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Ismail Xavier

o olhar e a cena
Melodrama, Hol{ywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues

..•
Cosac & Na ify . •
cinomaleca brasileira
I Cinema: revelação e engano

A TESTEMUNHA DE MCCARTHY

Há quem tome o cinema como lugar de de acesso a uma ver­


dade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revclatório
como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de aci­
dente mas de estratégia. É preciso discutir essa questão ao especificar
determinadas condições de leitura de imagens; para tanto, faço uma reca­
pitulação histórica, pois o binômio revelação-engano projeta-se no tem­
po, referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa
maior, na aurora do século xx, e o do desencanto, nos anos
Comento, de início, uma situação extraída do documentário Poínt of
Order [I963], de Emilio de Antonio, filme que focaliza os processos e as
seções de tribunal no período do macarthismo nos Estados Unidos. Trata­
se de uma remontagem da documentação colhida ao vivo nos
rios. Em determinado momento, uma testemunha de é
pelo advogado de defesa de um militar aCl.l'sado de atividades anriameri­
canas. Esse advogado mostra uma foto à testemunha. Nessa foto se
numa tomada relativamente próxima, duas figuras: o réu e, ao seu
alguém já comprometido, já indexado na éaça às bruxas. A imagem,
mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade,
promotoria como peça da acusaçao. pergunta à
testemunha se considera a foto verdadei~a. Á. resposta é "sim". O
do, mostra uma foto maior em que áparece, numa reunião
um grupo de pessoas - dentre elas, algumas insuspeitas e que traz num
dos cantos a anteriormente vista na foto menor. Entendemos sem
demora que a é um recorte da segunda, ou é parte

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de um contexto maior, com muita gente envolvida, uma situação pública
também o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereça à
que não denota nenhuma cumplicidade entre o réu e seu interlocu
imagem. Ou seja, dentro de que se dá a leitura e ao longo de que
O curioso no fato é que, ao ser reiterada a pergunta "você continua
eixo opõem-se verdade e revelação e engano. Voltando à foto
achando esta foto [menor] verdadeira?" -, a resposta é de novo "sim".
menor apresentada pelo advogado, constatamos, num nível mais elemen­
Chegamos aqui ao dado significativo. A -resposta surpreende-nos mas
tar de interrogação, que ela produz um resíduo de documento na imagem
ilustra muito bem uma certa noção de verdade, noção muito mais presen­
dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc.). No
te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tàlvez gostaría­
entanto, a ilegitimidade da foto é flagrante quando fabrico o fato "conver­
mos. A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada
sa isolada" c o evidência da culpabilidade, interessado na dimensão
pedacinho da foto, como também da realidade. Aquele canto da imagem,
política da imagem. Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem,
aquele fragmentó extraído da maior, foi obtido sem que se adul­
não estou, portanto, discutindo sua verdade em sentido absoluto, incondi­
terasse cada ponto da foto, sem maquiagem, sem alteração das
cionado. Não discuto a existência das dadas ao olhar. Pergunto
que lhe são internas. Logo, "contém" a verdad~. É uma imagem
pela significação do que é dado a ver, numa interrogação cuja resposta
as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da câmera
mobiliza dois referenciais: o da foto (enquadre e moldura), que definc um
importa aí o contexto). O recorte, definidor da moldura, não incomodou
campo visível e seus limites, e o do observador, que define um campo de
a testemunha, para quem a verdade é soma, está em cada parte.
Questões e seu estatuto, seu lugar na ell:periência individual e coletiva.
Em nossa cultura, o processo fotográfico tem grande poder sobre as
No cinema, as entre visível e invisível, a interação entre o
convicções desse tipo de observador, assim embalado pela evidência
dado imediato e sua significação, tornam-se mais intrincadas. A sucessão
empírica trazida pela imagem. Mais até do que a acuidade da reprodução
de imagens criada montagem relações novas a todo instante e
(eixo da semelhança), a imagem fotográfica (e cinematográfica) ganha
somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes
autenticidade porque corresponde a u~ registro automático: ela se impri­
na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações engendram­
me na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causali­
se menos por força de isolamentos (como na foto comentada) e mais por
dade fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema
força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade in­
de lentes (a objetiva da e o "acontecimento", fica depositada uma
vejável. É sabido que a combinação de imagens cria significados não pre­
desse que funciona como um documento. Quando se esquece a
sentes em cada uma isoladamertte. É célebre o experimento do cineasta
função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da imagem isolada,
russo Kulechov, primeiro grande teórico da montagem. Selecionando uma
temos um sujeito totalmente cativo. do processo de simulação por mais
úniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos
que ele pareça. Caso típico é o dessa testemunha de McCarthv. a
chegou a conclusões radicais: a cada combinação o rosto parecia expressar
consagrar o engodo de uma promotoria.
algo bem diferente, num espectro que incluía ternura, fome, alegria.
Diantc de tal fé na imagem, nossa primeira operação é reverter o
A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos
processo e chamar a atenção para a moldura, para a entre a foto e
foi depois atenuada por ele próprio e seria hoje ingênuo supor um
seu entorno, para o fato de que o sentido se tece a partir das relações entre
poder absoluto da montagem nesses casos. Dentro de determinados limi­
o visível e o invisívcl de cada situação. Vou aqui um pouco adiante, para
tes' já no período do cinema mudo era comum a utilização da diferença en­
ressaltar o quanto, além da foto e de seu contexto, há que se inserir no
tre as circunstâncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um

