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Testemunho: um acontecimento

na estrutura1
Bethania Sampaio Corrêa Mariani*

Resumo
Le réel, c’est ce reste de toute histoire
Este artigo trata da questão do teste- qui échoit au sujet, excédent le sujet
munho do ponto de vista da análise lui-même. Le réel est sa part la plus
do discurso e da psicanálise. A noção intime et en même temps la plus
de real é mobilizada, circunscreven- étrangère, la condition même de
do um impossível de ser simbolizado la subjectivation.
tanto na história como na linguagem. (THÉRON, 2004, p. 9)
Discute-se É isto um homem?, de Pri-
mo Levi, e o documentário A morte El trauma no se cura por la memoria, y
inventada, dirigido por Alan Minas. aun menos por el olvido. Por eso una de
las formas de tratar lo real del trauma
Palavras-chave: Testemunho. Real. es bajo la forma de la historización.
Análise do discurso. Psicanálise. Pero la historización no tiene una
significación única. [...] La Shoa, el
genocidio más devastador del siglo
pasado no cesa de escribirse.
(BLEGER, 2010, p. 37)

*
Doutora em Linguística pela Universidade Estadual
de Campinas. Professora titular do Departamento de
Ciências da Linguagem, Instituto de Letras, Universi-
dade Federal Fluminense. Bolsista CNPq e do Cientista
do Nosso Estado Faperj. Pesquisadora do Laboratório
Arquivos do Sujeito. Docente do Programa de Pós-
-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade
Federal Fluminense. E-mail: bmariani@id.uff.br

Data de submissão: mar. 2016 – Data de aceite: maio 2016


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v12i1.5890

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Antes de introduzir o ponto central de “propriedades estruturais indepen-
deste texto – a insistência do testemunho dentes de sua enunciação” (2006, p. 31).
e a (im)potência para os dizeres – retomo Os equívocos e as falhas não resultariam
o título, tendo em vista a alusão feita a de um acaso que quebraria a lógica de
dois livros: o de Pêcheux, Discurso: es- uma língua estruturada e autônoma, de
trutura ou acontecimento (2006); e o de um pensamento estabilizado ou de uma
Leite, O acontecimento na estrutura; o rotina cotidiana organizada. E, indo
real da língua na teorização sobre o dis- além, o autor mostra que, sendo qualquer
curso: a hipótese do inconsciente (1994). enunciação exposta ao equívoco da língua
(sua expressão), a deriva nos processos de
Palavras iniciais produção de sentidos é sempre possível.
Vale destacar, ainda, que o real evo-
Orlandi (2006, p. 5), retomando cado por Pêcheux aponta para outro tipo
Pêcheux, sinaliza que a análise do dis- de saber, não redutível ao que se espera
curso está situada em uma posição de do saber produzido, por exemplo, na uni-
entremeio no campo das disciplinas hu- versidade, ou das coisas a serem sabidas
manas e sociais, uma vez que trabalha pelas ciências. Como afirma o autor,
com a materialidade singular do dis- [...] um real constitutivamente estranho à
univocidade lógica, e um saber que não se
cursivo, a qual não é sem o processo de
transmite, não se aprende, não se ensina,
constituição mútua entre o linguístico e o e que, no entanto, existe produzindo efeitos
histórico. Essa materialidade é discutida (2006, p. 45).
por Pêcheux como um espaço discursivo De que saber fala Pêcheux aqui? Colo-
não logicamente estabilizado, pois na cado dessa maneira, essa noção de saber
materialidade discursiva há pontos de encontra na psicanálise forte ressonância.
real, em que estrutura e acontecimen- Para a psicanálise, leia-se aqui tal como
to funcionam por desestabilização. Na formulada por Lacan em sua releitura de
construção do dispositivo de análise, os Freud, certamente se trata de um saber
gestos de leitura do analista imbricam- singular, e justamente por ser singular
-se, por sua vez, na tensão entre descrição não se se apre(e)nde, não se transmite
e interpretação (PÊCHEUX, 2006, p. 19). em uma aula, nem é generalizável, mas
Pensar dessa forma é já se encontrar permanece produzindo efeitos. É um
reterritorializando a noção de língua,2 saber que ultrapassa o sujeito, e, sendo
produzindo um deslocamento que inclui irredutível e efêmero, só é apreensível por
o equívoco no espaço discursivo não lo- um analisante em processo de análise,
gicamente estabilizado bem como uma processo esse que tem no psicanalista
outra concepção de falante, ou seja, não uma testemunha do que se produziu.
mais um suposto falante que saberia do Considerando que Pêcheux está colocan-
que fala e cuja enunciação seria reflexo do sob lentes bastante críticas tanto a

