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O Corpo da Mulher como Campo de Batalha


Autor: Matéi Visniec
Tradução: Alexandre David

Cena 1:
Kate entra. Dorra se mantém imóvel em uma cadeira. Ela olha
para o vazio.

Kate: Bom dia.


Dorra: ...
Kate: Sou eu, Kate.
Dorra: ...
Kate: O dia está bonito hoje.
Dorra: ...
Kate: Tem gente passeando no jardim.
Dorra: ...
Kate: Se você quiser dar uma volta no jardim, eu te
acompanho.
Dorra: ...
Kate: Eu não estou pedindo pra você me responder.
Dorra: ...
Kate: Mas se você quiser dar uma volta no jardim, eu te
acompanho.
2

Dorra: ...
Kate: Ou você pode ir sozinha, se quiser.
Dorra: ...
Kate: Faça como tiver vontade.
Dorra:...
Kate: Eu vou abrir uma janela
Sente o cheiro da primavera?

Cena 2:
Kate entra no quarto de Dorra.
Kate: Ficha de observação número um. O sujeito sofre de uma
neurose traumática. Traumatic Neurosis. Traumatische
Neurose. Nevrose Traumatica. A causa dessa neurose
traumática é o estupro que o sujeito sofreu há
aproximadamente duas semanas. Aparentemente, não houve
lesão neurológica. Estado do sujeito: confusão mental,
prostração, paralisia traumática. O sujeito não responde aos
estímulos do mundo exterior. Como se obstina em não
responder às minhas perguntas, deduzo que compreenda tudo
o que eu lhe digo.

Cena 3:
Kate entra. Dorra se mantém imóvel na sua cadeira.
Kate: Eu sei que você está me escutando.
Dorra: ...
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Kate: Eu sinto que você está me escutando.


Dorra: ...
Kate: E é por isso que eu estou falando com você.
Dorra: ...
Kate: Não estou te pedindo pra me responder.
Dorra: ...
Kate: Não estou te pedindo nada.
Dorra: ...
Kate: Eu me chamo Kate.
Dorra: ...
Kate: Você é Dorra.
Dorra: ...
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: Eu sou a Kate. Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: É um belo nome, Dorra.
Dorra: ...
Kate: O que você gostaria de almoçar?
Dorra: ...
Kate: Vou te dizer o que temos no cardápio hoje
Dorra: ...
4

Kate: Hoje é dia de sopa... Sopa de abobrinha... Creme de


legumes... Lasanha de chucrute... Eu gosto muito de sopa. Eu
não sou totalmente vegetariana, mas gosto muito de sopa.
Dorra: ...

Dorra, sozinha, à noite, encolhida em sua cama, embaixo do


cobertor.

Cena 4:
Dorra: Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te
odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te
odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te
odeio. Eu te odeio...
Não acredito que o tempo cure tudo. O tempo só cura as
feridas curáveis e pronto. O tempo só faz o que ele pode fazer
e pronto. Nada mais do que isso.
Não, eu não posso te contar o meu sofrimento.
Não, eu não acredito que podemos contar tudo.
Eu não acredito que se possa entender tudo.
Eu não acredito que tem um sentido em tudo que contamos.
Eu não acredito que tem um sentido no que eu estou dizendo.

Cena 5:
Kate: Ficha de observação número dois.
O sujeito sofre de uma alteração do eu.
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Alteration of the ego. Ichveränderung. Modificazione dell’io.


O sujeito encontra refúgio no silêncio e mostra uma verdadeira
resistência a toda tentativa exterior de comunicação.
Este comportamento nada mais é do que um mecanismo de
defesa. Toda tentativa de entrar em comunicação é percebida
por ele como uma agressão. Para o sujeito, o estupro continua.

Cena 6:
Kate (para o público): O novo guerreiro dos Balcãs estupra a
mulher do seu inimigo étnico pra lhe dar assim um golpe de
misericórdia. O corpo da mulher é o campo de batalha. Em
nenhum outro lugar o ódio se manifesta de uma maneira tão
violenta quanto nesse “novo” campo de batalha. O novo
guerreiro não se expõe às balas, às granadas, morteiros, aos
tanques. Ele só se expõe aos gritos das mulheres. O novo
campo de batalha do novo guerreiro: o corpo da mulher do
antigo vizinho, o corpo da mulher do velho amigo de escola, o
corpo da mulher do seu próximo (semelhante) que ele deve ter
chamado de “irmão” durante quase meio século.
A força que obriga as etnias a confraternizar: bombas-relógio.
Esta é a verdadeira catástrofe dos Balcãs. Uma eterna
frustração nacional. A desforra freudiana dos povos que nunca
tiveram um país. O corpo da mulher como campo de batalha:
onde os combatentes se jogam pro golpe final.
Nos dias de hoje, nas guerras étnicas, o estupro é uma forma
de (blitzkrieg?) “guerra-relâmpago”. Nada pode desestabilizar o
inimigo de uma maneira mais eficaz do que o estupro da sua
mulher.
Para um homem o corpo da mulher encarna a resistência.
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Mais da metade das mulheres estupradas no contexto das