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acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up. entrar na sala escura para assistir a um filme que tem
Pudovkin, ao realizar A mãe [I926], queria uma expressão particular de res. Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcuns­
no rosto do herói numa cena em que, na prisão, ele recebe uma tância e o compromisso são outros, o eixo da verdade e da mentira requer
mensagem de sua mãe trazendo esperanças de liberdade. O jovem ator critérios próprios. Para iludir, convencer, é necessário competência, e frtz
não conseguiu a expressão pedida; o cineasta buscou outra solução. Sur­ parte dessa saber antecipar com precisão a moldura do observador, as cir­
o ator num momento desavisado, numa circunstância de riso, e cunstâncias da recepção da os em jogo. Embora pareça,
filmou seu rosto que, reagia a um estímulo completamente estra­ a leitura da imagem não é imediata. Ela resulta de um processo em que
nho à cena do herói. Combinou a imagc;m registrada com as cenas intervêm não só as mediações que estão na esfera do olhar que produz a
vizinhas no filme e julgou saâsfatório o efeito obtido. Se imagem do imagem, mas também aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe.
ator é um material no qual a montagem inocular um se~tido, esse foi Este não é inerte, pois, armado, participa do
e ainda hoje é um dado de desconforto para muita gente. Os atores têm
razão em desconfiar dessa distância entre seu trabalho e a percepção de o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIAÇÃO
sua imagem na tela. Operações como essa de Pudovkin desde cedo entra­
ram na rotina do trabalho. Muitos teóricos têm se interessado pela discus­ Há entre o aparato cinematográfico e o olho natural uma série de elemen­
são de diferentes aspectos dessa manipulação que ilustra com bastante tos e operações comuns que favorecem uma identificação do meu olhar
evidência a relatividade das "expressões" e das performances no cinema. . com o da câmera, resultando daí um forte sentimento da presença do
Comparando a questão dos atores a serviço da ficção com a da foto mundo emoldurado na tela, simultâneo ao meu saber de sua ausência
observada no tribunal, ganha toda ênfase a importância da pergunta que (trata-se de e não das próprias coisas). Discutir essa identificação
o observador dirige à imagem em função de sua própria circunstância e e essa presença do mundo em minha consciência é, em primeiro lugar,
interesse. Afinal, na condição de espectador de um filme de ficção, estou acentuar as ações do aparato que constrói o olhar do cinema. A imagem
no de quem aceita o do faz-de-contá, de quem sabe estar dian­ que recebo compõe um mundo filtrado por um olhar exterior a mim, que
te de representações e, portanto, não vê cabimento em discutir questões me organiza uma aparência das coisas, estabelecendo uma ponte mas tam­
de legitimidade ou autenticidade no nível da testemunha de tribunal. bém se interpondo entre mim e o mundo. Trata-se de um olhar anterior ao
Aceito e até acho bem-vindi~ o artifício do diretor que muda o signif". ,,­ meu, cuja circunstância não se confunde com a minha na sala de projeção.
do de um gesto - o essencial é a imagem ser convincente dentro dos pro­ O encontro câmera/objeto (a produção do acontecimento que me é dado
pósitos do filme que procurá instaiirar um mundo imaginá! ver) e o encontro espectador/aparato de projeção constituem dois mo­
A partir de imagens deesquiilas, fachadas e avenidas, o cinema cria mentos distintos, separados por todo um processo. Na estão
uma nova geografia; com friigmenros de diferentes corpos, um novo cor­ implicados uma co-presença, um compromisso, um riSCO, um prazer e um
po; com segmentos de ereaçÕes, um fato que só existe na tela. Não poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar. Como espectador,
questiono a cidade imaginá;ía - o vejo na tela não corresponde, por tenho acesso à aparênci
exemplo, ao Rio ou à São PaJlo que conheço. Não cabe perguntar de quem ou seja, sem a circunstância. Conteínplo uma imagem sem ter par­
a
é o corpo imaginário ou qual estnÍtura real de um espaço visto na tela em ticipado de sua produção, sem escolher ângulo, distância, sem definir uma
fragmentos. Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao perspectiva própria para a observação. Ao contrário das situações de vida

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em que estou presente ao acontecimento, na sala de espetáculos, já senta­ posições do olhar sem comprometer o corpo, sem os limites do meu cor­
do, não tenho o trabalho de buscar diferentes posições para observar o po. Na ficção cinematográfica, junto com a câmera, estou em toda parte c
mundo, pois tudo se faz em meu nome, antes de meu olhar intervir, num em nenhum lugar; em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria, para mim, de preencher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do
impossível acesso. Espectador de cinema, tenho meus privilégios. Mas cinema é um olhar sem corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Iden­
simultaneamente algo me é roubado: o privilégio da escolha. tificado com esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não
Nesse compromisso de ganhos e perdas, aceito e valorizo o olhar está situado, não está ancorado vejo muito mais e melhor.
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece têm algo de Observando a experiência por esse ângulo, como então não exaltar
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao inva­ o cinema? Como não pensar sua técnica de base cm termos de
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos), de sua pre­ de progresso? Retomemos um clima típico do início do século.
cisão e destreza nos maiores desafios. No cinema, posso ver tudo de
perto, e bem visto, ampliado na tela, de modo a ~urpreender detalhes no o PRIMEIRO ELOGIO ÀS DO OLHAR

fluxo dos acontecimentos e dos gestos. A imagem na tela tem sua dura­ O MOMENTO DA PROMESSA

ção; ela persiste, pulsa, reserva surpresas. Se é contínua, posso acompa­


nhar um movimento enquanto esse se faz diante da câmera; se a monta­ Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas rea­
gem intervém, vejo uma sucessão de imagens tomadas de diferentes ções a esse lado prodigioso da oferecida pela então nova técnica de
ângulos, acompanho a evolução de um ac~:>ntecimento a partir de uma reprodução. Pensaram o cinema quando sua mediação era um dado inau­
coleção de pontos de vista, via privilegiados, especialmente cui­ gural que gerava certas descobertas, uma éonstelação de sentimentos e per­
dados para que o espetáculo 'do mundo se faça para miín com clareza, cepções novos, ainda não bem equacionados, que exigíam novos conceitos,
dramaticidade, beleza. As possibilidades abertas pela temporal idade pró­ um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
pria da imagem são infinita's: há o movimento do mundo observado e o nova experiência. Hoje, é praticamente impossível recuperar vivamente
movimento do olhar do apa~ato 'que observa. Quando a imagem é de ros­ aquele momento, nós que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
tos, tenho a interação dos olhares (lue se confrontam, verdadeira orques­ num mundo em que o que era antes promessa dc revolução se faz agora.
tração: o olho que vê e o que é vi~to têm ambos sua dinâmica própria e dado banal do cotidiano, experiência reiterada. De uma pluralidade de rea­
cada um de nós já teve ocasiÕes de avaliar, com maior ou menor consciên­ ções, elogios, desconfianças, destaco dois tipos de recepção ao advento do
cia, a intensidade dos efeitos extraídos dessa orquestração. cinema. Na primcira, ele é observado como coroamento de um projeto já
O usufruto desse olhar privilegíado, não a sua análise, é algo que o definido na esfera da representação; na segunda, vislumbra-se o cinema
cinema tem nos garantido, propiciando essa condição prazerosa de ver enquanto inauguração de um universo de expressão sem precedente, desti­
o mundo e estar a salvo, ocupar o ce'ntro sem assumir encargos. Estou pre­ nado a provocar uma ruptura na esfera da representação.
sente, sem participar do mundo observado. Puro olhar, insinuo-me invi­ Aqueles que o vêem, com simpatia, como um coroamento, inserem
shrel nos espaços a intercept,\r os ~ihares de dois interlocutores, escruti­ o cinema na tradição do espetáculo dramático mais popular, de grande
narreações e gestos, explorar ambientes, de longe, de perto. Salto com vitalidade no século ::»:IX. Avaliam que, cumprindo os mesmos objetivos,
velocidade infinita de um pónto a outro, de um tempo a outro. Ocupo o cinema vai mais longe, pois multiplica os recursos da representação, faz o