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evidência de necessidade de “um mundo consideração de que a linguagem, ou o
semanticamente normal” (2006, p. 34) simbólico, ou o Outro barrado, conforme
quanto discursos científicos que, excluin- Lacan, é por si, e em si, furada, esbura-
do o sujeito desejante, buscam a produção cada, ao mesmo tempo em que produz o
de um saber totalizante, unificante e sis- furo real (LEITE, 1994, p. 19).
tematizador,3 a inclusão, justamente, do Leite retoma o título do já mencio-
real como ponto de impossível bem como nado texto de Pêcheux e, considerando
a inclusão de um saber que só se sustenta fortemente uma intervenção da psica-
na singularidade do um-a-um, promove nálise, reconhece que o autor inclui a
um deslocamento e propõe um caminho psicanálise em seu projeto de teoria do
no discursivo que se abre para ‘mostração’ discurso, mas propõe um deslocamento
da presença-ausência do inconsciente. O bem radical a esse respeito, ao afirmar a
inconsciente, ou seja, o que se impõe para necessidade de referência ao real tendo
todos, mas que não se mostra nunca de em vista a singularidade do aconteci-
uma mesma ou única maneira. mento na estrutura. Diz a autora: “[...]
Leite, por sua vez, discute a subjeti- oferecemos a seguinte leitura: o Outro
vidade na linguagem em alguns textos é esburacado, a estrutura comporta um
de Pêcheux, sobretudo no já mencionado furo, o lugar do acontecimento” (LEITE,
Discurso: estrutura ou acontecimento, 1994, p. 21). Tematizar a linguagem e o
tendo em vista a hipótese do inconsciente sujeito desse ponto de vista é, do lado
e o fato da menção ao real como “lugar da linguagem, salientar a necessidade
do acontecimento” (LEITE, 1994, p. 15), de pensá-la de forma diferenciada, e, do
singular e contingente, na estrutura. A lado do sujeito, enfatizar sua divisão, ou
hipótese do inconsciente, ou melhor, o que seja, demarcar que “há um saber que não
usualmente nomeia-se como descoberta se sabe”, e que se trata de um saber sem
do inconsciente por Freud, aponta para mestre, conforme afirma Lacan (1985,
uma ruptura com uma tradição filosófica p. 19) sobre o inconsciente.
e linguística sobre a centralidade do fa-
lante, daquele que enuncia o eu. Em tal Testemunho: primeiras
tradição, a menção ao eu supõe e implica impressões
a consciência, ou seja, a certeza da cons-
ciência do sujeito que toma a palavra. É na ordem da dimensão de um indi-
Leite chama a atenção para a progressiva zível, de um furo presente na linguagem,
inclusão da categoria do Outro na obra de que testemunho será pensado aqui. Logo,
Pêcheux, e como essa categoria encontra- uma pergunta já se formula: como seria
-se articulada a alterações na conceitua- possível transmitir algo indizível?
ção de estrutura. De acordo com Leite, o Deve-se lembrar de que o testemunho
avanço da proposta psicanalítica está na é da ordem do memoriável, esse é um

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dos seus aspectos. Dar um testemunho dias. Trata-se, também, da insistência
aponta para um falar urgente, para o em uma única significação (interpreta-
não esquecer e para um não deixar os ção) mortífera que advém do Outro, que
outros esquecerem. Pensemos aqui em interpela o prisioneiro como um nada e o
Primo Levi, uma perfeita testemunha joga nesse nada, em que nada do humano,
(AGAMBEN, 2008, p. 26), que logo nas mesmo ações rotineiras, como o barbear-
palavras introdutórias do seu livro É isto -se, faz algum sentido. Essa experiência, o
um homem? formula esse imperativo de real desse acontecimento, marca no relato
relatar o que havia passado no campo de Primo Levi sua tentativa de inscrição
de concentração em termos de perda da no simbólico:
dignidade de si, em uma posição limite, [...] nos damos conta de que a nossa língua
nem vivo nem morto e, sobretudo, sem não tem palavras para expressar esta ofen-
sa, a aniquilação de um homem. [...] quem
voz. Levi deseja contar aos outros o que perde tudo, muitas vezes perde também a si
aconteceu, e isso tomou “caráter de impul- mesmo; transformado em algo tão miserável
so imediato e violento” (LEVI, 2013, p. 8) [...] Infindáveis e insensatos são os rituais
obrigatórios. [...] Quando a necessidade
Também para Rigoberta Menchú, que
aperta, aprende-se em breve a apagar da
relata os massacres sofridos por seu povo nossa mente o passado e o futuro (LEVI,
na Guatemala, dar um testemunho sobre 2013, p. 24, 25, 32, 35).
o vivido é crucial. Nas palavras de Levi No entanto, os inúmeros textos escri-
(2013), testemunhar sobre o vivido trau- tos, publicados, e as inúmeras entrevis-
mático é uma forma de liberação interior. tas concedidas por Levi permitem que
Nos relatos de Primo Levi, de Rigoberta nos indaguemos sobre a tríade real, sim-
Menchú e, também, no âmbito do funcio- bólico, imaginário. A captura imaginária
namento das Comissões da Verdade, no que faz retorno e se entrelaça na inces-
conjunto de testemunhos que relatam sante escritura poderia bordar de fato
processos de extrema violência contra a o real desse acontecimento? Cogitamos
própria condição humana, situações em sobre a (im)possibilidade de inscrição no
que se perde o direito ao uso da língua, em simbólico, tanto no que concerne à busca
que a fala é totalmente impossibilitada e de paz na experiência única vivida por
em que os referenciais de vida cotidiana, Levi, quanto a dar paz aos mortos.
do ordinário de sentidos, em um mundo Zizek (2006, p. 14) dirá que o impacto
semanticamente estabilizado, são apaga- do Holocausto pode ser avaliado justa-
dos, encontra-se o que estamos chamando mente pela impossibilidade de sua ins-
de dessubjetivação. Não se trata, apenas, crição em alguma narrativa histórica já
de uma ausência de significação para si existente, anterior ao acontecimento em
ou sobre si mesmo, em função do des- si. Esse espaço simbólico anterior, que
mantelamento de uma memória em que assegurava às narrativas históricas sua
o sujeito se ancorava para suportar seus historicização, não insere o Holocausto