guerras interétnicas são vítimas de agressores que elas
conhecem.
Cerca de metade das mulheres que pudemos entrevistar
declaram que os homens que as estupraram moram na mesma
vila ou em vilas vizinhas.
Quase um quarto das mulheres entrevistadas é capaz de dar o
nome ou os nomes dos seus agressores.
Parece que muitas mulheres casadas com homens de outras
etnias foram estupradas por agressores da mesma etnia delas
como forma de punição pelo casamento misto.
Para o novo guerreiro, o estupro da mulher do seu inimigo tem
o gosto de uma vitória completa.
O novo guerreiro estupra para quebrar a resistência. Ele sabe
que está dando um golpe fatal.
Antes do confronto cara a cara, o guerreiro interétnico busca
destruir as fontes de vitalidade do seu inimigo. E ele conhece
essas fontes. Porque ele foi vizinho do inimigo, amigo de
trabalho, muitas vezes frequentou a casa dele, conhece todos
os seus familiares e todos os seus hábitos.
Resumindo, sendo irmão do seu inimigo, o guerreiro sabe que
as mulheres que o rodeiam são ao mesmo tempo a sua fonte
de vitalidade e o seu ponto fraco.
Os combatentes não estupram por prazer ou frustração sexual.
O estupro é uma estratégia militar para desmoralizar o inimigo.
O estupro, no caso concreto das guerras interétnicas da
Europa, tem o mesmo objetivo que destruir casas, igrejas ou
locais de culto, vestígios culturais e valores do inimigo.
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Cena 7:
Kate entra. Dorra se mantém imóvel na sua cadeira.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: Sou eu, Kate.
Dorra: ...
Kate: A gente acendeu a lareira do salão.
Dorra: ...
Kate: Você gostaria de descer pro salão?
Dorra: ...
Kate: Se você quiser descer, será muito bem-vinda.
Dorra: ...
Kate: Você gosta de lareira?
Dorra: ...
Kate: O fogo na lareira é muito bonito.
Dorra: ...
Kate: Estamos todos lá embaixo.
Dorra: ...
Kate: Venha se quiser.
Dorra: ...
Kate: Ou se quiser que eu fique com você é só falar.
Dorra: ...
8

Kate: Tem uma campainha aqui, Dorra. Se você quiser que eu


suba pra ficar com você, é só tocar. Tá bom?
Dorra: ...
Kate: Eu sei que você está me escutando.
Dorra: ...
Kate: Eu não sou médica, Dorra. Não estou falando com você
como médica. Não estou aqui pra te curar à força.
Dorra: ...
Kate: Eu estou aqui porque preciso de você.
Dorra: ...

Cena 8:
Dorra (para o público):
À noite, depois de beber com os amigos, o homem dos Bálcãs
fica subitamente melancólico. A sua alma está ferida. Grandes
questões metafísicas começam a torturar-lo, assombra-lo. Você
não sabe nada de história, meu bem. Não, ela não sabe nada
mesmo. Ela não consegue entender que o seu homem seja
tomado por uma melancolia ancestral. Que de repente começa
a se perguntar sobre o sentido da existência. De onde viemos?
Pra onde vamos? Porra, o mundo não faz sentido.
Depois de esvaziar várias garrafas de cerveja com seus
amigos, o homem dos Bálcãs fica desesperado pela fragilidade
do sentido da linguagem. Ele mija e chora. Mija lágrimas de
angústia da dor moral, da impotência da raça humana diante
do grande mistério cósmico.
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Ele também vai vomitar, mas lá pelas três da manhã, quando a


dor de cabeça ficar insuportável por causa desses canalhas
que fazem cerveja com malte estragado.
(Ela entra na pele do “homem dos Bálcãs”)
No comércio só tem ladrão. E bandido. Cerveja boa só se for
importada. E mesmo assim tem que ver bem o rótulo pra ver se
não foi falsificada. É por isso que esse país não vai pra frente,
porque somos todos ladrões e falsificadores. Falsificamos a
nossa história, falsificamos o nosso futuro, perdemos o último
trem, somos os mendigos da Europa, uma nação de ciganos,
não sabemos mais qual é a nossa própria origem, nunca fomos
livres, nunca tivemos um Estado de verdade, nunca fomos
independentes, nunca nos livraremos do comunismo, o
comunismo nos contaminou até os ossos...
(Pausa. Dorra volta a ser ela mesma.)
Às três horas da manhã ele deita a cabeça no peito da sua
mulher... Ele precisa do calor dela, precisa ser acariciado por
ela enquanto verte lagrimas da sua amargura cívica,
transcendental, cósmica... Ele deita a cabeça no peito da sua
mulher porque esse peito é tão quente, tão macio, tão
acolhedor lhe faz lembrar da sua mãe... Ah... A sua mãe, o
único ser no mundo que sempre o compreendeu, sempre o
amou, sempre confiou nele... Ele procura nos braços da sua
mulher, que o atormenta, o ninho seguro que ele tinha nos
braços da sua mãe. E ele sangra na sua alma porque nunca
mais viu sua mãe desde o casamento da irmã, porque a mãe
envelheceu, porque ela mora longe, porque ela já morreu há
dois anos, porque ela morreu há dez anos, porque ela morreu
há dois anos, porque ela o abandonou quando ele tinha só
cinco anos de idade...
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Você tem noção da infância que eu tive? Privado do amor