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espectador mergulhar no drama com mais intensidade. O "olho sem cor­
I
!
t
a ver" as situações, os gestos, as emoções. O ilusionismo, fonte do en­
po" cerca a encenação, torna tudo mais claro, enfático, expressivo: ao nar­
. rar uma história, o cinema faz fluir as ações, no espaço e no tempo, e o
I
I'
volvimento da platéia, é então assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensão da experiência humana, da assimilação de
mundo torna-se palpável aos olhos da platéia com uma força impensável I valores, da explicitação de movimentos do coração. Tal demanda, própria
em outras formas de representação. Ou seja, em seu "tornar visível", a me­ do universo da Ilustração do século XVIIl, tem seus desdobramentos e,
diação do olha; cinematográfico otimiza o efeito da ficção, cumprindo com

r depois da Revolução Francesa, em outra atmosfera social e


muita competência uma tarefa que, na esfera da cultura, considera-se como
explode no teatro popular de 1800. Aí se consolida o gênero dramático
própria da arte e, em especial, dos espetáculos. Ao exaltar esse salto na efi­ Jç de massas por excelência: o melodrama. Esse tem sido, por meio do tea­
ciência dentro d~ continuidade de princípios e funções, os críticos, cineas­

i tro (século do cinema (século xx) e da TV (desde


tas e prod~tores afinados às regras do mercado cultural da época celebram
tação mais contundente de uma busca de expressividade
o na produção industrial do século xx, de um projeto que vem do
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo, na
século XVIII e que se definiu, na origem, para a representação teatraL
ênfase do gesto, no trejeito do rosto, na eloqüência da voz. Apanágio do
É comum sermos lembrados ~o quanto a câmera fotográfica consti­ exagero e do excesso, o melodrama é o gênero afim às grandes revela­
tui uma objetivação tecnológica recente de princípios da representação já I ções, às encenações do acesso a uma verdade que se desvenda um
conhecidos, cuja sistematização vem do Renascimento italiano (câmara i sem-número de mistérios, equívocos, pistas falsas, vilanias. Intenso nas
escura, o método da perspectiva, os efeitos de profundidade na superfície í ações e sentimentos, carrega nas reviravoltas, ansioso pelo efeito e a
da tela). Com a imagem em movimento, o representar a dos homens í comunicação, envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar é
se dá com a franca hegemonia do ilusionismo a encenação tal e qual o
I convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado.

I
real plantado no cinema industrial desde os tempos de D. W. Griffith.

Fato que cristaliza uma herança menos tematizada pela crítica: a do olhar
N a virada do século XIX para o XX, não surpreende que a técnica do
tal como constituído no drama burguês. Aqui, a referência teórica essen­
cinema, então emergente, tenha assumido essa pedagogia e tenha substi­
cial é Diderot. No momento em que escreve suas peças e formula a teoria
tuído o melodrama teatral na satisfação de uma demanda de ficção na so­
renovadora do teatro, definiúdo.o drama sério burguês do século XVIII,
t ciedade. Quando falo em ilusionismo, reprodução das aparências, na ver­
um elemento central no seu ideário é a crítica ao teatro vinculado aos ~ dade que advém do conflito de forças que se expressam e se revelam pelo
~

gêneros clássicos - principalmente ao tipo de encenação que se dava às


olhar, estou afirmando princípios da representação aos quais o cinema vem
tragédias clássicas francesas do século XVII. Esse teatro, por demais anco­
se ajustar como uma luva. Como braço da indústria cultural, ele
rado na palavra, depende da exclusiva força poética do texto, desdenhan­
do movimento de objetivação institucional da Ilustração. Sua
doo aspecto visual da experiência do palco. Ou é incapaz de elabo­
do "olhar melodramático" é o ponto-limite. de um projeto de expressão
rar a cena propriamente dita, tal como o filósofo a entende, explorando a
total da natureza na representação. Reflete um ideal de domínio e contro­
expressividade do gesto e a cômposição visual da cena (os tableaux cons­
le da aparência como sinal de "conhecimento da natureza", um ideal que
truídos pela posição recíproca dos atores e da cenografia).
inscreve a arte como espelho pedagógico que requer a competência tecno­
Diderot queria um teatro dirigido à sensibilidade por meio da re­
lógica de "criar ilusão" e, por essa·via, atingir a sensibilidade: a passagem
produção integral das aparências do mundo, queria um método de "dar
das trevas à luz se faz de efeitos sobre o olhar.

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Dentro do projeto de revelação do mundo para o olhar, os efeitos do São os intelectuais e artistas ligados à arte moderna que lideram essa
close-up logo adquirem a condição de emblema das virtudes da nova arte. nova leitura do cinema de uma perspectiva que, na França, traduziu-se no
Mais do que a montagem - sua condição prévia -, o close-up, na França e cinéma d'avant-garde, nas experiências dos surrealistas e nas polêmicas
nos. Estados Unidos, atrai o dos cinéfilos corno ponto de conden­ que tiveram como pauta a superação da moldura melodramática, a liber­
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vê e o tação do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa. a ade­
que é visto - e pela trama formada pela sucessão de detalhes da nova arte à sua técnica moderna. A
e reveladores. Corno movimento em direção à intimidade, e V1stO corno fcrentes grupos, postos de lado os conflitos que os
potência maior do cinema que, muito cedo, impressionou a todos pela sua cinema destina-se a uma tarefa de redenção. A cultural
capacidade de devastação das intenções ocultas, do pequeno gesto fora do do Ocidente europeu estaria falida, o poder criador preso a convenções
alcance dos interlocutores, do movimento facial que trai um sentimento. obsoletas, saturado de referências que o desvigoram. Enredado em formas
Não foi preciso a manifestação da crítica: cineastas e produtores conduzi­ de pensar e sentir desgastadas, o homem culto se vê separado da nature­
ram as experiências reveladoras da força dramática do rosto isolado na za, reprimido, cercado de mentiras, de clichês da de máscaras.
e usando a tradicional muito antes de 1920 já ins­ O cinema é radicalmente novo, inocente, e traz a da tecnologia.
truía seus atores para a dos olhos - "janela da alma" _, trazi­ Ele pode e deve romper essa grade, devolvendo aos homens o acesso a
dos para perto no close-up, para o exame.
uma natureza alienada pelos artifícios de uma cultura
Foco das atenções e dos o close-up estará, em I9 20 , também A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
no centro das reflexões de quem, afastado dos valores promovidos pela espaço utópico da verdade (cinema, vida futura) e o espaço da mentira, da
indústria do cinema, observa seus prodígios com outra moldura de inte­ convenção (tradição literária, teatro, cotidiano burguês). Sua fé no cinema
resses e julga os filmes do mercado por demais "domesticados" pela ancora-se numa idéia de "expressão" que também se apóia na acuidade de
demanda de ficção que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e reprodução da aparência própria da nova técnica, mas com um traço pecu­
da literatura popular. Encontramos aqui quem vê o cinema como ruptu­ liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da indústria.
ra, espectadores avessos aos do filme de ação corrente, cinêfilos Germaine Dulac e Epstein, principais porta-vozes da avant-ga/
não interessados na fluência dos acontecimentos, no pulsar da
concebem o cinema corno "expressividade do mundo" num sentido radi­
nas tensões dramáticas usuais. Por intermédio deles, o cinema uma
ca!.1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto,
recepção mais empenhada em surpreender aspectos da plástica da ima­ "isto expressa aquilo", de um modo que equivale a "isto significa aquilo",
gem, do trabalho da câmera e da presença peculiar do mundo na tela que dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um pólo a outro, do
permanecem recalcados na visão dominante. Para esse olhar diferencia­ significante ao significado. Reservam "expressão" para designar um pro­
do, por meio do cinema toda urna esfera nova de percepções abre-se à cesso determinado, impelido por forças naturais, no a composição de
nossa experiência desde que sejamos capazes de entender a expressivida­ forças interior a um organismo deixa ;narcas na do mesmo ­
de da nova imagem em outros termos, elogiando sim o mas den­
é o movimento nelo Qual ci Que está no interior vem forcosa­
tro de urna outra ótica: a de quem entende o cinema não como coroamen­ mente à tona, a forma
to do ilusionismo teatral, mas como ruptura, inauguração de um novo
diálogo com a natureza e os homens.
I. Cf. Xavier, Sétima arte,' um cu/to moderno (São Paulo: 1978).


