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O planejamento em saúde sob o foco

ARTIGO ARTICLE
da hermenêutica

Health planning beneath the hermeneutical focus

Rosana Teresa Onocko Campos 1

Abstract This paper analyses the constitution Resumo Este artigo investiga a constituição
of the health-planning field, in Brazil, using a do campo do planejamento em saúde no Bra-
Hermeneutical analysis of Abrasco papers, pub- sil a partir de uma análise hermenêutica de
lished during the eighties. With this purpose, documentos da Abrasco da década de 1980.
a theoretical fundamentality is made in order Com essa finalidade, realiza-se uma funda-
to clarify the dilemmas of this area. Finally, a mentação teórica e ensaia-se uma análise dos
theorical proposal is made to support a recon- textos para elucidar os dilemas da área neste
stitution of health planning field. início de século. No final, propõe-se a utiliza-
Key words Health planning, Public health, ção de alguns conceitos teóricos para subsidiar
Hermeneutical approach uma reconstituição do campo do planejamen-
to em saúde.
Palavras-chave Planejamento em saúde, Saú-
de pública, Abordagem hermenêutica

1 Departamento
de Medicina Preventiva
da Faculdade de Ciências
Médicas – Unicamp.
Rua Américo Campos, 93 –
13083-040 – Cidade
Universitária – Campinas –
SP. rosana@mpc.com.br
198
Campos, R. T. O.