materno desde os cinco anos de idade? Você tem noção?
Não. Você nem liga, você só quer que eu te mande todo mês o
meu salário no dia em que eu recebo e que eu fique trancado
aqui nesta casa... (Mudança de tom.)
É, às três da manhã, o homem dos Bálcãs é um ser frágil, que
deve ser protegido custe o que custar, senão a sua alma pode
se quebrar em mil pedaços. A bronca é melhor que seja
amanhã. À noite, o sentimento de honra ainda é muito forte
entre os homens dos Balcãs. Se a mulher pisa muito forte no
acelerador da bronca ele pode se irritar e beber mais uma,
beber mais duas, beber mais três...
Quando ele se levanta para ir trabalhar, entre sete e oito horas,
quando ele estiver fazendo a barba bem devagar na frente do
espelho em que nem ele se reconhece mais, aí sim a sua
mulher pode enfim dizer pra ele: Olha pra você, esse daí não é
você, nem você se reconhece mais... Olha o estado em que
você está, olha como você voltou pra casa, olha a tua camisa,
olha as tuas calças rasgadas, olha essas manchas, por que
você faz isso comigo? Por que você faz isso comigo e com as
crianças? Por que você faz isso com a gente?
Ele não vai responder, de ressaca ele não consegue
responder. Vai continuar distante como se estivesse numa
bolha que o separa do mundo exterior. Vai beber um café
preto, forte, não vai comer nada porque de manhã com ressaca
a comida não passa... Então ele vai embora trabalhar sem
dizer nada, sem olhar pra sua mulher, sem prestar atenção nos
seus filhos, terrivelmente desconfortável na camisa limpa e
bem passada que a sua mulher o obrigou a colocar. Aquela
camisa limpa que ele vai usar o dia inteiro vai ser como uma
silenciosa presença da sua mulher, que ela obrigou a colocar
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sobre a pele dele, pesada de usar, impossível de esquecer,


uma espécie de jaula que o lembrará a cada gesto que ele tem
muitas bocas pra alimentar, inclusive a sua própria.

Cena 9:
Dorra, Kate.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: ...
Kate: Eu queria muito falar com você, Dorra.
Dorra:...
Kate: Eu acho que a gente podia se aproximar um pouco
mais...
Dorra: ...
Kate: Amanhã será o dia mais longo e anoite mais curta do
ano...
Dorra: ...
Kate: É o solstício de verão.
Dorra: ...
Kate: Vai ter uma festa...
Dorra: ...
Kate: Todo mundo vai pra beira do lago.
Dorra: ...
Kate: Se você quiser podemos dar uma volta no lago.
Dorra: ...
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Kate: É um lago muito bonito. Se chama Constance.


Dorra: ...
Kate: Até logo, Dorra. (Até mais, Dorra.)
Dorra: Você quer que eu te conte como eu fui violentada.
Kate: Não Dorra.
Dorra: Quer sim. Você quer que eu te conte como eles me
violentaram.
Kate: Não Dorra. Eu não quero que você me conte nada.
Dorra: Quer sim. Você quer saber todos os detalhes de como
eu fui violentada.
Kate: Não Dorra, eu não quero que você me conte isso.
Dorra: Claro que quer, pra escrever no seu relatório.
Kate: Eu não tenho que fazer nenhum relatório, Dorra.
Dorra: Claro que tem. Você faz relatórios pra clínica
psiquiátrica de Boston.
Kate: Não Dorra, eu não faço relatórios pra clínica de Boston.
Dorra: Mas você é americana. Você se chama Kate. Você mora
em Boston.
Kate: Eu sou americana, eu me chamo Kate, mas eu não faço
relatórios pra clínica psiquiátrica de Boston.
Dorra: Você mora em Boston. Você vai voltar logo pra Boston.
Kate: É, eu moro em Boston, mas não vou voltar tão cedo pra
Boston.
Dorra: Cinco. Foram cinco. Cinco! Cinco? Eles eram cinco.
Cinco homens em cima de mim.
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Kate: (tenta tocar nela) Dorra...


Dorra: (o toque de Kate remete a memoria do estupro, entra
em transe) Cinco, cinco....
Eu não sei se eram muçulmanos, croatas ou sérvios. Eu não
sei!
Volta pra sua casa Kate. Volta pra sua casa!
Cena 10:
Kate (Ela olha a sua coleção de pedras raras.): Me diz papai, o
que é a Europa? É só um monte de pedras velhas. Me diz
vovô, o que é a Irlanda? É um país de pedras, um país de
pedras espalhadas na horizontal. Só pedras mesmo ou pedras
velhas? Pedras que não servem pra nada. Mas tem pedra que
serve pra alguma coisa? Não, nenhuma pedra serve pra nada.
Me diz papai, isso aqui é uma pedra velha? Não, isso é um
pedaço de cimento. Mas como é uma pedra velha então? Uma
pedra velha é muito maior e quase preta...
Me diz vovô, por que é que você saiu da Irlanda? Porque tinha
pedras demais nas minhas terras....Too many stones. That’s
Europe...
Pedras demais, é isso a Europa. Um dia ela vai afundar com o
peso das suas próprias pedras.
Aliás já começou a afundar.
Essa foi a primeira imagem que eu tive da Europa: uma
montanha gigante de pedras, uma espécie de iceberg de
pedras afundando bem devagar do outro lado do oceano. E
também tinha um jardinzinho com duas ou três árvores frágeis
e doentes no pé dessa montanha... onde eu via o meu avô
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carregando uma enxada, encurvado (curvado) sobre as suas


terras, arrancando cem pedras por dia dali...
Acho que foi por causa dessa imagem que eu fui embora pra
Bósnia. Assim que me disseram que eu devia ajudar as
equipes de especialistas a abrir as valas comuns me veio na
hora a imagem do meu avô desenterrando as suas pedras. Na
minha família somos todos escavadores natos. Mas eu
precisava desenterrar cadáveres.