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em nenhuma seriação. O acontecimento cerne da constituição do sujeito. O que
do Holocausto escapa à seriação históri- seria o esquecimento? O que é, como fun-
ca. Ele é puro corte. Puro acontecimento ciona o esquecer? Por que esquecemos ou
real, aqui compreendido como real da por que, ao contrário, insistimos em lem-
história, a posteriori bordejado por ten- brar, supondo na memória a verdade?
tativas de simbolização, como faz Primo No início de 2015, uma frase circulou
Levi em seu relato, mas que deixa um pelo Facebook, frase que, de início, com-
resíduo indizível e resistente à historici- partilhei sem pensar muito. A frase era:
zação. Nem tudo é possível contar. “Deixe para trás tudo o que não te leva pra
Nesses casos, como nos de Primo Levi frente”. Frase construída com antônimos,
e Rigoberta Menchú, não valeria o que frase de efeito, dessas que fazem estilo
Yerushalmi afirma? Ou seja, em teste- autoajuda, e que só retornou para mim
munhos dessa natureza, o “antônimo como enigma quando percebi que vários
de esquecimento não seria memória, amigos da rede social a haviam curtido e
mas sim justiça” (YERUSHALMI, 1988, feito comentários entusiasmados. Apenas
p. 10). Justiça a ser conferida aos que nesse só-depois da leitura dos outros,
não conseguiram voltar e, também, questionei-me: o que seria esse deixar
justiça a ser conferida aos sobreviven- para trás? Deixar pra trás tudo? Tudo?,
tes. Discutimos, até aqui, o Holocausto, ou seja, todo um saber memoriável?
mas também poderíamos estar falando Esse “deixar para trás” da frase não
das ditaduras e de seus mecanismos de estaria remetendo à possibilidade de
tortura, repressão e atentados políticos um esquecimento totalmente voluntá-
além da imaginação. rio, como um gesto pessoal de colocar
algo, alguém ou uma situação nessa
Memória e esquecimento zona do não querer lembrar mais de
algo, de alguém ou de alguma situação?
Se testemunho é dar ordem a essa Tomado por esse ângulo, esse esquecer
tentativa de inscrição na história, do alguma coisa do enunciado remete a um
memoriável, e se, de outro modo, estou esquecimento inscrito na ordem de um
pensando aqui que a linguagem, logo, o saber alguma coisa, ou, ainda, de um
memoriável a partir da linguagem, é o esquecimento inscrito na ordem do devia
não todo-dizível, proponho incluir uma ter feito alguma coisa (MILNER, 1988).
reflexão sobre o esquecimento, pois o É na materialidade do funcionamen-
esquecer caminha lado a lado com o tes- to da língua (portuguesa, nesse caso)
temunho daqueles que querem registrar que se constitui o efeito de evidência
determinadas memórias. Falo do esque- do indivíduo consciente; assim, é na e
cimento pelo ângulo da impossibilidade pela língua que se materializa a ins-
de um tudo lembrar-se do que está no crição daquele que afirma “esqueci...”.

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Questionando, justamente, os efeitos de dos, da captura imaginária em que o eu
evidência inscritos na materialidade da se encontra alienado. O significante em
língua, Milner dirá: Lacan, repensado a partir dos aponta-
Indivíduo, dever e consciência, aqui está mentos de Saussure, é o que não porta
então o que designam, sem o saber, aqueles sentido algum, e que se impõe ao sujeito
que são indiferentes às palavras e acreditam com sua lógica própria, que é a da rela-
no gênero comum de todos os esquecimentos
(MILNER, 1988, p. 64, tradução nossa). ção S1... S2. Uma lógica que não porta
conectivos e que, como nos sonhos, opera
Há, por um lado, retomando o enun- a partir de relações metaforonímicas,
ciado do Facebook, o efeito de evidente promovendo um jogo de remissões, con-
possibilidade inscrito na materialidade densações, deslizamentos e substituições
da formulação “deixar para trás”, que que movimentam os significantes sem
coloca o sujeito em uma posição conscien- fechar sentidos.
te, autônoma e totalmente voluntária, e, Nesse jogo, ou rede de remissões, o
por outro, há um esquecer relacionado a simbólico é estruturado, portanto, como
um saber que não se sabe (que se sabe), um encadeamento significante não fe-
como no episódio do esquecimento do chado, e que, em seu modo de operação,
nome próprio Signorelli, exaustivamente deixa algo como resto irredutível ao
investigado por Freud, caso relatado em significante. Um resto que se tenta abor-
Psicopatologia do cotidiano sobre seu dar pela linguagem.5 O sujeito, nos diz
próprio esquecimento.4 Lacan, é “determinado pela fala e pela
Desconfiar dessa ilusão de certitude linguagem [...] nasce no que, no campo
provocada por processos de produção de do Outro, surge o significante. [...] antes
sentidos, tal como se inscrevem na base não era nada senão sujeito por vir – se
material da língua, esse é o ponto. Em coagula em significante” (LACAN, 1985,
outras palavras: a que efeitos de sentidos p. 187, grifo nosso). O sujeito se engendra
o verbo esquecer e o substantivo esque- de um nada, de um por vir, e se “coagula
cimento estão submetidos e submetem em significante”, ou melhor, dividido
quem os utiliza? pela e na cadeia significante, sempre
Assim, representado de um significante para
Se há o esquecimento, nos diz Milner, então outro. Dito de outra maneira, o sujeito
há outra coisa que o fantasma da memória:
encontra-se em movimento, em errância,
há um real, como acontecimento singular e
contingente, o qual faz signo ao sujeito na sendo representado de um significante
forma do esquecimento (MILNER, 1988, para outro; sujeito do inconsciente é
p. 65, tradução nossa). efeito de se estar na linguagem.
Signo, na acepção lacaniana, é o que A subjetividade, sob esse ponto de vis-
representa algo para alguém. Nessa ta, não é compreendida no eu e nos seus
concepção encontra-se a via dos senti- signos com os quais se representa, ou seja,