Introdução campo determinado e determinante dessa mu-


dança.
Para qualquer pessoa, para o senso comum, Na área de saúde pública, uma das tecnolo-
“fazer planos” é pensar sobre o futuro. Os se- gias gerenciais mais difundidas foi o planeja-
res humanos planejam o tempo inteiro: sobre mento estratégico. A partir da década de 1960,
a vida, sobre o trabalho, até sobre os filhos. Es- na América Latina, o planejamento foi apre-
sa parece ser uma capacidade “natural” do cé- sentado como uma ferramenta capaz de dar
rebro humano, tanto que, em épocas recentes, conta dos desafios do setor da saúde. Nume-
têm aparecido novas teorias sobre o funcio- rosos esforços já foram empreendidos visan-
namento cerebral, que pretendem mostrar co- do ampliar sua difusão, tanto no nível gover-
mo uma das primeiras capacidades perdidas namental quanto na intervenção institucional.
em algumas doenças ou lesões cerebrais é a de Os desafios e dilemas colocados pelo mo-
tomada de decisão ou capacidade de fazer pla- vimento sanitário na década de 1980, que cul-
nos (Sacks, 1995; Damásio, 1996), considera- minou com a promulgação da Constituição de
da a mais complexa das capacidades humanas. 1988, foram substituídos por outros novos.
Se admitimos que planejar é uma atividade Tentaremos mostrar como o campo do plane-
quase natural ao homem, podemos entender jamento não ficou alheio a essas questões após
por que o problema de como planejar e de como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
fazer os planos acontecerem – virarem realida-
de – preocupa à racionalidade contemporânea.
Alguns pensadores modernos mostraram Objetivo
como a constituição dos discursos e a confor-
mação do campo e do objeto das diferentes Propomo-nos a analisar como o planejamen-
disciplinas estão profundamente entrelaçadas to em saúde, no marco da reforma sanitária
à época, à constituição histórico-social e até Brasileira, foi se constituindo, primeiro como
subjetiva dos autores (Foucault, 1987; Casto- campo e, depois, como corpus tecnológico fe-
riardis, 1987 e Bourdieu, 1992). chado. Ao final, propomos algumas linhas de
A partir dessa posição, parece-nos que fica intervenção, visando quebrar essa cristaliza-
mais claro o florescer das teorias sobre admi- ção e subsidiar a reformulação do campo.
nistração e planejamento no capitalismo con-
temporâneo. O funcionamento engajado (e
bem “azeitado”) entre meios e fins constitui A saga
um dos pressupostos básicos da sociedade “efi-
ciente”. Assim sendo, a racionalidade moderna Para contextualizar a história do planejamen-
tem trabalhado com afinco na procura de mé- to, é preciso recuperar brevemente qual a teo-
todos e técnicas (de planejamento, de organi- ria que está por trás do nascimento do plane-
zação) que mantenham a “teoria” (a organi- jamento em saúde na América Latina. Para en-
zação capitalista do mundo globalizado). tender essa questão, deve-se voltar no tempo
Nos últimos anos, na literatura sobre ge- umas quatro décadas, aos anos 50, auge do ra-
renciamento e gestão de serviços de saúde, di- cionalismo científico, para o qual o mundo se-
ferentes correntes que procuram produzir mu- ria melhor por efeito da razão. O desenvolvi-
danças institucionais têm proposto diversas mentismo se espalha pela região: o Estado de-
técnicas de intervenção nas organizações de veria dirigir os investimentos para as áreas es-
saúde. O pano de fundo comum é a crise fi- tratégicas que, garantindo o crescimento eco-
nanceira provocada pelos custos crescentes da nômico, garantiriam o progresso social para
assistência à saúde e a crescente perda de legi- todos. Nesse contexto, na saúde, o percurso
timidade dos serviços públicos como espaços histórico do planejamento como prática ins-
que poderiam garantir eficácia e qualidade aos trumental acompanhou as idéias hegemôni-
cuidados da saúde da população. cas de desenvolvimento econômico. A saúde
O objeto de reflexão deste trabalho é o sur- da população passou a ser considerada um fa-
gimento, a partir da década de 1980, do cam- tor de produtividade e os recursos de saúde a
po do planejamento em saúde no contexto serem tratados do ponto de vista dos modelos
brasileiro e dentro do marco da reforma sani- de custo-benefício. Por iniciativa da Organi-
tária. Desde então, o cenário sanitário mudou. zação Pan-Americana da Saúde, essa etapa pro-
Tentaremos mostrar que o planejamento é um duziu como documento mais significativo o
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texto “Problemas conceptuales e metodológi- entre esses autores: se podemos compartilhar
cos de la programación en salud” (OPAS, a crítica de Testa a Matus, de que este teria ten-
