You are on page 1of 186

Reflexões sobre

direitos fundamentais
em tempos de
austeridade

Alexandre Bernardino Costa


Lia Beatriz Teixeira Torraca
(Organizadores)
Reflexões sobre direitos
fundamentais em tempos
de austeridade
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

Renato Martins e Silva (Editor-chefe)


http://lattes.cnpq.br/4416501555745392

Lia Beatriz Teixeira Torraca (Editora Adjunta)


http://lattes.cnpq.br/3485252759389457

Ilma Maria Fernandes Soares (Editora Adjunta)


http://lattes.cnpq.br/2687423661980745

Célia Souza da Costa


http://lattes.cnpq.br/6191102948827404

Chimica Francisco
http://lattes.cnpq.br/7943686245103765

Diego do Nascimento Rodrigues Flores


http://lattes.cnpq.br/9624528552781231

Dileane Fagundes de Oliveira


http://lattes.cnpq.br/5507504136581028

Erika Viviane Costa Vieira


http://lattes.cnpq.br/3013583440099933

Joana Ribeiro dos Santos


http://lattes.cnpq.br/0861182646887979

José Candido de Oliveira Martins


http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=5295361728152206

Liliam Teresa Martins Freitas


http://lattes.cnpq.br/3656299812120776

Marcia Tereza Fonseca Almeida


http://lattes.cnpq.br/4865156179328081

Ricardo Luiz de Bittencourt


http://lattes.cnpq.br/2014915666381882

Vitor Cei
http://lattes.cnpq.br/3944677310190316
Reflexões sobre direitos
fundamentais em tempos
de austeridade
1ª Edição

Alexandre Bernardino Costa


Lia Beatriz Teixeira Torraca
(Organizadores)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2017
Copyright © da editora, 2017.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Reflexões sobre direitos fundamentais em tempos de


austeridade / Alexandre Bernardino Costa; Lia Beatriz
Teixeira Torraca (Organizadores). – Rio de Janeiro:
Mares Editores, 2017.
185 p.
ISBN 978-85-5927-044-0
1. Direitos Fundamentais. 2. Direito Constitucional. 3.
Austeridade I. Título.

CDD 341.27
CDU 342.7

2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
CNPJ 24.101.728/0001-78
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação ................................................................................ 9

Tempos de austeridade: a projeção da era da Antropofagia


Democrática ............................................................................... 13

A Importância do Direito à Informação e sua Desvirtuação no


Contexto Atual Brasileiro ............................................................ 51

O direito à memória X anistia: as cicatrizes de uma Democracia


aprisionada nos porões da Ditadura........................................... 71

Direitos humanos e austeridade econômica à luz de Hannah


Arendt ....................................................................................... 102

A reforma trabalhista neoliberal sob a ótica do primado da


afetividade ................................................................................ 126

Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na perspectiva da


solidariedade ............................................................................ 166

Sobre os autores ....................................................................... 182


Apresentação

A palavra austeridade é uma daquelas quando pronunciada nos


remete ao universo inóspito das certezas contestáveis, que não podem
ser garantidas e que se revestem de uma aura pesada e nada
alvissareira. Imagine, então, quando esta palavra invade nosso
cotidiano, nossas relações, nossos sonhos... Refletir sobre os direitos
fundamentais em uma atualidade restrita ao sentido imposto pela
austeridade é a proposta desta coletânea. Pensar o significado de
austeridade para além da severidade e controle dos gastos públicos é
buscar perceber os impactos de uma sociedade desenhada pela
linguagem neoliberalista, de promessas infinitas e possibilidades
limitadas. Uma sociedade que não parece enxergar os efeitos de
medidas outrora experimentadas, fazendo-nos mergulhar no eterno
“esquecer e repetir”, inviabilizando outros futuros.
É imperativo investigar a relação dessa nova face de uma visão
econômica, que tomou corpo nos meios acadêmicos e políticos, com
a desconstitucionalização dos direitos fundamentais no Brasil; afinal,
um dos objetivos centrais das medidas de austeridade fiscal é a
retirada dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, em
especial, os direitos sociais. É urgente pensar sobre um presente de
subtrações e de narrativas que precisam ser questionadas, refutadas,
confrontadas. É esta a perspectiva do Doutorando em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada (UFMG) Raimundo Expedito dos
-9-
Santos Sousa, e do Mestre em Educação pela UFRJ, Elielson Martins
Ferreira Filho, através das reflexões no texto “Direitos Humanos e
austeridade econômica à luz de Hannah Arendt”, que examina a
subtração de direitos em uma conjuntura de austeridade econômica a
partir das contribuições de Hannah Arendt para a noção de direitos
humanos em uma conjuntura de austeridade econômica que resulta
na subtração de direitos, especialmente no tocante às relações de
poder travadas no interior do Estado-nação, como também, a
preocupação da filósofa com o homem e os efeitos por ele sofridos em
regimes autocráticos ou etnocêntricos e em sociedades balizadas pela
massificação, conforme ressaltam os autores.
Considerando que um dos principais reflexos da política de
austeridade é a profunda reformulação do chamado mundo do
trabalho, no qual competitividade, produtividade e redução do custo
das empresas seriam as principais metas, Dorival Cotrim Júnior nos
propõe pensar estes aspectos a partir da reforma trabalhista, já
aprovada, e que tem como consequência a drástica redução de
direitos. O autor recorre aos paradigmas da dominação e da
afetividade para discorrer o caminho de transformações impostos
pelas chamadas medidas de austeridade, em seu texto intitulado “A
reforma trabalhista neoliberal sob a ótica do primado da afetividade”,
instigando-nos a pensar um novo imaginário com outras formas de
ação, reflexão e intervenção, para podermos superar nossa atual crise,
conforme ressalta a potência inserta na própria crise do patriarcado.

- 10 -
Uma crise que pode encontrar sua saída no reconhecimento da
alteridade do outro, no cuidado com o outro, como propõe Cotrim
Júnior, através da construção de um novo paradigma; reflexão
sintonizada com a proposta de Adela Cortina, como exposto no texto
dos organizadores da coletânea, intitulado “Tempos de austeridade: a
projeção da era da Antropofagia Democrática”, apesar de ter muito
mais na simpatia do que na empatia (CORTINA, 2017; p. 26 – capítulo
5), a possibilidade de modificação das relações sociais.
Para superarmos este presente, há que romper com o próprio
processo de “esquecer e repetir”, o que somente será possível quando
decidimos enfrentar nossas memórias, o que propõe a doutoranda em
História Social pela Universidade Federal de Uberlândia e doutoranda
em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires, Gabriela
Soares Balestero. A autora do texto “O direito à memória X anistia: as
cicatrizes de uma Democracia aprisionada nos porões da Ditadura”
buscou analisar o direito à memória e ao direito à verdade como
expressões da efetividade dos direitos humanos e como
representação das conquistas obtidas e garantidas como resultado de
lutas sociais e simbólicas, tendo como enfoque a situação brasileira e
como base a relação entre memória, direitos humanos e a teoria do
poder. A análise proposta por Balestero abarca desde a aplicação da
Lei da Anistia, a justiça histórica e memória, até o direito à memória e
à verdade na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

- 11 -
Na esteira de investigações que busquem caminhos para nossa
fragilizada democracia, Madson Anderson Corrêa Matos do Amaral
propõe analisarmos a constatação da suposta desvirtuação de direitos
e garantias fundamentais, em especial o direito à informação, em
razão do nosso momento de austeridade vivenciado pela sociedade
brasileira, que a cada dia é afrontada por graves violações de cidadania
e de um elevado nível de corrupção, como pontua em seu texto “A
Importância do Direito à Informação e sua Desvirtuação no Contexto
Atual Brasileiro”.
Encerrando as propostas de reflexão, os mestrandos em Direito
Constitucional, da Instituição Toledo de Ensino, Bauru SP, Cristiano
Quinaia e Tiago Ramires Domezi, oferecem-nos o questionamento
sobre a possibilidade dos direitos fundamentais serem efetivados por
um nível de consenso nas massas de comunicação social, através do
trabalho intitulado “Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na
perspectiva da solidariedade”.
Desejamos a todos intensos momentos de questionamentos
através dessas propostas de pensar este presente de sofrimento e
divisões, um tempo (imposto) de austeridade.

Os Organizadores

- 12 -
Tempos de austeridade: a projeção da era da Antropofagia
Democrática

Alexandre Bernardino Costa


Lia Beatriz Teixeira Torraca

Introdução
Durante décadas os brasileiros conviveram com o pesadelo dos
altos índices inflacionários e da destruição de seus sonhos em razão de
uma dívida contraída em seu nome, jamais em seu benefício. Uma
dívida para construir um milagre econômico. Uma dívida que entrou
na contabilidade do processo de redemocratização e que uma futura
geração se incumbiria de saldar. Uma dívida que só conseguíamos
pagar seus juros, impingindo-nos mais empréstimos e com eles, mais
exigências do credor para concedê-los. A principal exigência se
resumia em uma única palavra: austeridade.
Apesar do desolador hiperendividamento e seus reflexos, uma
nova constituição nascia com o processo de redemocratização. Uma
constituição considerada avançada, promessa de garantias e
priorização de direitos, especialmente no tocante à saúde e educação,
outrora negligenciados. O compromisso fora de inclusão, porém
esbarramos nas dívidas deixadas pela ditadura. Aquele novo pacto
social corria o risco de não sair do papel.

- 13 -
A experiência doméstica era a analogia que especialistas e
autoridades do governo recorriam para tornar palatáveis as medidas
indigestas impostas por nossos credores internacionais. Estávamos
nas últimas décadas do século XX, o discurso era especialmente
voltado à dona de casa, àquela que acreditavam deter as rédeas da
economia familiar, como também aquelas que passavam a dividir com
os homens o mercado de trabalho. Dever e não pagar seria um vexame
internacional, jamais uma alternativa possível como poderia ser
interpretada a moratória.
À grande mídia incumbia traduzir os códigos da economia para
a maioria da população. Uma função que consolidou um poder capaz
de conduzir o destino dos brasileiros, afinal detinha a hegemonia da
construção da realidade, além de não estar sujeita à alternância de
poder. Um poder que sempre garantiu os interesses do oligopólio da
mídia brasileira. Um poder que nos impedia de questionar como
permitíamos que um credor agisse como se agiota fosse, afinal só um
agiota impõe sua presença na casa do devedor, determinando-lhe
como agir para atender aos seus interesses, não lhe interessando o
sofrimento experimentado pelo devedor diante da subtração de seus
bens e direitos.
A hegemonia conquistada pela grande mídia brasileira foi
habilmente explorada para manter a maioria da população
(des)informada sobre as medidas que eram impostas pelos nossos
credores e implantadas pelos nossos governantes. Os remédios eram

- 14 -
amargos, mas necessários, segundo os defensores daquilo que passou
a ser nossa realidade: austeridade. Se nossa família enfrenta uma
crise, contrai uma dívida e passa a ter dificuldades em pagá-la, há que
se cortar gastos, há que “fechar as torneiras”, explicavam os
economistas, convidados – ou contratados – para explicar o nosso
tratamento de choque. Muitas vezes os tratamentos eram
acompanhados de novas experiências: os planos econômicos.
Passamos anos e anos insistindo em novos planos e os mesmos
remédios, mas a realidade demonstrava que o paciente só piorava, os
sintomas recrudesciam na proporção que se aumentava a dosagem da
medicação, além do efeito colateral que trazia a possibilidade de
cronicidade da doença. O efeito da desigualdade, social e econômica.
Após diversas tentativas frustradas, um novo plano surgia
como a derradeira esperança: o plano Real. Um plano que trazia
consigo a esperança do novo milênio, depositada naqueles últimos 6
anos da última década do século XX. Um plano que estabelecia o
mesmo modelo dos seus antecessores: troca de moeda, reinicialização
do sistema, medidas comprometidas com os ajustes recomendados
pelos nossos credores. Porém, o plano Real não se diferenciava
naquilo que parecia acompanhar as grandes democracias ocidentais:
um sistema formatado no processo de globalização, uma modulagem
prefixada - o neoliberalismo. Talvez o ufanismo tenha embaçado nossa
percepção e não atentamos às armadilhas, afinal conseguíramos
alcançar alguma estabilidade econômica através daquele novo plano

- 15 -
econômico. Sem os assombros da inflação, chegava o momento do
Brasil reorganizar seu presente paras poder planejar um outro futuro.
Ao final do segundo mandato daquele que foi responsável pela
criação do plano Real, o Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, a
derrota para seu grande opositor, o Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, pouco foi associada aos indícios de colapso do modelo
econômico implantado, principalmente porque o novo Presidente não
só escolhera manter o modelo de seu antecessor, como se aproveitou
daquilo que ainda estava saudável e dos novos sinais vitais que o
paciente passara a apresentar. Novos medicamentos foram
ministrados, e outras dosagens para os antigos fármacos. O paciente
parecia ganhar uma nova cor, nova vida. Um paciente que não sentia
mais fome.
Esse outro tratamento permitiu que mais pessoas
consumissem, viajassem, participassem do sonho de ter um carro,
uma casa, de cursar uma faculdade. Uma realidade de inclusão. Mas
essa nova realidade trazia consigo algumas encruzilhadas,
principalmente aquelas dispostas pelo estímulo ao consumo.
Encruzilhadas que Peter Singer e Thomas Piketty, entre outros
autores, apontam como práticas antidemocráticas da economia
globalizada que encurralam a própria democracia. É um modelo que
mantém o sistema economicamente produtivo, ainda que permaneça
reproduzindo desigualdade, até o ponto que o próprio sistema acaba
colapsando.

- 16 -
Não percebemos que obedecíamos aos interesses
internacionais, além de fomentar internamente outras formas de
dívidas e outros credores, contudo eram as mesmas dívidas de uma
doença que há séculos acomete o paciente: a corrupção. Neste
percurso, uma grande crise surpreendeu o mundo, mas o Brasil
parecia imune. Atravessando todas as tormentas, mantendo o barco
rumo aos megaeventos e obedecendo ao processo democrático, uma
Presidenta foi eleita e reeleita. O barco parecia longe de afundar, mas
a reeleição da Ex-Presidente Dilma Rousseff fez revolver questões
escamoteadas, desde o machismo à tão negada luta de classes,
permeada de racismo e aporofobia. Estas questões acabaram
permitindo que sofrêssemos mais um golpe em nossa história. Um
golpe disputado semanticamente por uma sociedade que passou a
escancarar suas divisões e como constrói suas crises, como cria uma
realidade e destrói suas possibilidades democráticas. Uma crise que
nos remeteu ao passado da austeridade. Entretanto, é o presente
daquilo que esquecemos e repetimos, como sabiamente Raffaele De
Giorgi resume nossa atualidade. Repetimos no presente da era da
Antropofagia Democrática1.

1
O termo Antropofagia Democrática foi cunhado pela segunda autora, apresentado
em seu livro “Democracia Encurralada: os reflexos das manifestações de 2013 no Rio
de Janeiro”, publicado pela Editora Lumen Juris, no ano de 2016.

- 17 -
Uma (des)ordem chamada austeridade.
Mas o que vem a ser a chamada austeridade? Em sentido geral,
significa severo, grosseiro. Austeridade é uma severidade de
costumes, de vida; também pode ser uma espécie de penitência, rigor
e disciplina. Em termos econômicos, a austeridade fiscal significa,
portanto, severidade e controle nos gastos públicos para pagamento
da dívida pública ao invés de investimentos públicos, serviços e
transferências sociais.
Contudo, os economistas não são unânimes em relação à
fórmula de pagamento da dívida pública. Para muitos, a austeridade
agrava a situação, pois as contas públicas não são como o orçamento
doméstico, cujo equilíbrio pode ser restaurado com "o aperto de
cintos", como a grande imprensa quis fazer parecer recentemente no
Brasil (BELLUZZO, 2015; p. 6). Ou seja, austeridade pode produzir
exatamente aquilo que pretende evitar. Ao contrário do discurso
uníssono de que não há alternativa, economistas de diversos matizes
afirmam que há, sim, outras saídas possíveis. Podem-se exemplificar
como austeridade para os sonegadores de impostos, acumuladores de
grandes fortunas e aos que recebem grandes heranças. Existem
alternativas tributárias que não onerariam ainda mais a classe
trabalhadora, que já paga proporcionalmente mais impostos do que a
classe média alta e os ricos.
Apresentamos um breve estudo sobre como os ajustes fiscais
propostos por diversos países nas últimas décadas, sob a égide do que

- 18 -
veio a se chamar de neoliberalismo, passaram a fazer parte da nossa
realidade. Precisamos compreender o que é a austeridade, essa nova
face de uma visão econômica que tomou corpo nos meios acadêmicos
e políticos, para podermos investigar a hipótese de que esteja
relacionada com a desconstitucionalização dos direitos fundamentais
no Brasil; afinal, um dos objetivos centrais das medidas de austeridade
fiscal é a retirada dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos,
em especial, os direitos sociais.
O historiador inglês Perry Anderson faz uma síntese do
surgimento do neoliberalismo, distinguindo-o do liberalismo clássico:

O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra


Mundial, na região da Europa e da América do
Norte, onde imperava o capitalismo. Foi uma
reação teórica e política veemente contra o estado
intervencionista e de bem-estar. Seu texto de
origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich
Hayek, escrito já em 1944 (1998, p.9).

Hayek dirige suas forças contra o trabalhismo inglês, comparando-o ao


nazismo alemão. Os adversários eram o Estado de bem-estar europeu
e o New Deal norte-americano. Criou-se a Sociedade de Mont Pèlerin,
uma espécie de maçonaria liberal, que tinha dentre seus afiliados
Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises,
Michael Polany, além de outros nomes de destaque.
Veio, então, a crise de 1973, criando a oportunidade de colocar
a teoria em prática:

- 19 -
O remédio, então, era claro; manter um Estado
forte, sim, em sua capacidade de romper com o
poder dos sindicatos e no controle do dinheiro,
mas parco em todos os gastos sociais e nas
intervenções econômicas. A estabilidade
monetária deveria ser a meta suprema de qualquer
governo (1995, p. 11).

O que conhecemos mais de perto por neoliberalismo foi


implementado pela primeira vez em ditaduras latino-americanas –
Chile, Argentina, Uruguai e Peru, ainda na década de 1970. Como
propaganda ideológica do regime autoritário pós 64 no Brasil, ainda
que não se tratasse do neoliberalismo, louvavam-se esses países,
sobretudo a ditadura de Pinochet.
Nos anos 1980, Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e
Margareth Thatcher, na Inglaterra, simbolizaram o combate à
desaceleração econômica ocorrida na década de 1970. A causa
alegada seria a sobrecarga democrática distributiva, que geraria
desequilíbrio econômico, fonte de inflação e baixo crescimento. Os
Estados gastadores e os sindicatos ultraprotegidos seriam os principais
vilões desse roteiro. Um roteiro que expunha uma classe capitalista
associada a uma classe média, trabalhadores desorganizados e
desempregados lutando contra sindicatos, empresas protegidas e
partidos políticos com viés social. Eram alegadas, nesses países,
regalias das minorias e uma militância operária dos sindicatos. Tudo
isso deveria ser enfrentado juntamente com o aumento da

- 20 -
criminalidade, o ataque a valores religiosos, bons costumes e crise de
autoridade. Terreno fértil para um conservadorismo político
autoritário, que se manifesta por um Estado mínimo na economia e
máximo no controle social, o que parece repetirmos em pleno século
XXI.
Já na década de 1990, a batalha ideológica foi monitorada nos
países periféricos pelo FMI e pelo Banco Mundial, que rezavam pela
cartilha do neoliberalismo. Somado a isso se deu o chamado
"Consenso de Washington", que viria a uniformizar a política
econômica neoliberal a ser aplicada nos países periféricos do
capitalismo global, por parte das agências de desenvolvimento, com
corte de impostos e privatização de empresas públicas. A partir de
1997, crise após crise, o neoliberalismo passa adotar o chamado
estado permanente de austeridade global. Essa classificação foi
ganhando corpo no vocabulário dos economistas do mercado.
O capitalismo mundial sofre uma profunda crise em 2008. E
essa crise, ao invés de fazer com que o sistema tivesse uma revisão de
seus fundamentos, fez com que aumentasse a exigência de ajuste
fiscal para os países que estivessem em situação de fragilidade
econômica e endividamento público. A pauta extrema da austeridade
fiscal passa a ser, então, uma exigência para muitos países, em
especial, para Grécia, Portugal, Espanha, Itália. A Europa passa a
provar o remédio que por anos foi ministrado aos países da América

- 21 -
Latina. Parte da Europa começa a questionar sobre os efeitos desse
tratamento.
A austeridade volta a ser o discurso dominante, elaborado
apenas em favor do chamado “mercado”, apesar de declarar que
agiria em favor “da sociedade”. Porém, o mercado não é a
representação da sociedade civil; ao contrário, é um grupo de
multimilionários, investidores, especuladores, rentistas, seus
funcionários, economistas-chefes de bancos e fundos, jornalistas de
economia e seus associados no exterior (BELLUZZO, 2015; p.20).
Segundo Celso Amorim, no Brasil, em verdade:

A crise atual, em parte verdadeira e em parte


fabricada, decorre da revolta conservadora devido
ao fato de a presidenta Dilma ter cometido dois
“pecados mortais” à luz dos interesses do
“mercado”; isto é, daqueles indivíduos
beneficiários da concentração de riqueza, de renda
e de poder político no Brasil, que são os grandes
multimilionários, os latifundiários rurais e urbanos,
os rentistas, os banqueiros e seus representantes
na mídia, no Congresso, no Judiciário.
O primeiro “pecado” foi a política de redução,
ainda que temporária, das taxas de juros; o
segundo “pecado” foi o apoio, ainda que tímido, à
democratização dos meios de comunicação (2015,
p. 22).

A sociedade da austeridade, de acordo com Antonio Casimiro


Ferreira, vem a ser o modelo segundo o qual os indivíduos passam a
responder pelos supostos erros do passado. Nesse modelo é

- 22 -
necessário o sacrifício das famílias e das organizações, que devem abrir
mão dos seus direitos sociais em favor do livre mercado, na esperança
de que o medo seja afastado para que ocorra o desenvolvimento
econômico, ainda que seja às custas da coesão social.
Um dos principais reflexos da política de austeridade é a
profunda reformulação do chamado mundo do trabalho, no qual
competitividade, produtividade e redução do custo das empresas
seriam as principais metas. Esse estado de austeridade põe fim aos
direitos fundamentais sociais para os cidadãos. E funciona como um
estado assistencial para os ricos e as grandes empresas, dirigindo – por
meio de crédito, financiamento direto ou isenções fiscais – dinheiro
para manutenção do lucro. A legislação trabalhista, conquista de
movimento sindical no mundo todo, passa, então, a ser um entrave ao
desenvolvimento econômico, um opositor ao mercado, e é
apresentada como inimigo do próprio trabalhador. Ao final, o trabalho
ficaria “livre” para contratar com o patronato, e poderia, assim, obter
sucesso diante das regras do mercado. Como tudo isso só ocorre nos
filmes e nas propagandas, na vida real o que temos é um processo de
exclusão cada vez maior, e de supressão de direitos fundamentais,
afirmando o lucro e realizando uma reprodução do capitalismo cada
vez mais excludente.
Mesmo tendo exemplos como o da Espanha, que aponta a
precariedade do mercado de trabalho como um dos efeitos da política
de austeridade, o Brasil insistiu em copiar um modelo que

- 23 -
comprovadamente aumentou os níveis de pobreza espanhol2, no qual
13,1% dos trabalhadores vivem em lares que não alcançam 60% da
renda média, realidade superada apenas pela Romênia e a Grécia.
Neste contexto, é possível observar o expressivo aumento na procura
por ajuda humanitária3, demonstrando que “o trabalho perdeu a
capacidade de integrar na sociedade que tinha até pouco tempo
atrás”, conforme alerta Lucía Martínez, doutora em Bem-Estar Social
da Universidade Pública de Navarra4. São os novos pobres europeus
criados a partir das mesmas políticas que asfixiaram por décadas a
América Latina; uma pobreza relativa que é composta por famílias com
receitas substancialmente inferiores à média, mas não de pobreza
severa, como acontece nos países subdesenvolvidos, cujos efeitos das
medidas de austeridade são ainda mais perversos. É a realidade
exposta no filme I, Daniel Blake (2016), dirigido por Ken Loach, no qual
a personagem coadjuvante, Katie, é a personificação das vítimas do
modelo de austeridade que ainda mantém seus seguidores na
Inglaterra, o que se coaduna com a afirmação de Paul Krugman,
prêmio Nobel de economia e colunista do The New York Times, cuja

2
Informação disponível na página:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/10/economia/1510331929_272813.html?i
d_externo_rsoc=FB_CC. Acessada em 05/12/2017.
3
A matéria apresentada pelo Jornal El País, edição brasileira, aponta que “antes da
crise, quase todas as solicitações de ajuda vinham de pessoas em situação de
exclusão severa, que costumavam estar a margem do mercado de trabalho”,
segundo Francisco Lorenzo, coordenador de estudos da Cáritas. Vide nota 2.
4
Vide nota 2.

- 24 -
“ideologia austera que dominou as discussões da elite colapsou e que
dificilmente alguém ainda acredita nela, e que há uma grande exceção,
a coalizão que ainda comanda a Inglaterra – e a maioria da mídia
britânica”5, comprovando que a razão para manter-se alinhado à
linguagem econômica da austeridade seria muito mais política do que
baseada em análises econômicas.
Quanto à Previdência, alega-se haver um déficit que impede ou
compromete o pagamento da dívida pública. E quanto à legislação
trabalhista, argumenta-se que há um custo que faz com que o capital
e as empresas fujam do país para onde o custo do trabalho seja menor.
Ou seja, acusam o direito do trabalho gerar menos trabalho. O sistema
protetivo, conquistado ao longo de anos de luta dos trabalhadores,
segundo os neoliberais, vai contra os interesses dos próprios
trabalhadores, pois gera desemprego e a não competição entre os
trabalhadores. O novo sistema coloca os trabalhadores em situação
precária, em competição uns contra os outros, sem laços de
solidariedade sindical (BELLUZZO, 2015; p. 36).
Os elementos determinantes da política econômica de
austeridade são notadamente mais políticos e têm consequências
tanto mais jurídicas que econômicas. De forma clara, a austeridade
ataca diretamente o sistema público de previdência e de benefícios
sociais, bem como a legislação trabalhista, gerando o efeito contrário

5
Vide nota 2.

- 25 -
ao declarado em suas propostas, ou seja, é possível observar um
colapso social ante ao desmonte da estrutura que atende aqueles que
não podem suportar os custos principalmente de saúde e educação. O
resultado é o recrudescimento da desigualdade social e econômica,
como também da divisão social. Uma divisão alimentada por questões
como o racismo e o que Cortina denomina como aporofobia, termo
que passou a ser reconhecido na Espanha como tipo penal (CORTINA,
2017; p. 36 – capítulo 1).
Segundo Zizek, ao discorrer sobre a economia:

E, de forma bastante lógica, na medida em que a


economia seja considerada a esfera da não
ideologia, esse admirável mundo novo de
mercadorização global se considera pós-ideológico
(2011, p. 12).

E arremata:

A razão disso é que vivemos numa época pós-


política de naturalização da economia: em regra, as
decisões políticas são apresentadas como questões
de pura necessidade econômica; quando medidas
de austeridade se impõem, dizem-nos vezes sem
fim que isso é simplesmente o que deve ser feito
(2011, p. 13).

Tudo isso é elaborado pela "boa ciência econômica", que –


desenvolvida nas chamadas grandes universidades – é imposta como
conhecimento verdadeiro a ser reproduzido e aplicado às economias
dos países periféricos. A "boa ciência econômica" é também aplicada

- 26 -
pelas agências de avaliação e classificação econômica e de crédito.
Standard & Poor's, Mood's e Fictch são avaliadores daqueles alunos
que se submetem à cartilha de forma disciplinada, ou são classificados
como indisciplinados; os pupilos dos super bônus. Curiosamente, essas
agências são as mesmas que avaliaram positivamente os
investimentos que causaram a "quebra" mundial do mercado
financeiro, a partir das aplicações imobiliárias nos Estados Unidos, em
2008, fato repetido em 2011. São estas agências que também
recomendam as formas de soluções de transferência de capital para o
setor privado. Elas concluem que o Estado não funciona bem; embora,
ao entrar em colapso, a economia, paradoxalmente, se salva por meio
das finanças públicas.
Em qualquer dos casos, a austeridade se reveste da "única
opção possível", colocada como verdade neutra. Segundo Ladslaw
Daubor:

Uma das coisas mais impressionantes para esta


área vital para o desenvolvimento do país, é o
profundo silêncio não só da mídia, mas também da
academia e dos institutos de pesquisa, sobre o
processo escandaloso de deformação da economia
pelo sistema financeiro. O fato dos grupos
financeiros serem grandes anunciantes na mídia
evidentemente não ajuda na transparência
(BELLUZZO, 2015; p. 53).

Portugal é a prova da existência de alternativas quando, ao


final de 2015, um novo governo socialista assumiu o governo, apoiado

- 27 -
pelos partidos da esquerda radical, e deixou para trás os atrasos
provocados pelas medidas de austeridade. Uma alternativa criada pelo
primeiro ministro de Portugal, Antonio Costa, que decidiu romper com
as políticas de austeridade, que segundo ele, havia levado o país a
retroceder pelo menos três décadas. Ao contrário das fortes críticas,
fundamentadas nas semelhanças com o fracasso da experiência grega,
as decisões tomadas pelo novo governo se mostraram acertadas já no
início de 2016, tanto no aumento nos índices de crescimento quanto
dos investimentos corporativos. O sucesso português se apresenta
como modelo, tanto para a Europa quanto para todos os países que
ainda insistem nas políticas de austeridade, que já comprovaram só
recrudescerem os problemas econômicos e sociais.
Alternativas existem, mas a opção pela austeridade é uma
opção política, com consequências jurídicas sobre os cidadãos sujeitos
à diretriz econômica implementada. Uma opção que não é pelos
interesses da maioria da população brasileira. O resultado termina por
ser a desconstitucionalização do Brasil em seus direitos fundamentais
sociais. Não podemos esquecer que o Brasil das últimas décadas
decidiu pela redução das desigualdades socioeconômicas, mediante
investimentos sociais relevantes. Contudo, a opção pela austeridade é
a opção pela supressão desses investimentos sociais, provocando o
retorno à pobreza de milhões de pessoas.
Márcio Pochmann, ao tratar da inclusão de parcela da
população no consumo no período de 2003 a 2013, afirma:

- 28 -
Para a parcela de menor poder aquisitivo,
beneficiada pela combinação do tripé da
democracia, do crescimento econômico e das
políticas distributivas, a austeridade soa cada vez
mais como abandono da trajetória da mobilidade
social (BELLUZZO, 2015; p. 170).