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filhos, carros, documentos de identidade, to que a operação significante, de entrada
cor de olhos, memórias, títulos, enfim, no simbólico, não deu conta, estamos no
todo o conjunto de elementos predicativos plano dos objetos. Essa dimensão do real,
ou sígnicos em que o eu se supõe represen- do que foi perdido pelo infans (como vivo,
tado e onde (se) supõe encontrar enquanto orgânico) em função de sua entrada no
unidade autônoma e consciente. O eu é simbólico, não cessará de tentar se escre-
do registro do imaginário, ilusório, alie- ver, ou como diz Lacan: “não cessa de não
nado, e está sempre se defrontando com o se escrever” (1990, p. 127).
enigma advindo do sujeito do inconsciente Sabemos que o lembrar e o esquecer
que fratura as certezas [do eu]. Assim, estão tensionados, operam nessa tensão
quando se propõe de fato um trabalho com e têm funções diferentes. Em termos
a perspectiva psicanalítica, compreende- da análise do discurso, Pêcheux já cha-
-se a subjetividade como o que escapa, mava a atenção para isso: a memória é
o que não (se) fecha nas interpretações, lacunar, e na memória já se encontra a
o que é fugidio e não se reduz a alguma marca do esquecimento. E o que é bo-
determinada representação. Lacan irá nito é justamente que o esquecimento,
se valer do neologismo linguisteria para conforme Pêcheux, não está designando
afirmar que o que propõe não é do campo algo que em algum momento se soube,
da linguística, uma vez que a psicanálise mas, sim, “o acobertamento da causa do
introduz o sujeito do inconsciente, do de- sujeito no próprio interior de seu efeito”
sejo inconsciente, enquanto que a linguís- (PÊCHEUX, 1988, p. 183).
tica, enquanto ciência, foraclui o sujeito. Mariani (2012), para falar do esque-
“A linguagem é condição do inconsciente”, cimento, trouxe a metáfora lacaniana do
como afirmou Lacan inúmeras vezes, e “o “texto descompletado”: nas tensões do
inconsciente é a condição da linguística” lembrar-e-esquecer/esquecer-e-lembrar
(LACAN, 2003, passim). estão as tentativas do sujeito do in-
Voltemos aos nossos pontos de dis- consciente de falar pelas falhas, pelos
cussão sobre: testemunho, memória e buracos que vão se abrindo e esgarçando
esquecimento. De um lado, o fantasma da o dizer. O inconsciente é causa, e porta
memória, aquilo que, pela via do imaginá- um saber sem sujeito. Dessa forma, o vo-
rio, insistimos em recordar de terminada luntarismo pretensamente consciente de
maneira, muitas vezes em repetições um indivíduo naquele ‘querer esquecer’
infindáveis. De outro, o furo na memória, (deixar pra trás), encontra-se no registro
que insiste em ficar sem representação do eu, absorvido pelo imaginário. Porém,
quando se dá o esquecimento. Real, em algo sempre incomoda e faz retorno, ou
psicanálise, é o registro do impossível, seja, busca brechas para se fazer ouvir.
o que escapa de inscrição no simbólico. E retorna justamente porque o esqueci-
Trata-se do saber que está no real, um res- mento nos constitui, está na gênese da

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divisão subjetiva. Falar das lembranças, to, nas palavras de Agamben) traumática
do memoriável, é deparar-se também e que, com o relato disso que vivenciou,
com o esquecimento, logo, com o real pode dar um testemunho, ou seja, trans-
que sinaliza no campo da fala e da lin- mitir aos outros o que foi ter passado
guagem, a impotência das palavras e um por essa experiência. Dar testemunho é
indizível na/da apreensão dos objetos. transmitir, por via oral ou escrita, essa
experiência. Há, portanto, sujeito inscrito
Testemunho e no testemunho, há enunciação, nos termos
da psicanálise, naquilo que se narra.
transmissão Contudo, o título deste trabalho
De início, deixo de lado o sentido ju- aponta, justamente, para um fracasso da
rídico de testemunho, que é o de alguém linguagem em falar de um “todo vivido”,
que, uma vez chamado para depor em uma vez que a linguagem é insuficiente
um processo, afirma ou nega o que lhe e apenas faz borda na tentativa de dar
conta do real da experiência, ou evento,
é perguntado; e deixo de lado também
ou acontecimento que mergulha com
o sentido dicionarizado, o testemunho
violência o sujeito.
como “o que indica a existência de algo,
Primo Levi suicidou-se em 1987.
uma demonstração cabal, plena, uma
Como apresentado no início deste texto,
afirmação fundamentada” (HOUAISS,
reiteradas vezes, ao longo da vida, em en-
2001, p. 1962).
trevistas ou em outros livros escritos, ele
Quanto à etimologia da palavra teste-
marcou fortemente sua insistência em
munho, Agamben nos diz que em latim
testemunhar, em narrar sua experiência
há dois termos: “1. Testis (o que se põe
para “os que sabiam”, para “os que não
como terceiro) em um processo entre
queriam saber”, para “os indiferentes”.
dois contendores; 2. Supertes, aquele
Assim, na posição de superstes, o escre-
que viveu algo, atravessou até o final
ver em Levi traz a marca dessa insis-
um evento e pode dar testemunho disso”
tência do testemunho, condição daquele
(2008, p. 35). Ainda conforme Agamben:
que quer contar para os que não sabem,
Em grego, testemunho é Martirs. Na histó-
o que ele sabe sobre o aniquilamento da
ria do catolicismo, Martirium é a palavra
que indica aqueles (cristãos) que tinham vida em Auschwitz.
sido perseguidos e mortos. Assim, em Mar- Agamben (2008), que encontrou Levi
tir/Martirium há um testemunho de fé, no diversas vezes, registra a divisão de Levi
qual o recordar é crucial (2008, p. 36).
entre um sentimento de culpa por ter
Para o que está se discutindo aqui, tes- sobrevivido e a sensação de “paz” consigo
temunho supõe uma implicação subjetiva próprio em função do testemunho insisten-
no que se está narrando. Nesse sentido, é temente transmitido. O relato inúmeras
um termo vinculado a alguém que passou vezes realizado por Levi leva-o a nomear
por alguma experiência de vida (um even- uma “zona cinzenta”, quase como um