Cena 11:
Dorra, Kate.
Kate: Bom dia Dorra.
Dorra: Você mentiu pra mim.
Kate: Eu nunca menti pra você, Dorra.
Dorra: Você não precisa de mim.
Kate: Claro que preciso.
Dorra: Você não precisa de mim.
Kate: Eu preciso de você, Dorra.
Dorra: O que é que você quer saber?
Kate: Eu não sei.
Dorra: O que mais você quer entender?
Kate: Eu não sei. Eu só sei que estou exausta.
Dorra: Você tem filhos?
Kate: Tenho duas filhas. Que não vejo há 6 meses.
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Dorra: Você é louca.


Kate: Não.
Dorra: Como é Boston?
Kate: É uma bela cidade.
Dorra: Você tem fotos?
Kate: Das minhas filhas?
Dorra: Não, de Boston.
Kate: Tenho. Amanhã eu trago pra você.
Dorra: Eu detesto ser interrogada, Kate.
Kate: Mas eu não estou te interrogando.
Dorra: Está sim, Kate. Vocês americanos são muito bons em
psicoterapia... Mas eu não gosto que me façam perguntas,
Kate.
Kate: Mas eu não estou te interrogando.
Dorra: Você finge não me interrogar, mas você me tortura com
essas técnicas de terapia...
Kate: Eu te juro que não venho aqui como médica, Dorra.
Dorra: Você é muito boa em psicoterapia.
Kate: Você tem que viver, Dorra.
Dorra: Eu não quero mais viver, Kate.
Kate: Você precisa viver, Dorra.
Dorra: O que você acha que eu devo fazer ou não, não me
interessa a mínima. Não me venha com esses clichês de que
a vida é mais forte ou algo do gênero.
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Kate: Não Dorra.


Dorra: A vida não é mais forte.
Kate: Eu não sei.
Dorra: A morte que é mais forte.
Kate: Não sei.
Dorra: E a força bruta que é mais forte.
Kate: Não sei.
Dorra: Você sabe por que eu ainda estou viva?
Kate: Sei...
Dorra: Porque eu descobri que Deus existe, Kate.
Kate: Sei.
Dorra: E eu odeio ele. Odeio. Eu odeio tanto que eu não posso
morrer. (para Deus) Antes eu não acreditava que o Senhor
existia. Mas depois, eu pensei, não faz sentido tanta
atrocidade a não ser que o Senhor se alimente dela. Mesmo
sem ter fé, eu te odeio. Eu te odeio.
Não, Senhor, você não pode nos defender daquele que é mau.
Não, Senhor, você não pode nos dar o pão nosso de cada dias.
Não, Senhor, você não pode nos perdoar. Nós não pedimos o
seu perdão, porque nós que não podemos te perdoar.
Não, Senhor, nós não aceitamos a tua vontade, porque a tua
vontade é de sangue, fogo e loucura.
Não, Senhor, você não é a nossa verdade, porque nós
matamos a sua verdade, nós enterramos assim como o céu
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que também não existe mais, porque a tua casa, Senhor, agora
é a casa dos mortos.
Não, Senhor, os malvados (perversos) jamais serão punidos.
São eles que dominam e continuarão dominando o mundo.
Não, Senhor, não existe vitória do bem sobre o mal, do fraco
sobre o forte, do pobre sobre o rico, do que tem fé sobre o que
não tem fé, da vida sobre a morte...
Eu odeio tanto ele que não posso morrer. Eu simplesmente não
posso morrer por causa do meu ódio. Entendeu?
Você tem fé, Kate?
Kate: Não sei.
Dorra: Você nunca poderá me obrigar a viver, Kate. Você e as
suas técnicas me fazem rir.
Kate: Eu sei Dorra.
Dorra: Eu gosto de você Kate. E por causa disso eu vou fazer
uma coisa pra você.
Kate: O quê?
Dorra: Você sabe que eu sei como eu vou morrer. Mas ainda
não decidi quando eu vou morrer. Então, e porque eu gosto de
você, eu vou contar só pra você, quando eu vou morrer. Um dia
antes...

Cena 12:
Ficha de observação número ....
O sujeito saiu bruscamente do seu estado de prostração. Isso
não quer dizer que tenha melhorado. Ele acerta as suas contas
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com o mundo com muita agressividade. É absolutamente


necessário que alguém esteja sempre por perto pra absorver
essa energia negativa.
O sujeito alterna a agressividade com momentos em que volta
a mergulhar em si. Essas instabilidades são antes de tudo, um
bom sinal, sinal de que ele é capaz de desenvolver uma nova
relação com o mundo exterior. Ainda é muito cedo para lhe
fazer perguntas sobre as circunstâncias que provocaram o
trauma. Nesse estágio, a sua memória só pode ser testada por
meio de exercícios de paciência.

Cena 14:
Kate: bom dia.
Dorra: ...
Kate: Tudo bem, Dorra?
Dorra: ...
Kate: Olha, aqui embaixo na sala tem uma televisão, você pode
assistir se quiser.
Dorra:
Kate: Eu trouxe fotos de Boston. Você quer ver?
Dorra:
Kate: Posso te mostrar quando você quiser.
Dorra: ...
Kate: Quer que eu te mostre agora?
Dorra: ...
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Kate: Te mostro quando você quiser.