Diante dessa nova (des)ordem mundial, parece ruir o


pensamento de Habermas sobre o futuro da Europa e uma sociedade
de cidadãos cosmopolitas6 em transição para uma cidadania mundial
(HABERMAS, 2003; p. 52). Os direitos fundamentais aqui
considerados, que são eliminados pelo regime de austeridade, levam
em conta as categorias de direitos legítimos elencadas por Habermas,
que seriam as seguintes em um Estado Democrático de Direito:
(i) Direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração
autônoma do direito, que prevê a maior medida
possível de liberdades subjetivas de ação para cada
um.
(ii) Direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração
autônoma do status de membro de uma associação
de livres parceiros do direito.
(iii) Direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração
autônoma de igual direito de proteção individual,
portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos.
(iv) Direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração
autônoma do direito para uma participação, em

6
Vale acessar o conceito de Direito Cosmopolita desenvolvido por Kant.

- 29 -
igualdade de condições na legislação política.
(2003, p. 169)

Um breve texto de Ulrich Beck, que conclui um de seus livros


sobre a globalização, é, no mínimo, curioso em suas afirmações.
Publicado no Brasil em 1999, o autor faz uma perspectiva profética da
Europa, que, ironicamente, irá chamar de “Brasilianização”:

Os neoliberais venceram, inclusive, a si mesmos. O


Estado Nacional foi reformado. O Estado social está
em ruínas. Entretanto, não impera a desordem. No
lugar das construções de poder e de direito dos
atores do Estado nacional, apareceram várias
unidades de poder conflitantes, que se defendem
e se enfrentam. Entre elas, existem territórios que
jurídica e normativamente não pertencem a
ninguém.
Nas perigosas cidades do interior, empregados
engravatados vivem e trabalham em arranha-céus
vigiados por câmeras de vídeo e governados e
abastecidos por grandes empresas transnacionais
(p.277).

O pesadelo pensado pelo autor alemão não está longe de


acontecer; reflete o que a austeridade almeja. Conclusão próxima das
reflexões de Giorgio Agamben quanto a nossa atualidade sob a égide
de Estado de Exceção Permanente, responsável por perenizar a
suspensão do direito para garantir o próprio direito; afinal, em
períodos de crise, a necessidade de suspensão das garantias para o
exercício do direito acabou por se transformar em regra, acredita o
pensador (AGAMBEN; 2004).

- 30 -
Para Richard Kozul-Wright, responsável pelo Relatório da
UNCTAD7 (Trade and Development Report, 2017: Beyond Austerity –
Towards a Global New Deal), a desigualdade e a instabilidade do
Mercado estão conectadas à hiperglobalização, acarretando
insuficiência de investimento produtivo, precariedade do emprego e
enfraquecimento da proteção social. Richard ressalta duas das
principais tendências das últimas décadas, quais sejam, a explosão do
endividamento e a ascensão das “superelites”, relacionadas à
desregulação dos mercados financeiros, à ampliação das
desigualdades na propriedade de ativos financeiros e ao foco nos
retornos de curto prazo, segundo a matéria veiculada pela ONU Brasil
que apresenta o relatório da UNCTAD.
O documento chancelado pela ONU alerta que a insistência na
política de austeridade e equivocada avaliação do sucesso das políticas
pelo preço dos ativos e pelos níveis de lucro, com setores vitais sob o
domínio do grande negócio, poderão significar o agravamento das
desigualdades. A recomendação da construção de uma economia
inclusiva orienta para um programa mais rigoroso e abrangente, capaz
de enfrentar as assimetrias seja em nível doméstico ou internacional,
considerados o conhecimento tecnológico, poder de mercado e
influência política. Em resposta às afirmações desacreditando

7
Informações disponíveis nas páginas:
http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/tdr2017_en.pdf; e
https://nacoesunidas.org/onu-pede-fim-da-austeridade-fiscal-e-ousadia-para-
reequilibrar-economia-global/; acessadas em 3/12/2017.

- 31 -
alternativas aos modelos de austeridade, o trabalho desenvolvido pela
UNCTAD aposta em um novo pacto global para construir economias
mais inclusivas e solidárias, que, segundo a matéria da ONU Brasil, com
velocidade e escala suficientes combinariam recuperação econômica,
reformas regulatórias e políticas de redistribuição de renda,
retomando os aspectos exitosos do New Deal dos anos 30, tais como
a redistribuição do poder, dando voz a grupos hipossuficientes, de
pouca visibilidade.
Anthony Giddens, outro analista arguto de nossa época,
chegou a propor a chamada terceira via ao compreender a crise de
identidade da pós-modernidade. Mas, desde a escrita de sua obra,
essa terceira via não parece viável. E a Inglaterra acabaria por decidir,
em 2016, sair da Comunidade Europeia.
No Brasil, chama atenção a emenda à Constituição, já
aprovada, que estabelece limite de gastos públicos pelos próximos
vinte anos. Única no mundo, a alteração constitucional para controle
fiscal se mostra desnecessária. A emenda compromete o investimento
futuro na área social, educacional e de saúde. O orçamento nessas
áreas em um país como o Brasil, que possui índices negativos, deveria
ser crescente para atingir patamares correspondentes com o
desempenho da economia, entre as dez maiores do mundo. Uma vez
aplicada a política de austeridade no Brasil, as consequências sociais e
econômicas serão enormes.

- 32 -
Papel central ocupa o Poder Judiciário em tempos de
austeridade. Uma vez que a sociedade civil organizada está vulnerável
pela própria crise econômica e política, e que os partidos políticos
carecem de representatividade, aos cidadãos restam poucas
alternativas no enfrentamento à retirada de direitos. Uma das
principais arenas de lutas jurídico-políticas é o Poder Judiciário. A
retirada de direitos trabalhistas, por exemplo, pode ser feita pelo
Supremo Tribunal Federal, ao manifestar-se pela flexibilização, ao
passo que seu enfrentamento pode ser feito pelos sindicatos e pelo
Ministério Público do Trabalho. Auditores Fiscais da Previdência
podem ter papel determinante na discussão pública sobre gastos
previdenciários, sem contar o incansável trabalho da Defensoria
Pública. Ao final, as decisões tomadas no âmbito do Poder Judiciário e
no campo do direito serão determinantes para a política de
austeridade.
Nesse contexto, a judicialização da Política deixa de ser
eventual e passa a ser a regra, colocando o Poder Judiciário no centro
da arena política, sendo chamado a decidir sobre a constitucionalidade
das reformas de austeridade que retiram direitos sociais como única
resposta possível, através de argumentos construídos pelo mundo da
Economia. Ocorre aquilo que Luhmann chama de corrupção sistêmica,
ao responder questões jurídicas pelo código da economia ou da
política.

- 33 -
Deve-se observar que o atual momento de judicialização da
Política e papel definidor dos Tribunais, em muito difere dos
momentos de ativismo contra majoritário para a efetivação de direitos
fundamentais. Ao contrário, trata-se de protagonismo judicial de
caráter ultraconservador, pois acompanha, apoia e decide pelas
medidas de austeridade, ainda que essas venham a violar direitos
fundamentais. A partir de argumentos pretensamente neutros sobre
a Economia, suspende-se o Estado de Direito, para que seja aplicado o
direito da austeridade. Instaura-se o Estado de Exceção pelo próprio
Poder Judiciário para garantir a efetividade da emenda constitucional
que fere direitos fundamentais assegurados na Constituição.
Por outro lado, o aparato judicial e policial cuida de acomodar
aqueles dos quais são retirados os direitos, ou que nunca os tiveram.
O Estado mínimo em política social para a população em geral e
máximo para o capital é forte para a contenção social, com seu
aparelho repressor policial e penitenciário. Para isso, o Judiciário
torna-se central novamente; por meio dele é realizada a política de
encarceramento da população descartável, refugo humano, segundo
Bauman (BAUMAN, 2005). As modificações no papel das Instituições
Jurídicas, inclusive o Poder Judiciário, demonstram a importância da
pesquisa sobre a forma de manifestação da política de austeridade,
seus desdobramentos e seus efeitos, de curto e de longo prazo.
Aspecto importante da austeridade em relação ao campo do
direito é a modificação da visão que se tinha do papel do direito como

- 34 -
regulador do mercado. O direito era um limitador aos poderes do
mercado, ao mesmo tempo em que era o instrumento de realização
do próprio mercado por meio do contrato. Hoje, o direito do trabalho
e os direitos sociais transformaram-se em mercadoria a ser negociada
pelas empresas multinacionais ao decidirem onde alocarem seus
investimentos, eliminando aqueles países que tenham elevado custo
trabalhista e social.
Não podemos continuar a “esquecer e repetir”, principalmente
aquilo que ocorreu na década de 80 sob a égide do neoliberalismo, e
que Atílio Borón sintetiza tão bem:

A direitização do clima ideológico e político


do Ocidente nos anos 80 trouxe consigo um
duplo movimento: por um lado, uma
supersticiosa exaltação do mercado,
fechando os olhos para os resultados
catastróficos que seu funcionamento
autônomo havia produzido no passado – até
desembarcar na Grande Depressão de 1929
– e absolvendo-o piedosamente de suas
culpas. Por outro, uma recíproca satanização
do Estado como causador de todas as
desgraças e infortúnios que, de diferentes
maneiras, afetaram as sociedades
capitalistas (2010, p. 77).

Segundo o autor argentino, os políticos neoliberais posteriores


à década de 1980, na América Latina, garantiram a privatização de
bens públicos entregando à iniciativa privada setores estratégicos da
economia e o pagamento contínuo da dívida externa. Por fim, pendeu

- 35 -
a balança em favor do mercado em desfavor do Estado, privilegiando
o privado em detrimento do público (2010, p. 79).

Reflexos dos tempos de austeridade: a projeção da era da


Antropofagia Democrática.
Muitos pensadores acreditam que a humanidade vive através
de ciclos. São repetições que apesar de apresentarem diferenças, nos
trazem a impressão do déjà vu, do incômodo em revivermos o
passado, de não avançarmos em direção ao futuro. Estamos sempre
engessados pelos sentidos que damos ao tempo. Um tempo que
temos consumido numa perspectiva equivocada que sempre nos
projeta para aquilo que não foi vivido ou que deixamos de viver, ou
pior, daquilo que não deveríamos reviver. Nessa perspectiva, o
presente provoca uma percepção de urgência, de que tudo deve ser
consumido para vivermos todas as promessas de vida. Um devir
ansioso e neurótico, que se repete e impede novas possibilidades. Não
é importante ser, mas ter. Daí surge a frustração do sujeito, moldado
por uma sociedade que é determinada pela “democracia de mercado”.
Um sujeito atropelado pelo mercado.
A antropofagia democrática é um fenômeno que está
intrinsecamente vinculado à democracia contemporânea, à sociedade
de consumo. Consumimos desde objetos, imagens, informações até o
Outro, num processo de autoconsumo, do consumo de nossas
possibilidades, de nossas próprias expectativas. Uma sociedade que

- 36 -
parece cada vez mais distante da concretude que engessa e aprisiona,
embora esteja se desconstruindo em sua própria fragilidade ao
consumir-se numa espécie de processo antropofágico (TORRACA,
2016; p. 87). Este fenômeno está na identificação de Zygmunt Bauman
(BAUMAN, 2001) de uma sociedade líquida, que caracteriza a “geração
gerúndio” (TORRACA, 2016; p. 69), compreendida em um tempo
urgente e constante, reflexo de uma atualidade que tudo precisa
“estar acontecendo” agora. Este processo antropofágico reflete o
nosso “ódio à democracia”, descrito por Rancière, característico de um
Estado Oligárquico de Direito (RANCIÈRE, 2014); é a expressão da
nossa incapacidade de experimentar o Real (BADIOU, 2017); é como
Agamben (2004) enxerga a representação da biopolítica8; uma
concepção que reúne a ideia de um totalitarismo moderno, descrito
por Hannah Arendt (ARENDT, 1989) projetado na sociedade do
espetáculo tal como Debord a observa (DEBORD, 2003).
A era da antropofagia democrática é o tempo da vigilância que
direciona nossos olhares, da transgressão que acaba por se confundir
com a própria antropofagia daquele que consome e é consumido

8
Nesta oportunidade não abordaremos o conceito de biopolítica, tão pouco
entraremos na polêmica em torno da aproximação de Foucault ao neoliberalismo.
Vale lembrar que o pensador, durante os cursos ministrados no Collège de France
(1971 a 1984), chegou a afirmar que o neoliberalismo seria a arte de governar uma
coerência original, que ele acreditava validaria sua extensão ulterior. Porém,
Foucault evidenciou o paradoxo que constituía a relação entre sociedade e o Estado;
entre a autolimitação característica do liberalismo que a sociedade representa, e que
é responsável por controlar os excessos cometidos pelo governo, e o formato de
intervenção governamental permanente para garantir o próprio sistema liberal.

- 37 -
(TORRACA, 2016; p. 162). É a era da projeção do império do consumo
e do individualismo, de um sujeito completamente absorto em seus
interesses e desejos (2016; p. 181). É a era de uma sociedade
encurralada pela violência do consumo, demonstrando quão próximos
estamos de um colapso em que o excesso e a falta fazem parte da
mesma narrativa, que a igualdade e a desigualdade mostram a sua
impossibilidade de sobrevivência no discurso de uma democracia que
se perde no devir, inviável na própria estrutura do sistema (2016; p.
181) .
A antropofagia democrática é o reflexo desta forma de
integração do indivíduo numa sociedade mediada pelo consumo.
Existir como sujeito depende de sua existência como consumidor,
ainda que isto signifique a aniquilação de sua identidade. O processo
antropofágico expõe o paradoxo da atualidade entre consumir e ser
consumido. Ser identificado como sujeito pode significar sofrer com o
humor do mercado, com suas exigências, suas penalidades. A
austeridade é a linguagem da era da antropofagia democrática que,
pelas características próprias, pelas mudanças sociais, políticas e
jurídicas que dá causa, revela-se como fenômeno complexo, que
merece tratamento especial e atenção dos meios acadêmicos.
O filme I, Daniel Blake projeta a realidade neoliberalista, desde
a burocracia do sistema à transformação de pessoas em cadastros,
números, e como indivíduos que valem pelo que consomem. É a
projeção da era da antropofagia democrática. Nossos lixos revelam

- 38 -
nossos valores. A realidade exposta no filme comprova que a
Inglaterra é o único país que continua a acreditar que austeridade
funciona, ironiza Andreas Whittam Smith9; crença que foi responsável
por possibilitar a consulta pública denominada Brexit, e que empurrou
a Inglaterra para uma encruzilhada que desestabilizou não só a
aparentemente inabalável libra esterlina como toda a sociedade
britânica, refletindo por todo o continente europeu. Muitos
argumentaram o papel da mídia como influenciadora e responsável
por popularizar uma ideologia falaciosa, confirmando que o problema
da desinformação é um fenômeno da própria globalização, terreno
fértil para a atualidade da pós-verdade, alegoria da era da
antropofagia democrática.
Infelizmente, não deixamos os britânicos creem sozinhos.
Acabamos integrando o grupo que naturalizou a desindentificação
provocada pelo neoliberalismo. Uma demonstração de que é a classe
mais pobre que sofre com essa ordem de mercado. O neoliberalismo
é a linguagem da era da antropofagia democrática. Uma era que cobra
seu preço. O preço imposto pela nova ordem: a desordem da
austeridade.
A política de austeridade, que faz parte do modelo neoliberal e
que está intrinsecamente relacionado à sociedade do consumo,

9
Informações disponíveis na página:
http://www.independent.co.uk/voices/austerity-tory-ideology-economics-welfare-
state-squeezed-banks-a7945046.html; acessada em 02/12/2017.

- 39 -
provoca danos irreversíveis aos cidadãos nos países em que é aplicada.
A falta de investimentos em atenção básica de saúde e educação, além
de benefícios sociais mínimos, gera mortes e doenças, como o próprio
filme I, Daniel Blake expõe. Pesquisas recentes comprovam o efeito
devastador da política de austeridade nas sociedades, sobretudo nas
faixas economicamente mais vulneráveis da população. A observação
dos períodos de recessão, da queda da bolsa de 29 ou de políticas de
austeridade recentes, como na Grécia, demonstra que há um aumento
de casos de suicídio, mortes por problemas cardíacos, alcoolismo,
retorno de doenças já exterminadas, tuberculose, HIV e outros.
Porém, em períodos nos quais os países investiram em políticas de
acesso à saúde, alimentos, combate à pobreza, educação, habitação,
saneamento básico, ainda que em crise financeira, como o New Deal
norte americano, foram gerados benefícios diretos à população em
geral e aos menos favorecidos, tendo Portugal como a experiência
exitosa mais recente.
Contudo, o argumento mais importante, do ponto de vista
econômico, é que a principal ameaça à saúde pública não é a recessão,
mas sim a austeridade. É possível resolver problemas de ajustes fiscais
sem comprometer o orçamento da saúde, que gera consequências
ainda mais desastrosas para a economia. As pesquisas demostram
que, a partir de um conceito chamado multiplicador fiscal, os melhores
investimentos são em saúde e educação, e os piores em defesa.

- 40 -
Não podemos desprezar trabalhos como a tese do pesquisador
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Pedro Herculano
Guimarães Ferreira de Souza, intitulada “A desigualdade vista do topo:
a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”,
vencedora do prêmio Capes 2017 de melhor tese de doutorado em
sociologia, orientada pelo Professor Doutor Marcelo Medeiros. É um
trabalho primoroso que conta a própria história da economia brasileira
sob uma perspectiva pouco abordada no Brasil, qual seja, a
concentração de renda. Os dados apontam que houve mais uma
redistribuição entre os 80% mais pobres e não dos mais ricos para os
mais pobres, e não dos mais ricos para os mais pobres”, levando à
conclusão que durante o período pesquisado não houve uma
redistribuição de renda capaz de resolver o problema da pobreza no
Brasil, como também não conseguimos a diminuir a desigualdade
sócio-econômica brasileira e, portanto, os níveis de violência. Se
focássemos na questão da concentração de renda, certamente não
pensaríamos em medidas de austeridade, mas em políticas de
redistribuição de renda, o que notadamente tem melhores resultados,
tanto em níveis econômicos quanto sociais.
Vale ressaltar que a desigualdade pode ser apontada como a
principal causa da corrupção, de acordo com o filósofo político da
Harvard University, Michael J. Sandel. Segundo o Professor, “uma
sociedade em que as pessoas de diferentes origens e modos de vida
não possam compartilhar as mesmas experiências – as mesmas

- 41 -
escolas, opções de moradia, de lazer e outras – tem sua democracia
enfraquecida de muitas formas. Suas leis, por exemplo, podem se
tornar distante da realidade vivida pelas comunidades marginalizadas.
É ruim tanto para os desprivilegiados quanto para os privilegiados”10.
É nesse contexto de “camarotização” do mundo, como define Sandel,
que a corrupção se sedimenta na sociedade. Sandel acerta em seu
diagnóstico, pois sem o amadurecimento democrático, a austeridade
acaba por se transformar no novo “pacto social” brasileiro.
Esse novo “pacto social” brasileiro é a tradução da antropofagia
democrática. Um pacto que acaba refletindo aspectos escamoteados
da sociedade brasileira, tais como o racismo e a aporofobia. O racismo
é a herança viva de anos e anos de escravidão. Uma escravidão que é
revivida nas inúmeras vidas negras, pobres e jovens que se não são
exterminadas, são aniquiladas suas possibilidades no momento em
que nascem ou quando são encarceradas. Nossas prisões são os navios
negreiros da atualidade, abarrotados de vidas, sem condições de vida.
Mas o que seria aporofobia? Aporofobia é um conceito
desenvolvido pela filósofa espanhola, Adela Cortina, que traduz a
rejeição daquele que não tem nada para dar em troca (CORTINA, 2017;
p. 18 - introdução), o pobre! A aporofobia nasce na exclusão, “um
atentado diário, quase invisível” (2017; p. 17 – introdução), que até

10
Trecho da entrevista concedida pelo Professor Michael J. Sandel, disponível na
página: https://istoe.com.br/desigualdade-social-e-base-da-corrupcao/; acessada
em 01/12/2017.

- 42 -
pouco tempo era uma cicatriz sem nome11 (2017; capítulo 1). A
aporofobia é um dos reflexos da era da antropofagia democrática, o
mais perverso deles. O áporos é aquele que sofre a rejeição, a aversão
daqueles que demonstram seu desprezo – e até medo – pelos pobres,
chegando ao ponto de serem vítimas de agressões daquilo que Cortina
identifica como um crime de aporofobia12 (2017). Cortina nos
apresenta um diagnóstico social do que é aporofobia, as possíveis
raízes (2017 – capítulo 4), quais os caminhos para enfrentar a questão,
levando-nos a concluir que, apesar das inúmeras possibilidades da
neurociência apresentadas pela “biomejora moral” (2017 – capítulo 6),
a melhor saída ainda é a educação. Educar para o afeto, para o
reconhecimento recíproco, para a construção de laços e de políticas
que reconheçam que a saída para a violência e para a própria crise
econômica está na erradicação da pobreza, na redução da
desigualdade (2017 – capítulo 7). Conforme salienta a filósofa, a “boa
política antipobreza é aquela que pretende proporcionar às pessoas
possibilidades para que possam sair da pobreza” (2017; p. 35 –
capítulo 7).

11
Cortina enfatiza a importância de se nomear, colocar um nome, um rótulo para
que se possa reconhecer esse comportamento, esse fenômeno social, esse crime
contra o indivíduo (2017; p. 29-32 – capítulo 1).
12
No capítulo 2, Cortina expõe a construção do tipo penal que caracteriza o crime
de aporofobia, salientando a dificuldade em distingui-lo do crime e discurso de ódio
(p. 15-18 – capítulo 2).

- 43 -
Campanhas como aquela veiculada pela página no Facebook
“Alerta Ipanema”13 pregando o fim da caridade para evitar mendigos
em Ipanema, são exemplos que seguem no sentido contrário à
supracitada “boa política antipobreza”. A referida campanha orientava
aos moradores do bairro da zona sul carioca, conhecido pelo seu alto
poder aquisitivo, a não dar esmola, nem mesmo comida, recorrendo a
gritos, se necessário fosse, para impedir tais gestos de caridade, sob a
justificativa que não são pessoas que nasceram em Ipanema e que só
retornariam aos seus bairros de origem mediante ações de
recolhimento. O texto compartilhado nas redes sociais, e apagado pelo
administrador da página, Pedro Fróes, após a repercussão negativa da
tal campanha, fora ilustrado por uma imagem de um homem negro
com uma placa em que dizia estar nas ruas o dia inteiro graças ao
dinheiro de esmolas. Essa campanha é a projeção da aporofobia, sem
ignorar o fato que outras ações comunitárias contra moradores de rua
são comuns na zona sul do Rio de Janeiro, até mesmo a instalação de
chuveiros em marquises de edifícios para “espantar” os mendigos que
ali buscam abrigo e proteção. São esses reflexos da era da
antropofagia democrática expressos numa nova repactuação imposta
pelo Estado. Um Estado enxuto, diminuído em seu poder de
transformar o destino daqueles que deveria representar, coisificando
direitos, reduzindo as possibilidades de nossa democracia.

13
Informações disponíveis na página: https://glo.bo/2h4p12v; acessada em
01/12/2017.

- 44 -
Tal como Cortina preconiza que a educação para a ética é uma
saída para enfrentarmos a questão da aporofobia, precisamos encarar
que medidas de austeridade só recrudescem nossos problemas, basta
acessar o relatório da UNCTAD14 para constatar que estamos optando
por um caminho que não nos levará a soluções, pelo contrário,
tornaremos crônicos problemas como desigualdade, pobreza e até
mesmo a famigerada corrupção, conceito perdido em discursos
falaciosos e construídos com o intuito de obscurecer as questões que
mais importam aos brasileiros, como a violência, a fome, o emprego.
Precisamos atentar para a rota política alternativa e ambiciosa
descrita pelo relatório da UNCTAD para a construção de economias
mais inclusivas e solidárias, até mesmo para que seja possível
destravar a economia mundial, encurralada entre o endividamento
excessivo e a demanda global demasiadamente baixa. O novo relatório
traz a mesma perspectiva dos Projetos de Desenvolvimento do Milênio
(2000) e dos Objetivos de Desenvolvimento sustentável (2015), que
trazem como meta a erradicação da fome, da pobreza extrema e da
injusta desigualdade em suas diversas formas.
O relatório é a própria expressão da moral pensada, escrita e
declarada (CORTINA, 2017; p. 13-14 – capítulo 4), capaz de traduzir o
anseio por um novo pacto, no qual as pessoas tenham prioridade
frente aos lucros; para tanto, há que se colocar um ponto final na

14
Nota 7.

- 45 -
austeridade fiscal, conter o rentismo (rent-seeking) das empresas e
redirecionar as finanças para a criação de empregos, bem como para
o investimento em infraestrutura. O documento afirma
categoricamente que o principal obstáculo para a recuperação das
economias avançadas é a austeridade fiscal, que segundo a matéria
veiculada pela ONU Brasil, ainda é a opção macroeconômica padrão15,
o que acaba influenciando as economias emergentes e refletindo
negativa e drasticamente nas economias mais vulneráveis.
O relatório da UNCTAD recomenda expressamente pelo menos
sete medidas-chave:

1. fim à austeridade por meio de investimento


público suficiente para aprimorar a infraestrutura e
gerar emprego.
2. aumento da receita governamental com o
objetivo de combater a desigualdade de renda.
Segundo o relatório, ainda que sejam promovidas
pequenas mudanças nas taxas marginais incidentes
sobre as camadas mais ricas, pesquisas
demonstram que reduziram os déficits de forma
significativa. Chama a atenção a recomendação de
redução de isenções, brechas fiscais e o abuso
empresarial dos subsídios, o que aumentaria as
receitas e equidade, justamente o contrário do
rumo tomado pelo atual governo brasileiro.

15
A reportagem da ONU Brasil revela que 13 das principais economias do mundo
adotaram políticas de austeridade entre os anos de 2011 e 2015, conforme os dados
da UNCTAD. Os níveis de endividamento continuam a se elevar, sem que haja sinais
reais de crescimento econômico robusto, alerta o relatório, e aliados à instabilidade
política, queda nos preços de commodities, alta na taxa de juros norte-americana e
fortalecimento da moeda, acabam por acender o alerta vermelho. Nota 7.

- 46 -
3. estabelecimento de um novo registro
financeiro global que identificará a propriedade de
ativos financeiros, como primeiro passo para a
taxação equitativa.
4. destaque para o trabalho.
5. controle do capital financeiro através de
regulação apropriada, desde o private banking até
os produtos financeiros considerados “tóxicos”.
6. melhoria da capitalização dos bancos de
desenvolvimento multilaterais e regionais.

7. manutenção do controle sobre o “rentismo”


empresarial, como também, implementar medidas
para combater práticas comerciais restritivas e
atenção à divulgação de informações. Recomenda-
se um observatório da competição global que
ficaria responsável pelo monitoramento das
tendências e padrões da concentração do mercado
mundial, além de reunir informação sobre as
diversas diretrizes regulatórias, o que seria a
primeva iniciativa para a criação de normas e
políticas globais coordenadas de melhores práticas
e políticas internacionais.

São medidas que se apresentam como saída para as


encruzilhadas dispostas pela antropofagia democrática. São propostas
para encerrarmos com o processo de “esquecer e repetir” que nos faz
consumir nossas possibilidades democráticas.

- 47 -
Referências

ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de janeiro:


Jorge Zahar Editor, 1998.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer, II. Tradução de


Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2ª edição, 2004.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto


Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 10ª edição, 1989.

BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Tradução Fernando Scheib.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2005.

BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello e BASTOS, Pedro Paulo Zahluth.


(orgs.) Austeridade Para Quem? São Paulo: Carta Maior, 2015.

BORON, Atílio A. O socialismo no século XXI: há vida para o


neoliberalismo? São Paulo: Expressão. Popular, 2010.

CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre. Barcelona: Espasa


Libros; edição eletrônica (Kobo – Livraria Cultura), 2017.

DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Download do arquivo


http://www.fichier-pdf.fr/2012/10/20/societe-spectacle2/societe-
spectacle2.pdf.

DE SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira. A desigualdade vista


do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013.
Tese de doutorado – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
de Souza, sob a orientação do Professor Doutor Marcelo Medeiros.
Publicado em 2016.

- 48 -
HABERMAS. A Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003.

RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Tradução de Mariana


Echalar. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 1ª edição, 2014.

TORRACA, Lia B. T. Democracia Encurralada: os reflexos das


manifestações de 2013 no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris
Editora, 2016.

ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo,


2011

______. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo:


Boitempo, 2011.

______. Vous Avez Dit Totalitarisme? Cinq interventions sur les


(mês)usages d´une notion. Paris: Éditions Amsterdam, 2007.

______. Violence. New York: Picador, 2008.

Referências Digitais

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/10/economia/1510331929_
272813.html?id_externo_rsoc=FB_CC. Acessada em 05/12/2017.

http://unctad.org/en/PublicationsLibrary/tdr2017_en.pdf. Acessada
em 3/12/2017.

https://nacoesunidas.org/onu-pede-fim-da-austeridade-fiscal-e-
ousadia-para-reequilibrar-economia-global/. Acessada em 3/12/2017.

http://www.independent.co.uk/voices/austerity-tory-ideology-
economics-welfare-state-squeezed-banks-a7945046.html. Acessada
em 02/12/2017.

- 49 -
https://istoe.com.br/desigualdade-social-e-base-da-corrupcao/.
Acessada em 01/12/2017.

https://glo.bo/2h4p12v. Acessada em 01/12/2017.