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novo elemento ético, “situado aquém do blicas, de falar publicamente, de dizer a
bem e do mal”, e que diz respeito ao “sub- minha verdade”.
-homem”, conforme Agamben (2008, p. 30). Diferentemente de Primo Levi, ao
A zona cinzenta demarca um lugar ser perguntada sobre “O que resta para
muito específico de sobrevivência do você fazer?”, Rigoberta responde enfáti-
sub-homem. Levi destaca que alguns pri- camente:
sioneiros eram designados para tarefas Escrever a verdade. Não apenas a memória
abjetas, como aqueles que eram respon- de Rigoberta Menchú como uma memória co-
sáveis pela administração das câmaras letiva, mas o que tanto temos feito... Então, eu
gostaria de escrever quatro ou cinco livros de
de gás. Levi traz vários testemunhos diferentes facetas, desde menina, na juventu-
desses sobreviventes, sinalizando tanto de, na militância – porque sou uma militante
o horror quanto o absurdo dos relatos, –, meus professores, os desafios que a vida
nos trouxe, um deles é a violência e há outros
tanto a silenciosa angústia quanto o sen- medos que tivemos e é preciso escrever isto
timento de vergonha que a todos marca- (MENCHÚ, 2013, não paginado, grifo nosso).
va. Agamben (2008) questiona-se então:
Tanto em Primo Levi quanto em Rigo-
E nós, diante da angústia e da vergonha
berta Menchú tem-se o testemunho da po-
da experiência desse outro, diante desse
sição de exclusão social daqueles que so-
testemunho, desse real, dessa história
brevivem a um sofrimento muito grande,
que não se inscreve em nenhuma série
muitas vezes de ultrapassamento de uma
memoriável ou possível, em pleno século
experiência de quase morte. Situações de
XXI, podemos nos dizer afetados pelo tes-
dessubjetivação e de privação extrema,
temunho que Levi insiste em transmitir?
situações em que impera uma total falta
Genéviève Morel (2001, p. 217), que
de ética, que retira do sujeito qualquer
tem um extenso e belíssimo texto sobre
vestígio de dignidade para transformá-lo
Primo Levi, menciona uma entrevista
em dejeto. Pela crítica literária, a escrita
concedida por ele em 1983, quando se
testemunhal é trabalhada com:
diz desencorajado por ver que a geração
seguinte à sua, mesmo seus filhos, não o [...] uma concepção de linguagem ligada ao
trauma. [...] Assim, a base do testemunho
querem escutar. É como se “falasse uma consiste em uma ambiguidade: por um lado,
língua diferente”, afirma Levi, como se a necessidade de narrar o que foi vivido e,
o Outro, o destinatário, não conseguisse por outro, a percepção de que a linguagem
é insuficiente para dar conta do que ocorreu
ouvir o que há para ser dito. (GINZBURG, 2008, não paginado).
Essa insistência no testemunho tam-
bém é sublinhada em Rigoberta Menchú Em Levi, e em tantos outros prisio-
(2013), mas de outra forma, em entre- neiros, o testemunho marca também a
vista recentemente concedida: “Eu jurei angústia e a culpa por ter sobrevivido.
não me calar frente à tortura, à barbárie. O que interessa para a psicanálise
Então, estive por trás de denúncias pú- não se vincula à discussão entre ficção
e realidade, pois isso seria dar suporte

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imaginário à inteireza do Outro. A ques- 2001, p. 221). Apesar de sua insistência
tão está em outro lugar: Freud e Lacan em dizer, e apesar do fato de que real-
nos ensinam que a verdade é da ordem mente dava seu testemunho, a dor de
do inconsciente, é da ordem de um saber Primo Levi, supõe Morel, era de outra
e só pode ser semidita. Tudo não se diz. ordem, o que o teria levado ao suicídio.
E algo se transmite, se alguém ouvir. O que realço aqui como traço que cir-
Morel (2001), em sua análise do tes- cunscreve um testemunho são os pontos
temunho de Primo Levi, sobretudo no de real em que se tropeça, e seus efeitos
momento em que se refere ao sonho por na direção da cura, ou melhor, seus efei-
ele narrado, demarca o ponto de angústia tos no momento de concluir uma análise.
extrema de quem fala de sua experiência Lacan destacava a relevância, na forma-
traumática e não é escutado, recebendo ção de um analista, do testemunho de
apenas a indiferença dos outros. Um so- análise, um testemunho da experiência
nho que passa um sentimento de solidão, com o inconsciente e os efeitos dessa
de desamparo, de retorno ao que é mais experiência da vida de cada um. Só o
constitutivo, mais originário: sujeito pode dar um testemunho sobre
Surgem a minha irmã, alguns amigos meus o real do inconsciente, um testemunho
não identificados e muito mais gente. Todos para alguns outros dispostos a ouvir.
estão a ouvir-me, enquanto conto precisa- Difícil momento esse de um final de
mente isto: o silvo em três notas, a cama
dura, o meu vizinho que queria afastar mas análise, terreno de linguagem arenoso e
que tenho medo de acordar porque é mais árido: como transmitir uma experiência
forte do que eu. Falo pormenorizadamente totalmente surpresiva, pontual e eva-
também da nossa fome, do controlo dos
piolhos e do Kapo que me bateu no narize a
nescente sobre a qual um dizer de anos
seguir ordenou que fosse lavar-me porque se esgarça e se interrompe, mas que, ao
sangrava. é um prazer imenso, físico, ine- fim e ao cabo, não para?
fável estar na minha casa, entre pessoas
Testemunho de análise, para mim,
amigas, e ter tantas coisas para contar; mas
não posso deixar de me aperceber de que os tem a ver com isso: testemunhar sobre
meus ouvintes não prestam atenção. Pelo um dizer que diz de um dizer esgarçado
contrário, são totalmente indiferentes: falam e já acontecido, é dizer do encontro com
confusamente de outras coisas entre si, como
se eu não estivesse lá. A minha irmã olha a falta de garantias, de insígnias, de sen-
para mim, levanta-se e vai-se embora sem tidos. Um dizer que segue adiante, que
dizer nada (LEVI, 2013, p. 61). passa por seus furos e entre as diferenças
Um sonho que testemunha a “dor em significantes, movendo-se discursiva-
estado puro, real sem mediação nenhu- mente, com um incansável trabalho com
ma”, nos diz Morel (2001, p. 221). E, a a língua, sobre a língua e em lalíngua.
partir de Agamben, afirma: “O testemu- Morel fala do testemunho de percurso
nho aparece somente onde aparece uma de análise em que: “[...] alguns sujeitos
impossibilidade de dizer algo” (MOREL, conseguem, através de um esforço rigo-

