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ARTIGO ARTICLE
da hermenêutica
Abstract This paper analyses the constitution Resumo Este artigo investiga a constituição
of the health-planning field, in Brazil, using a do campo do planejamento em saúde no Bra-
Hermeneutical analysis of Abrasco papers, pub- sil a partir de uma análise hermenêutica de
lished during the eighties. With this purpose, documentos da Abrasco da década de 1980.
a theoretical fundamentality is made in order Com essa finalidade, realiza-se uma funda-
to clarify the dilemmas of this area. Finally, a mentação teórica e ensaia-se uma análise dos
theorical proposal is made to support a recon- textos para elucidar os dilemas da área neste
stitution of health planning field. início de século. No final, propõe-se a utiliza-
Key words Health planning, Public health, ção de alguns conceitos teóricos para subsidiar
Hermeneutical approach uma reconstituição do campo do planejamen-
to em saúde.
Palavras-chave Planejamento em saúde, Saú-
de pública, Abordagem hermenêutica
1 Departamento
de Medicina Preventiva
da Faculdade de Ciências
Médicas – Unicamp.
Rua Américo Campos, 93 –
13083-040 – Cidade
Universitária – Campinas –
SP. rosana@mpc.com.br
198
Campos, R. T. O.
Quando Matus fez esta afirmativa, estava partir do individual e o individual a partir do
preocupado com a construção da governabi- todo (...) Aqui como lá subjaz uma relação cir-
lidade, com o aprimoramento de um método cular. A antecipação de sentido, no qual está en-
que permitisse tornar viáveis governos latino- tendido o todo, chega a uma compreensão ex-
americanos de caráter progressista. Matus ini- plicita através do fato de que as partes que se
ciou sua reflexão no cárcere, após a queda do determinam, a partir do todo determinam, por
governo chileno de Salvador Allende. Pergun- sua vez, esse todo (Gadamer, 1997).
tamos: não seria por que precisava instrumen- Na obra de Gadamer, a questão da tradi-
talizar a política? Existem numerosos depoi- ção é ressaltada. O sujeito que compreende de-
mentos de ex-militantes e membros do gover- ve-se reconhecer em uma dada tradição. Para
no chileno deposto que dão testemunho da Gadamer a tradição é essencialmente conser-
necessidade que essas pessoas tiveram de exor- vação e como tal está atuante nas mudanças his-
cizar esse passado, de processá-lo de algum tóricas. No entanto, a conservação é um ato da
modo (Dorfman, 1999). razão (...) Na realidade a tradição sempre é um
Uma abordagem hermenêutica obriga a momento da liberdade e da própria história
pensar nessa questão. Tanto no que se refere (Gadamer, 1997).
ao conteúdo do discurso do planejamento co- Polemizando com Gadamer, Habermas
mo em seus autores. O quem, que Foucault de- (1987) defende: Todavia, o substancial do his-
fine como a pergunta central da hermenêuti- toricamente pré-dado não fica intocado ao ser
ca (Foucault, 1987). assumido na reflexão. A estrutura preconceitual
O PES foi “o” método de planejamento que se tornou transparente não pode mais fun-
mais difundido pela Reforma Sanitária Brasi- cionar à maneira de preconceito. Embora esta
leira. Simplificado, reformulado ou em sua controvérsia tenha ficado famosa, considera-
complexidade integral, o método foi introdu- mos que esses autores enfatizam as duas faces
zido em programas de ensino de especializa- de uma mesma questão: há razão e reflexão no
ção e pós-graduação, nos vários núcleos de ato de repensar a si mesmo em uma dada tra-
planejamento e gestão que começaram a se es- dição. Gadamer ressalta a escolha do que de-
palhar pelo país nos anos 80. ve ser conservado; Habermas, o efeito impla-
cável da reflexão quando aplicada aos precon-
ceitos, que não poderiam mais manter a fun-
A hermenêutica como metodologia ção reprodutora do ponto de vista social.