- 50 -
A Importância do Direito à Informação e sua
Desvirtuação no Contexto Atual Brasileiro

Madson Anderson Corrêa Matos do Amaral

Introdução
Inicialmente, partindo da análise dos mais importantes legados
internacionais, podemos afirmar que o direito à informação trata-se
essencialmente de um pressuposto para uma nova consciência sobre
a importância da democracia participativa, como verificado nos
seguintes textos legais: Bill of Rights de 1779 e Déclaration de Droits
de l’Homme de 1789, que apesar de se tratarem de constituições
nacionais foram pioneiras na matéria; Declaração Universal dos
Direitos Humanos; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos;
Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades Fundamentais e a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
A informação é considerada um direito básico do ser humano.
Obter informações verdadeiras, é um direito de liberdade, devendo
ser garantindo a todos os cidadãos em um Estado Democrático de
Direito.
Segundo Bruno Acioli (2006, p.28) a liberdade de expressão, a
liberdade de imprensa, o direito à informação e o sigilo de fonte

- 51 -
encontram-se umbilicalmente ligados, “não havendo que se falar em
sigilo de fonte quando este não tiver por finalidade tornar seguro o
direito à informação e à opinião, bem como a liberdade de escrita e a
liberdade de informação jornalística”. Uma vez que, a
constitucionalização de tais direitos “representa a cristalização de
revoluções e guerras que agitaram a Europa e os Estados Unidos no
período compreendido entre os séculos XVII e XX, em prol da
democracia e contra o absolutismo e o totalitarismo”.
Verifica-se, portanto, que com o decorrer dos séculos, tais
direitos (liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o direito à
informação e o sigilo de fonte) foram “incorporando novas dimensões,
deixando de ser meros direitos individuais oponíveis contra o arbítrio
estatal (primeira geração) para se transformarem em direitos sociais
ou garantias institucionais (segunda geração) e, logo em seguida, em
expressão da universalidade do gênero humano (terceira geração)
(ACIOLI, 2006, p.28).
O Direito à informação (direito de procurar, receber e difundir
informação verdadeira) para Paulo Bonavides (2012, p.525) trata de
um direito de quarta geração, assim como o direito ao pluralismo e o
direito à democracia, segundo o autor os direitos de quarta geração
“depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua
dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo
inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”.

- 52 -
O direito à informação e a participação, constitui-se num
direito fundamental, porquanto pressuposto de todos os demais. São
considerados elementos básicos para uma democracia, uma vez que,
se trata de um importante mecanismo de controle da população para
com a conduta dos governantes. Em um Estado considerado
democrático, “publicidade, é regra básica do poder, e o segredo, a
exceção, o que significa que é extremamente limitado o espaço dos
segredos de Estado” (LAFER apud MEDAUAR, 2013, p. 144).
Sabemos que existem exceções para a publicidade (previstos
legalmente), mas isto não poderia e nem deveria ser utilizada como
meio para cobrir atos inaceitáveis ou mesmo criar obstáculos que
impeçam o direito de exercer a informação e a participação, devendo
tais obstáculos injustificados serem veementemente combatidos.
A pesquisa objetiva analisar o ordenamento jurídico brasileiro,
com a intenção de identificar se o Direito à informação e a
participação, estão sendo utilizados ou não de forma correta pela
Administração pública, para salvaguardar os interesses da sociedade.
Temos por escopo ainda analisar o tratamento legal dado ao
direito à informação nas Convenções Internacionais, com o intuito de
corroborar da importância de tal prerrogativa para os demais direitos
e de se alcançar a justiça e a democracia.

- 53 -
Primeiros Textos Legais
A Carta dos Direitos dos Estados Unidos ou Declaração dos
Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos (United States Bill of Rights),
proposto por James Madison, foi aprovada em 1789 e ratificada em
1791, as primeiras dez emendas da Constituição dos Estados Unidos,
consagrou direitos que, como dito, constavam nas constituições dos
diversos Estados, dentre eles a liberdade de expressão, de imprensa,
religião, reunião pacífica e os direitos ao devido processo legal (direito
de peticionar) e a justiça. Positivados na Constituição dos Estados
Unidos, tais direitos ganham status de direitos fundamentais
constitucionais, com supremacia normativa.
Sobre os auspícios da Revolução Francesa, considerado um
marco histórico e de grande relevância para a conquista e afirmação
dos direitos humanos fundamentais, foi aprovada a Declaração dos
Direitos do Homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789 (Déclaration
de Droits de l’Homme de 1789), dada ela “pretensão e caráter
universalista”. Para Ferreira (1997, p.123) a Declaração Francesa
refirma e reforça essa liberdade e vai além da liberdade do
pensamento, reconhecendo e declarando direitos correspondentes as
necessidades que a cada dia mais se faziam sentir e cuja positivação
jurídica já era reclamada.
De acordo com o artigo 11 da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (Déclaration de Droits de l’Homme de 1789), a
liberdade de comunicação de pensamento e opinião, são considerados

- 54 -
uns dos bens mais valiosos que um ser humano pode ter. Ademais o
artigo 10 desta mesma Declaração afirma ainda que ninguém pode ser
molestado por suas opiniões.
Verifica-se, portanto, que foram assegurados na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration de Droits de
l’Homme de 1789) dois pressupostos dos direitos à informação e à
comunicação; que é o direito de liberdade de consciência e de crença
e o direito à liberdade de manifestação de opiniões, sendo este último
entendido como a liberdade de pensamento para todo e qualquer
indivíduo de expressar seu pensamento (liberdade de expressão), da
qual decorrem outros direitos como “a liberdade à atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação (informação)”
(FERREIRA, 1997, p.124).
Em relação a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948, na qual foi redigida sob o impacto das atrocidades ocorridas na
Segunda Guerra Mundial, foi reconhecida a vigência dos direitos
humanos, independentemente de sua declaração em constituições.
Para Comparato (2013, p.239) “os direitos definidos na
Declaração de 1948 correspondem integralmente, ao que o costume
e os princípios jurídicos internacionais reconhecem, hoje como
normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens)”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
consolida a assertiva de uma nova visão ética universal, consagrando

- 55 -
valores universais a serem seguidos, pois não consagra apenas direitos
civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais,
além do direito ao trabalho e à educação (PIOVESAN, 2014, p.51-52).
Ainda de acordo com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 em seu artigo 19, dispõe que: “toda pessoa tem
direito à liberdade de opinião e expressão; este inclui a liberdade de,
sem interferências, ter opiniões e de procurar receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios independentemente de
fronteiras”, verifica-se, portanto, o direito à informação, como
exercício de liberdade.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, foi adotado
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966.
No entanto, o Pacto só entrou em vigor em 23 de março de 1976,
consolidando, no âmbito internacional, o reconhecimento de uma
série de direitos, dentre eles, o direito de liberdade de opinião e
informação, conforme previsto no art. 19, com ressalva para algumas
restrições: “para assegurar o respeito dos direitos e da reputação das
demais pessoas e para proteger a segurança nacional, a ordem, a
saúde ou a moral pública”.
Quanto ao direito à informação na Convenção Europeia para a
Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais,
adotado pelo Conselho da Europa, em 4 de novembro de 1950 e que
entrou em vigor em 1953, tal direito encontra-se respaldado no artigo
10 da Convenção, afirmando que toda pessoa tem direito à liberdade

- 56 -
de expressão, mas só que o exercício destas liberdades “acarretam
deveres e responsabilidades”, na qual poderá ser submetido a certas
“formalidades, condições, restrições ou sanções”.
Já em relação a Convenção Americana de Direitos Humanos,
também conhecida por Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de
novembro de 1969 e que entrou em vigor em 18 de julho de1978, traz
em seu artigo 13 que toda pessoa tem direito à liberdade de
pensamento e de expressão, sendo que este direito “inclui a liberdade
de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer
natureza”, não podendo estar sujeito a censura desde que seja
garantido o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas e
a proteção da segurança nacional, da ordem, saúde e moral pública.
O Pacto de San José da Costa Rica, de acordo com Machado
(2006, p.38) não assegura somente o direito à informação, como
também institui um sistema de informações, que garante que tais
direitos sejam efetivamente respeitados e garantidos, através de
relatórios que os Estados – Partes tem que apresentar para
demonstrar que os direitos reconhecidos no Pacto estejam sendo
cumpridos.

Direito à informação e sua desvirtuação


É dever da Administração Pública manter transparência, uma
vez que “não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no
qual o poder reside no povo, ocultamento aos administrados dos

- 57 -
assuntos que a todos interessam” (art.1º, parágrafo único da CF).
Contudo, na esfera administrativa o sigilo só se admite, a teor do art.
5º, XXXIII, precitado, quando “imprescindível à segurança da
Sociedade e do Estado” (MELLO, 2007, p.110-111).
Verifica-se, portanto, que na Constituição Federal não se fala
somente em segurança do Estado, mas sim, da sociedade e do Estado.
A sociedade é colocada em primeiro lugar, de forma a indicar que as
informações cujo sigilo é previsto, deverão ser aquelas que a
sociedade por seus representantes legalmente constituídos, vierem a
definir como necessárias tanto à soberania e à integridade do Estado,
como ao bem-estar, ao respeito e à paz dos cidadãos, não aquelas
ditadas por razões de segurança nacional, esta identificada
especialmente como segurança do regime e personificada em forças
de segurança (FERREIRA, 1997, p.244).
A respeito da relatividade dos direitos fundamentais Alexandre
de Moraes (2006, p.28) afirma que “os direitos e garantias
fundamentais consagrados na Constituição Federal, portanto, não são
ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos
igualmente consagrados pela Carta Magna” (princípio da relatividade
ou convivência das liberdades públicas).
Sobre a matéria Pinho (2006, p.30) destaca que:

É assegurado a todos o acesso à informação e


resguardado o sigilo da fonte, quando necessário
ao exercício profissional, dispõe o art. 5º, inc. XVI,

- 58 -
da Constituição da República. Este é um dos mais
importantes direitos de uma sociedade
democrática: o direito à informação. Visando
garantir o interesse público e o direito de o cidadão
ser devidamente informado, a Constituição
resguarda a liberdade de informação jornalística
(art. 220, §1º, CF).
O direito à informação é uma garantia da própria
sociedade e tem consequências importantíssima
tanto em relação aos proprietários dos meios de
comunicação como aos profissionais que neles
trabalham, os jornalistas.
Ressaltam-se a exigência de pluralismo e de
diversidade da veiculação da informação, o que se
garante com vedação a qualquer tipo de monopólio
nos meios de comunicação, e a garantia aos
jornalistas do sigilo da fonte da informação,
quando necessário ao exercício profissional (Grifo
do autor).

Para Ernst Wolfgang Böckenförde (apud PINHO, 2006, p.30)


“com uma informação bloqueada ou sem opinião pública, não pode
existir democracia; o que poderá haver, quando muito, será uma
fachada que oculta outros conteúdos políticos”. Desta forma o sigilo
da fonte não deve ser utilizado para a proteção de crimes ou de
criminosos, mas somente em circunstâncias especiais em que há
interesses maiores da sociedade.
Apesar de ser obrigatória a divulgação de atos, contratos e
outros instrumentos celebrados pela Administração Pública direta,
indireta ou fundacional, a essa regra escapam os atos e atividades
relacionados com a segurança nacional, os ligados a certas
investigações, a exemplo dos processos disciplinares, de determinados
- 59 -
inquéritos policiais (art.20 do CPP) e dos pedidos de retificação de
dados (art.5ª, LXXII, b, da CF), desde que seja declarada
justificadamente e previamente pela autoridade competente
(GASPARINI, 1995, p.7-8).
Verifica-se, portanto, que a regra é que todo ato administrativo
deva ser publicado mas que nos casos em que envolver casos de
segurança nacional, investigações policiais ou interesse superior da
Administração, o sigilo se faz necessário, mas desde que seja declarada
nos termos da Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991 (Dispõe sobre a
política nacional de arquivos públicos e privados), da Lei 12.527/2011
(Regula o acesso às informações), e pelo Decreto nº 7.845, de 14 de
novembro de 2012 (Regulamenta procedimentos para
credenciamento de segurança e tratamento de informação
classificada em qualquer grau de sigilo, e dispõe sobre o Núcleo de
Segurança e Credenciamento) (MEIRELLES, 2012, p.98).
Importante salientar, que os órgãos e entidades públicas
deverão responder diretamente pelos danos que causarem em
decorrência da divulgação não autorizada ou da utilização indevida de
informações pessoais (pessoa física ou entidade privada), “cabendo a
apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou culpa”,
uma vez verificado que houve tratamento indevido da informação
considerada sigilosa ou pessoal (MEIRELLES, 2012, p.101).
Ainda acerca da matéria a Lei 9.784/99 (Regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta),

- 60 -
prevê o atendimento ao princípio da publicidade, afirmando ser
obrigatória a “divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvados
as hipóteses de sigilo previstas na Constituição” (art.2º, parágrafo
único). Bem como a Lei 12.528/2011 que criou a Comissão Nacional da
Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência, com a finalidade de
examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas no período fixado no art.8º do ADCT, assegurando-lhe
“requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades
do Poder Público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo,
que não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros,
cabendo a seus membros resguardar seu sigilo” (MEIRELLES, 2012,
p.98).
Um apontamento, ainda feito por Meirelles (2012, p.98), se dá
a classificação indevida do sigilo, ao afirmar que:

Lamentavelmente, por vício burocrático, sem


apoio em lei e contra a índole dos negócios
estatais, os atos e contratos administrativos vêm
sendo ocultados dos interessados e do povo em
geral, sob o falso argumento de que são “sigilosos”,
quando na realidade, são públicos e devem ser
divulgados e mostrados a qualquer pessoa que
deseje conhecê-los e obter certidão.

Deter informação é questão de sobrevivência tanto individual,


quanto social e política. Política principalmente, já que “política é
poder, e o poder, ontem como hoje, depende do acesso à informação,

- 61 -
do controle do seu processamento e do conhecimento de como aplicá-
lo na tomada de decisões” (FERREIRA, 1997, p.80).
Destarte, fundamentado no princípio da publicidade e no
direito fundamental de obter informações da Administração Pública, o
sigilo deverá se dar não somente quando se tratar de segurança da
sociedade e do Estado, mas também quando se tratar da preservação
da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem das pessoas
declaradas invioláveis pela Constituição, no inciso X, art. 5º da CF, em
tais casos “o sigilo há de predominar sobre a publicidade, para
preservação desses direitos, declarados invioláveis” (MEDAUAR, 2013,
p.144).
Outra ressalva, feita por Odete Medauar (2013, p.144), quanto
ao direito fundamental de obter informações da Administração
Pública ela discorre que no caso do sigilo, este se dará não somente
quando se tratar de segurança da sociedade e do Estado, mas também
quando se tratar da preservação da intimidade, da vida privada, da
honra, da imagem das pessoas declaradas invioláveis pela
Constituição, no inciso X, art. 5º da CF, em tais casos “o sigilo há de
predominar sobre a publicidade, para preservação desses direitos,
declarados invioláveis”. A autora exemplifica ainda algumas hipóteses
como no caso de: “sigilo dos dados de prontuários médicos nos
ambulatórios e hospitais públicos; sigilo de dados de processos
disciplinares (para quem não for sujeito do processo) antes da decisão

- 62 -
final; sigilo de dados de processos administrativos por ilícitos fiscais
(para quem não for sujeito), antes da decisão final, etc”.
Há ainda outras hipóteses previstos no art.5º da CF/88 e nos
art.93 e 53 da CF em que é permitido o sigilo pela Administração
pública conforme exemplifica Alaine Santos (2014):

No inciso LX, do mesmo artigo, o sigilo da


publicidade dos atos processuais, quando a
intimidade ou o interesse social o exigirem.
No inciso XIV, ainda do artigo 5º, da Constituição
Federal, em que é assegurado a todos o acesso a
informação, salvo o sigilo da fonte, quando
necessário ao exercício profissional.
Por fim, o inciso XXXVIII, letra b, do artigo 5º, onde
afirma que é assegurado o sigilo das votações no
tribunal do júri.
O artigo 93, inciso IX, parte final, da Constituição
Federal, autoriza também o sigilo no Poder
Judiciário como exceção, em determinados atos, às
partes e aos seus advogados, se o interesse público
o exigir.
Pode-se incluir no rol do sigilo trazido pela
Constituição Federal o artigo 53, § 6º, em que dita
que os deputados e senadores não são obrigados,
em razão do mandato, a testemunhar sobre
informações recebidas ou prestadas, nem sobre as
pessoas que lhe confiaram ou receberam
informações.

Ainda sobre a Lei de Acesso as Informações, a mesma


estabelece que é dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de
informações sigilosas produzidas por seus órgãos e entidades,
assegurando a sua proteção (arts. 25 e 26). Assim, ela disciplina as

- 63 -
medidas que devem ser tomadas para garantir a proteção e o controle
das informações e documentos. Os procedimentos e providências, a
serem seguidos, para a classificação, tratamento, processamento e
tramitação da informação e documentos; foram regulamentados
através do Decreto nº 7.724/2012 e do Decreto nº 7.845/2012
(TEIXEIRA, 2014).
Para Rodrigo Rebello Pinho (2006, p.31) “em uma ordem
democrática, a função persecutória e punitiva é do Estado,
concretizando os valores da segurança, paz social e consecução da
justiça”. Para o autor a sociedade brasileira pretendeu, ao instituir o
sigilo (na Constituição Federal de 1988), não ser privada de
informações, especialmente as que digam respeito a corrupção em
órgãos estatais. Mas ao contrário, “assegurou a plena liberdade de
informação e investiu ao Ministério Público de poderes e meios
investigatórios para combater e punir atos criminosos e de
improbidade administrativa”, como nunca havia sido feita
anteriormente.
Contudo, nos dias atuais verificamos nos uma desvirtuação de
direitos e garantias fundamentais, fruto de um momento de
austeridade vivenciada pela sociedade, que a cada dia é afrontada por
graves violações de cidadania.
O direito à informação e a participação são direitos básicos de
um Estado Democrático de Direito. Como bem assevera Pinho (2006,
p.31) onde nas sociedades democráticas, “em razão da importância do

- 64 -
direito à informação, o sigilo da fonte jornalística, como instrumento
essencial à defesa dos direitos da cidadania, deve ser plenamente
preservado” sendo, portanto, considerado “temerário reflexões sobre
uma possível “relativização” de direitos fundamentais” sem a
participação ampla da sociedade.

Conclusão
Podemos verificar que o nosso ordenamento jurídico possui
importantes instrumentos que preveem a publicidade plena da
informação, para a participação da população, salvo as exceções em
que o sigilo se faz obrigatório.
Contudo, as exceções previstas legalmente, vem sendo por
vezes sendo utilizadas de má fé para a prática de atos considerados
ilícitos. Gerando um prejuízo não somente ao Estado, mas também a
população que tem seus direitos fundamentais a informação e a
participação violados.
Nos últimos tempos, podemos perceber que a população está
mais atenta para a tal prática ilícita dos administradores para com seus
administrados. Cabe somente agora a população a continuar a lutar
pelos direitos, combatendo a não participação e a não transparência
da informação na Administração Pública Brasileira, já que tais direitos,
são eficazes no combate a corrupção.
O poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

- 65 -
Sendo assim tais empecilhos para serem superados necessitam do
envolvimento generalizado da sociedade, com a elaboração de leis
próprias e , aumentando e melhorando o controle público (na qual os
órgãos de controle da Administração Pública deveriam cobrar dos
outros departamentos estatais a prestação permanente de contas e
da aplicação de recursos), aumentar a transparência no poder público,
agilizar a justiça, dar mais transparência ao financiamento de
campanhas eleitorais e principalmente deixar o “jeitinho brasileiro” de
lado e estimular a participação (ainda mais) do brasileiro na política.
Portanto, fundamentado no princípio da publicidade e no
direito à participação conclui-se que tais dispositivos deveriam ser
compreendidos pelo Poder Público, muito mais além do dever de
publicar e informar dos atos, mas sim numa forma também de garantir
a cidadania.

- 66 -
Referências

ACIOLI, Bruno Caiado. O princípio do sigilo de fonte e suas limitações.


Revista Jurídica Consulex, Rio de Janeiro, n. 217, p. 28-29, 31 jan.,
2006.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocomp
ilado.htm . Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. Lei nº 8.159 de 8 de janeiro de 1991. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm . Acesso em 3
nov. 2017.

BRASIL. Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2011/lei/l12527.htm . Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. Decreto nº 7.845 de 14 de novembro de 2012. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/decreto/d7845.htm . Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. Decreto nº 7724 de 16 de maio de 2012. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/decreto/d7724.htm. Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. Decreto – Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de


Processo Penal – CPP). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm
Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. Lei nº 9.784 de 29 de janeiro de 1999. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm . Acesso em 3
nov. 2017.

- 67 -
BRASIL. Lei nº 12.528 de 18 de novembro de 2011. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2011/lei/l12528.htm . Acesso em 3 nov. 2017.

BRASIL. ADCT de 1988. Disponível em:


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/conadc/1988/constituicao.adc
t-1988-5-outubro-1988-322234-publicacaooriginal-1-pl.htm l. Acesso
em 3 nov. 2017.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos


Humanos. - 8ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2013.

CONSELHO DA EUROPA. Convenção Europeia para a Proteção dos


Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais. Disponível em:
http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf. Acesso
em 4 maio 2017.

EUA. Bill of Rights de 1779. Disponível em:


https://www.billofrightsinstitute.org/founding-documents/bill-of-
rights/. Acesso em 3 nov. 2017.

FERREIRA, Aluízio. Direito à Informação, Direito à Comunicação.


Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira. – São Paulo: Celso
Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997.

FRANÇA. Declaração de direitos do homem de 1789 (Déclaration de


Droits de l’Homme de 1789). Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentosanterior
es-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-
Na%C3%A7%C3%B5esat%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-
homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em 6 maio 2017.

GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. – 4. ed. rev. e ampl. –


São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

LAFER, CELSO. A Ruptura Totalitária e a Reconstrução dos Direitos


Humanos. – São Paulo: Editora Rumo, 1988. (Professor titular do

- 68 -
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo)

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à Informação e Meio


Ambiente. – São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

MARIANO, Max Vinícius. Informação Ambiental na Órbita do Direito


Internacional. Disponível em: http://www.artigos.com/artigos-
academicos/6420-informacaoambiental-na-orbita-do-direito-
internacional . Acesso em 27 de março de 2016.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. - 17. ed. Ver.,


atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, JOSÉ


Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. – 39. ed. – São Paulo:
Editora Malheiros, 2013.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. –


24. ed. ver. e atual. – São Paulo: Editora Malheiros, 2007.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria


geral. - 9ª ed. - São Paulo: Atlas, 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito. Direito Constitucional. 18ª ed. – São


Paulo: Atlas, 2006.

ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Disponível em:


http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Sistema-
Global.Declara%C3%A7%C3%B5ese-Tratados-Internacionais-de-
Prote%C3%A7%C3%A3o/protocolo-facultativo-referente-aopacto-
internacional-sobre-os-direitos-civis-e-politicos.html. Acesso em 4
maio 2017.

ONU. Declaração Universal de Direitos Humanos. Disponível em:


http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3

- 69 -
%A3o-Universal-dosDireitos-Humanos/declaracao-universal-dos-
direitos-humanos.htm . Acesso em 4 maio 2017.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana


sobre Direitos Humanos. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_american
a.htm. Acesso em 5 maio 2017.

PINHO, Rodrigo César Rebello. O respeito ao sigilo da fonte


jornalística. Revista Jurídica Consulex, Rio de Janeiro, n. 217, p. 28-29,
31 jan., 2006.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. - 7ª ed. - São Paulo:


Saraiva, 2014.

SANTOS, ALAINE TAVARES. Importância do princípio da publicidade


para a Administração Pública. Disponível em:
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,importancia-do-
principio-da-publicidade-para-a-administracao-publica,48381.htm l.
Acesso em 15 de maio de 2016.

TEIXEIRA, Danielle Felix (Procuradora Federal em Brasília-DF). A


publicidade dos atos administrativos e o sigilo documental no âmbito
da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL. Disponível em:
http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-publicidade-dos-atos-
administrativos-e-o-sigilo-documental-no-ambito-da-agencia-
nacional-de-telecomunicacoes,51895.htm l. Acesso em 15 de maio de
2016.

- 70 -
O direito à memória X anistia: as cicatrizes de uma
Democracia aprisionada nos porões da Ditadura

Gabriela Soares Balestero16

Introdução
O período da ditadura militar compreendeu 1964 a 1985 sendo
marcado por mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais,
juntamente com uma intensa repressão político-social aos opositores
do regime militar. Temos a sensação fria, gélida, calculista, de sermos
um país “sem memória”, visto que se sustentou baseado no
aniquilamento e na exclusão da memória dos excluídos (trabalhadores
sem-terra, povos indígenas, negros, estudantes...) e a incorporação de
uma memória oficializada pelas elites.
A memória do período ditatorial brasileiro merece ser
resgatada e nesse sentido nos questionamos: Juridicamente a Lei da
Anistia serve para perdoar os crimes cometidos contra humanidade?
Ou seja, deve-se anistiar agentes públicos torturadores sem puni-los
pelos crimes cometidos?17 O que foi e quais as contribuições da
Comissão da Verdade? Eis o objetivo do presente estudo.

16
Gabriela Soares Balestero. Doutoranda em História Social pela Universidade
Federal de Uberlândia. Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidad de
Buenos Aires. Advogada. Tutora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Endereço eletrônico - gabybalestero@yahoo.com.br.
17
Em relação a tal temática, uma ação judicial constitucional denominada Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 foi proposta pela Ordem dos
Advogados do Brasil no Supremo Tribunal Federal com a finalidade de questionar a

- 71 -
Da memória historicizada da Ditadura
A memória é um recurso de recente revalorização por parte de
grupos sociais e de políticos. Falar sobre a memória, na sociedade
atual, representa colocar em evidência problemáticas profundas que
tocam a vida social e, trazer à luz dos nossos dias velhos dilemas
necessários para a construção do conhecimento histórico
estabelecendo ao mesmo tempo uma crítica à celebração do passado.
Segundo Halbwachs a memória coletiva possui um atributo de
atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda
do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o
presente e o passado, ao contrário da história, que constitui um
processo interessado, político e, portanto, manipulador. Assim, a

validade do artigo primeiro da Lei da Anistia (6.683/79), que em sua redação


considera conexos os crimes e perdoados os crimes de qualquer natureza
relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política no período de
2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Por intermédio dessa ação a Ordem
dos Advogados do Brasil solicitou ao Supremo Tribunal Federal uma interpretação
mais adequada do artigo primeiro desta lei de maneira que a anistia concedida aos
autores de crimes políticos e seus conexos (de qualquer natureza) não se estenda
aos crimes comuns praticados por agentes públicos acusados de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e
atentado violento ao pudor contra opositores. Nesse sentido não caberia a extensão
da anistia de natureza política aos agentes do Estado tendo em vista que os agentes
policiais e militares na realidade teriam cometido crimes comuns e não políticos, ou
seja, que seriam contrários a segurança e a ordem política e social, que foram
cometidos por aqueles que eram opositores ao regime. Porém, lamentavelmente no
dia 28 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal votou por sete votos a dois pela
improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento n. 153
contra a revogação da Lei da Anistia para os agentes públicos acusados de cometer
crimes comuns durante a ditadura militar.

- 72 -
memória coletiva é sobretudo oral e afetiva, sendo pulverizada por
diversas e múltiplas narrativa e a história é eminentemente uma
atividade oriunda da escrita que visa organizar e unificar de maneira
sistemática incluindo lacunas e diferenças.
Consoante Pierre Nora “a memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às
continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A
memória é um absoluto e a história só conhece o relativo”. Consoante
Maurice Halbwachs em sua obra “Memória Coletiva”18 revolucionou o
pensamento de sua época ao afirmar que o fenômeno da recordação
e da localização das lembranças não pode ser percebido e analisado se
não forem levados em consideração os contextos sociais que servem
de base para a reconstrução da memória. Esta última pode ser
interpretada como as reminiscências do passado que reaparecem no
presente, no pensamento de cada indivíduo, ou como a nossa
capacidade de armazenar certa quantidade de informações
concernentes a fatos que foram vividos no passado. Uma vez que a
lembrança necessita de uma comunidade afetiva, construída graças ao
nosso convívio social com outras pessoas, para tomar consistência,
podemos então basear nossa impressão nas lembranças de outros
indivíduos que compõem o mesmo grupo no qual estamos inseridos

18
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013.

- 73 -
para reforçar, enfraquecer, ou mesmo completar a nossa própria
percepção dos acontecimentos.
Para Maurice Halbwachs, por mais que tenhamos a percepção
de ter vivenciado eventos e contemplado abjetos que somente nós
vimos, ainda assim nossas lembranças permanecem coletivas e podem
ser evocadas por outros. Isso porque, como afirma o autor, jamais
estamos sós, mesmo quando os outros não estejam fisicamente
presentes, pois os carregamos conosco em pensamento. “Para
confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários
testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos
presentes sob uma forma material e sensível”19.
No regime militar, o autoritarismo tomou corpo quando o
quando o governo brasileiro, que parecia temer a radicalização dos
movimentos de oposição, incitando uma possível “ameaça
comunista”, criou de ofício o Ato Institucional nº 5 (o AI-5 de 13 de
Dezembro de 1968), dando início ao período que ficou conhecido
como “os anos de chumbo” (Ventura, 1988), que merecem ser
lembrados pela população através da “memória historicizada”, ou
seja, de uma memória objeto da história20.

19
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013, p. 31.
20
SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas
atuais” in BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento.
Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. p.41.

- 74 -
A memória é capaz de reviver o passado e fazê-lo surgir de um
“não lugar” para fecundar o presente em uma memória coletiva onde
ele não é mais articulado e nem representado. Assim, a memória é
uma reconstrução do passado21.
Podemos dizer singelamente que a memória é também um
direito de toda sociedade, e assim como à obtenção da veracidade dos
fatos ocorridos na ditadura militar, são elementos essenciais à justiça
de transição, com pretensões de permitir a realização de justiça
histórica impondo-se a satisfação de obrigações pelo Estado, o qual
deve possibilitar aos indivíduos não somente o conhecimento
documental retratando fatos passados, mas também deve sim,
permitir e promover a atribuição de responsabilidades pelas violações
de direitos humanos que tenham sido verificadas durante período
autoritário. A aplicabilidade da lei da anistia à torturadores representa
um retrocesso democrático e uma tentativa de apagamento da
“memória historicizada” do período ditatorial brasileiro, pois acoberta
a impunidade e “legaliza” e “oficializa” o esquecimento.