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roso e um árduo trabalho sobre a língua, separação que viveram e que deixou
extrair o que foi para eles esse algo im- marcas em suas vidas.
possível de ser suportado. Dão forma de Dois apontamentos se fazem neces-
um discurso para poder transmiti-lo a sários antes de prosseguir discutindo
outros” (MOREL, 2001, p. 234). e comentando o documentário: quero
Voltando ao testemunho, como des- entremear, neste texto, a ideia de tes-
taca Leite, “[...] o que denominamos de temunho enquanto transmissão do real
testemunho o é sempre por já delegação, que, como já mencionado, está em jogo
substituto da testemunha, e sobre ele em uma experiência analítica, e teste-
pesa o encargo de testemunhar, tendo munho enquanto relato de experiências
sobrevivido” (LEITE, 2009, p. 178). Pen- (traumáticas) vividas.
semos, então, no sonho do Primo Levi. Indaga-se, muitas vezes, sobre o cará-
Um sonho é algo que não se espera, não ter testemunhal de relatos e depoimentos
se imagina que vá acontecer do modo que de experiências. O que faria de um relato
acontece. Não há como ser antecipado: um testemunho? Qualquer relato seria
um sonho simplesmente é. Nem simbó- um testemunho? Não se trata de atribuir
lico nem imaginário dão conta do sonho, valor testemunhal a quem tem muita
porque ao contarmos o sonho, ele já se experiência ou vivência em determinada
torna outra coisa. No sonho, o sujeito é situação, por mais traumática que seja;
autor e testemunha simultaneamente. não se trata, portanto, de uma memória
Só o sujeito sonhador, em sua singula- para ser propagada. Qualquer um pode
ridade, pode dar o testemunho de seu se valer de um tempo decorrido em que
próprio sonho. Com o relato do sonho, se adquiriu experiência em uma vivência
tem-se no só-depois o testemunho do traumática para daí extrair elementos a
sonhador, o testemunho de uma singular serem ensinados. Porém, nem tudo o que
experiência com o real. é vivido é da ordem da experiência de um
acontecimento, experiência em termos
Só mais um pouco analíticos, como sendo “aquilo que não
se imagina” (LACAN, 1982 apud LEITE,
Tendo em vista essas reflexões, cito o 2009, p. 78). Assim, cabe a pergunta:
documentário A morte inventada (2009), haveria em qualquer depoimento, em
filme que retrata o que é juridicamente qualquer narrativa, um testemunho a
chamado de alienação parental, com ser transmitido no sentido analítico? O
roteiro e direção de Alan Minas. O que que implicaria efeitos de transmissão?
pretendo discutir é a questão do teste- Passo, agora, ao documentário, cujo
munho tomando como base o que haveria título – A morte inventada – remete a
de real nos testemunhos que pais e filhos enunciados efetivamente ditos durante
dão ao longo do documentário sobre a as filmagens, como “morte do pai vivo”,