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vel) que o cinema vem"captar" com exclusividade, pois fixa os movimen­ o ~..__ a"o;,,~ das diferentes velocidades:
tos na película sem as atrapalhações do olho natural. O cinema tem seu do mov.imento animal e dos fenômenos Fer­
vigor, próprio de um olhar mais automático,
nand Léger as relações e a forma dos objetos fora de sua inserção
não maculado pelos preconceitos culturais, utilitária no cotidiano. Embora não totalmente afinado ao cinéma d'ayant­
dade. É irônico que, justamente porque não tem "interioridade", o olhar garde, o surrealismo torna-se o movimento de contestaç50 ao cinema in­
da máquina possa atingir o princípio interior dos movimentos, revelar a dustrial de maior impacto, com sua exploração da montagem como reve­
verdade que, organicamente, expressa-se em sentido pleno, imprime-se laç50 das pulsões, anatomia do desejo. Em diferentes busca-se a
numa textura do mundo que só a câmera é capaz de registrar. O próprio experiência fora do senso comum, o olhar em sintonia com :~"" l":~r
instantâneo fotográfico, em sua estrutura mais simples, já nos mostra o do - a sensibilidade efetivamente moderna. A
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que não estavam na (Epstein) surge então como nova pedagogia
mira do fotógrafo. No cinema, o movimento poténcializa tal desoculta­ ção ao cenário do melodrama -, pois o cincma teria como destino
mento, o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cúm­ trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
plices da nova técnica, em vez de tentar à como no os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustração cegos.
melodrama. a expressividade do fica atrelada a toda uma O horizonte desse renascimento seria a "explosão do universo carcerário
cadeia de lógica é tomada de empréstimo à do natu­ da existência atual" (para usar a expressão de Walter Benjamin em seu
em que o tOrnar visível resulta do de uma retórica que célebre ensaio de T936, ao falar de reprodução técnica, arte e
~"'''''''rH..\+ti,.....a .... Para
o que era aaequado ao teatro :- como A formulação de Epstein-Dulae é questionável auando examinada a
ilusionismo do século XIX não o é para o cinema do século xx, pois a partir de sua idéia-matriz de expressão,
imitação dos gestos, antes oferecida a olhos desarmados, não resiste à aná­ analítico (inegável) da ,,~~;a'~Mrl~ aí uma fé inte­
lise da nova sensibilidade. Com o cinema, a percepção humana ganhou gral no dado visível, na caj)ac:ld,lde exclusiva de
um acesso especial à intimidade dos processos - ~ele, a aparência é já uma suas relações internas. trazer a verdade à tona
análise. O c!ose-up não é o lugar do fingimento, é uma presença que reve­ à ao contexto de cada 'a~"aM~"A mais de-
la o que se é, não o que se pretende ser (inúteis as caretas dos no entanto, está no impulso utópico nela presente c no salto teórico
A aposta da vanguarda está no poder analítico do cinemato­ que oferece ao buscar um pensameMo à alwra dos aspectos radicalmente
gráfico, no que ressalta nãil
novos da experiência do cinema no inicio do século. Benjamin, o filósofo
espaço), mas também as
atento às transformações da sensibilidade geradas pelas novas dirá
mente a câmera lenta (arnplia(;âo no eixo do tempo), que reve­ em 1936: "A natureza que se dirifie ;\ dmera não é a mesma que a que se
Ia o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a dirige ao olhar". Essas c out.ras suas - sobre o ator, o
nossa volta e em nós, ganhando ~xpressão nas formas instáveis, fora da
nossa consciência, que temo~ fixadas pela técnica. 2 Epstein, nos seus
> que procura realizar no cinema documentário a verdade que desmascara a cul­
tura tradicional. A cÍe Vertov diante dos franceses é a
2. Essa aposta no poder analítko do dnema tem uma versão radical mo­ ção que ele estabelece cntre desmascaramento e exposição dos processos efetivos
mento na União Soviética, encarnada rio projeto do Cine-Olho. de Vertov, > da Drodud'ío social, das relações de através do montagem cinematognífica.