Lei da anistia e comissão da verdade


Delineamentos sobre o julgamento da ADPF 153
Sobre essa questão, a Ordem dos Advogados do Brasil
ingressou junto ao Supremo Tribunal Federal com a Arguição de

21
SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória – reconstrução do passado:
memória coletiva e história. História. São Paulo: 20: 93-108, 2001, p. 95.

- 75 -
Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 em 21 de novembro
de 2008 sobre o teor do Art. 1º da Lei nº 6.683/1979, e notória
controvérsia constitucional surgido a respeito do âmbito de aplicação
deste diploma legal a seguir transcrito aos agentes públicos que
cometeram crimes de lesa humanidade durante a ditadura militar
brasileira:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no


período compreendido entre 02 de setembro de
1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais,
aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e
aos servidores da Administração Direta e Indireta,
de fundações vinculadas ao poder público, aos
Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes
sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste
artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados
por motivação política.

Na ação a Ordem dos Advogados do Brasil questionou a anistia


de agentes públicos responsáveis pela prática de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais,
estupro e atentado violento ao pudor contra os opositores ao regime
militar. Nesse passo, os atos de repressão aos criminosos políticos
deveriam ser julgados como crimes comuns, pois não possuíam

- 76 -
relação com os crimes políticos ou praticados por motivação política
não se enquadrando na Lei da Anistia.
Segundo a ADPF 153, os agentes públicos que mataram,
violentaram sexualmente e torturaram aqueles que eram opositores
políticos não teriam praticado os crimes políticos previstos nos
diplomas legais, ou seja, nos Decretos-Lei n. 314 e 898 e na Lei n.
6.620/78, pelo fato de que não atentaram contra a ordem pública e a
segurança nacional. Em tese, não poderia haver e não houve conexão
entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar
e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão
e seus mandantes no governo. Consoante a Ordem dos Advogados do
Brasil há uma aberrante desigualdade o fato da anistia servir tanto
para os delitos de opinião e os crimes contra a vida, a liberdade e a
integridade pessoal cometido pelos opositores.
Na ADPF n. 153, a Ordem dos Advogados do Brasil solicitou que
fosse revelada a identidade dos militares e dos policiais responsáveis
pelos crimes cometidos em nome do Estado contra aqueles que eram
opositores ao regime político na tentativa de abrir os arquivos da
ditadura militar em nome da garantia de um Estado Democrático de
Direito.
Nesse passo, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil o fato
dos militares e dos policiais que torturaram receberem remuneração
e serem anistiados pelo próprio governo seria um ato de ilegalidade e
violação aos direitos humanos bem como ao Estado Democrático de

- 77 -
Direito. Além disso, a Ordem dos Advogados do Brasil entende que se
fosse revista a Lei da Anistia e reabertos os casos em que ocorreu a
tortura, haveria precedente para pedidos de extradição dos supostos
torturadores para outros países, diante da ocorrência de crimes contra
a humanidade.
As leis da anistia existentes nos diversos países do mundo estão
sendo revistas e os torturadores estão sendo julgados no mundo
inteiro, como exemplo podemos citar os países da América Latina
como a Argentina. Ou seja, são países que, em nome da preservação
da democracia e dos direitos humanos estão revendo o passado e
rebatendo o terrorismo do Estado, dando uma punição aos seus
ditadores e aos autores de crimes contra a humanidade. Caberia ao
Brasil punir quem realizou crimes de tortura em nome do Estado, pois
a lei da anistia dizia de maneira específica que os crimes políticos e
conexos estavam anistiados e não os crimes de tortura que é um crime
de lesa – humanidade, imprescritível, não se confundindo com um
crime político.
Apesar do Supremo Tribunal Federal afirmar que a tortura não
foi tipificada como crime durante o regime militar e nem sob a égide
da Constituição anterior, o princípio da dignidade da pessoa humana,
do respeito aos direitos fundamentais bem como o princípio
democrático, quebrado com o golpe militar de 1.964, são inerentes e
implícitos em nosso ordenamento jurídico não havendo necessidade
de estarem expressos constitucionalmente.

- 78 -
Ademais, as vítimas sobreviventes e os familiares dos mortos
não participaram diretamente do acordo que levou à anistia, porém a
existência de tal acordo não foi confirmada diante do fato de que a
corporação militar não confirmou os crimes cometidos no regime
militar. Vale ressaltar que a Comissão Mista do Congresso que analisou
a proposta de auto-anistia, dos 23 integrantes, 13 eram do governo e
apenas 9 eram da oposição, ou seja, predominava sempre os
partidários do regime, além do fato de que no dia 22 de agosto de
1979, quando a Câmara se preparou para aprovar a lei da anistia,
estavam a paisana 800 soldados ocupando as galerias.

O discurso da anistia no Brasil foi impositivo e


arbitrário, pois objetivou abranger “ambos os
lados”, isto é, tanto os condenados por crimes
políticos, os banidos/exilados e os perseguidos da
ditadura, que são os favorecidos pelas anistias em
crimes políticos ou de opinião, bem como os
agentes públicos que manejaram abusivamente os
aparatos estatais repressivos e cometeram crimes
de lesa – humanidade. A questão fez parte de um
acordo político firmado entre Tancredo, Sarney e
as Forças Armadas para colocar “uma pedra” no
assunto. Entretanto, o Brasil, como signatário de
documentos da Organização das Nações Unidas,
incorporou, antes mesmo da repressão, tratados
que consideram a tortura crime imprescritível.22

22
NOHARA, Irene Patrícia. Direito à memória e reparação: da inclusão jurídica das
pessoas perseguidas e torturadas na ditadura militar brasileira. In. Direito
Internacional: homenagem à Adherbal Meira Mattos. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 728-761.

- 79 -
Na realidade, a lei da anistia foi imposta por intermédio de
mecanismos de controle parlamentar com o esvaziamento das sessões
em que as propostas de alterações dos membros do MDB foram
rejeitadas e não foram discutidas23. Nesse sentido, não houve o
consenso, não houve um amplo debate e nem ambiente que
propiciasse a discussão das condições impostas para a aprovação do
referido diploma legal.

A questão de realizar uma abertura “lenta, gradual


e segura” que resultou na Lei da Anistia, não foi
produto de ampla discussão realizada com diversos
segmentos da sociedade brasileira, já que a grande
maioria dos movimentos sociais foi brutalmente
desarticulada pelos mecanismos de repressão, que
resultaram em prisão, tortura, exílio e morte de
centenas de militantes políticos, jornalistas,
artistas, membros da Igreja e estudantes. Houve,
em realidade, uma imposição dos militares e a elite
que apoiava o regime de exceção que, a partir de
um clima de censura, patrulhamento ideológico e
perseguição, exigiram, silêncio, ocultamento e,
portanto, esquecimento forçado da repressão
vivenciada.24

Diante disso, na exordial da ADPF n. 153 os advogados Fábio


Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro expuseram "Trata-se
de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis,
entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento

23
Ibidem, p. 732.
24
Ibidem, p. 731-732.

- 80 -
forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado
violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar, que
vigorou entre nós antes do restabelecimento do Estado de Direito com
a promulgação da vigente Constituição“.
A inconstitucionalidade da lei federal, ou seja, da lei da anistia
seria decorrente da violação dos preceitos fundamentais da
Constituição, ou seja, do princípio da dignidade da pessoa humana, do
direito à vida, da proibição da tortura ou de tratamento desumano ou
degradante e do direito à segurança.
Verifica-se que é imperiosa a punição penal para crimes contra
a humanidade cometidos durante o período da ditadura brasileira,
pois quando se trata de crimes contra a humanidade, não é possível a
anistia e a prescrição, havendo a primazia do direito penal
internacional sobre o direito local em especial quando o país faz parte
do sistema internacional de Justiça, como é o caso do Brasil.
Nesse sentido, os crimes contra a humanidade cometidos
durante o período da ditadura militar são imprescritíveis, não sendo
passível a anistia. Não haveria ainda a conexão entre os crimes
políticos e os crimes comuns praticados durante a ditadura militar
contra os seus opositores, tendo em vista que a conexão somente
pode ser reconhecida nas hipóteses de crimes comuns e crimes
políticos praticados pelos agentes repressivos e mandantes do
governo.

- 81 -
Nesse caso, a conexão somente poderia ser reconhecida nas
hipóteses de crimes políticos e crimes comuns praticados pela mesma
pessoa em concurso material ou formal, ou por diversas pessoas em
coautoria. Assim, a lei da anistia somente abrangeria os autores de
crimes políticos ou contra a segurança nacional e os crimes comuns a
ele ligados teria que haver uma comunhão de objetivos, e não houve
comunhão de propósitos entre os agentes de um e nem de outro lado.
Os agentes públicos que torturaram, violentaram sexualmente
e mataram os opositores políticos no período de 02 de setembro de
1961 e 15 de agosto de 1979 não praticaram nenhum dos crimes
políticos previstos nos três diplomas legais que definiam à época os
crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social
previstos no Decreto – Lei n. 314 de 13/03/1967, o Decreto – Lei n. 898
de 29/09/1969 e a Lei n. 6.620 de 17/12/1078, pelo fato de que não
atentaram contra a ordem política e nacional e sim, praticaram crimes
comuns contra os opositores do regime que, em sua mentalidade,
colocariam em perigo a ordem política e a segurança do Estado.
Os considerados opositores do regime militar não agiam contra
aqueles que os torturavam e mataram, mas sim lutavam contra uma
ordem política vigente no país naquele momento, ou seja, queriam
derrubar o regime militar e ditatorial e instaurar a democracia. Nesse
sentido, a anistia teria por objeto somente os crimes comuns
cometidos pelos mesmos autores dos crimes políticos não abrangendo
os agentes públicos que, durante o regime militar, praticaram crimes

- 82 -
comuns contra os opositores ao regime militar. Agentes públicos que,
cabe ressaltar, são pagos pelo próprio povo com o arrecadado com os
impostos.
O julgamento sobre a Lei da Anistia teve início no dia 28 de abril
de 2010 com o voto do relator o Ministro Eros Grau se manifestando
pelo não provimento da ADPF n. 153 diante da impossibilidade de
revisão da lei sancionada me 1979. No dia 29 de abril de 2010, o
posicionamento de Eros Grau foi acompanhado pelos ministros
Carmen Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco
Aurélio e Celso de Mello. Somente votaram favoravelmente à ADPF n.
153 os Ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto.
O voto do Ministro Eros Grau rejeitou os argumentos
apresentados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, pois a Lei da Anistia teria perdoado os crimes cometidos por
militantes e militares durante a luta contra a ditadura e após o golpe
de 1964, sendo cobertos os atos praticados entre o período de 2 de
setembro de 1964 e 15 de agosto de 1979, além de afirmar que
somente o Poder Legislativo estaria autorizado a rever a Lei da Anistia.
Porém, não se trata propriamente de rever e reescrever a Lei
da Anistia e sim interpretá-la de acordo com a Constituição Federal,
preservando os direitos fundamentais, e, afastando a aplicabilidade da
Lei da Anistia aos crimes comuns cometidos por agentes públicos por
se tratarem de crimes contra a humanidade e portanto, imprescritíveis
e não passíveis de anistia. Trata-se, portanto, de respeitar a

- 83 -
Constituição Federal e os tratados internacionais sobre direitos
humanos.
Já o Ministro Celso de Mello primeiramente fez uma
construção histórica do período militar iniciado com o golpe de 1.964
e posteriormente com os atos institucionais que o seguiram rompendo
com a Constituição de 1946 e, posteriormente sustentou que não
haveria obstáculos legais a que os crimes comuns relacionados aos
crimes políticos fossem alvo da Lei da Anistia, pois, segundo ele, no
sistema jurídico brasileiro não haveria previsão de punição para os
crimes de tortura cometidos naquele período, sendo imprescritíveis e
insusceptíveis de anistia após a Constituição Federal de 1988.

Isso significa que se revestiu de plena legitimidade


jurídico-constitucional a opção legislativa do
Congresso Nacional que, apoiando-se em razões
políticas, culminou por abranger, com a outorga da
anistia, não só os delitos políticos, mas, também, os
crimes a estes conexos e, ainda, aqueles que,
igualmente considerados conexos, estavam
relacionados a atos de delinquência política ou cuja
prática decorreu de motivação política.
No fundo, é preciso ter presente que a Constituição
sob cuja égide foi editada a Lei nº 6.683/79,
embora pudesse fazê-lo, não reservou a anistia
apenas aos crimes políticos, o que conferia
liberdade decisória, ao Poder Legislativo da União,
para, com apoio em juízo eminentemente
discricionário (e após amplo debate com a
sociedade civil), estender o ato concessivo da

- 84 -
anistia a quaisquer infrações penais de direito
comum.25

O Ministro Gilmar Mendes retomou o voto de Eros Grau na


qual sustentou que, sendo a anistia geral e irrestrita e mais ainda,
sendo ela um ato eminentemente político caberia somente ao
Congresso Nacional revisá-la. Ainda sustentou que a discussão sobre a
lei da anistia seria meramente acadêmica e de pouca aplicabilidade
prática, tendo em vista que os crimes cometidos durante a ditadura já
estariam prescritos.
Tal posicionamento foi seguido pelo Ministro Marco Aurélio no
sentido de que, além de tal discussão ser meramente acadêmica, a
anistia seria um ato de amor e de perdão, baseada na busca de um
convívio pacífico entre os cidadãos. Para ele, não haveria motivo nem
mesmo para o julgamento da ação, pois não existiria controvérsia
jurídica no caso em questão já que a anistia foi um mal necessário e
era uma página virada. O voto do Ministro Cézar Peluso, presidente da
Corte, pela improcedência da ação foi baseado no sentido de ser a Lei
da Anistia ampla, abrangendo tanto os crimes cometidos pelos
opositores do regime e contra os opositores do regime e, portanto,
não se trataria de auto – anistia.

25
Trecho do voto do Ministro Celso de Mello na ADPF n. 153, consoante Informativo
584 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em
http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo588.htm#trans
cricao1. Acesso em 09 jun. 2010.

- 85 -
Para os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, votos
vencidos no julgamento, os crimes políticos praticados pelos
opositores do regime militar e os crimes comuns praticados pelos
agentes públicos não poderiam ser igualados em nenhuma hipótese e
por isso os agentes estatais não deveriam ser beneficiados pela Lei da
Anistia, ou seja, os crimes qualificados como hediondos, isto é, os
crimes contra a humanidade, como a tortura, o homicídio e o
desaparecimento de pessoas seriam imprescritíveis e não estariam
cobertos pela Lei da Anistia.
Porém, lamentavelmente o Supremo Tribunal Federal não
cumpriu o papel de salvaguardar a Constituição Federal e os princípios
e preceitos fundamentais nela imanentes, acobertando a impunidade
dos atos de tortura durante o regime militar. O julgamento da ADPF n.
153 rejeitando o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil para a
punição dos atos de tortura durante o regime militar teve repercussão
externa, não agradando a cúpula das Nações Unidas, tendo em vista
que os outros países latinos – americanos revisaram a aplicação de
suas leis sobre a anistia e puniram aqueles que cometeram crimes
durante suas ditaduras.
Tal julgamento traz a sensação de impunidade dos crimes
comuns cometidos no período ditatorial e representa a
impossibilidade de abertura dos arquivos políticos para a descoberta
da identidade dos agentes públicos criminosos, representando mais
que um desrespeito um retrocesso social e democrático.

- 86 -
Por fim, podemos concluir que a aplicabilidade da lei da anistia
à agentes públicos que cometeram crimes de lesa humanidade
(tortura, assassinatos, estupros) contra opositores do regime político
então vigente representa um retrocesso democrático e uma tentativa
de apagamento da “memória historicizada” do período ditatorial
brasileiro, pois acoberta a impunidade e “legaliza” e “oficializa” o
esquecimento.
Entretanto, tal decisão gerou reflexos internacionais e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos decidiu corretamente a questão
ao julgar o Caso Gomes Lund e Outro (“Guerrilha do Araguaia”) v.
Brasil. A Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que “as
disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e
sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com
a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem
seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do
presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e
tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros
casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil”.26
A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou ainda
que o Brasil deveria conduzir eficazmente, perante a jurisdição

26
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO GOMES LUND E OUTROS
(“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. SENTENÇA DE 24 DE NOVEMBRO DE 2010.
Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.

- 87 -
ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de
esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades
penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei
preveja. Assim, as comissões da verdade foram instauradas.

A comissão da verdade
Empregando a expressão de Paul Ricoeur ao tema em questão,
há um fenômeno de “reconhecimento”. Mas, sem paradoxo algum, o
que se faz constitutivo da memória é o “esquecimento”, a memória
tem uma relação direta, afetiva com o passado, visto que ela é, antes
de tudo, memória individual, lembrança pessoal de acontecimentos
vividos. A memória é terrivelmente seletiva e se concentra sobre
alguns fatos. O esquecimento é de duas ordens: há o esquecimento
daquilo que parece insignificante e não merece ser relembrado; e há
o “esquecimento de ocultação”, o esquecimento voluntário, aquele do
qual não se quer ter lembranças, porque ele perturba a imagem que
se tem de si. A memória sabe também transformar, consciente ou
inconscientemente, o passado em função do presente, apresentando
a tendência particular de embelezar este passado.
A reflexão de Ricoeur contribui para um avanço teórico nas
discussões sobre memória e história, memória e documentos
históricos e, principalmente, memória e esquecimento. Aprofunda,
com isto, os problemas fenomenológicos entre a memória individual e
a memória coletiva e suas relações com a história. O que sobra neste

- 88 -
processo onde o ser humano se encontra com a temporalidade são os
rastros, vestígios da memória viva que passou por um processo de
arquivamento.
O esquecimento de ocultação deixa enterrados os espectros de
execuções sumárias bem assim o descrédito à dignidade humana
levados a efeito por ocasião da ditadura, como que se esquecendo que
a transparência se faz requisito essencial para a efetivação de um
regime democrático. Segundo Jacy Alves de Seixas busca-se
atualmente não apenas o direito à memória , mas também e
sobretudo, o dever à memória.27

[...] No Brasil, entretanto, posto que passadas mais


de duas décadas do término do regime militar,
ainda não se restaurou por inteiro a verdade. Por
exemplo, ainda não foram totalmente
disponibilizados à população os arquivos da
ditadura, a despeito dos esforços empreendidos
pela Secretaria Especial e pela Comissão. Ainda não
se mostrou, em sua integralidade, o que realmente
se passou no período ditatorial. Resistências em
abrir os arquivos da ditadura ainda subsistem em
importantes segmentos do Estado, cujo dever é
assegurar o direito de acesso às informações,
franqueando-as, mediante procedimentos simples,
ágeis, objetivos e transparentes [...].28

27
SEIXAS, Jacy Alves de. Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre
a memória história . História: Questões e Debates, Curitiba, n.32, pp. 65-74, jan/jun,
2000, Editora da UFPR, p. 76.
28
BARBOSA, Marco Antonio Rodrigues; VANNUCCHI, Paulo. Resgate da Memória e
da Verdade: um direito de todos. In: Soares, Inês: Kishi, Sandra (Coord.). Memória e
Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2009. p. 59.

- 89 -
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) soma-se a todos os
esforços anteriores de registros dos fatos e esclarecimento das
circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos
praticadas entre 1946 e 1988, a partir de reivindicação dos familiares
de mortos e desaparecidos políticos, em compasso com demanda
histórica da sociedade brasileira. Em 2010, concluía Anthony Pereira
que, diversamente dos demais países da região:

[...] a justiça de transição no Brasil foi mínima.


Nenhuma Comissão de Verdade até o momento foi
instalada, nenhum dirigente do regime militar foi
levado a julgamento e não houve reformas
significativas nas forças armadas e no Poder
Judiciário [...]29

A instituição da CNV foi acompanhada pela constituição de


comissões da verdade em todo o país. A cooperação e o diálogo com
essas comissões da verdade estaduais, municipais, universitárias,
sindicais e de seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que
hoje ultrapassam uma centena, possibilitou uma ampla mobilização
em torno dos temas relacionados à memória, à verdade e à justiça.
A abertura dos arquivos políticos oriundos da ditadura e a
punição dos crimes contra a humanidade cometidos nesse período
representam a efetividade do direito à justiça, à vida, à dignidade da

29
PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no
Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

- 90 -
pessoa humana, à memória e à verdade, dando caráter público à
memória dos atos violentos praticados pelo Estado. O ideal seria a
historicização dessa memória e aplicação jurídica de pena aos agentes
públicos que cometeram crime de lesa humanidade a mando do
Estado durante a ditadura militar brasileira.
Infelizmente ao contrário de alguns países latino americanos
como a Argentina, podemos dizer que no Brasil ainda não houve
justiça de transição, visto ela encontrar-se centrada em quatro pilares
básicos: a) pela revelação à vítima, seus familiares, e a toda sociedade
de verdades históricas atreladas aos eventos, sendo esta a vertente de
justiça histórica (historical accountability). Há também: b) o
oferecimento às vítimas das reparações tidas condizentes com os
traumas vivenciados, reformando-se instituições estatais (justiça
social), isto, sem falar na c) investigação, persecução e punição
daqueles tidos como violadores (justiça criminal) tudo a implicar em d)
afastamento dos violadores dos órgãos de Estado, sobretudo, os
relacionados à fiscalização e exigência da Lei ao tempo da exceção
(justiça administrativa).

Dentro da interpretação razoável, o direito


fundamental de acesso às informações é a regra,
sendo, portanto, cláusula de exceção (termo
extraído de Alexy) e a situação de sigilo, quando
imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado. Logo, o tratamento legal da cláusula
restritiva deve ser realizado de tal forma que
preserve o núcleo essencial do direito á

- 91 -
informação. Contudo, a insistência que houve por
parte dos governos brasileiros, após a abertura
política até os dias atuais em manter como sigilosos
documentos e informações relativos à ditadura
militar, conforme enfatiza o Weichert, atinge: (1)
diretamente: (a) o direito da família de mortos e
desaparecidos políticos de poderem dar enterro
digno aos seus entes, e conhecer as circunstâncias
de suas mortes, porque “naquele período, o
opositor político era seqüestrado, torturado,
isolado, assassinado, desaparecido e enterrado
como indigente”; e (b) o direito da sociedade
brasileira de ter acesso à verdade sobre sua história
recente; e (2) indiretamente a falta de verdade
impede o pleno desenvolvimento da cidadania e a
consolidação da democracia.30

A Lei da Anistia, sendo um ato jurídico e político, infelizmente


negou o caráter público aos atos violentos do estado, maculando a
democracia e dando a ela resquícios autoritários marcados pela
tortura, execuções de cunho arbitrário e autorizou o “esquecimento
da memória”. Contudo, a transformação político-democrática do
presente depende do conhecimento do passado e do reconhecimento
de como esta herança se manifesta e é avaliada nos dias atuais.

Somente com a transparência e real abertura para


o debate público será possível retirar do
“subterrâneo da história” indivíduos e grupos
sociais que vivenciaram o terrorismo de Estado e,
com isso, será viabilizada a construção de uma

30
NOHARA, Irene Patrícia. Direito à memória e reparação: da inclusão jurídica das
pessoas perseguidas e torturadas na ditadura militar brasileira. In. Direito
Internacional: homenagem à Adherbal Meira Mattos. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 738.

- 92 -
memória política capaz de reconhecer e
questionar, para que não mais ocorra a faceta
perversa e desumana que o autoritarismo, apoiado
pelas instituições estatais, é capaz de ostentar,
para que se lance luz sobre os “os grandes dilemas
com os quais se confrontam os povos latino –
americanos” entre: ditadura ou democracia e,
ainda mais, entre alienação ou identidade
história.31

Assim, as Comissões da Verdade foram criadas pelo Estado


para investigar fatos, causas e consequências de violações de direitos
humanos ocorridas em um determinado período da história de um
país. Elas são instauradas em períodos de transição política – como
após um regime autoritário – auxiliando no estabelecimento de
instituições e poderes democráticos ou em resoluções de conflitos
armados como no caso de uma guerra-civil. O então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva considerou a relevância da criação de uma
comissão da verdade, na medida em que apenas “conhecendo
inteiramente tudo o que se passou naquela fase lamentável de nossa
vida republicana o Brasil construirá dispositivos seguros e um amplo
compromisso consensual – entre todos os brasileiros – para que tais
violações não se repitam nunca mais”. Entretanto, ressalta-se:

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a


imagem de um acontecimento passado para obter

31
NOHARA, Irene Patrícia. Direito à memória e reparação: da inclusão jurídica das
pessoas perseguidas e torturadas na ditadura militar brasileira. In. Direito
Internacional: homenagem à Adherbal Meira Mattos. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 729.

- 93 -
uma lembrança. É preciso que esta reconstituição
funcione a partir de dados ou de noções comuns
que estejam em nosso espírito e também no dos
outros, porque elas estão sempre passando destes
para aqueles e vice-versa, o que será possível se
somente tiverem feito e continuarem fazendo
parte de uma mesma sociedade, de um mesmo
grupo32.

O desarquivamento dos arquivos da ditadura contribui para a


construção da memória política de nosso país e a punição dos agentes
políticos recomporia a dignidade do Estado perante outras nações.

A polícia da Argentina prendeu nesta terça-feira


(23/3) o ex-oficial naval Carlos Galian, conhecido
pelo apelido de Peter Ball, que era considerado
elemento-chave durante a ditadura militar no país
(1976-1983).Ele é acusado de mais de 600 crimes
de violação de direitos humanos. Galian era um dos
homens de confiança do comando do centro de
detenção clandestino que funcionava na Escola de
Mecânica da Marinha (ESMA).33

Desde 1974, já foram criadas mais de 40 Comissões da


Verdade pelo mundo. Em geral, suas funções e objetivos são: a)
analisar os contextos sociais e históricos nos quais se passaram os
abusos e violações, esclarecendo, na medida do possível, os fatos que

32
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013, p. 39.
33
JUSTIÇA MANDA PRENDER TORTURADOR ACUSADO DE 600 CRIMES. Disponível
em: http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=307. Acesso em: 01
maio 2010.

- 94 -
muitas vezes foram encobertos ou distorcidos por mecanismos do
próprio Estado. Assim, frequentemente as Comissões da Verdade
enfrentam uma cultura do esquecimento com que se pretende negar
o acontecido e dificultar a apuração das evidências que permitam
apontar os responsáveis pelas violações de direitos humanos ocorridas
no período, b) Reconhecer e proteger as vítimas exigindo que o Estado
valorize seus testemunhos como fundamentais para a construção da
verdade histórica e repare, mesmo que parcialmente, os danos
decorrentes das violências sofridas, c) Elaborar relatórios e
recomendações, com sugestões de reformas institucionais, revisões
constitucionais e processos de justiça que possam garantir o
aperfeiçoamento da democracia.34 As Comissões de Memória e
Verdade, as quais são bem definidas nos ensinamentos de Sampaio e
Almeida:

[...] verdadeiros órgãos temporários, criados


para investigar fatos históricos determinados
de um país, de relevante interesse social,
especialmente as graves violações aos direitos
humanos [...].35

34
http://memoriasdaditadura.org.br/comissao-nacional-da-verdade-
2/index.html#o-que-sao-comissoes-da-verdade
35
SAMPAIO, José Adércio Leite; ALMEIDA, Alex Luciano Valadares de. Verdade e
História, In. SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memória e
Verdade: A Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte:
Fórum, 2009. p. 252.

- 95 -
A memória pode ser classificada como individual ou coletiva,
sendo certo que a individual é resultado de um complexo processo de
arquivamento de informações e de experiências vividas ou
transmitidas, com influência de fatores fisiológicos e genéticos,
modificando os modos de viver e de agir do ser humano. Já a memória
coletiva, por seu turno, é conjunto de experiências compartilhadas
entre gerações e membros da sociedade, sobre fatos, pessoas,
sentimentos e sentidos, desenvolvendo-se tanto nas interações
verbais e cotidianas dos agentes sociais (memória comunicativa e oral)
quanto em formas mais institucionalizadas, escritas, monumentais ou
genericamente, em figuras de memória, falando-se aqui de verdadeira
memória cultural, no sentido cunhado por Halbwachs36.
Nesse passo, a memória coletiva é compreendida/defendida
por Halbwachs como processo de reconstrução do passado vivido e
experimentado por um determinado grupo social, e, sendo assim, sua
categoria de memória coletiva permite compreender que o processo
de rememoração não depende apenas do que o indivíduo lembra, mas
que suas memórias são de certo modo, partes da memória do grupo a
qual pertence.
Halbwachs diverge de Bergson37 ao postular que a memória
não permanece intacta em uma “galeria subterrânea”, mas sim na

36
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013.
37
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.

- 96 -
sociedade, desta sai todas as indicações necessárias para reconstruir
partes do passado que, por sua vez se apresenta de maneira
incompleta e que o indivíduo acredita que tenha saído inteiramente
de sua memória. A memória coletiva atrela as imagens de fatos
passados a crenças e necessidades do presente. Nesta, o passado
passa permanentemente por um processo de reconstrução, vivificação
e consequentemente também de ressignificação.
Maurice lança então duas categorias, a memória coletiva e a
histórica, cujas definições são divergentes. Para ele, a história é a
reunião dos fatos que ocupam “maior” lugar na memória da
sociedade. Entretanto, os acontecimentos/eventos narrados passam
por um processo de seleção, são “selecionados, classificados segundo
necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens
que por muito tempo foram repositório vivo”38 . A história nesse
sentido inicia no instante em que termina a tradição, isto é, no
momento em que ocorre o apagamento da memória social.
Até o momento a Comissão da Verdade fez uma recordação
passiva da memória dos anos de chumbo, sendo necessário um
aprofundamento, talvez políticas públicas de conscientização social
mais ostensivas, que alcance efetivamente todas as classes sociais e
promova o esclarecimento do que foi a Ditadura Militar, a violência
praticada bem como os retrocessos democráticos que tal regime

38
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013, p. 100.

- 97 -
proporcionou ao nosso país, de maneira a possibilitar uma verdadeira
reconstrução dinâmica que conecte passado e presente e mais ainda
que possa proporcionar a reflexão da população.