Dorra: Kate...
Kate: Oi?
Dorra: Esse lago é mesmo o Constance?
Kate: É.
Dorra: Quer dizer que estamos na Suíça?
Kate: Não, estamos na Alemanha. Mas a fronteira suíça está a
alguns metros. Dá pra ver a Suíça pela janela.
Dorra: Onde?
Kate: Tá vendo aquelas mansões ali na colina? É a Suíça.
Dorra: Tem certeza?
Kate: Sim, e nós estamos na Alemanha. À esquerda a
Alemanha e à direita a Suíça.
Dorra: E do outro lado do lago?
Kate: Ainda é a Suíça.
Pausa.
Dorra: Kate...
Kate: Sim, Dorra.
Dorra: Como é que eu cheguei aqui?
Kate: Nós te transferimos pra cá ...
Dorra: Eu sempre quis ver a Suíça... E a Alemanha...
Kate: Agora você pode ver os dois.
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Dorra: É. Essa janela está bem posicionada. Dá pra ver a


Suíça e a Alemanha ao mesmo tempo. Aqui é o quê? Um
hospital?
Kate: É uma espécie de casa de repouso.
Dorra: E porque tem escrito USA em todos os lugares?
Aqui. E tem também um número de inventário: 6632D. Foram
os Estados Unidos que me mandaram esta cadeira de número
6632D?
Kate: É porque antes havia aqui uma espécie de centro médico
do exército americano.
Dorra: Para loucos?
Kate: Não. Para doentes de um modo geral.
Dorra: Kate...
Kate: Sim.
Dorra: Eu quero ir embora daqui agora.
Kate: ...
Dorra: Ouviu Kate?
Kate: ...
Dorra: Kate!
Kate: ...
Dorra: Kate!
Kate: Sim...
Dorra: Você ouviu o que eu falei?
Kate: Sim...
21

Dorra: Eu quero sair daqui imediatamente. Eu não quero a


cadeira 6632D dos Estados Unidos. Eu não quero esse
cobertor 32507F. Eu quero sair daqui agora! Eu quero sair
desse lugar agora! Eu quero ir emboraaa...
Kate: Pra onde?

Cena 14:
Kate: Pra abrir uma vala comum, existem técnicas. Então eu fiz
um treinamento para escavação de valas comuns. Não dá pra
escavar uma vala comum de qualquer jeito. A escavação de
uma vala comum é, antes de tudo, um ato jurídico. O
escavador está na mesma posição daquele que descobre um
assassinato. Ele deve isolar o corpo da vítima (ou melhor, das
vítimas) e ao mesmo tempo não tocar em nada. Se o
escavador não está corretamente preparado pra esse trabalho,
ele corre o risco de não saber ler com exatidão as provas que
estão bem na sua frente.
O escavador de vala comum descobre ao mesmo tempo o
corpo da vítima e, muitas vezes, o corpo do delito do crime, por
exemplo, as balas, se a vítima foi morta por balas. Mas todos
os objetos próximos da vítima dentro da cova tem um valor
jurídico porque podem servir para a reconstituição do crime e
do contexto no qual o crime foi cometido. Portanto, a
responsabilidade do escavador é enorme. Ele não deve em
hipótese alguma separar o corpo dos objetos pessoais que
podem ajudar na identificação da vítima. O escavador deve
fazer um inventário de absolutamente tudo – 247 cartuchos, um
dínamo de bicicleta.... - , nos mínimos detalhes, sem estragar o
material encontrado.
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A escavação de uma vala comum é feita em etapas. Antes de


tudo, é feita a análise do terreno e a identificação da possível
vala comum. Depois a classificação e reconhecimento do
conjunto de camadas de terra que cobrem o ou os corpos. Em
função da natureza dessas camadas, da sua composição
(terra, areia, pedras, cascalhos de cimento, etc.), são
escolhidas as ferramentas adequadas para a escavação. A
terceira etapa é a escavação propriamente dita. A quarta etapa
é a conservação do material desenterrado. A quinta etapa é a
interpretação.
Todo esse trabalho é feito em equipe. Em cada equipe há um
topógrafo, um fotógrafo, um arqueólogo, um medico legista, um
procurador, especialistas militares, e um psicólogo. O psicólogo
deve cuidar pra que os outros não fiquem desestabilizados
durante a operação. Assim que percebe que um membro da
equipe não está em condições de continuar com o trabalho, ele
deve dispensá-lo do local para avaliar o seu estado emocional
e aconselhá-lo a interromper a escavação por um tempo.
Foi assim que eu cheguei na Bósnia. Pra fazer esse trabalho
de psicóloga com as equipes de escavadores de covas. E me
tornei uma escavadora também. Eu, Kate Mcnoil, graduada
pela Universidade de Harvard, especialista em neurose
obsessiva e em tratamento psicanalítico, autora de uma tese
de doutorado de 770 páginas sobre Freud e seus conceitos de
narcisismo primário, casada e mãe de duas filhas, eu, Kate
McNoil, deveria ter vergonha, porque já fazem seis meses que
não vejo minha família e não tenho nem tempo de pensar nela
porque na minha vida agora tem uma outra urgência: escavar,
escavar, escavar as valas comuns da Bósnia em nome dos
Estados Unidos, dos Aliados, da civilização ocidental, da ONU,
da justiça, da verdade, da memória e do futuro. Isso tudo é um
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peso enorme nos ombros, Kate McNoil, mas você não vai mais
conseguir recuperar a tua paz se não entender o porquê.