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“matar o pai em vida”. Inventada, aqui, Em alguns casos, para chegar à cura, basta
remete ao que seria “coisa inventada arregaçar a camisa e mostrar onde dói, em
outros, é preciso arregaçar a pele e mostrar
de modo astucioso”, conforme Houaiss aonde dói. Aqui não cabem as palavras... (A
(2001, p. 1641). MORTE..., 2009).
O documentário é o registro de um
Esse acontecimento ininteligível para
vasto conjunto de depoimentos dados
a criança retorna em sua fala adulta,
por pais e filhos sobre o afastamento
marcada por silêncios, pausas, lágrimas,
provocado pelas mães após o divórcio.
ou, ainda, o que resta da criança, que
Crianças que, impedidas do convívio
tenta construir sua história a despeito
com o pai, ficaram reféns de um gozo
de ter sido objeto de gozo da mãe. As
sem limites da mãe. São relatos que
omissões, as falhas persistem, por mais
narram uma grande dor, um vazio e
que as palavras e as metáforas usadas
um conflito subjetivo tanto de parte
tentem dar conta do vivido durante o
dos filhos quanto dos pais. “Minha mãe
testemunho:
era maravilhosa, sempre presente, cari-
Aí a minha mãe... não lembro... a gente
nhosa... E eu lembro que a mãe maravi- voltou para o Rio... a gente ficou do lado da
lhosa falava muito mal do meu pai” (A minha mãe... a gente tomou as dores... eu
MORTE..., 2009). Em outro momento, não sei qual era a verdade... estar com meu
pai curtindo, era como estar traindo a minha
entremeando com lágrimas e silêncios,
mãe... (A MORTE..., 2009).
diz uma das jovens:
Não precisava ter agora esse buraco que eu
A questão não é a ausência do pai,
tenho... eu sinto muita falta, sabe? (silêncio) mas o ter ficado aprisionado ao pai
E com a terapia eu vi que para poder cami- destituído pelo discurso materno. Entre
nhar, sabe? Eu precisava cortar...e cortar
enunciados e enunciação vacilante, o
minha mãe da minha vida foi muito compli-
cado (A MORTE..., 2009). sujeito tenta cernir o vazio, tenta habitar
um tempo passado que não há mais, sem
São lembranças de infância e de
saber exatamente o que virá a ser.
adolescência que registram situações de
Só agora, a essa altura da vida, fui conhecer
perda da referência paterna, engendran- o mais amargo dos sentimentos. A injustiça
do uma filiação que só se deixa consistir é uma onda de 10 metros que te arranca de
imaginariamente para o sujeito a partir dentro de si e faz tudo te apagar. Falta chão,
falta ar, falta voz. Você perde o rumo, vc perde
do discurso materno: “Fiquei 11 anos sem
o prumo. Não sabe mais aonde fica o céu. Por
vê-lo. [...] Só fui rever meu pai aos 19 eternos 3 segundos você prova o gosto da água
anos, quando saí de casa”. Na tentativa do mar, o gosto do sal, da areia, da morte. A
de escrever essa lacuna imposta pelas razão e os sentimentos submergem e afloram
os seus mais profundos instintos. É você no
contingências da vida, muitos vão atrás avesso, primitivo, em carne viva. Esse senti-
de pedaços da própria história no relato mento veio morar comigo (A MORTE..., 2009).
dos outros:

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Esse sentimento de carne viva passa Há que se passar por esses momentos
a morar com o sujeito, presença real do em sua lógica própria e ao mesmo tempo
indizível da experiência da separação. singular de cada um. O instante do olhar
Entendo esses depoimentos como teste- e “seu tempo de fulguração” tem em seu
munhos da passagem por uma experiên- movimento a modulação de “uma matriz
cia que, no só-depois, permite que algo ainda indeterminada”, uma temporali-
gire e venha a inscrever a possibilidade dade de indeterminação do sujeito que
de outra coisa na vida subjetiva. Porém, pode, conforme Lacan, “incluir todo o
algo passa nesses testemunhos? Algo se tempo necessário para compreender”
transmite? (1998, p. 205). Os limites entre o instante
Ainda há um ponto para pensar em do olhar e o tempo para compreender são
relação ao documentário. Refiro-me ao imprecisos e reabsorvem-se ao longo da
tempo tal como foi descrito em um dos construção, em análise, da encenação
testemunhos: “O tempo não seguiu as imaginária em que o sujeito se encontra
regras do jogo. Eu fiquei ali congelado. aprisionado e indeterminado.
Todo mundo perdeu” (A MORTE..., 2009). Se é na absoluta ignorância da repe-
Em O tempo lógico, Lacan (1998) tição que o sujeito se mostra, é no falar
explica a lógica da modulação do tempo em análise que se estende pelo tempo
no movimento do sujeito, localizando três de compreender, que se opera o mal
instâncias: o instante de olhar, o tempo entendido (da ordem da presentificação
para compreender e o momento de con- das diferenças significantes) na descon-
cluir. Não se trata, segundo Lacan, de tinuidade do retorno do não simbolica-
uma temporalidade cronológica como a mente representável. O real, sabemos
dos ponteiros do relógio apontando para em nossa experiência de análise, não
o passar dos minutos. Nem tão pouco um o buscamos, apenas tropeçamos nele, o
tempo formal, em uma inscrição social, que impõe questionamentos; e o sujeito,
isso seria reduzir a temporalidade pró- em sua busca de sentidos, de um pouco
pria do sujeito a uma organização tempo- de certeza, está sempre se deslocando,
ral que obedece a outras leis. O sujeito, sempre tentando se engatar entre um
ressalto, move-se em uma temporalidade significante e outro, o que só faz marcar
própria à Outra Cena. mais e mais sua falta de lugar na cadeia
A temporalidade em que o sujeito se significante. Não está lá onde se busca:
move se articula diferentemente, em as palavras não encontram.
“uma descontinuidade tonal”, como diz O tempo subjetivo do momento de
Lacan, em cada uma dessas modulações concluir é para concluir que o tempo para
próprias ao instante de ver, ao tempo compreender se encerra: uma conclusão
para compreender e ao momento de a que somente o sujeito pode chegar,
concluir, o que marca o valor e a função “passado o tempo para compreender
diferenciada de cada modulação.