1965). O método proposto nesse documento tado, na sua proposta metodológica, “substi-
marcou fortemente as duas décadas seguintes: tuir a normatividade técnico-econômica por
a de 1960, visando à sua implementação; e a uma normatividade política” (Testa, 1993), a
de 1970, produzindo uma crítica que rompeu inclusão de Testa no mesmo campo de Matus
com a chamada planificação normativa e le- ou a crítica a respeito da falta de instrumen-
vou ao surgimento das propostas de planeja- talização do pensamento estratégico de Testa,
mento estratégico (Rivera, 1989). todavia, a nosso ver não procedem. Quando
Quanto ao método normativo, algumas Testa critica o PES de Matus e propõe o nome
questões já foram muito criticadas por outros Pensamento Estratégico para sua própria pro-
autores, tais como a separação entre os espaços dução teórica, ele define um novo rumo para
técnico e político, a ênfase exagerada na alo- seu pensamento e abre novos caminhos. Já não
cação de recursos econômicos etc. (Rivera, está mais interessado em “azeitar meios e fins”.
1989; Testa, 1993). Consideramos que essas Para o pensador argentino-venezuelano, o im-
características do planejamento normativo re- portante é questionar os próprios fins da so-
sultavam da necessária coerência entre teoria ciedade capitalista dependente e desencadear
e método (Testa, 1993). O técnico, com seu sa- processos de constituição de atores sociais.
ber, subsidiava linearmente a “melhor” deci- Toda a obra posterior desse autor mostra-
são que os políticos se encarregavam de im- rá sua preocupação crescente com os modos
plementar. Essa era, talvez, a linha de pensa- de pensar, com os efeitos do pensamento e as
mento possível que melhor combinava com a categorias utilizadas sobre a realidade, cons-
expectativa sobre o Estado administrador, que truindo um percurso mais epistemológico, que
zelava pelo bem comum. inclui a produção científica, a incorporação
Para vários autores, é a partir de 1975 (no tecnológica, a inter-relação das ciências sociais
documento “Formulação de políticas de saú- com a saúde etc. (Testa, 1993, 1995, 1997). Pa-
de”) que começa a se manifestar o caráter po- ra Testa o campo é outro: não o Planejamento
lítico do planejamento (Rivera, 1989; Chorny, Estratégico mas o Pensamento Estratégico. Não
1990). Em que contexto político regional as- é uma simples questão de nomes, como mui-
sistimos a essa mudança? Governos militares to freqüentemente se tem entendido. Voltare-
haviam surgido em muitos países, a ilusão do mos a essa colocação uma pouco mais adian-
desenvolvimento se desmanchava no ar. Os te, quando discutiremos a pertinência de res-
formuladores se refugiavam em núcleos de gatar questões do pensamento de Testa no mo-
pesquisa ou em entidades internacionais. Nun- mento atual.
ca deve ter ficado tão claro para eles a neces- Por que o PES ganhou tanta adesão duran-
sidade de uma estratégia política, e as elabo- te a década de 1980 e começo dos anos 90, até
rações teóricas começaram a se debruçar so- se constituir quase “no” método de planeja-
bre os problemas do planejamento para além mento estratégico por excelência? O que isso
da questão técnica. É consenso entre vários nos diz em relação à conformação de um dado
autores que aí se inicia a constituição de um campo? Qual o desenho do campo quase he-
novo campo: o do planejamento estratégico. gemônico na saúde – pelo menos no setor pú-
Esse campo em formação recebeu, no se- blico? Para qual demanda social essa “instru-
tor saúde no Brasil, a influência teórica de dois mentalização da política”, que Testa critica em
autores latino-americanos: Matus e Testa. As Matus, era funcional, ou, dito de outro modo,
obras de ambos ainda têm sido bastante di- tinha valor de uso? E por que deixou de tê-lo
fundidas e analisadas por diversos autores da nos anos 90?
área, com distintas abordagens (Rivera, 1989; Pensamos que essas são algumas das per-
Chorny, 1990; Amarante, 1992; Merhy, 1995; guntas a serem feitas numa tentativa de inter-
Onocko, 1998). Ambos os autores influencia- pretação hermenêutica do planejamento em
ram o movimento sanitário brasileiro, mas saúde.
consideramos que a difusão do PES (Planeja- (...) o planejamento não é um método des-
mento Estratégico Situacional, de Matus) foi cartável; é um modo de viver do homem em di-
bem mais hegemônica. reção à liberdade. A alternativa ao plano é a im-
Gostaríamos de enfatizar algumas diferen- provisação ou a resignação, é a renúncia a con-
ças, para nós não suficientemente ressaltadas, quistar mais liberdade (Matus, 1993).
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Campos, R. T. O.