Cena 15:
Dorra: Eu quero abortar! Eu quero me livrar disso.
Kate: Tá bom Dorra.
Dorra: Agora...
Kate: Sim Dorra.
Dorra: Já.
Kate: Como você quiser... (Pausa.) Mas tem que esperar um
pouco.
Dorra: Eu não quero esperar. Eu tô suja. Eu tô suja com esse
feto dentro de mim...
Kate: Sim.
Dorra: Kate, eu não quero que ele comece a mexer.
Kate: Ele não vai mexer.
Dorra: Ele já tá mexendo! Eu tô sentindo. Eu sinto ele
crescendo. Eu não quero... Eu preciso me livrar disso.
Kate: Vamos fazer isso daqui a um mês...
(Pausa)
Kate: ...meu avô nos contava a história de sua chegada aos
Estados Unidos, sempre, duas ou três vezes por ano, quando
toda a família se reunia, no Natal, Ano-Novo, na Páscoa...
Me diga vovô, como o sr. Chegou na América? // Tomamos um
grande navio // Grande assim? // Não, maior ainda.// Do
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tamanho dessa sala? // Não, maior ainda. // como a casa, o


jardim e o galinheiro? // Do tamanho da rua inteira // não
acredito em você. // Olha aqui, olhe esse navio...

Cena 16
Dorra: Essa criança não tem pai.
Kate: Claro que tem.
Dorra: Essa criança não tem nome.
Kate: Tem sim. Ela vai ter o teu nome.
Dorra: Ela não vai ser minha nunca. Eu não quis essa criança.
Ninguém quis. Essa criança não tem mãe nem pai. Ela não
existe, Kate!
Kate: Existe sim. Ela está crescendo dentro de você. Você é a
mãe.
Dorra: E o pai? Quem é o pai? Se ela me perguntar quem é o
pai dela, o que eu respondo? O pai é quem?
Kate: A guerra. O pai dela é a guerra.
Dorra: Eu nunca vou poder dizer isso. Como vou dizer isso pra
uma criança? Como dizer pro seu filho, sabe meu amor, o teu
pai é a guerra. Ela não vai entender.
Kate; Um dia ele vai entender.

(Pausa.)

Dorra: Kate!
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Kate: Sim?
Dorra: Ele mexeu!
Kate: Tem certeza?
Dorra: Ele esta mexendo.
Kate: Eu vou ficar aqui com você.
Dorra: Ele come demais! Tá sempre com fome! Esse
animalzinho tem fome o tempo todo. Ele fica me roendo, me
devorando por dentro. Eu estou escutando ele me
mastigando...
Kate: Eu estou aqui. Vou ficar com você.
Dorra: Tô ouvindo ele crescendo... Pendurado nas minhas
entranhas... Tá doendo... Eu não suporto mais isso... Isso me
dá nojo... A gente tem que tirar ele daqui, Kate.
Kate: É muito cedo.
Dorra: Tô com frio! Ele está me esfriando. Ele é frio como um
réptil e está me congelando. Eu tô com calafrio. Não consigo
dormir. Tô inchada que nem uma porca... Ele precisa cada vez
mais de espaço... Eu não aguento mais...
Kate: Dorme, eu estou aqui...

Tempo
(Dorra acorda bruscamente.)
Dorra: Eu vi ele!
Kate: Como você viu ele?
Dorra: Na escuridão!
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Kate: Quando?
Dorra: Agora mesmo. Ele estava curvado sobre mim.
Kate: Como ele era?
Dorra: Ele não tinha rosto.
Kate: Não tinha rosto?
Dorra: Não, só uma...
Kate: Uma...
Dorra: Uma boca... Ele era só uma boca escancarada...
Kate: Dorme Dorra. Eu estou aqui...
Kate: ...No mesmo dia em que desembarcou na América meu
avô se tornou entalhador... as pedras nunca o perdoaram...as
pedras de suas terras, as pedras que ele recolheu, as pedras
da América... as pedras o perseguiram pela vida toda...

Cena 17:
Dorra sozinha, na escuridão.
Dorra: Eu estou aqui... Quem é você? Sou eu. Quem? Eu. Eu
não estou te vendo. Está sim. O que você quer? Vai embora!
Eu estou com fome. E daí? Você tem que me alimentar. Você
já comeu toda a minha carne. O que você quer comer ainda?
Você tem que me alimentar. Eu te dei todo o meu sangue. O
que mais você quer comer? Eu tô com fome. Você é a minha
mãe. Você tem que me alimentar. Eu não sou tua mãe. Eu não
queria ser tua mãe. Eu nunca serei tua mãe. Você não tem
mãe. Tenho sim, a minha mãe é você. Você tem que me
alimentar. Eu não tenho mais nada. Não tem mais nada pra
comer dentro de mim. Eu estou vazia. Até minha alma está
27

vazia. Se você não me der mais comida, eu vou gritar. Grita! Eu


quero ouvir você gritar.

Cena 18:
Dorra: Você não existe. Claro que existo. E é você que vai me
pôr no mundo. Não, eu não vou te pôr no mundo. Vai sim, você
tem obrigação de me pôr no mundo. Não, não tenho a
obrigação de pôr você no mundo. Você não tem escolha. Você
é minha mãe. E uma mãe tem que parir os seus filhos. Você
não tem o direito de nascer. Você é filho da guerra. Você não
tem nem pai nem mãe. Você é fruto do horror. Olha, se você
não me parir, eu vou gritar.
(O grito horrível da mulher estuprada. Dorra se assusta com o
próprio grito. Kate entra.)
Kate: Eu estou aqui.
Dorra: Eu não quero parir ele.
Kate: Dorra...
Dorra: Eu não quero parir... Ele tá me pedindo pra nascer, mas
eu não quero.
Kate: Dorra, se você não quer essa criança, dá ela pra mim.
Dorra: Tá bom, eu te dou.
Kate: Tá bom, eu quero ela.
Dorra: Mas pega logo.
Kate: Eu não posso pegar ela agora. Mas se você parir, eu fico
com ela na hora.
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Dorra: Não, pega agora. Se você quer ele, pega logo de uma
vez.