A opção metodológica deste trabalho é a
Em Theatrum philosoficum, Foucault (1987) de elaborar, primeiro, uma interpretação her-
diz: Talvez seja a primazia da interpretação em menêutica do planejamento, tal como ele tem
relação aos símbolos o que dá um valor decisi- sido até hoje, para poder estabelecer o reco-
vo à hermenêutica moderna (...) Em oposição nhecimento crítico da tradição na qual nos en-
ao tempo dos símbolos que é um tempo com contramos inseridos por formação e por nos-
vencimentos, e por oposição ao tempo da dia- sa história pessoal. A grande tarefa da herme-
lética, que é apesar de tudo linear, chegamos a nêutica na área de planejamento, acreditamos,
um tempo de interpretação que é circular. Este poderia se refletir sobre o já dado, visando des-
tempo está obrigado a voltar a passar por onde construir os preconceitos e permitindo esco-
passou (...) lhas racionais sobre o que conservar ou resga-
A partir das formulações contemporâneas tar do passado da área.
sobre a hermenêutica, acreditamos nesse per- O fenômeno da compreensão e da maneira
curso com um formato espiralado, um voltar correta de se interpretar o que se entendeu não
a passar que não pretende chegar ao mesmo é apenas, e nem especial, um problema da dou-
lugar, mas lançar-se além. Nesse sentido é uma trina dos métodos aplicados nas ciências do es-
passagem, próxima da concepção psicanalíti- pírito (...) Por isso, desde sua origem, o proble-
ca, que no ato de passar produz. Acreditamos ma da hermenêutica esteve sempre forçando os
que sempre se produz “passando”. limites que lhe são impostos pelo conceito me-
(...) Como se começa o esforço hermenêuti- todológico da moderna ciência (...) o fenômeno
co? Que conseqüências tem para a compreensão hermenêutico não é, de forma alguma, um pro-
a condição hermenêutica de pertença a uma tra- blema de método. O que importa a ele, em pri-
dição? Recordamos aqui a regra hermenêutica, meiro lugar, não é a estruturação de um conhe-
segundo a qual tem-se de compreender o todo a cimento seguro, que satisfaça aos ideais meto-
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ração do trabalho intelectual e do trabalho ma- em campo e núcleo poderia subsidiar uma sé-
terial, constitui a condição comum de dois pro- rie de negociações nas instituições de saúde.
cessos que só podem realizar-se no âmbito de Para eles, campo de competência seria o espa-
uma relação de interdependência e de reforço ço mais geral dos saberes de uma especialida-
recíproco, a saber, a constituição de um campo de dada, um espaço de sobreposição de exercí-
(...) relativamente autônomo e o desenvolvimen- cio (...) ou seja, campo de interseção com outras
to de uma necessidade (...) de sistematização áreas, e o núcleo, o mais específico, “incluiria as
das (...) práticas (...) (Bourdieu, 1992). atribuições exclusivas” da especialidade em
Retiramos o adjetivo religioso(a) do pará- questão, (...) assim, o campo de competência te-
grafo acima para mostrar sua pertinência se ria limites e contornos menos precisos e o nú-
pensado em relação ao planejamento. cleo, ao contrário, teria definições as mais deli-
Se, como já dissemos, planejar é uma tare- neadas possíveis (...) (Campos et al., 1997). Es-
fa que faz parte do mundo da vida dos seres ses autores assumem que esses espaços seriam
humanos, quando essa capacidade foi expro- construídos mediante um jogo de negociações
priada da maioria dos mortais e elevada ao lu- provisórias que, inelidivelmente, deveriam
gar de corpus complexo e secreto, só acessível abarcar aspectos corporativos, técnicos e polí-
para experts? ticos em uma reconstrução permanente.
Bourdieu continua: Enquanto resultado da Os conceitos de campo e núcleo foram ela-
monopolização da gestão dos bens (...) por um borados originalmente para subsidiar a refle-
corpo de especialistas (...) socialmente reconhe- xão sobre as especialidades médicas, e propu-
cidos como os detentores exclusivos da compe- semos a sua utilização para pensar o saber-fa-
tência necessária à produção ou reprodução de zer em equipes multiprofissionais de saúde
um corpus deliberadamente organizado de co- (Onocko, 1998). O uso de campo e núcleo nes-
nhecimentos secretos (e portanto raros), a cons- ses autores não é, acreditamos, análogo ao tra-
tituição de um campo (...) acompanha a desa- balho de Bourdieu. Para Bourdieu, a passagem
propriação objetiva daqueles que dele são ex- do campo ao corpus é uma passagem de um
cluídos e que se transformam por esta razão em certo senso comum ao saber dos especialistas.