Considerações finais
Não obstante, a decisão do Supremo Tribunal Federal (sobre a
Lei da Anistia) representar um obstáculo à efetivação de institutos
participativos e à abertura dos canais democráticos, com tais
premissas teóricas bem delimitadas, no caso brasileiro, a proposta é
no sentido de possibilitar à sociedade conhecer as mais diversas
versões sobre o conflito, sobre o passado, seu contexto histórico e
seus personagens. A predestinação na busca pela verdade e não o seu
contrário é a marca do Estado Democrático de Direito, o qual, como
Estado sadio tem a obrigação pública de discutir inverdades da versão
oficial, abrindo-se, como corolário lógico da democracia, fontes para
todas as verdades.
Assim com a Comissão da Verdade não se preconizou uma
recordação passiva daquilo que se passou, mas sim de verdadeira
ponte com o passado que permita reconstrução dinâmica, conectando
passado e presente, possibilitando melhor compreensão dos dias
atuais com observação crítica e mais próxima da realidade, pois “o
gesto de separar, de reunir, de coletar é objeto de uma disciplina
distinta, a arquivística, à qual a epistemologia da operação

- 98 -
historiográfica deve a descrição dos traços por meio dos quais o
arquivo promove a ruptura com o ouvir-dizer do testemunho oral”39.
Com a instauração e resultados obtidos com as Comissões da
Verdade houve uma verdadeira rememoração de significados sociais,
no processo histórico geral em que se encontram envolvidos os atores
sociais, contribuindo-se, nessa quadra, para formação de uma
identidade individual e coletiva, sendo um passo para dissipar o
silêncio e a tentativa de esquecimento dos crimes cometidos pelo
Estado durante a ditadura militar brasileira.

39
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2007, p. 178.

- 99 -
Referências

BARBOSA, Marco Antonio Rodrigues; VANNUCCHI, Paulo. Resgate da


Memória e da Verdade: um direito de todos. In: Soares, Inês: Kishi,
Sandra (Coord.). Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado
Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Tradução de Paulo Neves. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial


sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à
memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos /
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - - Brasília :
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007 400p.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz


Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013.

NOHARA, Irene Patrícia. Direito à memória e reparação: da inclusão


jurídica das pessoas perseguidas e torturadas na ditadura militar
brasileira. In. Direito Internacional: homenagem à Adherbal Meira
Mattos. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado


de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra,
2010.

RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas:


Ed. da Unicamp, 2007.

SAMPAIO, José Adércio Leite; ALMEIDA, Alex Luciano Valadares de.


Verdade e História, In. SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra
Akemi Shimada. Memória e Verdade: A Justiça de Transição no Estado
Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

- 100 -
SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história:
problemáticas atuais” in BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.)
Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível.
Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória – reconstrução do


passado: memória coletiva e história. História. São Paulo: 20: 93-108,
2001.

SEIXAS, Jacy Alves de. Comemorar entre memória e esquecimento:


reflexões sobre a memória história. História: Questões e Debates,
Curitiba, n.32, pp. 65-74, jan/jun, 2000, Editora da UFPR.

Referências Digitais

JUSTIÇA MANDA PRENDER TORTURADOR ACUSADO DE 600 CRIMES.


Disponível em:
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=307.
Acesso em: 01 maio 2010.

http://memoriasdaditadura.org.br/comissao-nacional-da-verdade-
2/index.htm l#o-que-sao-comissoes-da-verdade

http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo
588.htm #transcricao1. Acesso em 09 jun. 2010.

Corte INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO GOMES LUND


E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. SENTENÇA DE 24
DE NOVEMBRO DE 2010. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf

- 101 -
Direitos humanos e austeridade econômica à luz de
Hannah Arendt

Raimundo Expedito dos Santos Sousa40


Elielson Martins Ferreira Filho41

Todas as coisas que podem ser comparadas podem


ser trocadas e têm um preço. Aquelas que não
podem ser comparadas não podem ser trocadas,
pois não têm preço, mas dignidade.
Immanuel Kant

Introdução
A globalização econômica emergiu como promessa de avanço
na consolidação dos direitos humanos na medida em que a
acessibilidade mais ampla aos mercados internos beneficiaria os
Estados e fomentaria a concretização de direitos econômicos e sociais
mediante desenvolvimento de programas estatais que assegurariam
aos cidadãos benefícios como trabalho, saúde, educação e outros bens
e serviços essenciais. Todavia, os efeitos colaterais da globalização se
fizeram notar no modo como a hybris desenvolvimentista que se lhe
seguiu instigou a rapina de grupos hegemônicos sobre outros por meio
da própria globalização, instrumentalizada como tecnologia de

40
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (Universidade
Federal de Minas Gerais)
41
Mestre em Educação (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

- 102 -
controle. Noutros termos, países economicamente periféricos se
tornaram mais dependentes dos centrais, em razão da importância
assumida pela exportação e, por conseguinte, mais vulneráveis às
contingências dos mercados internacionais.
A recessão econômica mundial, em curso desde 2008, exerce
sobre esses países, dentre os quais o Brasil, forte empecilho para a
consolidação de direitos devido não apenas a flutuações do mercado
externo, mas, também, a medidas como controversos ajustes fiscais.
A austeridade, adotada pelos governos como panaceia para o “mal
humor” do mercado, tem como imperiosa contraparte a inobservância
aos direitos humanos, uma vez que a obsessão estatal por estabilidade
financeira implica subtração de recursos para áreas já historicamente
sacrificadas, como saúde e educação.
Em face desse panorama, este capítulo visa à compreensão da
confluência epistemológica entre Filosofia e Direito mediante exame
das reflexões de Hannah Arendt sobre a noção de direitos humanos,
cara a ambos os campos epistêmicos e particularmente imperativa
como tópico de discussão em nosso contexto histórico. Nesse
cotejamento, interessa-nos revisitar algumas contribuições da filósofa
alemã para pensarmos questões contemporâneas candentes, como a
subtração de direitos na atual política de austeridade econômica
adotada pelo atual governo no Brasil.

- 103 -
Os direitos humanos
Em explanações sobre a nomenclatura “direitos humanos”,
conceituações as mais distintas são utilizadas conforme as
especificidades históricas e culturais que balizam as matrizes
epistêmicas. De início, bastava-se a acepção de direitos naturais,
porquanto se lhe imputavam tanto universalidade quanto fixidez,
quer devido à natureza humana ser moldada à imagem e semelhança
de Deus, quer devido à percepção de ser ela ontologicamente
racional. À proporção que se medravam novos direitos em
consonância com o transcurso da história, regimes jurídicos ocidentais
tenderam à adoção do termo direitos do homem, tal como definido
quando da Revolução Francesa. Todavia, em meados no século XX, a
expressão foi proscrita em favor de uma terceira, direitos humanos,
mais universalizante porque despojada de conotação androcêntrica.
Malgrado essa terminologia seja suscetível a críticas, quer porque
todos os direitos são necessariamente humanos, quer porque tão-
somente os seres humanos têm personalidade jurídica, seu emprego
é conceptualmente operacional para designar o conjunto de direitos
fundamentais necessários a uma vida digna.
Para fins didáticos, é aceitável o emprego colateral das
nomenclaturas direitos humanos fundamentais e direitos humanos,
visto que, sem embargo de tratarem de mesma matéria, apresentam
ligeira distinção perceptual, pois “a fórmula direitos humanos, por
suas raízes históricas, [é] adotada para referir-se aos direitos da

- 104 -
pessoa humana antes de sua constitucionalização ou positivação nos
ordenamentos nacionais”, ao passo que “direitos fundamentais
designam os direitos humanos quando trasladados para os espaços
normativos” (BONAVIDES, 2002, p. 234). Em que pese a terminologia
empregada, o conjunto de direitos inerentes à pessoa humana é o
fundamento de todos os direitos, já que o ser humano deve pairar
acima de toda e qualquer organização social, política, econômica,
cultural ou religiosa. Nesta acepção, todos os direitos, quer sejam
inerentes à espécie humana, quer sejam corolários de conquistas
logradas no curso da humanidade, são considerados direitos
humanos. Conforme Bobbio (1996, p. 30), o ser humano, pelo fato
mesmo de pertencer à espécie humana, goza de um “direito natural
permanente e eternamente válido, independente de legislação, de
convenção ou qualquer outro expediente imaginado pelo homem”.
Todavia, circunscrever o que são direitos humanos também
constitui desafio complexo. Doutrinadores se lhe definem, grosso
modo, como o conjunto de instâncias institucionais que
paulatinamente consubstanciam, em cada período histórico,
demandas de determinados grupos por dignidade, isonomia e
liberdade que devem ser incorporadas por ordenamentos jurídicos
tanto nacionais quanto internacionais (PÉREZ LUÑO, 2002). Desse
modo, enquanto filósofos e doutrinadores de inflexão jusnaturalista
proposta por Locke e Montesquieu sustentam que os direitos
humanos são apenas os direitos naturais, isto é, aqueles inerentes à

- 105 -
própria qualidade de pessoa humana enquanto membro de uma
espécie, outros tantos concebem os direitos humanos sob
envergadura mais ampla, de sorte a não passar ao largo dos direitos
resultantes de evoluções de toda sorte por que a humanidade tem
passado. Afinal, os direitos, longe de medrados num vácuo temporal
e constitutivamente imutáveis, possuem historicidade e, por isso,
caracterizam-se pela mobilidade. “Os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos”, explica Bobbio
(1996, p. 45), porque “nascidos em certas circunstâncias,
caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos
poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de
uma vez por todas”.

Evolução histórica dos direitos humanos


Formalmente, a história dos direitos humanos se fundou com
o balizamento do poder do Estado pela Lei. Contudo, essa perspectiva
institucionalista desconsidera o legado de povos que não conheceram
a técnica de limitação do poder do Estado, mas, desde tempos
imemoriais, privilegiavam a pessoa humana em seus costumes e
instituições. No curso da história, diversas iniciativas sugerem a
existência de cometimento com os direitos inerentes à pessoa
humana, haja vista o Código de Hamurabi (Babilônia, século XVIII a.C.);
o pensamento de Amenófis IV (Egito, século XIV a.C.); a Filosofia de
Mêncio (China, século IV a.C.); a República de Platão (Grécia, século IV

- 106 -
a.C.); e o Direito Romano (HERKENHOFF, 1994). No Medievo, com a
intensificação do movimento urbanístico, a discussão mais
sistemática em torno dos direitos humanos fundamentais conduziu à
difusão de documentos, como os de Tomás de Aquino, que
ressaltavam a dignidade e igualdade do ser humano por ter sido criado
à imagem e semelhança de Deus. Outros documentos medievais que
merecem destaque são a Magna Carta, outorgada por João Sem-
Terra, no século XII, que reconhecia diversos direitos imputáveis ao
homem, dentre os quais a liberdade eclesial, a propriedade privada, a
liberdade de ir e vir e a desvinculação da lei e da jurisdição da pessoa
do monarca. Já na Modernidade, o Habeas Corpus Act, de 1679,
lançado pelo parlamento inglês, determinou que a pessoa acusada
fosse apresentada para julgamento público, consagrando o amparo à
liberdade pessoal. Por sua vez, a Bill of Rights de 1689, também na
Inglaterra, enrobusteceu as atribuições legislativas do parlamento
frente à Coroa Inglesa e proclamou a liberdade da eleição dos
membros do Parlamento, consagrando algumas garantias individuais
(COMPARATO, 2003).
Entretanto, a solidificação dos direitos humanos no Ocidente
adquiriu realmente musculatura sob impacto das revoluções
estadunidense (1776) e francesa (1789). Com a Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América, todos os estados do
país estabeleceram organização própria, assentada num conjunto de
princípios com vistas à salvaguarda dos direitos humanos. Por seu

- 107 -
lado, a Revolução Francesa fundou suas bases no Iluminismo,
perspectiva filosófica cujos talantes incluíam o uso da razão como
forma de desafiar as autoridades eclesial e monárquica. Até então,
bem o sabemos, vigorava o Ancien Régime, no qual a ascensão
dinástica se impunha sob pretexto de que o Rei era representante
humano de desígnios divinos transcendentes. Com o
desmantelamento desse regime pela república, cuja denominação de
origem latina res publica (coisa pública) denota sua configuração
como governo do povo e para o povo, propalava-se a garantia, a todos
os homens, do exercício da cidadania, sob a égide dos princípios
iluministas de Liberté, Igualité e Fraternité. Se bem que modelada a
partir da revolução estadunidense, a francesa se tornou marco
simbólico na inauguração do Direito Moderno pela sua
universalidade, haja vista a incorporação de seus ideais por diversas
nações ao redor do mundo:

Com a Revolução Francesa, entrou


prepotentemente na imaginação dos homens a
idéia de um evento político extraordinário que,
rompendo a continuidade do curso histórico,
assinala o fim último de uma época e o princípio
primeiro de outra. Duas datas, muito próximas
entre si, podem ser elevadas a símbolos desses dois
momentos: 4 de agosto de 1789, quando a
renúncia dos nobres aos seus privilégios assinala o
fim do antigo regime feudal; 26 de agosto, quando
a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem
marca o princípio de uma nova era (BOBBIO, 2004,
p. 123).

- 108 -
Uma das principais contribuições da Revolução Francesa para
os direitos humanos consistiu, ainda em sua primeira dentição, na
Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, cujo
preâmbulo anunciava os ideais libertários e liberais e os direitos
fundamentais da humanidade. Pela primeira vez, estabeleceu-se
distinção entre homem (detentor de direitos naturais e inalienáveis)
e cidadão (possuidor de direitos descritos em lei e garantidos pelo
direito positivo). A reverberação desse manifesto teve forçoso
impacto na concretização dos direitos humanos, visto que inspirou
diversas constituições.
Já no século XIX, a noção de direitos humanos se atrelou
sobremaneira à Revolução Industrial, com o fito de assegurar, a todos
os cidadãos, as supostas benesses advindas do modo de produção
capitalista. A nova configuração socioeconômica, ao introduzir a ética
do trabalho e do consumo, levou à preconização de novos direitos,
tais como o direito ao trabalho, ao consumo e a serviços como saúde
e educação. No entanto, o vertiginoso processo de urbanização fez
com que se evidenciassem as desigualdades sociais, desencadeando
intensas batalhas por condições laborais que recrudesceram a
demanda pelo que se denominaria direitos humanos, cujo cerne
abriga a origem da justiça social.
Entre o anoitecer do século XIX e o alvorecer do XX emergiram,
juntamente com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os primeiros

- 109 -
precedentes históricos para a internacionalização dos direitos
humanos, assinalados pelo engendramento dos Direitos
Humanitários, da Liga das Nações e da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Se bem que esses institutos hajam concorrido para o
processo de internacionalização dos direitos humanos, não foi antes
de meados do século XX, quando da Segunda Guerra Mundial e com
o escopo de resguardar os indivíduos das atrocidades do Holocausto
e das formas de violência cometidas pelos nazistas contra os judeus,
que se enrobusteceram as preocupações em torno da proteção
internacional aos direitos humanos (COMPARATO, 1999). Assim, sob
influxo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se fez, em
1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, anunciada pela
Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecida havia três anos.
A Declaração lograria tal importância que representaria o ápice do
humanismo político da liberdade:

Trata-se de um documento de convergência e ao


mesmo passo de uma síntese. Convergência de
anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde
sua promulgação, uma espécie de carta de alforria
para os povos que a subscreveram, após a guerra
de extermínio dos anos 30 e 40, sem dúvida o mais
grave duelo da liberdade com a servidão em todos
os tempos. Síntese, também, porque no bronze
daquele monumento se estamparam de forma
lapidar direitos e garantias que nenhuma
Constituição insuladamente lograra ainda
congregar ao redor de um consenso universal
(BONAVIDES, 2002, p. 527).

- 110 -
Ou, no dizer de Bobbio, com a Declaração Universal

os direitos do homem nascem como direitos


naturais universais, desenvolvem-se como direitos
positivos particulares, para finalmente
encontrarem sua plena realização como direitos
positivos universais. A Declaração Universal
contém em germe a síntese de um movimento
dialético, que começa pela universalidade abstrata
dos direitos naturais, transfigura-se na
particularidade concreta dos direitos positivos, e
termina na universalidade não mais abstrata, mas
também ela concreta, dos direitos positivos
universais (BOBBIO, 2004, p. 30).

Não obstante, os direitos humanos estão inscritos num


combate de ideias na medida em que sua matéria não se desenvolveu
de forma linear e contínua, mas em movimentos descontínuos que
expressam os conflitos e lutas políticas presentes na sua definição e
consolidação. Portanto, merece relevo a atualidade das ponderações
filosóficas de Hannah Arendt, pensadora de origem judia cujo
testemunho dos horrores de seu tempo impactou largamente suas
reflexões em torno dos direitos humanos.

Breves notas sobre Hannah Arendt


Johannah Arendt, ou simplesmente Hannah Arendt, como
ficou conhecida, nasceu em Hannover, na Alemanha, em 14 de
outubro de 1906. Descendente de judeus, vivenciou as

- 111 -
transformações políticas e sociais ocorridas nas primeiras quadras do
século XX. Doutora em Filosofia pela Universidade de Heidelberg, em
1929, escolheu como tema de sua tese o “Conceito de Amor em Santo
Agostinho” e teve como colaboradores alguns dos mais brilhantes
pensadores alemães contemporâneos, como Heidegger, Jaspers e
Husser. Com a eclosão do regime nazista comandado por Hitler na
Alemanha, em 1933, Arendt fugiu para Paris, onde prestou serviços
de assistência social junto a refugiados judeus e conviveu com
diversos intelectuais, inclusive o filósofo Walter Benjamin. Durante a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi enviada a um campo de
concentração como “estrangeira suspeita”, mas fugiu para New York,
onde permaneceria até a sua morte, em 1975 (ADLER, 2007).
Como sabemos, Arendt publicou obras respeitáveis sobre
filosofia política, tais como As Origens do Totalitarismo e A Condição
Humana, que, dentre outros de menor relevo, renderam-lhe
deferência perante os intelectuais do pensamento político ocidental.
Graças à sua contribuição para o pensamento filosófico e político do
século XX, tornou-se conhecida pela alcunha de pensadora da
liberdade, status erigido sobre uma consistente carreira filosófica
baseada em ponderações nas quais une pensamento e experiência. O
largo escopo de seu legado escritural se divide, grosso modo, em três
fases, nas quais a filósofa judia-alemã se propôs a compreender o
totalitarismo do século XX não pela reconstrução histórica dos fatos,

- 112 -
mas, sobretudo, por uma reflexão filosófica sobre o Poder, o Direito e
a Condição Humana:

a primeira, que engloba o estudo dos fenômenos


modernos do totalitarismo e do imperialismo,
iniciada com a publicação de “As Origens do
Totalitarismo”, em 1951, e completada com um
estudo intitulado “Eichmann em Jerusalém: um
Relato sobre a Banalidade do Mal”; a segunda,
que enfatiza sua reflexão sobre o homem, da qual
fazem parte “A Condição Humana”, publicada em
1958, e “The Life of the Mind”, publicada
postumamente em 1978; e a terceira fase, que se
inicia com a publicação de “Entre o Passado e o
Futuro”, com edição completa em 1968, perpassa
pelo estudo intitulado “Da Violência” e termina
com a publicação de “Crises da República”, em
1972, em que a autora faz um retrospecto e uma
reflexão sobre o pensamento político (FIORATI,
1999, p. 55).

Independentemente de qualquer circunscrição periódica, um


tema perpassa toda a obra da filósofa e constitui sua preocupação
nuclear, qual seja, o homem e os efeitos por ele sofridos em regimes
políticos autocráticos ou etnocêntricos e em sociedades balizadas
pela massificação. Esses elementos refletem as experiências vividas
por Arendt, como, por exemplo, a fuga do regime nazista alemão, sua
experiência no auxílio a refugiados na França e seu exílio nos Estados
Unidos. Essas situações lhe propiciaram alinhavar reflexões acerca,
sobretudo da existência e da efetividade dos direitos humanos.

- 113 -
Para Arendt, os direitos humanos, na forma que foram
idealizados século XVIII, já trazem consigo um problema em sua
concepção, na medida em que se tinha em mira um ser humano
“abstrato”. Os trágicos eventos ocorridos na primeira metade do
século XX assinalavam que a concepção de direitos humanos, fincada
na presumida existência de um ser humano como tal, colapsaria no
momento mesmo em que os quantos lhe haviam rendido alvíssaras
eram agora confrontados com pessoas que, de fato, encontravam-se
despojadas de todos os atributos possíveis, exceto o fato de ainda
serem humanos. A seu ver, há um direito universal que deve ser
respeitado por todos, independentemente de sua condição etno-
racial, geográfica ou religiosa e que não deve ser mensurado por
qualquer outro juízo, exceto pelo critério de ser humano: o “direito de
ter direitos”. Sob esse prisma, ao passo que outros direitos sofrem
mutações conforme circunstâncias históricas, há um direito que não
germina no interior da nação e, portanto, carece de mais do que
garantias nacionais (ARENDT, 1949).
Essa preocupação da filósofa estava ligada, possivelmente, à
condição dos judeus na Alemanha nazista e nos fluxos migratórios em
busca de liberdade e melhores condições de vida em outros países. Ao
refletir sobre a situação de apátridas no período entre as duas guerras
mundiais, Arendt demonstra que a proscrição dos direitos legais de
todo um grupo humano fora prefigurada pelo tratamento de minorias
e apátridas por países europeus após a Primeira Guerra. Uma vez

- 114 -
despossuídos de um governo que os protegesse, tais grupos foram
relegados à completa ilegalidade. Donde a condição paradoxal dos
direitos humanos: se, em termos principiológicos, são inalienáveis e
inequívocos porque presumivelmente existentes sem embargo de
pertencimento grupal, em termos práticos, precisamente quando
seres humanos são privados de um governo próprio e, desta feita, não
podem se socorrer de nenhum recurso que não os seus direitos
“naturais”, encontraram-se de todo desamparados de direitos.
Reduzidos à condição humana mais ínfima, não mais usufruem da
salvaguarda de nenhuma autoridade efetiva (ARENDT, 1989). A
filósofa ensina, pois, que um aspecto a ser considerado pelo
ordenamento jurídico é a dimensão totalizante da expressão direitos
humanos, quando o que se tem observado é que a luta de grupos
minoritários (como negros, mulheres e homossexuais) põe em
questão a homogeneidade do termo “humano”. Conforme veremos,
a ponderação arendtiana sobre os direitos humanos contribui para
refletirmos sobre a atual violação de direitos duramente conquistados
em nosso país.

Arendt e os direitos humanos em tempos de austeridade


A discussão formal sobre os direitos humanos teve origem com
a queda do Antigo Regime das grandes dinastias e com a ascensão da
república, a partir das Revoluções de 1776 (nos Estados Unidos) e de
1789 (na França). Já no século XIX, o debate em torno dos direitos

- 115 -
humanos esteve atrelado à primeira Revolução Industrial (a
maximização da produção pela sobreposição da maquinaria ao
trabalho artesanal) e a segunda (a da formação de mecanismos de
disseminação dos produtos industrializados mediante ampla
divulgação e comercialização). No século XX, por sua vez, a noção de
direitos humanos foi novamente trazida à baila em decorrência das
duas guerras mundiais e de seus efeitos trágicos. Assim, a Organização
das Nações Unidas (ONU) reafirmaria os direitos humanos elaborando
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que conclamava os
Estados nacionais a preconizarem o direito à vida (BONAVIDES, 2002).
Há de se notar, nessa contextualização, um patente
contrassenso. O fato de, ainda nos séculos XX e XXI, haver clamores
pelos direitos humanos evidencia que suas garantias não foram
concretizadas de todo. Como é sabido, os direitos humanos são
fundamentais para a dignidade da pessoa humana e sua plena
participação na sociedade, incluindo-se aí o direito à vida, à
alimentação, à saúde, à moradia, à educação, à segurança, à liberdade
e à igualdade, que devem ser tratados conjuntamente como
interdependentes, indivisíveis, complementares, universais,
inalienáveis e imprescritíveis. Contudo, esses direitos são existentes
de jure, mas, por vezes, não se consubstanciam de facto, em razão de
circunstâncias como, por exemplo, medidas governamentais
totalitárias. Tal descompasso dá claras mostras de que o direito à
cidadania não é uniformemente conferido a todos os indivíduos,

- 116 -
porque o abismo entre discurso e práxis nos remete ao alerta de
Arendt a respeito do quão abstrato o conceito de direitos humanos
pode se tornar quando descolado da materialidade das relações.
O desrespeito a tais direitos constitui violação de conquistas
da sociedade civil, uma vez que, antes de serem transcritos nas
constituições ou em textos jurídicos, os direitos humanos emergiram
de movimentos sociais, que proporcionaram uma revolução na
maneira de sentir e pensar da sociedade, principalmente no que diz
respeitos às lutas contra o poder. Notável exemplo em nossos dias
consiste na política econômica de austeridade, cujo corte de gastos
públicos restringe o acesso a benefícios que, em princípio, caberiam a
todos os seres humanos. No Brasil, tal política tem implicado ampla e
brusca redução de investimentos em programas sociais, bem como
nos âmbitos da saúde e da educação. Some-se a isso a tributação
excessiva e a implementação de reformas trabalhistas, que
vulnerabilizam ainda mais o empregado enquanto parte
hipossuficiente nas relações laborais, e previdenciárias, que
prolongam a espera de trabalhadores braçais pelo benefício da
aposentadoria. Como resultado da refutação de direitos, tem-se, no
Brasil de nossos dias, uma sociedade cuja cisão entre abundância e
escassez fere mortalmente a acepção de direitos humanos, na medida
em que tais direitos se destinariam, em tese, às partes mais
vulneráveis nas dinâmicas de poder:

- 117 -
O direito dos Direitos Humanos não rege as
relações entre iguais; opera precisamente em
defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas
relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos
mais necessitados de proteção. Não busca um
equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar
os efeitos do desequilíbrio e das disparidades. Não
se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se
inspira nas considerações de ordre public em
defesa dos interesses superiores, da realização da
justiça (CANÇADO TRINDADE, 1997, p. 25).

A esse propósito, convém retomarmos as concepções de


poder e totalitarismo tecidas por Arendt em reflexão sobre a violência
causada por um regime que mutila o homem de sua humanidade. Em
seu prisma analítico, não deveria haver uma relação lógica entre
poder e violência, pois o poder nunca poderá ser propriedade de um
indivíduo, na medida em que pertencerá sempre a um grupo que,
todavia, só conseguirá mantê-lo se permanecer unido. Desse modo,
afirmar que uma pessoa está “no poder” significa, na concepção
arendtiana, que esta foi empossada por um grupo para agir em seu
nome, pois o poder emerge do debate entre concidadãos a fim de
construir uma comunidade livre, de sorte que seja dispensável, dessa
maneira, a utilização da violência:

O poder corresponde à habilidade humana não


apenas para agir, mas para agir em concerto. O
poder nunca é propriedade de um indivíduo;
pertence a um grupo e permanece em existência
apenas na medida em que o grupo conserva-se
unido. Quando dizemos que alguém está ‘no

- 118 -
poder’, na realidade nos referimos ao fato de que
ele foi empossado por um certo número de pessoas
para agir em seu nome. A partir do momento em
que o grupo, do qual se originara o poder desde
começo desaparece, ‘seu poder’ também
desaparece (ARENDT, 1989, p. 289).

Arendt observou que o Estado-nação, ao estabelecer direitos


aos cidadãos, não contemplou sujeitos destoantes das categorias
jurídicas concebidas. Por conseguinte, os direitos humanos foram
negados às minorias marginalizadas do acesso à cidadania. Se a
humanidade dos homens se concretiza na esfera política, uma
sociedade na qual boa parte dos indivíduos não possui direitos de
cidadania e formam uma massa de sub-homens é fruto do
totalitarismo e, ao mesmo tempo, um espaço livre para a
autolegitimação do regime totalitário. Conforme vimos
anteriormente, a preocupação de Arendt acerca dos direitos humanos
gravita em torno, portanto, da proteção do indivíduo contra Estados
totalitários e, em dimensão transnacional, contra a intolerância pela
diferença. A seu ver, o idealismo em torno do qual os direitos
humanos estavam enredados não se convertia em realidade devido à
precarização da vida em sociedade, principalmente das condições
“subumanas” a que determinados grupos são relegados:

Uma concepção da lei que identifica o direito com


a noção do que é bom – para o indivíduo, ou para a
família, ou para o povo, ou para a maioria – torna-
se inevitável quando as medidas absolutas e
transcendentais da religião ou da lei da natureza
- 119 -
perdem a sua autoridade. E essa situação de forma
alguma se resolverá pelo fato de ser a humanidade
a unidade a qual se aplica o que é ‘bom’. Pois é
perfeitamente concebível, e mesmo dentro das
possibilidades políticas práticas, que, um belo dia,
uma humanidade altamente organizada e
mecanizada chegue, de maneira democrática – isto
é, por decisão da maioria -, à conclusão de que,
para a humanidade como um todo, convém
liquidar certas partes de si mesma (ARENDT, 1989,
p. 306).

Não é demais lembrar que outro tema largamente tratado por


Arendt consiste na condição dos apátridas, grupos humanos que,
expulsos do país de origem, não eram bem-vindos em lugar nenhum,
além de haverem perdido qualquer possibilidade de tutela jurídica do
Estado. Ao não terem cidadania, acabavam por não ter existência
formal por não constituírem personalidade jurídica. Esses indivíduos
ficavam à margem do direito porque, em suma, eram despossuídos do
“direito a ter direitos” (ARENDT, 1989). Ora, podemos afirmar, em
nível metafórico, que há apátridas no interior de suas próprias nações:
os sujeitos destituídos ou subtraídos de sua cidadania mediante, por
exemplo, a conversão de direitos em serviços perpetrada por medidas
como a privatização de benefícios públicos como a saúde e a
educação.
Quando se coloca em questão os direitos humanos, coloca-se
também em questão a participação política do sujeito enquanto
agente na polis, inscrito num regime democrático. Discutir direitos

- 120 -
humanos implica, pois, discutir a condição, dada ou negada ao ser
humano, de ter acesso aos mesmos direitos e prerrogativas de seus
coetâneos. Nesse ponto, a Filosofia e o Direito se encontram, na
medida em que aquela busca refletir acerca da condição humana e da
politização da vida em sociedade e este visa assegurar aos indivíduos
o pleno exercício da cidadania. Exercício cujo acesso se torna mais e
mais restrito sob um governo de cariz totalitário, que, na acepção
arendtiana,

não se trata de um governo despótico que quer


perpetuar-se no poder, como os regimes
autoritários latino-americanos da segunda metade
deste século, mas sim de um governo que despreza
a si próprio e à sua utilidade, mantendo uma insana
burocracia por intermédio do terror aos súditos
[...]. A sobrevivência do governo e sua perpetuação
no poder se dá por meio da constante subjugação
dessas categorias e da constante ameaça a todos
os outros indivíduos de serem subjugados
(FIORATI, 1999, p. 60).

