 2006

You might also like