leigos (...) (op. cit., grifos do autor). Passagem que implica o controle (e a regula-
Concordando com esse autor, poderíamos ção) de certas técnicas, e que se faz possível
entender que se trata, na verdade, de dois mo- por meio de uma expropriação dos leigos
mentos: primeiro, a conformação de um certo constituídos nesse mesmo processo. Diferen-
campo, e logo, como resultado da monopoli- temente, os conceitos de campo e núcleo como
zação da gestão dos saberes, da produção de propostos por Campos et al. subsidiam uma
um corpus fechado. É preciso, para Bourdieu, tensão e um reordenamento dos saberes e
situar o corpus assim constituído no inteiro do compromissos no interior mesmo de um cam-
campo (...) de que faz parte, bem como estabe- po profissional já constituído, visando desa-
lecer as relações entre a posição deste corpus lienar a relação dos especialistas com as prá-
neste campo (...) Em outros termos, é necessá- ticas e saberes com os quais estão envolvidos.
rio determinar previamente as funções de que Nesse sentido não produzem um questiona-
se reveste este corpus no sistema de relações de mento sobre a técnica, mas sobre o trabalho
concorrência e de conflito entre grupos situados como práxis social.
em posições diferentes no interior de um campo Consideramos, assim, que ambos os usos
intelectual (...) (Ibidem, grifo nosso). do termo campo têm sentido no nosso traba-
Consideramos que estas funções estão re- lho: o de Bourdieu, para entender como foi se
lacionadas a um certo valor de uso, vincula- constituindo o campo do planejamento no
das à produção de certos fins e não de outros. Brasil da Reforma Sanitária; e o de Campos,
Isto é válido para o campo em análise: certas para a fase mais propositiva do estudo, enfa-
metodologias de planejamento, que foram am- tizando o entendimento do possível valor de
plamente difundidas, eram/são funcionais pa- uso em jogo para o planejamento em saúde no
ra quais fins sociais? fim do milênio.
Em outro trabalho (Onocko, 1998), vale- Pretendemos mostrar como o campo do
mo-nos do uso ampliado dos conceitos de cam- planejamento em saúde no Brasil da Reforma
po e núcleo na concepção de outros autores. Sanitária foi se estruturando até se constituir
Campos et al. afirmam que a diferenciação de em vários corpi fechados; como as mudanças
áreas de competência e de responsabilidade de cenário podem ter influenciado esse movi-
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sector salud” (que posteriormente integrariam rios), ainda sem hegemonia clara. Na verda-
o Pensar em salud) e um livro de Matus (Es- de, o planejamento em saúde aparece como
tratégia y plan), o que confirma nossa percep- um campo em formação, ganhando autono-
ção sobre a influência desses autores na cons- mia em relação ao campo – esse sim, já cons-
tituição teórica do campo do planejamento tituído – da administração pública.
em saúde na reforma sanitária brasileira. Avancemos no tempo e chegamos aos anos
Por sugestão desse encontro, realizou-se, 90. Vários autores denunciam o predomínio
no final de 1983, o primeiro curso de Atualiza- tecnocrático, administrativista, na área de pla-
ção em Planejamento, sob a coordenação da nejamento em tempos recentes (Campos, 1989;
Abrasco e de caráter interinstitucional. Du- Chorny, 1998). Chorny defende: Se puede afir-
rante 80 horas, trinta docentes de planejamen- mar, sin temor a cometer grandes injusticias,
to debateram, com a metodologia de “seminá- que, actualmente, gran parte de los modelos de
rio interpares”, o seguinte temário: Capitalis- planificación en el área de la salud son orienta-
mo e Planejamento em Saúde; Problemas Fun- dos por el simple y único objetivo de reducir gas-
damentais do Planejamento em Saúde; Práti- tos, privilegiando la racionalidad de los medios
cas de Planejamento em Saúde; e Perspectivas sobre los fines (Chorny, 1998).
do Planejamento em Saúde (Abrasco, 1984). Concordando com esse autor, considera-
Na avaliação do curso, ressaltava-se sua mos o predomínio da racionalidade instru-
grande contribuição no propósito de promover mental como indicativo da constituição de um
o Planejamento de Saúde no Brasil, a grande campo (o do planejamento em saúde pública)
oportunidade havida na época de realização do e, talvez, de uma passagem ao corpus. O mesmo
curso, quando o momento político nacional, es- autor conclui:
pecificamente na área de saúde, trazia à discus- Los planificadores, todo poderosos ayer, hoy
são boa parte dos conteúdos do curso; e a im- se refugian en las academias o en núcleos, que
portância do apoio institucional da Abrasco a bajo la denominación de planificación se ocu-
esse tipo de iniciativa (Abrasco, 1984). pan del control de gastos. Mientras florecen pro-
O conteúdo desse documento da Abrasco puestas teóricas y se incrementa la discusión, la
mostra a preponderância que o planejamen- realidad queda cada vez más lejana. La inno-
to vinha ganhando nessa época e as potencia- vación se transformó en un fin en sí mismo, no
lidades que lhe eram atribuídas em relação ao se inova para hacer frente a nuevos problemas
cenário da saúde coletiva daquele momento e o a viejos problemas no resueltos, se crean “on-
naquela conjuntura. das” para hacerse un lugar (...) (op. cit.).