O fato de Arendt focalizar regimes totalitários de sua época,


como o nazismo e o stalinismo, não significa que sua teoria não tenha
validade hoje. O não cumprimento dos direitos de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade para todos indica que a filosofia de Arendt é
relevante por alertar sobre a periculosidade do regime de poder que
não oferece isonomia a todos. A filósofa nos ensina, dentre tantas
outras coisas, a ver na cidadania o direito a ter direitos, uma vez que
a igualdade não é um dado, mas um work-in-process forjado no

- 121 -
espaço público, que constitui, neste caso, uma arena de resistência à
opressão:

Arendt talvez nos mostre a chave para a


compreensão de experiências totalitárias,
negadoras dos mínimos direitos da população, ao
mencionar que, no início dos movimentos nazistas
e stalinistas, existiam pessoas, como os
desempregados, refugiados, apátridas,
homossexuais e marginais; que eram percebidas
pelas outras pessoas como seres supérfluos, seres
despidos de qualquer utilidade. O totalitarismo
nasce, então, em virtude da própria condição de
animal laborans do homem moderno: um homem
que apenas sobrevive, cujos valores se encontram
em descrédito, que tem dificuldade para pensar e
formular um conceito de mundo e, por isso, pode
ser manipulado, não possuindo sua opinião, se
isolada, maior importância num mundo em que ele
não compartilha com os outros, onde ele
representa o acréscimo de mais um na massa de
outros seres igualmente anônimos (FIORATI, 1999,
p. 62).

Uma vez que as medidas de austeridade adotadas pelo


governo brasileiro possuem feição inequivocamente liberal, vale
mencionar o posicionamento de Arendt em torno do liberalismo.
Conforme seu juízo, o fosso entre o ideal de igualdade jurídica formal
e o alargamento das desigualdades sociais no capitalismo são
contradições inerentes à comunidade política das democracias
liberais modernas, nas quais o liberalismo, longe de cumprir suas
promessas, avigora o totalitarismo (ARENDT, 1989). Uma vez que a

- 122 -
austeridade, pautada em medidas impopulares, de cariz draconiano,
colide frontalmente com os direitos humanos, o principal ponto de
encontro entre o legado filosófico de Arendt e o campo do Direito
reside no imperativo de uma política que faça valer efetivamente a
democracia. Para tanto, torna-se premente a inserção de grupos
relegados à margem da sociedade para que o totalitarismo ceda lugar
à democracia.

Considerações finais
Este capítulo evidenciou, mediante análise do pensamento
filosófico de Hannah Arendt, que é no interior do debate político, em
sentido lato, que a condição humana pode alcançar sua plenitude. A
principal crítica dessa filósofa, no que concerne à intersecção entre
filosofia e Direito, dirige-se, portanto, ao Estado – mais precisamente
às formas com que o Estado gerencia os cidadãos sob sua égide.
A obra de Arendt se mostra fundamental para pensarmos a
atual conjuntura política, social e econômica do Brasil, sobretudo no
que toca à necessidade de garantir proteção jurídica às minorias
sociais, étnicas e sexuais a possibilidade de exercer cidadania numa
conjuntura de austeridade balizada pela sistemática retirada de
direitos e fornecimento de benesses. Afinal, é a massa populacional
despossuída de privilégios e, por isso mesmo, dependente de serviços
públicos como saúde e educação que, à semelhança do que observou

- 123 -
a filósofa noutro contexto, tem sido vítima das formas mais
contundentes de desrespeito à dignidade humana.
As produções filosóficas de Arendt, cuja totalidade este
trabalho não pretendeu abarcar, convergem para uma preocupação
central a respeito da condição humana frente às injunções políticas,
sociais, econômicas e culturais. Desse modo, sua obra se caracteriza
por uma aguda percepção das relações, não raro conflituosas, entre o
homem e o espaço que habita. Por isso sua atualidade para pensarmos
a anomia política por que passa o Brasil sob um governo de transição
cuja estratégia econômica de austeridade como forma de ajuste das
contas públicas tem levado a injustiças sociais, abusos de poder e
negação de direitos. Que as lições arendtianas nos inspirem na luta
para que os ideais que balizaram o advento da república não se tornem
um discurso vazio, desacompanhado de uma práxis que lhe dê
significação.

- 124 -
Referências

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Trad. Tatiana Salem Levy
e Marcelo Jacques. Rio de Janeiro: Record, 2007.

ARENDT, Hannah. The Rights of Man: What Are They? Modem Review,
v. 3, n. 1, p. 24-37, Summer 1949.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo.


São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1996.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Campus, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo:


Malheiros, 2002.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito


Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, v. I, 1997.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos


Humanos. São Paulo: Saraiva, 2003.

FIORATI, Jete. Os direitos do homem e a condição humana no


pensamento de Hannah Arendt. Revista de Informação Legislativa, v.
36, n. 142, p. 53-63, abril/junho 1999.

HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Vol. I –


Gênese dos Direitos Humanos. Guarulhos: Acadêmica. 1994.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de


Derecho y Constitución. Madri: Tecnos, 2002.

- 125 -
A reforma trabalhista neoliberal sob a ótica do primado da
afetividade42

Dorival Fagundes Cotrim Júnior

A Reforma Trabalhista: Um reforço do Paradigma da Dominação


No Brasil os trabalhadores têm como principal legislação
referente ao tema, além da Constituição Federal de 1988, a
Consolidação das Leis Trabalhistas, também conhecida como CLT,
elaborada na década de 30.
No ano de 2016, com longos anos de vigência da CLT, após o
impeachment da Presidente Dilma Rousseff e a tomada da Presidência
pelo senhor Michel Temer, agora presidente, o Poder Executivo por
este chefiado elaborou o Projeto de Lei 6787/2016.
Salienta-se que a reforma altera mais de 100 artigos da CLT,
posta em regime de urgência pelo Senado, quando da sua
tramitação43.
Diretamente essa reforma não altera nenhum texto
constitucional, mas indiretamente deixará muitos artigos da

42 Este trabalho foi originalmente publicado na Revista dos Tribunais, Ano 106,
Novembro de 2017, Volume 985 sob o título O Primado da Afetividade e a Reforma
Trabalhista Neoliberal.
43
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/senado-vota-urgencia-
da-reforma-trabalhista-nesta-terca. Acessado em 04 de julho de 2017.

- 126 -
Constituição referentes ao direito do trabalho como letra morte,
portanto, ineficaz.
Vamos agora arrolar alguns dos direitos que essa infeliz
reforma retirou do trabalhador. Passará a ser permitida a supressão
do intervalo de descanso, o trabalho intermitente, que é aquele em
que o trabalhador só recebe pelas horas que efetivamente trabalhar,
sem remuneração de descanso ou de férias, institucionalizando o
“bico”.
Permite ainda a terceirização em todas as atividades da
empresa, diferindo do atual, que só pode para atividades-meio; e que
gestantes trabalhem em ambientes insalubres, que trazem dano à
saúde, com a única necessidade de apresentar atestado médico que
garanta que não há risco ao bebê e nem à mãe.
No caso de trabalhos intermitentes as horas trabalhadas
podem ser alteradas livremente pelo empregador, afetando
diretamente a remuneração do empregado, que receberá com base
nas horas trabalhadas. Portanto, para ganhar o que ganha antes da
eventual reforma terá que procurar outros empregos
necessariamente.
O “negociado” entre patrão e empregado terá prevalência
frente ao legislado. Ou seja, os trabalhadores “podem” negociar
condições piores de trabalho, não respeitando o mínimo legal
estabelecido, abrindo mão de direitos através de acordos ou

- 127 -
convenções coletivas44. E como se sabe, o trabalhador não tem poder
algum de negociação se se considerar a força do empregado.
A reforma também prevê que empresas com mais de 200
funcionários possam realizar acordos com representantes nomeados,
no número de três, não obrigatoriamente ligados ao sindicato daquela
categoria, o que se afigura inconstitucional45.
A negociação poderá ser direta com o patrão, mas a maioria
das previsões é no sentido de se negociar por meio do sindicato, com
validade para toda a categoria. Na esteira da exclusão de direitos e de
afronta ao texto constitucional será permitida jornada de 12 horas,
com 36 horas de descanso, respeitando, ainda, o limite de 44
(quarenta e quatro) horas semanais ou 48 (quarenta e oito), com as
horas extras; e banco de férias anual, além do parcelamento de férias
(em até três períodos), décimo terceiro e supressão do intervalo.
Em tese não poderia haver a demissão e posterior
recontratação para ganhar menos46. Mas a ideia é que os
trabalhadores contratados a prazo indeterminado sejam terceirizados,

44 Em negociações sobre redução de jornada ou de salários, imperiosa uma cláusula


de proteção dos empregados contra demissão durante o prazo de vigência do
acordo, mas sem necessidade de contrapartidas. E aqueles individualizados de livre
negociação, quando o empregado tiver nível superior e salário mensal igual ou
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do INSS prevalecerão sobre o
acordo coletivo.
45
Os sindicatos continuarão atuando apenas nos acordos e convenções coletivas.
46 Com o texto final da Lei, haverá uma quarentena de 18 meses, vedando o patrão
de demitir o trabalhador efetivo para recontratá-lo como um terceirizado. Após isso,
“libre escolha”.

- 128 -
fazendo com que não haja criação de novos postos de trabalho e sim
a transformação dos antigos em trabalhos precários.
Se é que alguém ainda tem dúvidas, é evidente que os
terceirizados não terão os mesmos direitos dos trabalhadores
contratados diretamente, vez que ele se submete a outra empresa
prestadora de serviços, com outras condições, salários e sindicato47.
Como os contratos de terceirização se renovam a cada dois ou
três anos, é possível que o contrato formal se rompa quando o
trabalhador estiver para gozar as férias, fazendo com que outra
prestadora assumisse a contratação, dando início a uma nova
contagem do tempo de trabalho, implicando em redução do salário
(que volta a ser o inicial) e a perda das férias48.
Uma situação que significa praticamente chancelar a fraude diz
respeito à despedida sem justa causa e sem nenhum acordo. Se patrão
e empregado negociarem, este pode sair sem os 40% de multa sobre
o FGTS (somente metade), o saque de 100% do FGTS (só 80% do valor
depositado pela empresa) e sem seguro-desemprego.

47 O texto final da lei prevê que este terceirizado terá as mesmas condições de
trabalho dos efetivos. Com base nas experiências previas de terceirização não era
bem isso que acontecia. Com o transcurso do tempo poder-se-á analisar se esta
previsão será obedecida ou mesmo se haverá fiscalização para o seu cumprimento.
O não se afigura, pelo menos atualmente, como a resposta mais plausível para
ambas questões.
48
O site Carta Educação fez um estudo em Brasília que constatou vários terceiros
sem tirar férias há mais de 10 anos. É no mínimo humilhante e aterrorizante.
Disponível em: http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/me-
explica/entenda-reforma-trabalhista/.

- 129 -
Não é verdade que a reforma tenda a reduzir o desemprego.
Se fosse uma reforma para a redução da jornada de trabalho, aí sim
poderíamos pensar em aumento de postos de trabalho. O que vai
acontecer é a contratação intermitente, terceirizada ou em tempo
parcial.
A situação do trabalhador na justiça também fica dificultada,
quando este vier a buscar seus direitos. A reforma prevê que caso o
trabalhador não compareça a audiência tenha que pagar custas para
renovar a ação e a sucumbência recíproca (nos direitos que reivindicar
e perder pagaria a verba sucumbencial), representando verdadeiro
desestímulo para a busca judicial dos seus direitos49.
Não é verdade dizer que a CLT é antiga, pois ela já foi muito
modificada. A terceirização, por sua, era prática do século XIX e foi
tolhida justamente porque arruinava as condições de trabalho,
gerando doenças e prejudicando o consumo; bem como a
remuneração por produção, superada porque gerava prejuízos
individuais e sociais.

49 A Lei nº 13.467, texto final, prevê a obrigatoriedade de comparecimento do


trabalhador a todas as audiências e caso perca a ação arcará com as custas
processuais e quem perder pagará os honorários de sucumbência entre 5% e 15% do
valor da sentença. Mesmo aquele com direito à gratuidade de justiça arcará com os
honorários, salvo os de perícia, caso não tenha obtido créditos em outros processos
que lhe permitam suportar essas despesas. E para todos os casos, quando o
empregado assinar a rescisão contratual, ficará impedido de questioná-la
posteriormente na Justiça do Trabalho, cujo parte do nome (justiça) resta
complicado ou inexistente também.

- 130 -
Prêmios e abonos podem não fazer mais parte do salário, não
incidindo contribuição previdenciária. É ruim para a própria economia
do País, porque sem previsibilidade o empregado não terá o que
consumir.
A contribuição sindical, que passa a ser opcional, também
merece críticas, mas não pode ser alterada sem uma ampla discussão
com a sociedade, sobretudo com a participação dos diretamente
interessados no assunto. E além, para se discutir fim do imposto
sindical é preciso previamente discutir a garantia do emprego, redução
da jornada, aumento de salário, que são as condições de possibilidade
da própria organização sindical.
No caso dos professores, esses podem ser sim afetados com a
reforma, fazendo com que escolas passem a contratar por meio de
empresas ou cooperativas, não criando o vínculo direto, pulverizando
a classe de professores e impedindo lutas organizadas.
Por fim outra falácia comumente proferida diz respeito aos
países mais desenvolvidos, no sentido de que teriam menos direitos
trabalhistas, o que não é verdade. Países como Alemanha ou Estados
Unidos possuem uma história de regulação diferente50, sendo muita
coisa definida com os sindicatos em negociações coletivas que,
sobretudo, preservam e majoram os direitos sociais. A lógica é

50
Para maiores informações ver GODINHO, 2015, p. 1448 e seguintes.

- 131 -
exatamente a inversa: nesses países há mais direitos sociais do que no
Brasil, havendo, por exemplo, garantias contra a despedida.
Agora apresentaremos breves linhas acerca do Paradigma da
Dominação, posteriormente o emergente Paradigma do Cuidado,
desde já apresentando algumas ligações do tema com o nosso objeto
principal de investigação, a reforma trabalhista de 2016 ou 2017, a
preferir.

O Paradigma da Dominação
Paradigma, Imaginário e Crises de Conhecimentos
Estamos falando reiteradamente sobre paradigmas e
primados, afirmando que há dois paradigmas em conflitos, um
moderno e em crise e o outro em ascensão, contemporâneo. Nesse
sentido parece-nos razoável apresentarmos algumas linhas sobre o
que estamos querendo sobre paradigma, portanto, qual o nosso
conceito acerca deste objeto.
O Cuidado é visto, assinala Plastino, como “fator central na
constituição dos sujeitos e na organização dos laços profundos que
constituem o tecido social51”. Então os processos de constituição
subjetiva de cada individualidade são frutos de práticas vivenciadas
em vários ambientes, desde o ambiente familiar, passando pelos
escolares e trabalhistas, até alcançar a vivência no seio social nacional

51
PLASTINO, 2016, p. 27.

- 132 -
e global, nas quais cada ser humano exprime a si mesmo, sua
criatividade, suas pulsões, seu jeito de ser, de pensar, etc., sendo
fortemente influenciado pelo ambiente que o cerca, tal como nos
assinala Rousseau em algumas das suas obras52.
Dessa forma a característica (ou predicado) das ligações sociais
é indissociável dos valores extraídos ou absorvidos dos contextos nos
quais se organizam as crenças, os ideais, as aspirações, que, em
conjunto, formarão a organização imaginária de cada sociedade, tal
como aponta Castoriadis53. Lastreado nessa formação concatenada de
ideias, pode-se agora formar o paradigma, podendo ser entendido
como o conjunto de crenças e valores que integram este imaginário.
Dentro desse paradigma podem-se incluir as alterações
operacionalizadas nos ambientes científicos, pois estas integram
aquele, como das questões epistemológicas implicadas nesses
processos de construção de saberes, bem como o surgimento de
novos saberes ou novas formas de produção de conhecimento, que
produz, como se sabe, novas formas de crenças vigentes54, novas

52
Ver ROUSSEAU, 2011; ROUSSEAU, 2017; ROUSSEAU, 2005.
53
O conceito de ‘imaginário’ aqui utilizado é no sentido que lhe atribui CASTORIADIS,
1978. Ele deixa claro que imaginário não é o oposto ou reflexo do real, mas é “criação
incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica)” de imagens
e formas, através das quais torna-se possível falar de “alguma coisa”.
54
Vide a transformação operada com o Renascimento e Iluminismo, que juntos
fundamentaram o primado da razão e da técnica científica, paulatinamente, fazendo
com que o imaginário social passasse a considerar, em processos de argumentação
e de produção de conhecimento, por exemplo, a razão e a técnica científica,
diminuindo toda e qualquer outra forma de conhecimento, como os tradicionais,
culturais, de povos autóctones.

- 133 -
concepções sobre a forma de ser da realidade (ontologia), novas
formas de conhecimento (epistemologia) e formas de entendimento
do ser humano e das suas capacidades (antropologia).
Portanto, paradigma é um modelo geral fundado em certas
concepções fundamentais (ou crenças), que direciona e orienta
durante um período histórico as linhas de atuação, organização e
vivência de uma sociedade humana.
Nesse sentido é, como não poderia deixar de ser, um
constructo histórico, imaginado e delimitado pelas pessoas dessa
época. Conhecendo este dinamismo não se pode considerá-lo
inquestionável ou não passível de ser superado, quando, em realidade,
é exatamente o contrário que se dá, possibilitado inclusive pelas
próprias concepções fundamentais que o organizam, que, em
constante abertura, desenvolvem outros conhecimentos,
aprofundado os que já possuem e também excluindo outros que se
mostraram equivocados com o tempo, desmentindo possivelmente
certo pressuposto basilar do seu próprio paradigma.
Todo paradigma é obra do homem, todo conhecimento
discursivo é uma produção, um constructo, e como tal, tem um
começo e passível de ser afetado por crises e ser substituído, não
sendo uma construção eterna e imutável, como aponta Heráclito de
Éfeso55.

55
Em sua mais conhecida frase, “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”, o
autor deixa claro a mutabilidade e a transformação constante da vida como um todo,

- 134 -
Os processos de crise e de substituição, que são processos
históricos que avançam no tempo por longos períodos normalmente e
surgem quando duas cadeias de condições estão presentes, conforme
aponta Boa Ventura de Sousa Santos56. A primeira condição diz
respeito às crenças fundamentais do paradigma vigente, que em dado
momento começam a ser interrogados pelos conhecimentos
produzidos tanto no interior quanto à margem desse próprio
paradigma57. A segunda condição refere-se aos resultados desse
paradigma, ou seja, à civilização criada e organizada a partir de crenças
basilares.
Com relação ao modelo atual que vivemos tem-se que a
primeira condição para a mudança está expressa desde o início do
século XX e para a segunda condição a multidimensional crise da
contemporaneidade, envolvendo as questões climáticas, econômicas,
políticas e sociais, sinalizando que a sociedade está em inegável crise.
Nesse sentido, como assinala Plastino (2016),

vive-se hoje não apenas a crise de uma concepção


do conhecimento, totalitária e excludente, mas
também uma severa crise de civilização.
Organizada em torno das ideias centrais de

considerando os seus mini processos formadores, como o ato de conversar com uma
pessoa, passando por transformações a nível subjetivo ou social, como a mudança
de uma legislação, não necessariamente para uma nova que seja melhor, mas
necessariamente será diferente.
56
SANTOS, 2008.
57
Aqui inclui-se, por exemplo, a emergência da Física Quântica e suas consequências
para os estudos científicos da contemporaneidade.

- 135 -
conflito, conquista e dominação como
característica fundamental das relações entre os
homens e destes com a natureza e possuindo
profundas raízes na organização patriarcal, esse
imaginário predatório abrange não apenas a
concepção da natureza e das relações dos homens
com a natureza: inclui ainda a concepção dos
homens sobre si mesmos — e sobre sua própria
natureza — e das relações entre eles.

Aqui já se torna possível elencarmos algumas das ideias


fundamentais do paradigma moderno ou da dominação, quais sejam,
o conflito, a conquista, a sede de posse de dominação, com raízes na
organização patriarcal, portanto predatório, tanto do homem para
com a natureza quanto do homem sobre si mesmo.
É nessa relação do homem sobre si mesmo, portanto, nessa
relação intersubjetiva é que se apresenta como forma de expressão a
relação dos homens no mercado de trabalho, fortemente marcado por
essa ideia de dominação, de subordinação e assujeitamento, no qual
o patrão ou empregador procura, a todo instante, formas de
aprisionamento do ser que lhe deve respeito, tentando de todas as
formas limitá-lo e cercá-lo de controles e regimentos, impedindo o
livre desenvolvimento das suas capacidades58.

58
Essa situação, globalmente considerando, começa a entrar em decadência, quando
empresas mundiais do setor de tecnologia estão cada vez mais apostando na
liberdade do trabalhador, prezando pela criatividade e inventividade deste,
deixando-o ir ao trabalho de chinelos e camisas regatas, podendo dormir inclusive
no horário de expediente ou mesmo colocando-o para trabalhar não mais sob um
regime temporal e espacialmente fechado, mas sob um regime de alcançar metas
(produtividade) e de homeworking. O próprio capitalismo, nessa possível nova fase,

- 136 -
Como exemplos cruéis e degradantes as horas exaustivas de
trabalho, em regimes extra-legais de 10, 12 horas por dia sem
compensação; a privação do uso de banheiros em determinados
momentos ou limitando este tempo; o não pagamento correto das
verbas que são de direito dos trabalhadores, não somente após a
rescisão do contrato de trabalho, mas também durante a vigência do
mesmo. Isso sem contar os exemplos mais grotescos dos
trabalhadores braçais em cultivos de commodities nacionais, como a
cana de açúcar, o café e o algodão, nos quais os empregados são
submetidos a regimes temporalmente mais exploratórios, como de 16
horas por dia, tal como no início da Revolução Industrial nos países do
Norte59, até os nefastos supermercados, cuja propriedade é do
latifundiário (também patrão), com preços acima da média, mas nos
quais os trabalhadores são obrigados a comprar, devido a grande
distância dos núcleos urbanos, fazendo com que eles gastem todo o
dinheiro já pouco na subsistência, não restando mais nada quando da
chegada do pagamento, vez que são concomitantemente descontados
pelos coordenadores dessas “vendinhas”.
Diante dessas crises novas possibilidades se apresentam para a
sociedade, tornando imprescindível uma profunda transformação das

está fortemente marcado por essa primazia da criatividade, mas operando sob os
mesmos eixos que já vem trabalhando a algum tempo, qual seja, a de criar novas
necessidades para os seres humanos. Nesse sentido, ver ROUSSEAU, 2011.
59
Ver o site da Info Escola. Disponível em:
http://www.infoescola.com/historia/revolucao-industrial/.

- 137 -
ideias (do imaginário coletivo), a fim de saírem da crise, abrindo a
possibilidade (sempre a possibilidade) de um novo imaginário, isto é,
outra maneira de conceber os homens, as suas ciências, suas
sociedades, suas organizações políticas, suas formas de produção.
2.2 Elementos do Paradigma da Dominação
É primordial apresentar uma síntese dos elementos desse
paradigma da dominação. As raízes deste paradigma, segundo aponta
Plastino60, mesmo que alterados pelas transformações nas crenças e
relações sociais, mantém a sua forte vinculação com as crenças
basilares do imaginário patriarcal. Este, por sua vez, como é sabido, é
o dominante há mais de 5 mil anos e se sustenta na ideia principal de
que há uma hostilidade entre cada indivíduo e também no próprio
tecido social, hostilidade que seria insuperável, tornando, por
conseguinte, imprescindível recorrer à repressão e à dominação a fim
de tornar viável a vida em sociedade61.
O paradigma patriarcal viu crescer a sua crise ao longo do
século XX, atualmente criticado e relativizado em seus múltiplos
aspectos. Equívoco, como aponta Plastino no mesmo artigo é atribuir
a essa crise do patriarcado o papel de causador da crise da civilização,
sendo esta uma leitura do pensamento conservador, que pavimenta o

60
PLASTINO, 2016, p. 28.
61
Como visto em Hobbes, O Leviatã, na sua conhecida imagem de que o homem é o
lobo do homem. Muita da estrutura prisional ainda em voga se sustenta nessa crença
da necessidade da repressão para tornar factível a vida em sociedade e não em uma
tentativa de ressocialização, uma vez que se aprende socialização quando se busca
socializar e não retirá-lo do convívio.

- 138 -
caminho para as mais variadas formas de expressões de
autoritarismos, visualizado no cenário contemporâneo62.
A crise do patriarcado não é causa da crise de civilização, mas
exatamente o contrário, constitui essa crise do patriarcado um
elemento para a superação desta, já que se torna possível criar novos
imaginários com outras formas de ação, reflexão e intervenção. Os
elementos centrais deste paradigma em crise são conflito, conquista e
dominação, que se radica nos mais diversos dualismos para
entendimento e ação na realidade.
O dualismo central é o que separa, segundo Plastino63, o ser
humano da natureza, incluindo a sua própria natureza, seu corpo, seus
sentimentos e sensações64. Na construção progressiva do patriarcado
o homem foi definido por sua capacidade racional, levando a
progressiva desvalorização das suas características naturais, corpo e
afetos. Dentro dessa forma de pensar tudo o que se origina em a
natureza, no corpo e nas suas paixões, passou a ser visto como algo
incompatível com a vida moderna, civilizada, racional, infinitamente

62
Ascensão de ideologias políticas dominadoras e totalizantes no Brasil, que buscam
retomar formas de escravidão e de perseguição a homoafetivos e de reforço ao
patriarcado, com apoio inclusive de membros destas minorias.
63
Plastino, 2016, p. 28.
64
ROUSSEAU, 2017, aponta no sentido contrário, ao trazer-nos que “primeiro
aprendeu a sentir e depois a pensar”. E também quando, por exemplo, aponta pelo
menos em toda a primeira infância do homem, a necessidade de aprender a dialogar
com o corpo, compreendendo os seus sinais e como se pode aprender com ele, a
partir dos dedos e de uma audição acurada.

- 139 -
superior à vida pregressa, devendo, por consequência, ser dominado,
ordenado pela razão.
E ao aproximar a mulher da natureza, das paixões, dos
sentimentos e da vida privada; e o homem à vida pública, racional,
cultural, o imaginário patriarcal inseriu o feminino no polo inferior
deste dualismo natureza x cultura, tornando-a também um objeto de
dominação.
Esse reducionismo epistemológico impactou profundamente a
produção de conhecimento, desvalorizando os saberes
compreensivos, capazes de lidar com a extensa parcela do real que não
faz parte do aspecto material e nem se comporta (se orienta) da
mesma forma que essa vida material, através das leis de determinação
direta.
Nesse sentido os saberes humanos foram subordinados à
lógica organizacional das ciências das matérias em um esforço de
torná-las também ciências explicativas, tal como se explica a Lei da
Gravitação Universal de Newton. Esses saberes compreensivos não
operam atribuindo causas aos efeitos com que lidam, tal como no
campo da matéria dura, pois lidam com a complexidade da vida
humana e social, passível de compreensão, é claro, mas inabordável
por esses saberes exatos65.

65
Esse dualismo exige ainda que se aprofunde a crítica sobre ele, uma vez que o novo
paradigma está emergindo e o atual ainda está de pé. Nesse sentido, algumas críticas
feitas a ele, como pelas teorias da linguagem não foi acompanhada pela crítica ao
dualismo. Portanto, ainda não buscou novas epistemologias e nem reconheceu a

- 140 -
Boa Ventura aprofunda a crítica aos dualismos, defendendo a
legitimidade de conhecimentos intersubjetivos, compreensivos e
descritivos. Essa postulação por um conhecimento descritivo e
compreensivo (e não analítico e explicativo) torna-se necessário ao
reconhecer a diversidade das formas de saber e ser do real. Dessa
forma abandona a concepção do corpo máquina e também a crença
que se atribui à consciência e à linguagem o monopólio nos processos
de apreensão e produção de sentido, como os insights ou intuições66.
Essa modelo essencialista, segundo Plastino67, tem inspiração
platônica, quando este postulou que há uma ordem racional e
imutável em a natureza, passível de conhecimento progressivo pelo
esforço da razão humana. Esta crença, que está vigorando, sustenta a
capacidade humana de se apropriar do conhecimento discursivo das
leis que organizam a totalidade do real, nutrindo a onipotência
iluminista.
Boa Ventura nos aponta que chegamos ao final do século XX
cheios de desejo quase desesperador de complementarmos o
conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das
coisas (interior), isto é, com o conhecimento de nós próprios68. A

natureza como um ser vivo atuante, operante e que não serve aos caprichos
humanos, portanto, que não existe só para o deleite e a dominação humana.
66
A própria natureza também dá sinais neste sentido. As andorinhas sabem quando
vai chover. Disponível em: https://vidazooilogica.wordpress.com/2009/04/15/eles-
sabem-quando-vai-chover/.
67
PLASTINO, 2016, p. 29.
68
SANTOS, 2000, p. 31.

- 141 -
concepção da natureza externa como máquina levou-nos a ignorar a
riqueza da vida na natureza, cujo dinamismo foi reduzido a uma única
causa.
Dessa forma imaginada a natureza seria apenas extensão e
movimento, passível, eterna e reversível, uma grande estrutura cujos
elementos são possíveis desmontar e formular em formas de leis,
tornando possível a sua dominação pelo homem.
Esta dominação exprime a intencionalidade que inspirou a
criação deste paradigma e que consiste em produzir conhecimentos
racionais sobre as relações de causa e efeito vigentes na natureza,
permitindo a dominação humana, colocando-a a seu serviço. E como
a nossa sociedade é desigual, a exploração é para a sustentação destas
desigualdades. Isso é fundamental para entender que essa dominação
não atende a interesses humanos necessariamente, como mostra hoje
a crise climática, as crises políticas, englobando a do Estado de Bem
Estar Social (incluindo a trabalhista)69.