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analítico da Imagem retomam muito do repertório da vanguarda dos anos co, verdade foi poesia, originalidade, experimentação; mentira foi a roti­
20, inserindo a caracterização do olhar do cinema numa reflexão mais am­ na do comércio, o kitscll industrializado,
pIa sobre técnica e cultura. Nessa reflexão, a moldura é outra mas prevalece Não cabe agora a recapitulação do que foram as diferentes versões
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo, revelado r, da foto­ desse conflito vanguarda/cultura de massa em cada e época. Não o
grafia e do cinema dentro da cultura européia. A promessa então se reafir­ poderia fazer nem quero, pois meu objetivo é saltar dessa primeira refle­
ma, sem as premissas de "eXflressividade total" e de retorno à natureza. xão dos anos 20 para uma mais próxima de gerada no contexto fran­
Com Benjamin, ela aSSume um contorno histórico mais bem demarcado, é cês pós-68, reflexão que abandonou a tradição de opor verdade e menti­
por um persamento mais sensível à contradição e ao caráter das ra, deslocando a discussão sobre a técnica do cinema.
forças sociais em conflito. Pensamento que nos trouxe uma avaliação da No grande intervalo que a crítica avançou na caracteriza­
questão da arte dent.ro de uma articulação mais lúcida com a conjuntura ção do olhar sem corpo e suas implicações, notadamente na avaliação de
política e a própria natureza das apostas em na Europa dos anos 30, sua estrutura mais comunicativa e sedutora: o cinema olhar da
polarizada por uma confrontação decisiva entre revolução e reação.
indústria, da ideologia dominante nos meios. Extensão do qlle
chamei "olhar melodramático", o cinema clássico é sua modernização. Faz
A CRíTICA DO OLHAR SEM CORPO
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramática, amplitude temática, concretizando o ver mais e
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema, o pensamento melhor do cinema na direção de um ilusionismo mais completo - o cine­
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
ma clássico é o olhar sem corpo atuando em sentido
(tradição cultural), e deu toda ênfase à cumplicidade entre cinema e natu­
caracterização dos seus poderes apresentada em minha primeira
reza, solidários enquanto um organismo e sua expressão visual, prontos a que, de fato, ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular, dOJTIinan­
expulsar a simulação desde que a nova técnica fosse salva de su~ adultera- te no mercado, e não a todo o cinema possível. É nele, mais do que em
promovida pelo universo da mercadoria. Por esse a oposi­ qualquer outra proposta, que vemos realizado o de intensificar ao
entre um cinema desejado, objeto do recalque e aquele que extremo nossa relação com o mundo-objeto, fazer tal mundo parecer autô­
realmente impera (a pedagogia da indústria orienta-se por uma nomo, existente em seu próprio direito, não encorajando perguntas na
teleo,IOP'la: o presente é o mOmelItO dos entraves que impedem o desen­
direção do próprio olhar mediador, sua estrutura e comportamento. So­
volvimento na direção COrreta, éapaz de realizar as promessas da nova
mos aí convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural.
técnica; o futuro é o preenchimen~o dessas promessas que, desde já, as van­
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60, dois grandes
guardas anunciam e preparam. Entre 1920 e J960, os pode,res reais in­ de reflexão conduziram a crítica a essa naturalidade postulada pelo cine­
sistiram em repor o mesn:o cinema dominante, o que trouxe em linhas
ma clássico: a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operações da
a reiteração da mesnl:a matriz de contestação. O conflito dominan­ montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referência
te/dominado, traduzido em termos de verdade e refez-se ao
central) e a crítica francesa inspirada na fenomenologia. tendo como [oco
longo de eixos diversos. Quando prevaleceu um eixo político, o pólo da
maior André Bazin. 3
verdade (futuro) identificou-se à cultura revolucionária, o da mentira
presente t às mistificações da reação. Quando prevaleceu um eixo estéti­
3. Cf. Bazin, Cin.ema: ensaios, trad. Eloisa Ribeiro (São Paulo: Brasilicnse, 1991).

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Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faço agora, pois sua crítica ao ilusionismo COmeça com a advertência detém em considerações de conteúdo (o tipo de universo Ciccional ou do­
cumentário). Sublinha a postura do olhar em sua interação com o mundo,
de que a imagem cinematográfica não deve ser lida c0f11;0 produto de um
olhar. Para ele, a suposição de que houve um encontro, uma contigüidade
tanto mais legítima quanto mais as condições de nosso olhar
ancorado no corpo, vivenciando uma duração e uma circunstância em sua
espacial e temporal, entre câmera e objeto não é O dado central e impres­
continuidade, trabalhando as incertezas de uma percepção
cindível da leitura da imagem. Sua presença na tela é um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simbólico, ultrapassada mundo. Daí sua minimização da montagem (instância

características de sua composição e sua no Contexto de um discur­ construtora da onividência), sua defesa do plano-següência (olhar único,
sem cortes, observando uma em seu um acontecimento
so que é exposição de idéias, não sucessão natural de fatos "captados"
pelo olhar. A diferença entre um plano geral e um c!ose-up, por em seu fluir
muitas vezes não pode ser entendida como "olhar Numa visão mais atual, prestamos atenção especial ao que aproxima
versus e não apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
"olhar de ,mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto, mas como
confronto de duas imagens de valores distintos. A diferença é de existencial de Bazin: há em ambos, novamente, a atribuição de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados esti­
não de posição no espaço, pois pode não haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto" los. Para Eisenstein, há um estilo capaz de dizer o mundo social-históri­
- tudo depende do contexto do discurso por imagens. co, colocando o cinema como potência maior no plano do conhecimento.
Para Bazin, O cinema é uma espécie de "terceiro estado da e exis­
Ao contrário de Eisenstein, os críticos inspirados na fenomenologia
te um estilo autêntico, na captação da vivência humana em sua
endossam e defendem a premissa de que, no cinema, toda imagem é pro­
essencial abertura no tempo.
duto de um olhar - é essencial que ela seja vista como tal- e a sucessão
Contra esse pano de fundo da tradição teórica, a intervenção de
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogêneo.
]ean-Louis Baudry, em 1969-70, em questão a constante promessa de
À imagem-signo de Eisenstein, eles opõem a imagem-acontecimento; à
defesa da descontinuidade, própria do cineasta russo, respondem Com um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque às premissas do cinema em

uma defesa até mais radical do princípio de continuidade já presente na geral, examinando mais a fundo as condições do espectador raciocí­

narração clássica, fazendo a ela um reparo fundamental: se a imagem em nio está municiado para analisar o espectador do filme clássico, mas
fala em cinema tout couTe). 4 O horizonte de seu exame é ressaltar o
movimento nos traz a percepção privilegiada do homem como ser lança­
do no mundo, como ser-em-situação, a falsidade do cinema clássico está modo pelo qual a recepção da imagem possui uma estrutura que, a seu ver,