Em um outro texto do mesmo documen- Ressaltamos nesse texto o duplo – e simul-
to, apresentam-se recomendações para cursos tâneo – movimento de constituição de um cor-
de saúde pública. A proposta era de uma car- pus e de alienação dos fins. Assim, concorda-
ga horária mínima de 630 horas, das quais 150 mos com a afirmação de Chorny de que, para
de planejamento (24%). Em uma década – de grande parte dos planejadores contemporâ-
1974 a 1984 – a área de planejamento quintu- neos, o objeto da planificação em saúde dei-
plicou seu peso relativo nos cursos de saúde xou de ser a produção de saúde para se con-
pública. É interessante perceber que, enquan- centrar na simples administração “eficiente”
to o curso de atualização deu um certa ênfase de recursos. Como pretendemos mostrar, essa
aos temas “estratégicos”, esses temas eram qua- contradição não é nova, nem aparece agora.
se ausentes da proposta oficial para cursos de Ela já estava presente nas discussões dos gru-
saúde pública. Como se o estratégico fosse pos da Abrasco na década de 1980. Isso mostra
conteúdo somente para professor aprender. que o corpus foi se fechando sob a hegemonia
Tampouco houve menção a autores do plane- dos administrativistas.
jamento estratégico na bibliografia proposta Consideramos que outra evidência da cons-
para os cursos de especialização. Considera- tituição do corpus pode ser encontrada no mo-
mos que isso reforça nossa análise de que o vimento de superespecialização que atingiu a
planejamento era um campo em constituição área, fragmentando o campo. Como bem mos-
naquele momento; estava-se conformando co- trou Campos (1999), atualmente o corpus da
mo campo (no sentido Bourdieu), mas ainda moda é a avaliação, embora, durante anos se
muito pouco como corpus. Nos conteúdos dos tenha dito que era uma parte indesligável do
cursos várias visões convivem e se confrontam planejamento, e também que era uma das me-
(as contradições dos subgrupos dos relató- nos praticadas (Silver, 1992). Parece que, no
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Acreditamos que existe saída para essa arma- po do planejamento, como objeto de análise,
dilha pós-moderna. Propomos voltar ao cam- pode ser desmembrado em núcleos específi-
po. Mas ao campo na concepção de Campos et cos; mas não pode ser separado da discussão
al. Ou seja, reconhecermos que há valor de uso do planejamento como núcleo de saberes den-
para um campo de saberes específicos, especia- tro do campo da saúde pública. Por quê? Por-
lizados, de planejamento na saúde pública. E que isso o determina como campo e lhe ou-
esse campo é comum a todas as subespecialida- torga parte de sua especificidade. Se amputar-
des da área. A avaliação, a administração-ges- mos essas relações, vale tudo: receitas de em-
tão, as próprias técnicas de planejamento se- presas privadas seriam igualmente pertinen-
riam núcleos dentro desse campo mais amplo. tes e automaticamente aplicáveis a centros de
Esta proposta pode ser formulada a partir saúde; o objeto de nossos serviços públicos se-
de uma abordagem hermenêutica e do resga- ria a eficiência e não a eficácia em termos de
te racional, crítico e seletivo de uma certa tra- produção de saúde; enfim, nossos problemas
dição. Algumas coisas eram boas, lá, de onde seriam problemas de “caixa” e não de defesa
viemos: os planejadores sabiam programar, os da vida.
programas tinham indicadores de avaliação O planejamento está relacionado com o fu-
predefinidos, os custos eram uma parte de nos- turo (Chorny, 1998). Não podemos planejar
sos problemas e não o único problema. o passado. Mas podemos revisá-lo e aprender
Propomos também utilizar o par de con- com isso.
ceitos campo e núcleo como uma luneta que A reflexão é condenada a chegar depois do
nos permita redimensionar o foco segundo a fato, mas ao olhar para trás desenvolve uma for-
finalidade de nossa análise. Nesse caso, o cam- ça retroativa (Habermas, 1987).
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