O Paradigma da Afetividade

69
Não se nega, é claro, os ótimos avanços e conquistas desse desenvolvimento
técnico-científico, mas nos levou a ignorar o movimento profundo e complexo da
natureza e seus delicados processos de equilíbrio interno. Talvez por ignorância
(desconhecimento) aceitamos acriticamente esse modelo mecânico de
compreensão da natureza.

- 142 -
Delimitados os pontos do paradigma da dominação é
imprescindível considerarmos o paradigma da afetividade. O motivo
comum da falência dos pressupostos da dominação está justamente
nas concepções dualistas que a embasam, rapidamente tratados aqui,
que nega, entre outras coisas, a complexidade da vida social,
mutilando o próprio ser humano ao ignorar as qualidades específicas
que possui, das experiências psicossomáticas e relacionais que
vivencia, impondo o modelo tradicional do conflito e da disputa, que
vê como insuperáveis e imutáveis.
A crise climática é um reflexo dos valores que orientam a ação
dos detentores do poder, tanto político quanto econômico e
comunicacional e da mesma forma a crise que observaremos logo mais
pelas reformas trabalhistas que querem se afirmar, ou melhor, que
querem ser afirmadas por estes detentores do poder, movidos pela
sanha da acumulação infinita (do querer sempre mais e mais, mesmo
que isto venha a prejudicar o outro ser humano que diretamente me
relaciono, ou outro ser humano que indiretamente me relaciono70, ou
mesmo o meio ambiente, que como vimos, ainda é visto como
subserviente dos interesses humanos, que desejam doentiamente ter
posses, propriedades, sobretudo materiais, mas ainda imateriais,

70
Vide o massacre de povos indígenas tanto de ontem quanto de hoje, com a nova
demarcação de terras indígenas ou a não demarcação, bem como o silêncio
aterrorizante do Judiciário. Para maiores informações acesse o site Justificando,
especificamente a matéria “O Supremo e a Não Demarcação de Terras Indígenas”.
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/28/o-supremo-e-
nao-demarcacao-de-terras-indigenas/.

- 143 -
desde que possam ser valoradas economicamente71). Esse modelo é
insuficiente para superação destas crises, que exige um profundo
processo de redemocratização, tanto do poder quanto da política,
tanto do poderio econômico/financeiro e também no campo das
comunicações – exige, enfim, uma democratização de todas as
relações humanas, incluindo das relações de trabalho, que ainda
guardam o ranço de práticas escravocratas, mantidas no país até 1888.
Não obstante a necessidade dessas condições para uma
organização social realmente democrática, isso não significa que o
acréscimo da consciência em torno da urgência dessas questões e da
consolidação de um novo paradigma, que venha a orientar as condutas
humanas, sintetizadas pela noção do Cuidado, não constitua uma
poderosa ferramenta em um processo que não aguenta mais esperar
a mudança.
A concepção que afirma a prioridade do olhar do cuidado tem
como eixo basilar “o reconhecimento da riqueza, da diversidade e da
complexidade da vida natural e da insuperável inserção dos sujeitos
nela, inserção que nutre e alicerça sua maravilhosa capacidade de
criar”72.
Nesse resgate de natureza humana a concepção emergente
enfatiza e resgata a evidência e a força da empatia, que significa uma

71
É o crescimento e o avanço a qualquer custo, não se importando com as
implicações éticas que podem causar.
72
PLASTINO, 2016, p. 30.

- 144 -
abertura para o outro, mas também aponta a necessidade que se tem
deste outro para a própria constituição enquanto sujeito e para o
desenvolvimento de viver uma vida boa73. Essa necessidade da
presença do outro para se constituir revela a prioridade das
necessidades emocionais do ser, dando nova profundidade à
singularidade de cada um, muito afastada da noção de indivíduo
beligerante, cuja inserção social devia ser imposta e mantida por
violência.
O paradigma do cuidado se sustenta então no reconhecimento
da alteridade do outro, que se tem na empatia natural sua raiz mais
profunda74. Esse reconhecimento do outro como alteridade que
sustenta a atitude do cuidado se exprime na etimologia da palavra
ética, “derivada do grego ethos, que por sua vez remete a dois
sentidos, “morada” e “pátria”, o primeiro referindo-se às condições
necessárias para se ter um lugar onde viver e o segundo indicando os
laços sociais pelos quais se emerge ao ser.75”
Ética então se refere às condições indispensáveis ao acontecer
humano, que torna possível que cada singularidade more no mundo
inserido em uma comunidade. Esse lugar, visto como condição para o

73
Rousseau, em suas obras Emílio e Discurso Sobre a Desigualdade aponta para nós
essa necessidade do outro para se viver em sociedade de uma forma boa e como
que este outro nos constitui enquanto sujeito.
74
PLASTINO, 2016, p. 30.
75
PLASTINO, 2016, p. 30.

- 145 -
advento do ser é, em realidade, o nós, porque é aí que o sujeito pode
construir a sua singularidade, supondo o mútuo reconhecimento.
Nesse sentido a relação constitutiva com o outro e o ser parte
da comunidade, que constitui a relação fundamental para o vir a ser
do sujeito e para o desenvolvimento da sua singularidade. Esta
concepção pode parecer utópica diante das características atuais da
sociedade, de indivíduos espaçados, que vivem as suas próprias vidas,
ainda mais quando se apresenta ideias que ameaçam os privilégios dos
poderosos.
Mas nos parece que a utopia deve ser invertida, vez que fica
cada vez mais claro a não sustentabilidade deste modelo de
dominação e de acumulação, que devasta os ecossistemas e as
singularidades, bem como as sociedades, diante da concentração
absurda de riqueza na mão de poucos e da injustiça76.
A tentativa de estabelecer um paradigma coordenado pela
atitude de cuidar pressupõe uma concepção radicalmente historicista,
tanto do homem quanto da natureza, na qual os processos de
determinação (vigentes no mundo da matéria, com as limitações
apresentadas pelas ciências da contemporaneidade) não presida a
realidade do ser, onde impera a transformação e criação. Esta
radicalidade nos aponta no sentido de uma nova inserção do homem

76
Ver o site da BBC Brasil sobre desigualdade de riqueza. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfa
m_fn. O tema das reformas trabalhistas passa por essa questão e a tecnologia se
apresenta como fomentadora do sofrimento e do desemprego.

- 146 -
em a natureza, exprimindo-se, por exemplo, no que tange a vida
emocional, por tendências e não por determinações, tal como nos
processos sociais.
Nesse sentido, tendências podem ou não se desenvolver em
cada singularidade, a depender do contexto no qual o processo de
desenvolvimento emocional e também social se efetua, sendo assim
que o contexto ambiental (mais lato possível) transforma-se em
elemento central na constituição de cada indivíduo. Daí surgindo a
importância de se buscar contextos os melhores possíveis, tanto a
nível familiar quanto a níveis mais abstratos e expandidos, como toda
a esfera social e quiçá global, necessitando o indivíduo que estes se
formem da maneira mais equilibrada e afetiva, não nos esquecendo
de um ambiente de trabalho acolhedor e não opressivo, que não
fomente a competição e sim a construção comunitária e solidária de
conhecimento77.
Essas transformações contemporâneas começam a atingir as
bases do paradigma moderno, como a crença na homogeneidade
racional do real, paulatinamente substituída pela concepção de um

77
Um dos maiores desafios para as singularidades atuais nos parece ser o exercício
para o aprendizado de construção coletiva de saberes, tecendo uma rede solidária
de conhecimentos, quebrando dessa forma uma estrutura do paradigma da
dominação e do capitalismo, que é a centralização individual, pessoal, de um que faz
tudo sozinho, cujo meta seja não depender de ninguém. No paradigma do cuidado
o outro é sempre visto como um agregador e necessário para o desenvolvimento da
própria singularidade, como estamos buscando afirmar ao longo deste tópico. O
potencial de transformação dos conhecimentos é inegável.

- 147 -
real heterogêneo, cujas formas de ser são as mais diversas. No terreno
do conhecimento redefine o papel da razão, agora inserida em um
contexto de psicossoma, cuja dinâmica emocional sustenta a
emergência dos valores. E então a própria ciência passa a compartilhar
a tarefa do conhecimento com outras formas de saber.
Compete agora aos saberes compreensivos a função de definir
objetos e os limites dessa intervenção, procurando compreender os
aspectos não materiais da existência. E dentro das suas bases não
postula que esses saberes compreensivos sejam imutáveis, mas
permanentemente provisórios, nunca isento das marcas das
subjetividades que o construíram (e ainda assim prudentes de serem
acolhidos). Lembrando que isso não significa renunciar a qualquer tipo
de conhecimento, mesmo que provisórios.
Neste ponto, seguindo as diretrizes de Plastino78, é razoável
inserirmos algo das noções do psicanalista Donald Winnicott sobre o
processo do desenvolvimento emocional dos indivíduos79, refutando
os dualismos mente-corpo, ou seja, a crença segundo a qual o
psiquismo e a vida emocional do homem possam ser caracterizados
por determinações imodificáveis.
Winnicott constatou que desde o início da vida os bebês
possuem a capacidade de elaboração imaginária das suas
experiências, afirmando que a formação do seu ego diferenciado (ou

78
PLASTINO, 2016, p. 32.
79
Ver mais em WINICOTT, 2000d.

- 148 -
nascimento psíquico) se opera na relação com o outro, sendo que esta
relação será crucial para se atualizar ou frustrar as suas tendências
naturais. Portanto, fica clara a necessidade de que a primeira relação
da criança, que é com a mãe, seja no sentido de atualizar as suas
tendências naturais.
E uma dessas tendências naturais observadas é à empatia,

que quando atualizada pela atitude acolhedora do


outro permite desenvolver sua natureza social, sua
tendência emocional amorosa e os valores que
dela emergem. Winnicott estudou essas questões
ao longo de mais de quatro décadas de prática
clínica. Sua experiência com bebês e suas mães e
com adultos regredidos lhe permitiu compreender
aspectos fundamentais dos processos de
desenvolvimento do psiquismo e da vida
emocional, isto é, do processo de constituição
subjetiva80.

Basicamente ele constata que o bebê constitui um psicossoma


e que na origem da vida a dimensão psíquica desse psicossoma reside
na sua capacidade de elaborar imaginativamente as suas experiências,
que é o sustentáculo da criatividade humana; que a constituição do
ego exige a presença do outro, que não ele mesmo, podendo então
ser e experimentar (sentir) a continuidade do seu ser em outro.
No período inicial da sua vida ele está em completa
dependência do outro, vivendo sob o regime da necessidade e o

80
PLASTINO, 2016, p. 33. Para ver mais consulte WINICOTT, 2000a.

- 149 -
atendimento dessas necessidades físicas e emocionais pela ação do
cuidado materno funda as bases (possibilitando um desenvolvimento
emocional saudável) do que Winnicott81 nomeia “crem em”, ou seja,
uma atitude de esperança com relação aos outros e com o mundo.
Portanto, este tempo inicial de dependência é fundamental para que
o indivíduo tenha, possivelmente, uma atitude positiva perante a vida,
acreditando no outro, “apostando as suas fichas” no outro e não que
este outro tentará sempre lhe derrubar, passá-lo para trás, enfim, que
viveria em constante conflito e contendas.
Então a inserção dos bebês em a natureza não se caracteriza
na dimensão da vida emocional, psíquica e social por determinações,
mas por tendências (movimentos naturais que impulsionam a vida do
bebê e dirige os seus processos de desenvolvimento, mas que
requerem para a sua consolidação a ação cuidadosa do outro da
maternagem). Ausente este outro tais processos podem não vingar ou
ser insuficientes.
Segundo Winicott82 as tendências basilares da natureza
humana são aquelas que visam construir o ego como unidade
diferenciada do outro e do mundo; a tendência para a percepção da
alteridade e a tendência à emergência espontânea de um sentimento
ético, que sustenta a alteridade e a capacidade de viver com outros
em sociedade. Este sentimento ético dá morada a tendência à

81
WINICOTT 1983, p. 88.
82
WINICOTT, 2000a, p. 221.

- 150 -
empatia, isto é, a capacidade de sentir o sentimento do outro e de
reagir a ele. Isso é o que constitui o cerne da sociabilidade humana e
não o conflito e a guerra constante, como afirmaria T. Hobbes83.
O bebê vai aprendendo, com as experiências, a intuir a
alteridade do outro, até então sentido como criado pelo próprio bebê
e então sujeito a ele. A percepção do outro como autônomo é
rejeitada nesse ponto e ele busca destruí-la. A manutenção por parte
da figura materna da atitude amorosa e acolhedora, contrastando com
a negação e a destruição permite ao bebê a conquista inaugural do
sentimento de culpa, conquista lastreada na empatia e possibilitando
o aparecimento de um sentimento ético.
Esse sentimento espontâneo e constitutivo, quando favorecido
pelo cuidado materno, sustentará futuramente uma conduta pautada
pelos princípios e normas éticos. O processo de reconhecimento do
outro é paulatino e ao longo dele o bebê inventa o “objeto
transacional”, normalmente algo do seu cotidiano, como brinquedo,
que simbolizando a mãe, adquire as características do objeto criado
por ele e manipulável, mas também adquirindo as características do
objeto objetivo, fora do controle do bebê. Isso inaugura a entrada do
bebê no universo dos símbolos, fazendo-o criador e não mero receptor

83
HOBBES, 2014.

- 151 -
de um sistema criado pela sociedade, fortalecendo o que conhecemos
como autonomia e não se sujeição84.
Normas éticas e símbolos sociais são fundamentais para toda
subjetividade, mas o fundamento destas residirá no sucesso do
desenvolvimento e nas tendências da natureza humana à empatia e
ao reconhecimento de alteridade, que deverá ser expressa sob as mais
variadas formas, como o cuidado ambiental. O ambiente acolhedor,
em todos os níveis, favorece ou conduz ao movimento de reparação,
de forma que o sentimento de culpa se transforme em
responsabilidade face ao outro85.
Winnicott reformulou o que se entendia como agressividade
do ser humano. Ele não a desconhece e nem a minimiza, mas a
entende como produto histórico do desenvolvimento de uma
tendência humana (a agressividade) no contexto de condições
ambientais desfavoráveis86.

84
Mais uma vez o tema das reformas aparece como exemplo de processo de sujeição
e não de autonomia, mesmo que alguns a queiram vende-la como autônoma e
defensora da liberdade.
85
A reforma trabalhista é um completo contra-exemplo dessa responsabilização pelo
outro, vez que elas estão sobremaneira calcadas nos interesses dos empregadores,
que estão em posições de poder, fomentando a desigualdade e a dominação perante
os subalternos ou oprimidos. As lutas contra as reformas, tanto trabalhistas quanto
previdenciárias é que nos parece apontar no sentido da alteridade e de uma visão
empática pelo outro, buscando até mesmo essa responsabilização, com forte
sentimento de comunidade atrelado, vez que os indivíduos que lutam contra não
fazem isso somente para si, mas buscando a melhoria para toda a coletividade, a
defesa de direitos que foram a duras penas mantidos ao longo dos anos.
86
O exemplo mais clássico é a criança que desde cedo foi violentada, presenciado
cenas fortes de agressões a outros membros familiares, socializada, portanto, nessas
condições desfavoráveis – não se poderá esperar um desenvolvimento de

- 152 -
A empatia, elemento marcante da concepção winnicottiana de
emergência da ética espontânea abre uma fenda ou ruptura com o
imaginário patriarcal, no sentido de que se a sociedade está em perigo,
este perigo não nasce da agressividade dos homens, mas da repressão,
operacionalizada pela sociedade, da agressividade dos próprios
homens. Ou seja, a agressão que caracteriza a vida em sociedade87 é
indissociável da imposição de relações sociais caracterizadas pela
dominação e a imposição de práticas sociais que bloqueiam ou limitam
severamente a expansão da agressividade humana e logo, da sua
criatividade.
Invariavelmente se percebe a crítica de Winnicott às crenças
deterministas e que esvaziam de historicidade, portanto, de contexto,
as relações sociais e a construção das subjetividades nas
singularidades humanas. A história de cada indivíduo influencia
decisivamente a compreensão de cada caso.
Prosseguindo, a fantasia para Winnicott é atributo
fundamental da espécie humana, e segundo Plastino88, é

expressão de sua capacidade de elaboração


imaginária de suas experiências, alicerce da sua

tendências não agressivas nesta pessoa, mas exatamente o contrário, mas sem
essencializar ou tomar como certeza que ela assim se portará quando alcançar a vida
adulta. É então nestes casos que a agressividade torna-se agressão e para os estudos
psicológicos seria a tendência à construção se transformando em força destrutiva.
87
Vide as forças policiais, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro diante da
população, sobretudo as mais vulneráveis socioeconomicamente, que sofrem na
pele esta rotina de repressão e agressão.
88
PLASTINO, 2016, p. 35.

- 153 -
criatividade e mediação necessária nas suas
relações com o mundo dos objetos. É essa
concepção que lhe permite rejeitar os
determinismos, sustentado a historicidade da
experiência humana. A participação da criatividade
na vida humana é muito importante para
Winnicott, a ponto de o autor considerá-la
responsável pela emergência do sentimento de
que a vida vale a pena ser vivida (WINNICOTT,
1975B, P. 137).

Afirma então o pensador inglês que esse sentimento


fundamental é desenvolvido (estando em relação de dependência)
com a criatividade humana, quando esta se torna parte da sua
experiência de viver. A tendência a agir criativamente é natural do ser,
mas para que venha a exercê-la, ele precisa dispor de uma boa base
para que seja factível a sua operacionalização, base esta que consiste
no “sentimento de existência” 89conquistado pelo indivíduo, sendo
que esta conquista por sua vez depende do acolhimento ambiental
que lhe será ofertado.
Dentro desta temática interessante, como necessário, é o
respeito pelo ambiente do agir espontâneo, sem o qual não há base
para a criatividade. Portanto, a espontaneidade, expressão da
tendência humana à liberdade, que constitui a condição basilar da
criatividade.
A criação é inerente, portanto, ao relacionamento do ser
humano com o mundo dos objetos, sendo que nenhum

89
PLASTINO, 2016, p. 35.

- 154 -
relacionamento terá efetivo (real) sentido se não existir ali um ser. Esta
é a razão pela qual, para Winnicott, o ser precede o fazer, e o “Eu sou”,
dá sentido ao “eu faço”90.
A origem do sentimento do ser é assim “a tendência herdada
do indivíduo a estar e permanecer vivo e a relacionar-se com os
objetos que lhe surgem no caminho durante os momentos de obter
algo”91. A emergência do ser, que é fruto do viver espontâneo, tem
papel fundamental para a saúde do indivíduo e só poderemos partir
para a realização de sonhos, metas, etc. se garantirmos o ser – sentir-
se real é condição para uma saúde biopssicofísica.
No pensamento político e filosófico o mote da liberdade foi
comumente pensado juntamente com a necessidade de colocar
condições necessárias para o convívio social, o que pressupõe
compatibilizar a liberdade dos indivíduos com a vigência de uma ética
fundada no respeito da alteridade. Quando se entende o homem
como ser antissocial essa compatibilização só se poderia ser
estabelecida com base em um processo repressivo, limitando a
liberdade. O que faz parte do homem, como visto, como tendência, é
uma emergência do sentimento ético, fundado na empatia, e que se
atualiza e se torna possível de continuidade no contexto de um
ambiente acolhedor e amoroso. Então os valores éticos que tornam o
indivíduo capaz de conviver em sociedade resultam da experiência

90
WINICOTT, 1999, p. 112 apud PLASTINO, 2016, p. 36.
91
WINICOTT, 1999, p. 43 apud PLASTINO, 2016, p. 36.

- 155 -
espontânea do indivíduo e não de uma imposição da sociedade,
emergindo de uma relação caracterizada pelo acolhimento amoroso e
não da ameaça e repressão.
Portanto, segundo o clínico inglês, é preciso que haja
historicidade, espontaneidade e criatividade para a emergência de
uma solidariedade e então, possibilitar o surgimento de uma
sociedade democrática, suprindo as necessidades básicas dos
indivíduos92, respeitando a livre expressão de cada um93 e fomentando
o acrisolamento da sua tendência à empatia94.
Atendidas estas questões pode-se avançar no sentido de
recriação e manutenção da máquina democrática como um todo. Isto
significa que é possível um agir e viver em sociedade não calcado na
repressão, mas como produto possível da criatividade e da empatia.
Nesse sentido a reforma trabalhista se torna um não exemplo
do sentimento de empatia, vez que calcada na pressão (e repressão),
bastando observar as diversas alterações que ela busca produzir,

92
O Programa Bolsa Família pode ser caracterizado como um passo razoável neste
sentido, lastreado na solidariedade social.
93
A questão da problemática de gênero é outro exemplo significativo neste sentido,
com base no que foi dito acerca da liberdade e do agir espontâneo.
94
Exemplo neste terceiro aspecto foi o caso da queda do avião da Chapecoense no
final do ano de 2016. Houve diversas manifestações em todo o globo terrestre.
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/queda-de-aviao-da-
chapecoense-pouco-combustivel-excesso-de-
peso,9183a5ed71eef0c3558ea3c4eef785bd8lossysg.html.
E também em: https://www.terra.com.br/esportes/chapecoense/culto-a-
chapecoense-de-espalha-pelo-mundo-
todo,f17b279616deae5d964d3e8344243facchsm3cit.html.

- 156 -
desfavorecendo sobremaneira a parte mais vulnerável da relação, que
é o trabalhador. Já foi apontada aqui a disparidade de forças na relação
de trabalho, servindo como bom argumento a própria caracterização
do contrato de trabalho, que tem como um dos elementos a
subordinação. Nesse sentido não importa se eventualmente o
empregado seja mais economicamente farto que o empregador, vez
que dentro do ambiente de trabalho ele deverá sempre obediência ao
patrão, não possuindo condições de negociar com igualdade de
circunstâncias. Claramente falta empatia daqueles legisladores que
querem promover as mudanças, bem como daqueles que fazem
lobbies para que estas mudanças ocorram. E por isso, sem entrar no
mérito da estrutura sindical brasileira, a união e o fortalecimento de
grupos de trabalhadores são fundamentais para negociações mais
efetivas e menos díspares, situação esta que é desencorajada
fortemente pela nefasta reforma trabalhista.
Disseminar práticas democráticas em todos os locais de
vivência e relacionamento humano são fundamentais para a
construção de uma sociedade mais empática e acreditamos que a
família e as escolas em geral exercem papel fundamental para tal
desiderato, sendo os locais de referências para as crianças e os jovens
durante um tempo considerável das suas vidas, em especial dentro do
período de formação psicológica da personalidade de casa um.

- 157 -
Mais Alguns Aspectos Pontuais da Reforma Trabalhista
Agora delinearemos somente mais algumas considerações
pontuais sobre a precariedade que a reforma quer impor, tentando
relacionar ao que acabamos de apresentar sobre o primado da
afetividade, sem a pretensão de esgotar o tema. Mas a nossa
contribuição é sobremaneira demonstrar os aspectos negativos da
reforma, que vem com certeza alterar profundamente o cenário do
Direito do Trabalho no Brasil, constituindo-se, por excelência, como
uma alteração não democrática, conforme entendimento
demonstrado do que seria um ambiente democrático.
Sem mais delongas, complementando a análise da Reforma
Trabalhista a partir do Primado do Cuidado, novamente será
perceptível que esta alteração legislativa é um reforço (ou expressão)
do Paradigma da Dominação.
A falta de empatia é notória em todos os pontos da reforma,
houve um forte lobby em favor desta reforma, a fim de diminuir os
custos com a contratação de mão de obra humana, por parte dos
empregadores. Os legisladores o aprovaram porque nenhum deles
trabalham com carteira assinada ou sob o vínculo celetista,
esquecendo-se de que representam a população, que em sua maioria
trabalham dessa forma e não estão lá para considerarem os seus
próprios interesses, demonstrando a prevalência do individualismo e
da competição, portanto do paradigma da dominação, em detrimento

- 158 -
de um olhar ético, solidário, empático, mais coadunado com o
paradigma do cuidado.
À medida que o outro é fundamental para a minha constituição
enquanto singularidade e eu realizo estas práticas destrutivas com ele,
indiretamente estou realizando comigo mesmo, o que se mostra até
uma atitude irracional, se se buscar vocábulos endeusados pelo
paradigma ainda em voga, com seu culto a racionalidade, mas que em
vários casos esta não se apresenta como tal, a não ser que se observe
a influência contundente de certas emoções nestes agires.
Permitir que gestantes trabalhem em ambientes insalubres é
mais um triste exemplo deste olhar destrutivo, não construtivo e
mesmo antidemocrático. Complicará não somente a condição das
grávidas, mas também dos bebês que ainda nem nasceram e que
poderão ter o desenvolvimento afetado por este contexto ambiental
insalubre, causando vários tipos de má formação.
Impedir que uma pessoa tire férias é submetê-lo a uma
condição degradante e semelhante a escravidão, atrapalhando
sobremaneira o seu desenvolvimento psíquico, corporal, emocional,
etc. aumentando sobremaneira a possibilidade de doenças de todo
gênero, com enfoque para as psicossomáticas.
Uma lei que piora a vida dos trabalhadores tem impacto em
toda a sociedade, alterando o ambiente que estamos retratando ao
longo do artigo, estimulando a violência familiar e urbana, impedindo
um convívio familiar saudável, que já é precário, a medida que o tempo

- 159 -
dos pais com os filhos para uma vivência fraterna e acolhedora será
drasticamente diminuída, impedindo a apreensão de valores
fundamentais para o crescimento saudável de uma criança e de um
jovem, alterando, inclusive, os seus potenciais de desenvolvimento
psicológico, uma vez que não sendo cuidado pela família, sentir-se-á
sozinho e despreparado para enfrentar a vida (auto-confiança ficará
prejudicada), podendo ou não buscar outras fontes de convívio e de
aceitação que podem não ser as melhores possíveis.

Há Espaço Para Um Novo Primado?


Por todo o exposto ao longo dos tópicos a crise contemporânea
está cotidianamente anunciada. Certamente é uma opção responder
a essa crise exacerbando o autoritarismo inerente ao patriarcado,
tentando reforçá-lo, tal como se vê na Reforma Trabalhista de
2016/2017 (Lei nº 13.467 de 2017).
Alternativamente podemos aprofundar as práticas sociais
presididas por atitudes de cuidado e de empatia, substituindo as
práticas nefastas de competição, de assujeitamento. Essas novas
práticas podem ser fortalecidas pela recuperação das experiências de
comunicação e relacionamento próprias da relação primária já
comentada. Essas experiências foram desvalorizadas e rejeitadas no
contexto do patriarcado e agora com a decadência deste regime essas
novas práticas do cuidado podem emergir com mais aceitação e
facilidade.

- 160 -
Assim, seguindo Winnicott e Plastino, a esperança na
possibilidade de construção de uma sociedade mais solidária, livre e
democrática não é depositada no racionalismo e seu
desenvolvimento95, mas na expansão contínua e duradoura do
potencial empático da natureza humana.
Considerar ingênua essa expectativa de uma sociedade
humana organizada em torno dos valores da solidariedade e da
empatia, substituindo os valores individualistas96 e competitivos,
equivaleria a considerar ingênuo o esforço de se buscar sociedades
verdadeiramente democráticas e a desconsiderar o aspecto da
historicidade, que sempre vem nos lembrar da transitoriedade das

95
Racionalismo por racionalismo e o homem acabou criando, com os estudos
maravilhosos, sem ironia, do átomo, a nefasta bomba atômica. É preciso empatia até
mesmo para direcionar de uma forma solidária e ética o seu próprio conhecimento,
sob pena de utilizá-lo para a repressão e dominação. A própria reforma trabalhista
(Lei nº 13.467/2017) seria um exemplo de argumentação com base na racionalidade,
quando os defensores argumentam a modernização que ela viria trazer, mas
entendemos que nem isso acontece, vez que apresentamos a decrepitude de
algumas das práticas que ela deseja novamente instituir, quais sejam, a terceirização
e o trabalho parcial, que prejudicam sobremaneira a economia do país, vez que
haverá uma diminuição drástica do consumo, na medida da redução salarial ou até
mesmo maior, diante da imprevisibilidade do ganho por parte do empregado, que
possivelmente optará por segurar o que já ganhou porque, em uma feliz expressão,
não sabe como será o dia de amanhã.
96
A lógica individualista se apresenta também, por exemplo, quando se prioriza
soluções individuais para o problema da mobilidade urbana, sobretudo em grandes
centros urbanos nacionais, com o fomento da indústria automobilística e da compra
de automóveis particulares a partir da redução dos impostos que incidiriam nesta
aquisição, em detrimento de soluções coletivas e comunitárias de transporte de
massa, como metrôs e trens. Mas neste ponto , como em muitos outros dos que
foram tocados aqui ao longo do artigo, há interesses de poderosos em jogo e então
as soluções não são tão fáceis assim, no sentido de superar o status quo.

- 161 -
nossas formas de construção social, desfazendo qualquer ideia no
sentido de eternalizá-las. A mudança é sempre possível, mas a direção
das mudanças depende de nós, do eu, do tu e do nós em conjunto.
Por óbvio isso não significa o paraíso na Terra, pois a vida
realmente não é fácil, exigindo a todo instante esforço para alcançar
resultados que não estão prontos, mas torna-se bastante difícil, após
este breve estudo, sustentar que a maldade, crueldade ou dominação
seja uma característica imodificável no homem, rejeitando os
determinismos nos saberes científicos e sobre a própria vida, nos
saberes compreensivos.
O que fica claro para todos nós é a necessidade da emergência
de um novo paradigma que procure aliar a perspectiva historicista,
com a afirmação da espontaneidade para o consequente surgimento
de uma singularidade livre e criativa e a possibilidade de florescimento
de uma tendência à solidariedade calcado em práticas éticas e
empáticas, criando ambientes favoráveis a estes desenvolvimentos no
e para os sujeitos, em todos os núcleos de convivência e de existência,
incluindo os de trabalho, que sofreram fortes impactos negativos após
a aprovação da Lei nº 13.467/2017.