na manipulação implícita em sua montagem, o olhar sem corpo e a solapa o reiterado crédito - de Eisenstein, Griffith, Epstein na
da verdade como destinação fundamental do cinema. Ele inver­
onividência criam, na tela, uni mundo abstrato, de sentido fechado, pre­
julgado e organizado pelo cin~ina. Toda montagem é discurso, manipula­ te a tradição e vê na simulação, na de efeitos (ilusórios) de
conhecimento, o destino maior da nova arte (visão que
ção, de Eisenstein, de GrÚ'fith ou de Bufíuel. Em oposição, um críti­
co como Bazin solicita um olhar cinematográfico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado, que p6ssui limites, aceita a abertura do 4. O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
mundo, convive com ambigüidades; Quando pede realismo, ele não se 1970, "Os efeitos ideológicos do de base", está publicado em Ismail
Xavier (orll:.). A experiência do cinema (Rio de Janeiro:
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pela permanência do ilusionismo do cinema industrial). Isso se dá por transcendente que descortina o mundo e se vê no centro das coisas, ao
força da própria natureza da técnica cinematográfica, herdeira das ilusões _ mesmo tempo que radicalmente separada delas, a observar o mundo co­
da perspectiva, da persistência retiniana (não vemos os fotogramas, vemos
mo puro olhar. Nessa apropriação ilusória da competência ideal do olhar,
o que não ocorre na tela, ou seja, o movimento da imagem, e temos a im­ estou, portanto, no centro, mas é o aparato que aí me coloca, pois é dele o
pressão de continuidade), da falsa autenticidade documental da fotografia.
movimento da percepção, monitor da minha fantasia.
Rearticulando elementos já conhecidos, Baudry nos traz uma interpreta­ Para Baudry, uma filosofia idealista que postula um sujeito trans­
ção radical que- questiona não estilos particulares de fazer cinema, mas o
cendente em oposição ao mundo objetivo que se dispõe ao conhecimento
fundamento mesmo de sua objetividade como técnica, essa mes~a objeti­ encontra aí, na técnica do cinema, sua tradução visível. Toda sua ênfase
vidade que tem sido a sustentação maior das esperanças de verdade. Na
recai sobre a produção simultânea da imagem e do sujeito-observador
nova perspectiva, as diferentes posições teóricas, desde 1920, definem um
onividente. A engenharia simuladora do cinema define, com o efeito­
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusões da técnica e desatento às
sujeito, seu teatro da percepção total cujo protagonista sou eu-espectador
implicações contidas na própria estrutura do olhar da câmera tal como se
identificado com o olhar da câmera.
dá para nós na platéia. A técnica tem suas inclinações, seus efeitos ideoló­
N esses termos, o que dificulta a consolidação de linguagens alterna­
gicos e, nesse sentido, é ela mesma que impele o cinema industrial a desen­
tivas "mais verdadeiras" é esse pecado original inscrito na técnica. Esta
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcio­
tem na ilusão seu sustentáculo e os percalços das vanguardas devem-se a
na!. A força de encantamento desse cinema persiste na história porque o
que sua aposta é reverter a função daquilo que já nasceu para cumprir
dado crucial em jogo não é tanto a imitação do real na tela _ a reprodução
outro destino. Digo destino porque a lógica dessa teoria transforma o cine­
integral das aparências -, mas a simulação de um certo tipo de sujeito-do­
ma num órgão que surgiu para cumprir um programa: o de objetivar, na
olhar pelas operações do aparato cinematográfico.
esfera do visível, estratégias de dominação, especialmente as da classe bur­
Avaliar a potência do olhar sem corpo não é então inventariar as
guesa que presidiu sua origem. Assim, antes de instância liberadora, sub­
e
imagens que ele oferece; focaÍÍzar o seu movimento próprio, sua forma
versiva, a condição do cinema é preencher uma demanda do próprio "uni­
de mediação, o 'que impíica analisar sua incidência no espectador que
verso carcerário", tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato.
vivenda o poder de clarividência, a percepção tota!. Na sala escura, iden­
Há uma .atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70; a
tificado com o movimento do olhar da câmera, eu me represento como
formulação aqui exposta é a tradução téórica radical dos impasses da con­
sujeito dessa percepção total, capaz de doar sentido às coisas, sobrevoar as
testação no cinema. Temos o esgotamento de uma teleologia, a da técni­
aparências, fazer a síntese do mundo. Minha emoção está com os "fatos"
ca redentora "entravada" pela política e a economia, e sua substituição
que o olhar segue, mas a cbndiçã'o desse envolvimento é eu me colocar no
por u~a outra, a da técnica como instrumento maior de reposição de um
lugar do aparato, sintoniz~do com suas operações. Com isso, incorporo
sistema de poder. Em consonância corn a tonalidade da reflexão sobre a
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendi­
linguagem, a cultura e a ideologia naquele momento, a teoria do cinema
mento cinematográfico - o maior cenário de simulação de uma onipotên­
mais original e polêmica ressalta o lado sistemático, inelutável, das ilusões
cia imaginária. No cinema; faço uma viagem que confirma minha condi­
e dos enganos do olhar da câmera. Nesse contexto, a própria prática do
ção de sujeito tal como a desejo. Máquina de efeitos, a realização maior do
cinema amplia o espaço para a reflexão teórica voltada para a questão do
cinema seria então esse efeito-sujeito: a simulação de uma consciência
simulacro - a citação, a imagem que-alude à imagem, o circuito das refe­

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rências a si mesmo, que o cinema leva ao paroxismo, entram para valer na mos o bastante sobre a natureza do espectador, de modo a prever o cará­
esfera da indústria, constituem sua nova marca. Tal reflexão se faz dentro tcr de sua identificação com o aparato, a qual assume uma dimensão
de molduras conceituais diversas e num processo ,em que a teoria do única de adesão à imagem por força do efeito-sujeito. Como conhecedo­
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura res do desejo do espectador, denunciamos o conluio desse desejo com o
contemporânea. A imagem cinematográfica é então obseJ;vada a partir de . programa da indústria e deduzimos daí as alienações do cinema e da
sua participação em outra rede de relações, em que não há para a téia. Não tenho condições de endossar a generalidade desse saber a res­
interpretação (esse tomar a imagem como representação de algo exterior peito do espectador; o aparato atua em determinada direção, mas a expe­
a ela), para o juízo da verdade ou mentira; em que se a oposlçao riência do cinema inclui outras forças e condições que não se ajustam ao
aparência (imagem)/essência (substância) -nada há por trás das lm<i~e~ns, programa do sistema. A formulação dc Baudry, embora inclua com toda
elas valem como efeitos-de-superfície, imagem remetendo a imagem, a força a dimensão do desejo do espectador, não deixa de ser outra ver­
fluxo de simulacros. são das teorias da manipulação global centradas em excesso no aspecto
Faço agora uma incursão que não é propriamente no terreno da da experiência, de modo a confundir o processo que efeti­
nova filosofia e das questões mais amplas do simulacro na produção. vamente ocorre com a lógica ideal do sistema. Focalizo uma situação
Trata-se de uma análise particular no nível da engenharia da simulação, didática nesse contcxto, em que é perfeito o funcionamcnto do
caracterização de um efeito na qual não é necessário assumir as noções aparato, cm quc podemos verificar o mecanismo da simulação em esta­
com a mesma ressonância elas adquiriram na literatura dos anos 80. do, digamos, de laboratório.
Fecho a exposição com a consideração de um novo exémplo que, acredi­
to, esclareça algumas observações feitas até aqui sobre a interação entre IVIULAL.AU E PONTO OE VISTA
espectador e imagem, sobre o papel da "moldura do sujeito" na leitura.
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o Toda leitura de é pr()(l!l<;ão de um ponto de vista: o do sujeito
efeito de uma depende de sua ~elação com o sujeito em determi­ observador, não o da "objetividade" (b irnagetn.A condição dos efeitos
nadas condições. Da situação da testemunha de McCarthy, passei a uma da imagem é essa. Em particular, o ekilO rb apóia-se numa
caracterização mais detida do olhar do cinema e examinei dois momen­ construção que inclui o fmguh do obSl'rV;Ir1or.\ O simulacro parece o
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexão crí­ que não é a partir de um pOIHo ele vista; () sujeito está aí pressuposto. Por­
tica em torno do que h,í de erigano e rcvelação nesse olhar. A partir de tanto, o processo elc simulação n;lo l' o (Li' imagem.em si, mas o da sua
uma discussão mais sobre a simulação do fato - na fotografia, no relação com o sujeito. Num (>1<1110 elemelltar, podemos tomar o ci,nema
cinema chegamos a uma questão mais específica: a simulação do sujei­ como modelo do processo. O (llIC é a fjltnilgcm senão a organização do
to na estrutura mesma (lo olhar cinematográfico. Dentro da discussão " acontecllnento
. " p"ra 11111 angu
' I() (C
1 oIlscrvaçao ' fun de com
- C'o que se con
mais geral, o exemplo a . envolve uma situação mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema. Como inspiração, ;. Nessas asserções, no de Xavier Audouard, "Le Simulacrc", in
'épistémologie de l'Ecole Normale .>u..,,,ucu­
terei presentes as lições de Baildry, sem no entanto incorporar o movi­
rc, n. }, mai.-jun. 1966). O horizonte de Audouard é o de uma discussão sobre o
mento totalizador de suá crítica ao olhar do cinema. Seu amplo diagnós­ idealismo platônico: seu terreno é, ponanto, distinto, e meu não
tico, mobilizando a psicánálise, tem como pressuposto o fato de saber­ ca uma identificação à sua perspectiva de análise.