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o momento de concluir”, como afirma instante de olhar entrelaçado ao tempo
Lacan (1998, p. 206). O tempo para com- para tentar compreender as tentativas
preender encerra-se no momento em que de reencontrar um pai. Qual pai? No
o sujeito chega a uma posição desejante, tempo para compreender, a necessida-
sua posição de verdade como desejante. de de simbolizar o pai e de esgarçar a
Mas seria assim tão transparente? Na pregnância do imaginário. Seria possível
tensão das tonalidades e descontinuida- falar em um momento de concluir? Se
des da modulação temporal subjetiva, alguns sofrem e se queixam do discurso
o sujeito duvida dessa verdade a que materno, ainda reféns desse gozo da
chegou, duvida, portanto, do momento de mãe, outros recriminam o pai, que de-
concluir, como nos diz Lacan. Ao mesmo veria ter se esforçado mais para barrar
tempo, dá-se conta de que só pode duvi- aquela mãe. Poucos se valem da lacuna
dar se atingiu, ainda que de modo fugaz, vivida para fazer dela outra coisa. E
a verdade do momento de concluir: é nesse ponto, podemos perguntar pelos
porque algo dessa instância, o momento tantos jovens que o documentário não
de concluir marcou-se em termos de uma traz, aqueles que teriam feito da aridez
experiência subjetiva. E o momento de do vivido uma invenção, ou melhor, uma
concluir abre-se para um novo instante reinvenção possível dentro do impossível
de ver em seus limites imprecisos com o de ser dito.
tempo de compreender em um desenro- Diante do real da morte, só nos resta
lar da temporalidade que se escande e se inventar.
esconde em seu próprio percurso.
Essa é a lógica da modulação tem- Témoignage: un événement
poral de um percurso de análise, ou dans la structure
de uma sessão de análise, ou do que
se passa após uma sessão de análise. Résumé
O inconsciente não tem hora marcada. Cet article thématise la question du
Um percurso cujo final temporaliza-se témoignage soit du point de vue de
subjetivamente, e que o sujeito só pode l’analyse du discours, soit du point
de vue de la psychanalyse. La notion
percorrê-lo sozinho, quando “o tempo
de réel est mobilisée, et circonscrit un
subjetivo do momento de concluir obje- impossible d’être simbolisé. On fait la
tiva-se enfim” (LACAN, 1998, p. 210). discussión du livre Se isto é um ho-
Um acontecimento que implica um longo mem, écrit par P. Levi, et du docum-
mentaire A morte inventada, dirigée
trabalho de luto, ou melhor, de lutos, e
par Alan Minas.
do sujeito diante do real.
No documentário, jovens e pais teste- Mots-clé: Témoignage. réel. Analyse
munham o espanto e, em muitos casos, o du discours. Psychanalyse.
horror diante do discurso materno. Esse

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Notas Referências
1
Meu agradecimento a Mirta Fernandes, Ana
Carnevale, Lucilia Romão e Lauro Baldini pe- AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz.
las leituras e sugestões feitas para a primeira São Paulo: Boitempo, 2008.
versão deste artigo. Este texto foi apresentado,
A MORTE inventada. Sobre a alienação
inicialmente, na X Ciranda de Psicanálise e
Arte, realizada no Museu de Arte do Rio, e
parental. Direção e roteiro: A. Minas. Rio
dois meses depois no IV Encontro do GTDIS, de Janeiro: Caraminhola Filmes, 2009. (Do-
na Universidade Federal Fluminense, ambas cumentário).
as apresentações ocorreram em 2014. Uma BLEGER, D. Trauma, historia y subjetivi-
segunda versão, ampliada, foi apresentada na
dad. Virtualia, Revista digital de la Escuela
Universidade Federal Fronteira Sul, como par-
te de uma mesa-redonda do Celsul, em 2015. A de la Orientación Lacaniana, Buenos Aires,
versão escrita e final aqui apresentada passou a. IX, sept. 2010, p. 34-38. Disponível em:
por releituras, reescrituras e avanços. <http://virtualia.eol.org.ar/021/template.
2
Como o autor chama a atenção, na terceira asp?Actualidad-del-lazo/Trauma-historia-y-
parte do texto, quando, citando Milner (1987), -subjetividad.html>. Acesso em: 1 mar. 2016.
menciona a relevância do real da língua e afir-
ma que “nada da poesia é estranho à língua” GINZBURG, J. Linguagem e trauma na es-
(PÊCHEUX, 1990, p. 50-51), ou seja, a compre- crita do testemunho. Revista Conexão Letras,
ensão do funcionamento das línguas passa ne- Porto Alegre, v. 3, n. 3, 2008. Disponível em:
cessariamente pela inclusão dos deslizamentos <http://seer.ufrgs.br/index.php/conexaole-
incessantes da materialidade linguageira. tras/issue/view/2581/showToc>. Acesso em:
3
A esse respeito, Soler afirma que “aucune 1 mar. 2016.
épistémologie empiriste ne vaut ici, et, en effet,
on ne peut espérer que l’inconscient délivre la HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua
théorie qui rende compte de l’inconscient. Ce Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.
savoir-là, il se construit et se diffuse à partir de
l’étude des textes où il est déposé et que tous LACAN, J. O Seminário – livro 20. Rio de
considèrent comme nécessaires à la formation” Janeiro: Zahar, 1985.
(SOLER, 2009, p. 83). _______. O tempo lógico a a certeza anteci-
4
Sobre esse episódio do esquecimento de Freud,
pada. In: _______. Escritos. Rio de Janeiro:
cf. Mariani (2012).
5
Leite, discutindo a maneira como Lacan relê
Jorge Zahar, 1998. p. 203-211.
Saussure, afirma: “ao introduzir no domínio _______. (1970). Radiofonia. In: _______.
da causa real do inconsciente a lei do signifi- Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
cante, Lacan lê na Linguística saussureana e
2003. p. 445-449.
em Jakobson a descrição do funcionamento de
uma estrutura que condiciona o fato de haver, LEITE, N. Psicanálise e análise do discurso:
como efeito, inconsciente. [...] é a própria in- o acontecimento na estrutura. Rio de Janeiro:
teligência do discurso inconsciente que impõe Campo Matêmico, 1994.
deslocamentos, sendo esta a razão pela qual
Lacan objeta ao fato de que tudo que seja da LEITE, Nina Virginia de Araujo. Transmis-
linguagem dependa da Linguística” (1994, são da experiência: o estranho na narrativa.
p. 36). Trivium, Rio de Janeiro, a. I, ed. I, p. 75-83,
2º sem. 2009. Disponível em: <http://www.
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