Cena 19:
Kate: Se você estiver numa floresta perto de Srebrenica e
encontrar numa clareira, espalhados por dez metros quadrados
sobre a relva, os seguintes objetos:
247 cartuchos.
Um dínamo de bicicleta.
Uma chupeta.
Um capacete das Nações Unidas com as letras NU quase
apagadas.
Pedaços de uma maca.
Três maços de cigarro.
Onze latas de cerveja croata vazias.
Um despertador quebrado.
Um tubo de pasta de dente amassado.
3,5 metros de arame farpado.
Uma coronha de fuzil.
Um saco plástico cheio de batatas estragadas.
Uma camiseta com o nome ELVIS escrito.
Um cinto militar de couro, todo manchado, sem os ganchos pra
pendurar as granadas de mão.
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Um cartão postal com a imagem da Torre Eiffel, com algumas


palavras ilegíveis escritas no verso.
Então se você estiver numa floresta perto de Srebrenica e
encontrar tudo isso espalhado na relva, então é quase certo
que você esteja diante de uma vala comum.

Dorra: E foi assim que você ....


Kate: É, foi assim ....
Dorra: Mas ninguém nunca desconfiou?
Kate: É, porque eu era a psicóloga do grupo.
Dorra: Foi depois da décima vala aberta.
Kate: Depois da décima-sétima.
Dorra: Você não aguentava mais ver os números de
identificação em cada cadáver desenterrado.
Kate: Não.
Dorra: Você não aguentava mais ouvir picaretas e pás.
Kate: Isso.
Dorra: E não suportava mais o estado de decomposição dos
cadáveres.
Kate: É.
Dorra: Você começou a se sentir envergonhada de todo
procedimento de escavação, de tudo aquilo.
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Kate: Isso.

Dorra: E aí você pediu pra ser transferida pra um outro lugar.


Por exemplo...

Kate: Sim.

Dorra: Por exemplo, aqui, pra aplicar um novo método, o


método na psicoterapia das mulheres estupradas na Bósnia.

Kate: ( se recompondo) O meu pai... meu pai trabalhava para


um serviço de urgência do maior banco de órgãos dos Estados
Unidos. Tinha dias em que ele chegva só prá tomar o café da
manhã com a gente – Então, meu pai, o que você transportou
essa noite? Transportei um doador.. Um doador era algum
infeliz esmagado na estrada ou em qualquer outro lugar, e um
de seus órgãos seria rapidamente enxertado em algum outro
infeliz que não tinha baço, pulmão, fígado, rins, pâncreas...
coração..Olho... pele...sangue...medula...

Cena 20:
Dorra sozinha, na escuridão.
Dorra: Eu estou aqui. O que que você quer? Eu te alimentei. O
que você quer mais? Não sei. Eu não quero mais escutar você.
Eu te dei comida. Agora cala a boca. Eu não posso. Eu estou
com medo. Cala a boca. Me deixa em paz. Eu preciso
descansar. Eu estou com medo. Eu quero dormir. Eu não
quero mais te escutar. Eu queria que você me fizesse um
pouco de carinho. Eu não posso te fazer carinho. Não. Não
posso. Eu já te dei comida, agora chega. Estou com medo e
quero que você me faça carinho. Não posso. Eu não sei fazer
carinho. E eu também estou com medo...
31

Cena 21:
Dorra sozinha. Kate entra.
Dorra: Por que você quer essa criança, Kate?
Kate: Porque sim.
Dorra: Você não pode mais ter filhos?
Kate: Claro que posso.
Dorra: então é porque você ama crianças?
Kate: É, eu amo criança.
(Pausa.)
Dorra: Por que você quer essa criança, Kate?
Kate: Eu não sei.
Dorra: Você é louca.
Kate: Não.
Dorra: Você quer essa criança pras tuas experiências
freudianas?
Kate: Não.
Dorra: Tem certeza?
Kate: Não.
Dorra: Para de interpretar o papel do inconsciente culpado dos
Estados Unidos.
Kate: Não.
Dorra: Então, por que você quer essa criança, Kate?
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Kate: Porque eu quero.


Dorra: Eu não vou te dar.
Kate: Por quê?
Dorra: Eu não vou dar essa criança pros Estados Unidos.
Kate: Eu não sou os Estados Unidos. Eu não sou uma
representante do governo americano. Eu não sou o presidente
dos Estados Unidos. Eu tenho raízes na Irlanda!
Dorra: Já está decidido, Esta criança não vai nascer.
Kate: Eu quero essa criança! Só isso! Depois de todos os
cadáveres que eu desenterrei no teu país, eu tenho o direito de
voltar pra casa com ela!
A tua barriga é uma vala comum, Dorra. Quando eu penso na
tua barriga, eu vejo uma vala comum cheia de cadáveres
secos, inchados, apodrecendo... E nessa vala comum, tem
alguém se mexe... Uma criatura... No meio de todos esses
mortos, tem uma criatura... Pedindo pra sair daí... Eu não vou
deixar você matar essa criança, Dorra. Eu vim pro teu país pra
aprender a abrir valas comuns. E cada vez que eu abria uma,
eu abria com uma esperança de achar algum sobrevivente...
Essa criança é um sobrevivente, Dorra. Temos que salvá-la,
tirá-la daí... É isso... É muito simples... Temos que tirar essa
criança da vala...