;0
iJ
o da câmera e nenhum outro mais)? O que é a fachada de prédio de estú­
lecida a disponibilidade total de a situação-chave de Vertigo dese­
dio senão a duplicação do mesmo princípio da fachada "de rua" que su­
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster, de escola que,
gere o que não é justamente quando obser'vada de um certo ângulo e dis­
no reencontro, surpreende-o com o pedido para que sua mulher,
tância já pressupostos em sua composição? O que é a ficção do cinema
Madeleine. Elster mostra-se apreensivo com as manifestações de ausên­
senão uma simulação de mundo para o espe,ctador identificado
com o aparato? cia que ela apresenta, com os períodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa, de que retoma sem lembranças.
Vertigo ( Um corpo que cai), O filme de Hitchcock realizado
8 O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
em 195 . Ele é a trama da simulação por excelência, como já foi observa­
proposto. Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine, pesquisa pela
do pela crítica. Trago um aspecto novo à consideração: o do espelhamen­
recolhe dados essenciais. Um primeiro quadro se compõe: a
to que existe entre o 'estratagema que envolve as personagens do drama e
ra que dela se apossa em seus transes é Cadota Valdez, mulher que viveu
o próprio princípio da narração do filme. Tal como em outras obras de
em San Francisco no século XIX e que se suicidou em circunstâncias me­
Hitchc<?ck, o cine!pa c1ássi~o aqui operà com eficiência máxima e, ao
lancólicas. Novamente com Elster, Scottie relata as descobertas. O mari­
mesmo tempo, oferece a metáfora viva para o seu próprio processo. Inte­
do introduz novo dado: Madeleine está em perigo de vida, pois descende
ressado nessa metáfora, acentuo nesta análise a mecânica da simulaçâo, o
de Carlota, outras mulheres da linhagem cometeram suicídio e ela tem
funcionamento exterior do aparato, não o que, nas personagens, é desejo
agora a idade de Carlota ao morrer.
do estratagema e disposição para a vertigem da imagem.
Na primeirá série de passeios de Madeleine, fase em que se compõc
Sigamos passo a passo a narrativa, até o ponto que interessa.
o quadro, tivemos uma ostensiva duplicação: num primeiro plano, Scortie
Vertigem, título original, é a palavra que condensa as idéias-força
observa MadeJeine, que não reconhece sua presença (ele está fora do ter­
do filme em sua tematízação do olhar e do ponto de vista. A apresentação
ritório dela) e se põe disponível ao olhar movimentando-se como numa
de Vertigo, criação de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
cena; num segundo plano, ao longo do mesmo eixo, a câmera observa
close-up, tratado como máscara enigmáti.ca, imóvel. Uma aproximação
Scottie que Madeleine. São duas uma dentro da outra, que
maior e um passeio da câmcra examinam essa máscara em seus detalhes
não se tocam. Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele, ambos enquadra~
até que, isolado, o olho ofereça os 'sinais de vida. Os seus movimentos, no
dos por nós no lugar da câmera. Madeleine nunca devolve o olhar a Scot­
entanto, não criam uma ~xpressão definida, uma intcncionalidade do olhar.
tie, devolve o olhar à câmera (regra do filme clássico). Mas é
Preparam apenas o cenário p.tra um movimento,em espiral, na profundi­
ambígua essa passividade, pois é o movimento dela que dirige o olhar
dade. Mergulho na intéi:ioridádc, cujo fundo inatingível está sempre em
dele, é a ação de ambos que dirige o nosso olhar, sempre na esteira do
recesso. Aproximação e recuo, atração e fuga a ambigüidade do movi­
ângulo de de Scottie, com quem partilhamos a ignorância, a
mento da espiral ~ experiência matriz de todo o filme cujo eixo é o
curiosidade, a descoberta.
percurso de profissional do olhar, detetive, personificação da
Após a segunda conversa com Elster, o tema do suicídio engendra
vertigem. Logo na primeira seqüência define-se a questão desse protago­
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria. Madeleine/Carlota
nista: numa perseguição telhados de São Francisco, a vertigem de
atira-se nas' águas da baía de San Francisco; Scottie a resgata. Permanece­
Scottie o faz responsávél pela morte de um
mos puro olhar; ele passa ao plano da intervenção e do diálogo. Com os
tentar ajudá-lo. Sentimeríto de cu1Da. aposent'adoria
dois juntos, certa concretude o que, em Scottie, é já sonho român­

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tico, tonalidade de experiência ironicamente mimetizada pela textura do
dos no quarto, ficamos ao lado de
filme, projetada nos espaços, no som, configurando um desfile de clichês
sem delongas, que não espera o final:
do melodrama. Encarnando a figura híbrida de e
Sozinha no quarto, hesitante, nervosa,
terapeuta, Scottie permeia cada encontro de inquÍfÍ"ÃM
assume o risco do reencontro com nova identidade, JUdy I Madeleme re­
sar o imaginário de Madeleine/Carlota, decifrar a
a trama urdida por Elster. Para livrar-se de sua mulher, ele COl1­
< catarse reveladora, curar a mulher por quem está

para simular Madeleine. Ou seja, assumir essa identidade


coloca adiante dele na investigação.