- 162 -
Referências

BBC BRASIL. Disponível em:


http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza
_estudo_oxfam_fn. Acesso em 04 de julho de 2017.

BRASIL. Lei n.13.467, de 13 de jul. De 2017. Altera a Consolidação das


Leis do Trabalho (CLT), Brasília, DF, jul. 2017.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei PL 6787/2016. Disponível


em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i
dProposicao=2122076. Acessado em 04 de julho de 2017.

CARTA CAPITAL. Disponível em:


https://www.cartacapital.com.br/politica/senado-vota-urgencia-da-
reforma-trabalhista-nesta-terca. Acessado em 04 de julho de 2017.

CARTA CAPITAL. Disponível em:


http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/28/o-supremo-e-
nao-demarcacao-de-terras-indigenas/. Acesso em 04 de julho de 2017.

CARTA EDUCAÇÃO. Disponível em:


http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/me-
explica/entenda-reforma-trabalhista/. Acessado em 04 de julho de
2017.

CASTORIADIS, C. A Constituição Imaginária da Sociedade. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1978.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 15ª


edição. São Paulo: Editora LTr, 2016.

INFO ESCOLA. Disponível em:


http://www.infoescola.com/historia/revolucao-industrial/. Acessado
em 05 de julho de 2017.

- 163 -
HOBBES, THOMAS. Leviatã. Ou Matéria, Forma e Poder de Uma
República Eclesiástica e Civil. 3ª Edição. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2014.

LOCKE, JOHN. Dois Tratados do Governo Civil. 1ª Edição. São Paulo:


Editora Edições 70, 2006.

PLASTINO, Carlos Alberto. Do paradigma da dominação ao paradigma


do cuidado, 2016. In Revista Divulgação Em Saúde Para Debate.
Janeiro de 2016. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-
content/uploads/2016/01/DIVULGA%C3%87%C3%83O_53-WEB-
FINAL1.pdf.

ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. 1ª Edição. São Paulo: Penguin


Classics Companhia das Letras, 2011.

______. Emílio ou Da Educação.1ª Edição. São Paulo: Editora Edipro,


2017.

______. Discurso Sobre a Origem e o Fundamentos da Desigualdade


Entre os Homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes.
3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SANTOS, S. B. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da


experiência. Rio de Janeiro: Cortez Editora, 2000.

______. Um discurso sobre a ciência. 5 ed. São Paulo: Cortez Editora,


2008.

TERRA. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/queda-de-


aviao-da-chapecoense-pouco-combustivel-excesso-de-
peso,9183a5ed71eef0c3558ea3c4eef785bd8lossysg.html. Acessado
em 04 de julho de 2017.

______. Disponível em:


https://www.terra.com.br/esportes/chapecoense/culto-a-
chapecoense-de-espalha-pelo-mundo-

- 164 -
todo,f17b279616deae5d964d3e8344243facchsm3cit.html. Acessado
em 04 de julho de 2017.

WINNICOTT, D. W. A Agressividade em Relação ao Desenvolvimento


Emocional. In: ______. Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas.
Rio de Janeiro: Imago, 2000d, p. 288-304.

______. Desenvolvimento Emocional Primitivo. In: ______. Da


Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000a,
p. 218-253.

ZOO(I)LÓGICO DE SÃO PAULO. Disponível em:


https://vidazooilogica.wordpress.com/2009/04/15/eles-sabem-
quando-vai-chover/. Acesso em 04 de julho de 2017.

- 165 -
Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na perspectiva
da solidariedade

Cristiano Quinaia97
Tiago Ramires Domezi98
Introdução
O conflito social e as dificuldades na obtenção de consenso
entre as diferenças da periferia e elite impedem o exercício de direitos
fundamentais diante do dissenso que impede a conformação entre os
objetivos a serem buscados.
A multifacetariedade cultural entre os cidadãos é fruto da
impossibilidade de o procedimento legislativo, executivo e judicial
lidar com as diferenças existentes na sociedade a partir única e
exclusivamente do código lícito/ilícito.
A solidariedade é um procedimento de consenso que pode ser
buscado pela comunicação entre as entidades civis a fim de que as
diferenças sejam respeitadas, acolhidas, integradas e superadas.
O caminho que se pretende apresentar é uma leitura da
solidariedade como possibilidade de concretização horizontal de

97
Mestrando em Direito Constitucional, ITE – Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP.
Advogado.
98
Mestrando em Direito Constitucional, ITE – Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP.
Advogado.

- 166 -
direitos fundamentais em superação ao dissenso da hipercomplexa
sociedade moderna.

Compreendendo a solidariedade em sua semântica constitucional


Logo no Preâmbulo da Carta Constitucional de 1988, é notável
que o Poder Constituinte se preocupa em internalizar um espírito
intersubjetivo de colaboração para a construção de uma sociedade
democrática de direitos. O texto demonstra a enaltação à liberdade,
segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça,
elencando estes valores como supremos e, por isto, necessários à
edificação de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Se buscasse uma sociedade fraterna, ou dito de outra maneira,
uma sociedade de interações entre frater (“irmão” em latim), somente
através da solidariedade poderá ser alcançado este íntimo
relacionamento.
Assim sendo, a solidariedade é condição de possibilidade para
uma sociedade fraterna, vale dizer, para uma relação de união entre
os homens, fundada no respeito mútuo que anseia assegurar a
dignidade da pessoa humana e a igualdade de direitos.
Solidariedade advém de sólido (solidus, em latim). Do adjetivo
deriva o substantivo solum (apoio) e também os verbos solidare
(consolidar) e solidescere (fazer-se sólido). Deste modo, exercer a
solidariedade significa relacionar-se intersubjetivamente com vistas a

- 167 -
solidificar ou consolidar. Trata-se de uma união que busca dar
concretude a uma finalidade maior, um bem comum.
Não por acaso, a Constituição Federal, mais precisamente no
inciso I do artigo 3º, elencou a solidariedade como princípio. Isto
porque, ao expressar que são objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária, a
Carta Magna instalou o valor da solidariedade como norte que deve
guiar todas as condutas humanas. Ademais, os valores da liberdade e
da justiça enrobustecem a ideia de que todo desenvolvimento social,
cultural e econômico deve pautar-se na necessidade da satisfação
coletiva (ALARCON, 2006, p. 295).
A solidariedade aludida no supracitado artigo se reveste, pois,
de eficácia normativa. Como princípio jurídico que é, abarca eficácia
imediata, servindo de vetor interpretativo de todo ordenamento
jurídico (ALARCON, 2006, p. 295).
Neste contexto, a solidariedade traduz a união da sociedade
em busca do bem comum, com a finalidade de solidificar o Estado
Democrático de Direito que está pautado nos valores supremos da
liberdade e da justiça social.
Os objetivos fundamentais elencados pela Carta Suprema -
construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da CF) -
denotam a incessante luta do povo em busca da realização do bem
comum, demonstrando que o indivíduo inserido na comunidade deve

- 168 -
zelar pelo seu próprio bem-estar e também pelo bem-estar do seu
semelhante.
Através desses objetivos, hoje positivados como fundamentais,
pode-se visualizar a profetização da Revolução Francesa, que trouxe
como lema: Liberté, Egalité e Fraternité – Liberdade, Igualdade e
Fraternidade. Perpassando esses anseios, é possível construir uma
brevíssima evolução histórica - hoje considerados como gerações ou
dimensões dos direitos fundamentais.
Num primeiro momento, a busca pela liberdade como direito
de primeira geração/dimensão, que objetivou a construção de uma
sociedade livre através da edificação de um Estado Liberal de Direito.
Após, a luta por uma sociedade justa, onde por intermédio do
Estado Social de Direito consagrou-se a igualdade (direitos de segunda
geração/dimensão).
Por fim, a construção de uma sociedade solidária, que consagra
a terceira geração/dimensão, pela qual o Estado Democrático de
Direito retira definitivamente a solidariedade do campo meramente
sociológico para trazer para o mundo do direito.
Tratando do tema, Sarlet (2006, p. 295), expõe que o direito de
solidariedade, enquanto direito de terceira dimensão, visa a proteção
de grupos humanos (família, povo, nação), e caracteriza-se como
direito de titularidade coletiva ou difusa.
Ainda, a partir de uma visão sistemática, depreende-se que o
artigo 3º da Constituição além de trazer explicitamente a solidariedade

- 169 -
em seu inciso I, aponta também nos demais incisos uma confluência
deste princípio. A garantia do desenvolvimento nacional (inciso II) só
se fará possível por intermédio da solidariedade.
A erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a
redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III) também
depende da observância de um agir solidário. Por fim, a promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV), não será
alcançada sem uma colaboração solidária de toda comunidade.
Ademais, o princípio da solidariedade é lembrado ao longo do
texto constitucional, de maneira a servir como diretriz a diversos
institutos como na salvaguarda de Direitos Sociais, na Ordem
Econômica e Financeira, na saúde, entre outros, citando-se, como
exemplo, o artigo 194 no âmbito do direito previdenciário, o artigo
145, §1º no Direito Tributário, e o artigo 241 na seara do Direito
Administrativo.
Não se pode olvidar, ainda, que o princípio da solidariedade
está intimamente ligado a diversos direitos fundamentais, inclusive
desenvolvendo com eles, a missão de integrar a legitimidade da
democracia (FERNANDES, 2008, p. 32).
Como visto, a solidariedade está consagrada no mundo
jurídico, consubstanciando-se como norma deontológica. Na prática,
ela implica a colaboração, ou em outras palavras, o labor em conjunto
(do latim colaborare - co “junto” mais laborare “trabalhar”). Aquele

- 170 -
que é solidário colabora ou (co-) opera com o outro, para solidificar
algo maior do qual faz parte. Portanto, é pressuposto incondicional
compreender-se como parte de um sistema, no caso, a sociedade
política em que vivemos, ou para usar outra expressão, da
comunidade (comum unidade) da qual fazemos parte.
Desta maneira, dentro do contexto deste breve ensaio, o
princípio da solidariedade faz com que sigamos uma filosofia de vida
comunitária e uma postura de contribuição para o bem comum, onde,
neste âmbito, por exemplo, o refugiado não pode ser visto como
estrangeiro que causará mal a sociedade, senão que ele deverá ser
inserido dentro do âmbito social de maneira a agir em colaboração
para uma sociedade mais livre e justa, sendo que ações afirmativas
podem figurar como um meio de exteriorização do princípio da
solidariedade, promovendo a dignidade da pessoa humana.

Solidariedade e sua realização prática


Inúmeras são as formas de colocar em prática o princípio da
solidariedade. A iniciativa do Poder Público, através de Ações
Afirmativas, é um exemplo concreto disto.
No entanto, ações podem e devem partir, também, de
entidades civis. A atuação conjunta, ou a (co-) operação do Poder
Público com a Sociedade, de maneira a construir uma comunidade de
trabalho solidária, parece uma solução ainda melhor.

- 171 -
Necessário se faz para que a democracia aflore que o Estado
deixe de lado qualquer mecanismo concentrador de Poder, e, de uma
vez por todas, abra espaço para uma verdadeira participação, vale
dizer, onde de fato a complexa pluralidade social pós-moderna possa
atuar diretamente nas Políticas Públicas.
É necessário, portanto, políticas públicas voltadas para o
desenvolvimento solidário do bem comum, onde os principais atores
deste processo devem ser aqueles que mais necessitam destas
medidas. Neste plano, devem ganhar força movimentos
cooperativistas, ONGs e entidades sociais representativas de maneira
geral.
Vale lembrar que o Direito oferece os mais variados
instrumentos de atuação para os movimentos sociais, sendo possível
exemplificar com a Lei nº 5.764/71 que definiu a política nacional de
cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades
cooperativas dotando-as de diversos benefícios; a Lei nº 9.867/99 que
dispôs sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais,
visando à integração social dos cidadãos; e a Lei nº 9.790/99 que
qualificou as pessoas jurídicas de direitos privado, sem fins lucrativos,
como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e instituiu
e disciplinou o Termo de Parceria entre o Poder Público e aquelas
entidades.
Destacam-se, ainda, outros meios próprios para a busca da
efetivação de políticas públicas, tais como, a Ação Civil Pública, o

- 172 -
Mandado de Injunção, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão.
Ademais, é notável que o espírito jurídico solidário acabou por
penetrar e influenciar as decisões do Poder Judiciário, que norteado
pelos direitos e garantias fundamentais, vem se posicionando de
forma ativa diante da inércia dos outros Poderes, fenômenos
conhecidos como judicialização da política e ativismo judicial.

Eficácia Horizontal de Direitos


Um determinado direito fundamental descerra uma obrigação-
dever do Estado. Implica que foi reconhecida uma obrigação de o
Estado proteger o indivíduo possibilitando o uso e o gozo daquele
direito declarado. De outro, implica um dever de não impedir o seu
exercício.
O direito fundamental enseja que a sociedade se declarou
como capaz de exercer determinado direito, bem como de exigir dele
(Estado) que torne possível sua fruição com atitudes positivas, ou que
não venha a lhe gerar embaraço, o que nos aproxima da concepção de
Canotilho (2002, p. 380):

Os direitos fundamentais em sentido próprio são,


essencialmente direitos ao homem individual, livre
e, por certo, direito que ele tem frente ao Estado,
decorrendo o caráter absoluto da pretensão, cujo
o exercício não depende de previsão em legislação
infraconstitucional, cercando-se o direito de
diversas garantias com força constitucional,

- 173 -
objetivando-se sua imutabilidade jurídica e
política. Direitos do particular perante o Estado,
essencialmente direito de autonomia e direitos de
defesa.

O direito fundamental exige autonomia da sociedade e do


Estado. Da sociedade uma postura faciendi e do Estado non faciendi,
um fazer no sentido de poder exercê-lo e um não-fazer de não impedir
o exercício.
É que o direito não se faz apenas com sua implantação por
meio do Estado, mas também pode ser espontaneamente exercido
pela sociedade em seu interior, e quando o indivíduo seja titular torne
possível não pode ser tolhido pela estrutura administrativa estatal.

Violações aos direitos fundamentais podem partir


tanto do Estado soberano como, também, dos
agentes privados. Essa tendência atual de aplicação
horizontal dos direitos fundamentais não visa se
sobrepor à relação anterior, uma vez que o
primordial nessa questão é nos atentarmos para
que a aplicação dos direitos fundamentais, no caso
concreto, esteja sempre ponderada com os demais
princípios. Diversas questões precisam ser
melhores desenvolvidas, como qual a forma dessa
vinculação e seu alcance (VASCONCELLLOS, 2009).

Não existe, assim, em verdade, um direito fundamental


meramente declaratório ou prestacional, ambos são conteúdistas,
exigindo respeito e concretização diante de não intervenção do
Estado.

- 174 -
Não há, com evidência, hierarquia entre a iniciativa social e a
concretização pelos cidadãos e a iniciativa pelo procedimento estatal,
ambos são constitucionalmente legitimados como ferramentas de
realização de direitos.
O procedimento legislativo e o executivo não se sobrepõem ou
subordinam ao judiciário, sendo este aclamado em momentos nos
quais a comunicação dos outros e a sociedade são contaminados por
outros subsistemas políticos e econômicos.
O procedimento judicial de criação e aplicação do direito
encontra amparo na perspectiva de solução do dissenso entre as
variadas possibilidades de multiculturalidade existentes na moderna
sociedade (NEVES, 2006, p. 134).
A moderna sociedade multicomplexa encerra diversos fatores
de discriminação e dissidência, discursos das mais variadas dogmáticas
filosóficas e políticas que implicam a criação de mecanismos de
consenso.
A obtenção de consenso em uma sociedade multicultural como
a Brasileira é eventual, dificilmente é alcançado. A fim de possibilitar o
convívio intersubjetivo, o consenso deve possibilitar o dissenso das
ideias, sem pretensão de generalização ou abstração.
Consenso não como certeza, mas sim uma possibilidade de
convivência harmônica, o que somente é possível pela adoção de
procedimentos legais, executivos e jurisdicionais, que contemplem os
influxos da comunicação.

- 175 -
Esse consenso pode ser alcançado por meio de intervenção
estatal ou mesmo por procedimentos civis de conformação da vontade
de minorias e maiorias que se movimentam em encaixes econômicos
das necessidades. Conforme narra Ingo Sarlet (2006, p. 392-400):

Primeiro, quando há relativa igualdade das partes


figurantes da relação jurídica, caso em que deve
prevalecer o princípio da liberdade para ambas,
somente se admitindo eficácia direta dos direitos
fundamentais na hipótese de lesão ou ameaça ao
princípio da dignidade da pessoa humana ou aos
direitos da personalidade. Segundo: quando a
relação privada ocorre entre um indivíduo (ou
grupo de indivíduos) e os detentores de poder
econômico ou social, caso em que, de acordo com
o referido autor, há consenso para se admitir a
aplicação da eficácia horizontal, pois tal relação
privada assemelha-se àquela que se estabelece
entre os particulares e o poder público (eficácia
vertical).

Por que a igualdade é relativa? A igualdade pressupõe uma


desigualdade, um dissenso. É preciso afastar o paradoxo de que
igualdade e heterogeneidade. A igualdade pressupõe uma perspectiva
interna e sistêmica referente ao tratamento jurídico-político igual, que
envolve a neutralização das desigualdades no ambiente e a
perspectiva externa concernente ao direito de ser tratado como igual
com respeito e consideração.

- 176 -
“Nesse sentido, o princípio da igualdade só se realiza enquanto
viabiliza nas diversas esferas autônomas de comunicação o respeito
recíproco e simétrico às diferenças” (NEVES, 2006, p. 167)
Na concepção de Neves, a partir da teoria sistêmica biológica
de Maturana, desenvolvida na sociologia por Luhman, a comunicação
que se estabelece entre os sistemas econômico, jurídico e político são
a chave da hipercomplexidade das sociedades modernas.
A realização da igualdade como resultante de um consenso
entre as divergências sociais implica reconhecer que na eficácia
horizontal dos direitos há a busca pela solução do dissenso das
divergências entre os subsistemas sociais.
Assim, a eficácia jurídico-positiva-legislativa dos direitos
fundamentais com matriz constitucional atravessa a noção de espaço
público e avança para o espaço particular no qual também se busca a
matriz do consenso da convivência entre os diferentes:

Os direitos fundamentais dirigem-se, segundo tal


concepção, não apenas contra o Estado, mas
também contra os (em cada caso, outros) sujeitos
de direito privado. Os direitos fundamentais não
carecem, assim, de qualquer transformação para o
sistema de regras de direito privado, antes
conduzindo, sem mais, a proibições de intervenção
no tráfico jurídico-privado e a direitos de defesa em
face de outros sujeitos de direito privado
(CANARIS, 2009, p. 53).

- 177 -
Um mesmo direito fundamental produz eficácia jurídica para
contra o Estado e também pode ser exercido em face dos particulares,
a partir de quando se torne possível a formação de um consenso em
torno de alguma vertente interpretativa de uma comunicação.

A eficácia de direitos fundamentais no contexto do consenso da


solidariedade
Partindo da premissa da solidariedade como a possibilidade de
obtenção de um consenso entre os indivíduos de uma sociedade que
se respeitam mutuamente e não apenas relevam sua diferença, mas a
integram, faz-se de rigor compreender nesse procedimento como
mecanismo para a realização de direitos fundamentais a partir da
perspectiva horizontal.
O respeito social à solidariedade como fundamento moral e
jurídico de obtenção de consenso entre grupos iguais/desiguais pode
ser extraído de passagem da obra de Marcelo Neves, no qual aponta a
existência de duas instâncias:

Portanto, em vez de relação de fundamentalidade


e derivação, pode-se afirmar que se trata de
pressuposição recíproca das duas perspectivas
através das quais o princípio da igualdade pode ser
observado a perspectiva interna e sistêmica,
referente ao tratamento jurídico-político igual, que
envolve a neutralização das desigualdades
presentes no ambiente; a perspectiva externa da
esfera pública pluralista, concernente ao direito a

- 178 -
ser tratado como um igual ou ao direito de igual
respeito e consideração (NEVES, 2006, p. 171).

É nesse respeito e nessa consideração que se sustenta a chave


mestra para a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na
possibilidade de um consenso por meio dos subsistemas
comunicacionais.
A generalização e fortificação das formas de intolerância
étnico-culturais e religiosas no seu âmbito de vigência político-jurídica
são fatores de corrosão do Estado Democrático de Direito, além da
indiferença da população não apenas em relação ao conteúdo das
decisões políticas e normas jurídicas, mas também com respeito ao
seu significado de seus procedimentos básicos.
Concebe-se o procedimentalismo como o respeito às diversas
regras da competição entre as forças concorrentes dominantes. O
procedimento se legitima porque permanece cognitivamente aberto à
pluralidade consensual.
Há uma pluralidade democrática procedimental, através da
qual o texto constitucional é concretizado por procedimento
jurisdicional já que a Constituição é normativamente concretizável por
meio da atuação linear do judiciário não havendo hierarquia com o
legislativo.
Esses subsistemas sociais engrenados na economia, política,
atividades associativas e beneficentes, devem ser capazes de

- 179 -
estabelecer procedimentos que possibilitem a obtenção de consenso
entre texto e realidade.

Conclusão
A solução que se impõe ao impasse entre a ineficácia de
direitos e o procedimentalismo que alavanca a estrutura legislativa e
executiva causando hipertrofia de produção de leis e confusão da
solução entre o dissenso dos subsistemas sociais pode ser encontrado
pela concretização da solidariedade.
A solidariedade como solução de respeito e consideração
mútuos é capaz de produzir o consenso nas relações civis entre
particulares e entre pessoa física e pessoa jurídica, que pode
impulsionar a solução consensual dos conflitos sistêmicos.

- 180 -
Referências

LORA ALARCON, Pietro de Jesús. Valores constitucionais e Lei 9.474


de 1997. Reflexões sobre a dignidade humana, a tolerância e a
solidariedade como fundamentos constitucionais da proteção e
integração dos refugiados no Brasil. p. 124. In 60 anos de ACNUR:
Perspectivas de futuro / André de Carvalho Ramos, Gilberto Rodrigues
e Guilherme Assis de Almeida, (orgs.). — São Paulo: Editora CL-A
Cultural, 2011.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed.


Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006.

SARLET, Ingo Sarlet. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed. Porto


Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

FERNANDES, Fernanda Vasconcelos. A economia solidária e o


desenvolvimento socioeconômico por meio do microcrédito. Prima
Facie internacional jornal. UFPB: João Pessoa, 2008.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da


Constituição, 5º ed. Editora Livraria Almedina, 2002.

VASCONCELLOS, Armando Cruz. A eficácia horizontal dos direitos


fundamentais nas relações privadas de subordinação. Jus Navigandi,
Teresina, ano 13, n. 2107, 8 abr. 2009. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12595. Acesso em:
19/06/2017.

NEVES, Marcelo. Entre Temis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

CANARIS, Claus-Wilherm. Direitos fundamentais e direito privado.


Coimbra: Almedina, 2009.

- 181 -
Sobre os autores

Alexandre Bernardino Costa (Organizador)

http://lattes.cnpq.br/9725195346105443

Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1986), mestrado


em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992) e doutorado
em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (2005).
Foi Decano de Extensão da Universidade de Brasília. Atualmente é professor
associado da Faculdade de Direito da UnB. Membro fundador do Instituto de
Pesquisa em Direitos e Movimentos Sociais, e editor chefe da revista "
Insurgência". Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino jurídico,
direito, estado democrático de direito, reforma curricular e novos
movimentos sociais. Professor do curso de Pós-graduação em direito da
Faculdade de Direito da UnB. É membro do Núcleo de Estudos para a Paz e
Direitos Humanos da Universidade de Brasília, onde ministra aulas das
disciplinas de Direito Achado na Rua e Métodos de Técnicas de Pesquisa no
Mestrado em Direitos Humanos. É coordenador do Grupo de pesquisa "
Movimento Direito " e integra outros grupos de pesquisa no país.

Cristiano Quinaia

http://lattes.cnpq.br/3355159770670260

Mestre em Direito (2017) - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos -


pelo CEUB - Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo
de Ensino, Bauru, São Paulo. Especialista em Direito Civil e Processual Civil
(2014) - Programa de Pós-Graduação Lato Senso mantido pela Instituição
Toledo de Ensino, Bauru, São Paulo. Bacharel em Direito (2010), Advogado
Sócio de Mandaliti Advogados. Tem experiência em Direito Tributário,
Recuperação Judicial e Falência, Licitações e Energia Elétrica.

- 182 -
Dorival Fagundes Cotrim Júnior

http://lattes.cnpq.br/7008561960392884

Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e


Filosofia Política. Atualmente Mestrando em Direito Constitucional e Teoria
do Estado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC Rio.
Integra os seguintes Grupos de Pesquisa: A Democracia Que Vem e Estudo
do Debate Entre Fraser/Honneth. Graduação em Direito na Faculdade
Nacional de Direito (FND-UFRJ), na qual atuou como monitor de Direito
Administrativo e Teoria do Direito, além de ter sido integrante em grupos de
pesquisa em Serviços Públicos e Danos à Pessoa Humana Nas Redes Sociais.

Elielson Martins Ferreira Filho

http://lattes.cnpq.br/0635293584483899

Mestre em Ciências da Educação - Especialista (MBA) em Gestão de Pessoas,


com formação/graduação em Administração. Atualmente graduando em
Psicologia, pela PUC-MG. Desempenhou funções de Coordenador de Curso
Universitário pela KROTON Educacional, Faculdades Pitágoras, e no
momento está como Professor Universitário, lecionando para os cursos de
Bacharelado, Tecnólogos e Técnicos, em diversas disciplinas das áreas de
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Experiência com recebimento de
visitas MEC - Ministério da Educação e Cultura. Foi membro presidente de
CPA - Comissão de Avaliação Institucional e membro do NDP - Núcleo
Docente Estruturante e também do Conselho Superior de Instituição de
Ensino Superior. Destacada atuação como Administrador e Consultor
Organizacional - Consultorias Internas e Externas. No momento além de
Professor Universitário atua também como Coordenador de Curso Superior,
Administrador e Gestor de Recursos Humanos (consultor interno) em
empresa de Prestação de Serviços, além de atender consultorias e
assessorias diversas, em qualquer região do Brasil: Possui habilidade na
gestão de equipes de trabalho, desenvolvendo projetos nessas áreas onde
obteve expressivos resultados nas empresas de diversos segmentos. Atuação
ativa na implantação e reestruturação de setores administrativos e de
Recursos Humanos em empresas de pequeno e médio porte. Apresenta
maturidade no diagnóstico de problemas oriundos dessas atividades e sua
resolução. Tem conhecimentos avançados em informática. Inglês

- 183 -
intermediário e disponibilidade para viagens. Apresenta-se ao Colegiado de
sua instituição para colaborar como docente em sua área de atuação. Tendo
em vista sua experiência profissional e formação acadêmica está habilitado
para a docência nas disciplinas, pesquisas e atividades relacionadas.

Gabriela Soares Balestero

http://lattes.cnpq.br/5146009728665962

Doutoranda e Mestre em Direito (área de concentração: Constitucionalismo


e Democracia) pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, especialista em
Direito Constitucional e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito
do Sul de Minas, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Advogada. Atua nas áreas: Ciência Política, Sociologia, História
Social e Política, Direito Constitucional, Direito de Família, Direito Civil,
Direito Previdenciário, Direito Administrativo. Além disso, também é
articulista do Blog Cientistas Feministas Advogada (profissional liberal) e
pesquisadora "Constitucionalismo e Democracia" e "Democracia e relações
sociais"

Lia Beatriz Teixeira Torraca (Organizadora)

http://lattes.cnpq.br/3485252759389457

Bacharel em Direito (1992) pela FND/UFRJ, mestre (2015) em Direito pelo


PPGD/ FND/UFRJ, e doutoranda em Direito pelo PPGD/FND/UFRJ, com
ênfase em Direitos Humanos, Sociedade e Arte, com o projeto intitulado "O
Espetáculo do Real: a estética da violência e as formas da (des)ordem no Rio
de Janeiro", sob a orientação do Professor Raffaele De Giorgi - Università del
Salento, Itália. A dissertação de mestrado, intitulada "Democracia
Encurralada: uma análise sócio-juridica das manifestações de 2013 no Rio de
Janeiro", foi orientada pela Professora Titular Juliana Neueschwander
Magalhães - PPGD/FND/ UFRJ. Experiência em Direito de Família, Direito do
Consumidor. Editora adjunta da Mares Editora. Integrante do Grupo de
Pesquisa em Direito e Cinema - UFRJ. e respectivos PROCAD, como também
da Rede Latino-americana de Pesquisa em Teorias dos Sistemas, Direito e
Política e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

- 184 -
Madson Anderson Corrêa Matos do Amaral

http://lattes.cnpq.br/9377122571213541

Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba -


UNIMEP (2017). Vinculado ao Núcleo de Estudos de Direito e Relações
Internacionais (NEDRI) da UNIMEP. Graduado em Direito pela Universidade
da Amazônia - UNAMA (2014). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-graduação em Direito. Membership do CAED-Jus (Congresso de Altos
Estudos em Direito). Associado ao Instituto O Direito por um Planeta Verde
(Law for a Green Planet Institute).

Raimundo Expedito dos Santos Sousa

http://lattes.cnpq.br/0070090312079084

Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Faculdade


de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre (com Louvor) em
Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de São
João del-Rei (2013). Graduado em Letras na Universidade Federal de São
João del-Rei (2008), com licenciatura em línguas portuguesa e inglesa e
respectivas literaturas. Ex-bolsista de Iniciação Científica do PIC/UFSJ e do
CNPq, tendo obtido prêmio de Menção Honrosa do CNPq por sua pesquisa A
representação feminina no teatro irlandês.

Tiago Ramires Domezi

http://lattes.cnpq.br/4935828378258862

Mestre em Direito (2017) - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos -


pelo CEUB - Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo
de Ensino, Bauru, São Paulo. Especialista em Direito Civil e Processual Civil
(2015) - Programa de Pós-Graduação Lato Senso mantido pela Instituição
Toledo de Ensino, Bauru, São Paulo. Bacharel em Direito (2013) pela
Instituição Toledo de Ensino. Advogado Sócio no Escritório de Advocacia
Domezi & Moscato.

- 185 -
- 186 -

You might also like