Cena 22: (Ela fala para Dorra, mas ela não se dirige
diretamente à Dorra; estamos num momento dessincronizado,
desconexo da ação.)
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Como te falar isso Dorra, a natureza tem medo do vazio. As leis


da natureza não tem nada a ver com as pulsões da barbárie
humana... Olha isso, o teu bebê é um menino. Como sempre
depois da guerra, nascem mais meninos do que meninas. A
natureza zomba dos canalhas. Ela segue a sua obra apesar
deles. E a sua obra é, como sempre foi, misteriosa e cheia de
beleza. Eu vou partir dentro de pouco tempo, Dorra. Vou voltar
pras minhas filhas....que não vejo há mais de 6 meses

Cena 23:
Dorra (Ela fala para Kate, mas não se dirige diretamente a ela;
estamos num momento dessincronizado da ação.): Como te
explicar, Kate, que eu odeio o meu país? Que eu não tenho
mais país? Que eu não quero mais voltar pra lá. Que eu não
acredito mais em Deus. Que tudo que eu quero é ficar longe
daquele lugar maldito, terrível... Eu não quero ver a minha
casa... Porque eu não tenho mais casa. Eu não quero mais
saber se a minha gente ainda está viva. Mesmo quando a
guerra acabar, aquele lugar continuará sendo maldito por muito
tempo. Ele ficará assombrado pelo ódio, pelos gritos das
vítimas e pela vergonha. As pessoas dali passarão anos e anos
quebrando a cabeça pra entender como tudo isso foi possível.
Eles não vão parar nunca mais de se perguntar as mesmas
coisas: Quem começou? Quem foi o mais cruel. Como eles
puderam, juntos ou separados, descer tão baixo...
(Pausa.)
(Para Kate) Como te explicar, Kate, que eu odeio o meu país?
Kate: A gente não pode odiar o próprio país.
Dorra: Como te explicar que eu não tenho mais país?
34

Kate: Todo mundo nasce em algum lugar.


Dorra: Como te explicar que eu não quero mais voltar pro lugar
onde eu nasci?
Kate: Um dia você vai voltar.
Dorra: Não existe mais Deus no meu país. Foi o meu povo que
matou ele.
Kate: Você vai reencontrar a necessidade de ter de novo.
Dorra: Como te explicar que tudo o que eu quero é ficar longe
desse lugar maldito, horrível...
Kate: Um dia você vai querer ver a tua casa de novo.
Dorra: Eu não tenho mais casa.
Kate: Um dia você vai querer saber quem da tua gente ainda
está vivo.
Dorra: Não tem mais ninguém vivo no meu coração.
Kate: O teu país tem uma imagem. Que Você vai carregar pra
sempre.
Dorra: Quer saber qual é a imagem do meu país que eu
carrego comigo? Quer saber? A de um jovem soldado que
acabou de matar pela primeira vez. Ele vomita ao lado do
corpo agonizante.
O meu país é uma mulher aterrorizada pelo medo que no
momento em que o estuprador começa a arrancar a blusa dela,
começa a sangrar. Ele fica com nojo, e manda ela ir embora.
O meu país é isso, uma mãe que não pode dizer adeus pro
filho morto, porque o corpo ainda não foi encontrado. Então ela
enterra uma camisa do filho pra poder ter uma cova para
chorar.
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Cena 24:
Kate (Uma carta na mão.):
Senhor Comandante.
Envio-lhe, como requerido, o relatório sobre a minha atividade
nesses últimos 14 meses na Bósnia.
Reitero rapidamente que fui membro da missão de avaliação
das necessidades médicas na Croácia e na Bósnia, que em
seguida fiz parte de uma das equipes encarregadas de
identificar as covas na região de Krajna e de Srebrenica, e que
a meu pedido, fui transferida mais tarde para um centro médico
da OTAN na Alemanha.
Confirmo que a partir do dia 09 de abril eu gostaria de voltar ao
meu trabalho na clínica de psicologia de Boston,
Massachusetts.
Agradeço a vossa compreensão.
Kate McNoil.

Cena 25:

Cara Kate,
Eu não sei muito bem o que vou fazer agora. Deixei pedidos de
imigração nas embaixadas de vários países: Canadá, Austrália,
África do Sul.
O meu bebê está bem. Está pesando 6 Kg agora.
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Quando você me ligou da última vez, queria saber em que


momento realmente eu tomei a decisão de ficar com ele.
Eu vou te contar quando foi.
Um dia, depois que você foi embora, saí pra dar uma volta no
lago.
Eu estava passeando e olhando a água e as árvores... Quando
de repente vi um aviso fixado numa árvore. Me aproximei e li o
seguinte texto:
“INFORMAMOS QUE ESTA ÁRVORE ESTÁ MORTA. ELA
SERÁ CORTADA. NO SEU LUGAR SERÁ PLANTADA
IMEDIATAMENTE, PARA A SUA ALEGRIA E FELICIDADE,
UMA NOVA ÁRVORE.”
Assinado: Serviço de Parques e Jardins.
Eu li esse texto uma, duas, três, várias vezes.
E foi aí então que eu decidi ficar com o meu filho.
Obrigada.
Um beijo.
Dorra.

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