para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie. Elster sabia dos pro­
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Mis­
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
são Católica perto de São Francisco, procurando explorar um sonho dela
de Scottie a testemunha ideal, pois era esperado que nunca ao
que ele julga revelador, sinal de que a solução do enigma está e,
topo para ver Madeleine ser atirada por ele, Elster, quando Judy, com o
com esta, a salvação, superada a pulsão de morte que a domina. Lá che­
mesmo traje e aparência, chegasse, certamente sozinha, ao alto da torre.
gando, tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacões
Pensando ser sujeito ativo na cura de Madeleine/Carlota, Scottie tentou
e insiste em caminhar sozinha em à
resgatá-la e apaixonou-se por um simulacro, por uma imagem constmída
de Scottie, que não consegue enfim retê-la e perceDe, em pamco, a torre
para seu ponto de vista. O dispositivo montado estava todo apoiado nas
alta do sino. A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
posições recíprocas de observador e imagem, dueto que deu corpo à fic­
e à torre, seguida de Scottie que, como suspeitamos,
ção consagrada a posteriori pela sistemática do tribunal (num estratagema
da escada, retido pela vertigem - e somos retidos
bem mais complexo, Judy /Madeleine ocupa o lugar da falsa evidência
com ele. Ouve-se o grito. Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o
apresentada à testemunha no meu primeiro exemplo). O diagnóstico do
corpo que cai.

suicídio que absolve Scottie é a consumação do crime perfeito. A posição


O ex-detetive vive a reiteração da
a humilhação pública de um de Elster - aquele que sabe - corresponde à posição do dispositivo narra­
psicologicamente massacrado; Els­ dor da história no cinema clássico (ele permanece à sombra e orquestra as
não sem antes também absolvê-lo. Scottie imagens). Portanto, no enredo que coloca em cena, Vertigo espelha ()
entra em colapso, é internado. Quando retoma às ruas de San Francisco,
prio mecanismo desse cinema que, via de regra, constrói-se segundo a
destila sua no passado, volta aos mesmos lugares, quer encontrar
lógica do crime define o meu ponto de vista, dá corpo ao simu­
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhança. Um
lacro, é monitor de meu desejo, tal como o dispositivo Elster-Judy-Made­
dia, depara com Judy (Kim Nóvak, novamente), diferente nas maneiras,
leine-Carlota em a Scottic.
no em termos de classe. Em tudo o mais a réplica de
O filme de Hitchcock vai não se reduz à exposição desse
Madeleine. Ele a segue, bate à porta do seu quarto de hotel, explica seus
mecanismo. Este se encontra inserido num tecido de ~elações que envol­
motivos, convida-a para jantar. Ela desconfia, dá provas de sua identidade
vem não só a identidade e o desejo de Scottie, mas também a identidade
(sou Judy, não o conheço), tenta a rejeição, mas finalmente aceita. Satisfei­
eo de (a não foi apenas para ele, a
to, ele diz a hora do encontro e retira-se. Pela primeira vez em todo o filme
Urna leimra mais completa de Vertigo exi­
não o acompanhamos, nos separamos de seu ponto de vista. De repente,
~;rlpr"rií() detalhada do movimento derradeiro da trama. Re­
não é mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar. Reti­
para o estratagema do as permanecem na

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esfera das duas personagens, agora entregues à resolução de todo o dispo­
Tomei Vertigo como um laboratório no qual, sob controle, exibe-se
sitivo de identidade/simulação/vertigem. 6 Permanecendo, porém, nas
uma engenharia da simulação: aq:relaacionada pelo olhar do filme clássi­
considerações sobre o aparato do olhar, que é meu objetivo central aqui,
co, a qual alia a força de sedução da cena à invisibilidade do aparato, Para
afasto-me do filme, não sem antes fazer breve referência ao que, na parte
finalizar, gostaria de ir além dessa referência mais imediata ao aparato do
final de Vertigo, devolve-nos à questão da leitura da imagem, no cinema.
cinema clássico, pois a análise aqui feita permite uma inversão nos meca­
No reencontro das personagens, Scottie, impelido por sua fixação nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metáfo­
na imagem do passado, in~iste em fazer de Judy, nos mínimos detalhes, a ra da sociedade como "universo carcerário" e se desdobram em imagens
réplica fiel de Madeleine. Ao observar sua metamorfose, redefinimos
do "aprisionamento pelo olhar". Diante dos aparatos de comunicação que
nossa relação com a cena antiga: a imagem de Kim Novak era Judy, que
nos cercam, é comum a caracterização de uma competência de controle,
era Madeleine, às vezes Carlota; Judy possuída por Madeleine (a posses­
de ordenamento, cristalizada no olhar vigilante, onipresente, que se volta
são, transferência, se refaz agora); Madeleine (Judy) falando de sentimen­
o tempo todo para nós. Considerando as tecnologias do olhar, podemos,
tos que eram de Judy (Madeleine), numa duplicação de palavras, expres­
entretanto, destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
sões, gestos que não permite definir os contornos que separam, uma da
a ação de um olhar que, em vez de estar voltado para mim, olha por rrtim,
outra, essas quatro presenças. Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
oferece-me pontos de vista, coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
estratagema do filme conta com os falsetes, fragilidades de seu desempe­
a ironia de Vertigo: Scottie é o olhar vigilante, profissional, mas o proces­
nho, para o bom efeito. A construção das identidades em abismo embara­
so de controle atua em sentido inverso - é o dispositivo que define seu
Iha a enunciação dos gestos: como dizer quem "expressa" o quê quando a
ponto de vista). Cercado de imagens, vejo-me inscrito pela media numa
ação dramática requer um fingir fingimento num processo em cascata?
segunda natureza, num processo que implica um cotejo de pontos de vista
Vertigo ilustra, nesse aspecto, o quanto a leitura do rosto está atrelada à
muito peculiar, que me afasta, por exemplo, do enfrentamento próprio da
moldura que possuo e não à exclusiva expressividade 'da imagem. Tudo
relação pessoal, intersubjetiva. Esta se constitui pela devolução do olhar
nas palavras e gestos de Judy /Madeleine ganha um sentido novo a partir
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado: o olho que vejo
de cada deslocamento do ponto de vista. O que não significa apenas uma
é olho porque me vê, não porque o vejo. Diante do aparato construtor de
questão de espaço e informação, mas inclui, de modo decisivo, uma dis­
imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não
posição particular do observador, que completa a ação invisível do apara­
vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz
to (no caso, para a consumação dos efeitos desejados, era preciso que o
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais". ou talvez menos.
espectador da cena fosse Scottie, com seu perfil e seu passado).
Dado inàlienável de minha experiência, o olhar fabricado é constan­
te oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo,

6. Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade/ simula­


implica discutir os termos desse olhar, observar com ele o mundo mas
ção/vertigem e, em particular, sua resolução trágica ao final do filme, ver Robin colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação
Wood, Hitchcock's Films (Nova York: Castle Books, 1969), no qual a moldura é a com o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que,
psicanálise; e Nelson Brissac Peixoto, Cenário em ruínas (São Paulo: Brasiliense, fora do campo, torna visível.
19 87), cujo texto pressupõe uma reflexão sobre o mundo dos efeitos-de-superficie,
o vazio, a dissolução da origem, o simulacrQ.

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