Quando Matus fez esta afirmativa, estava partir do individual e o individual a partir do
preocupado com a construção da governabi- todo (...) Aqui como lá subjaz uma relação cir-
lidade, com o aprimoramento de um método cular. A antecipação de sentido, no qual está en-
que permitisse tornar viáveis governos latino- tendido o todo, chega a uma compreensão ex-
americanos de caráter progressista. Matus ini- plicita através do fato de que as partes que se
ciou sua reflexão no cárcere, após a queda do determinam, a partir do todo determinam, por
governo chileno de Salvador Allende. Pergun- sua vez, esse todo (Gadamer, 1997).
tamos: não seria por que precisava instrumen- Na obra de Gadamer, a questão da tradi-
talizar a política? Existem numerosos depoi- ção é ressaltada. O sujeito que compreende de-
mentos de ex-militantes e membros do gover- ve-se reconhecer em uma dada tradição. Para
no chileno deposto que dão testemunho da Gadamer a tradição é essencialmente conser-
necessidade que essas pessoas tiveram de exor- vação e como tal está atuante nas mudanças his-
cizar esse passado, de processá-lo de algum tóricas. No entanto, a conservação é um ato da
modo (Dorfman, 1999). razão (...) Na realidade a tradição sempre é um
Uma abordagem hermenêutica obriga a momento da liberdade e da própria história
pensar nessa questão. Tanto no que se refere (Gadamer, 1997).
ao conteúdo do discurso do planejamento co- Polemizando com Gadamer, Habermas
mo em seus autores. O quem, que Foucault de- (1987) defende: Todavia, o substancial do his-
fine como a pergunta central da hermenêuti- toricamente pré-dado não fica intocado ao ser
ca (Foucault, 1987). assumido na reflexão. A estrutura preconceitual
O PES foi “o” método de planejamento que se tornou transparente não pode mais fun-
mais difundido pela Reforma Sanitária Brasi- cionar à maneira de preconceito. Embora esta
leira. Simplificado, reformulado ou em sua controvérsia tenha ficado famosa, considera-
complexidade integral, o método foi introdu- mos que esses autores enfatizam as duas faces
zido em programas de ensino de especializa- de uma mesma questão: há razão e reflexão no
ção e pós-graduação, nos vários núcleos de ato de repensar a si mesmo em uma dada tra-
planejamento e gestão que começaram a se es- dição. Gadamer ressalta a escolha do que de-
palhar pelo país nos anos 80. ve ser conservado; Habermas, o efeito impla-
cável da reflexão quando aplicada aos precon-
ceitos, que não poderiam mais manter a fun-
A hermenêutica como metodologia ção reprodutora do ponto de vista social.
A opção metodológica deste trabalho é a
Em Theatrum philosoficum, Foucault (1987) de elaborar, primeiro, uma interpretação her-
diz: Talvez seja a primazia da interpretação em menêutica do planejamento, tal como ele tem
relação aos símbolos o que dá um valor decisi- sido até hoje, para poder estabelecer o reco-
vo à hermenêutica moderna (...) Em oposição nhecimento crítico da tradição na qual nos en-
ao tempo dos símbolos que é um tempo com contramos inseridos por formação e por nos-
vencimentos, e por oposição ao tempo da dia- sa história pessoal. A grande tarefa da herme-
lética, que é apesar de tudo linear, chegamos a nêutica na área de planejamento, acreditamos,
um tempo de interpretação que é circular. Este poderia se refletir sobre o já dado, visando des-
tempo está obrigado a voltar a passar por onde construir os preconceitos e permitindo esco-
passou (...) lhas racionais sobre o que conservar ou resga-
A partir das formulações contemporâneas tar do passado da área.
sobre a hermenêutica, acreditamos nesse per- O fenômeno da compreensão e da maneira
curso com um formato espiralado, um voltar correta de se interpretar o que se entendeu não
a passar que não pretende chegar ao mesmo é apenas, e nem especial, um problema da dou-
lugar, mas lançar-se além. Nesse sentido é uma trina dos métodos aplicados nas ciências do es-
passagem, próxima da concepção psicanalíti- pírito (...) Por isso, desde sua origem, o proble-
ca, que no ato de passar produz. Acreditamos ma da hermenêutica esteve sempre forçando os
que sempre se produz “passando”. limites que lhe são impostos pelo conceito me-
(...) Como se começa o esforço hermenêuti- todológico da moderna ciência (...) o fenômeno
co? Que conseqüências tem para a compreensão hermenêutico não é, de forma alguma, um pro-
a condição hermenêutica de pertença a uma tra- blema de método. O que importa a ele, em pri-
dição? Recordamos aqui a regra hermenêutica, meiro lugar, não é a estruturação de um conhe-
segundo a qual tem-se de compreender o todo a cimento seguro, que satisfaça aos ideais meto-
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dológicos da ciência – embora, sem dúvida, se ção instrumental de certos métodos que acaba-
trate também aqui do conhecimento e da ver- ram sendo fetichizados por alguns planejado-
dade (Gadamer, 1997). res modernos).
No campo da saúde coletiva e, em particu-
lar, na área do planejamento, consideramos
que essa postura de interrogação/interpreta- A conformação do campo
ção hermenêutica pode ser de muita utilidade.
Em outro trabalho (Onocko, 1999), discu- Corresponde, no entanto, a uma freqüente trans-
timos as correntes de planejamento em saú- ferência do devir para o ser, o fato de que a for-
de, no Brasil, na década de 1990, questionan- mação (...) designa mais o resultado desse pro-
do as relações que se estabeleceram com a ra- cesso de devir do que o próprio processo. A trans-
zão instrumental. Tais relações, quando não ferência, aqui, é bastante compreensível, porque
explicitadas, reforçam o aspecto socialmente o resultado da formação não se produz na for-
reprodutor de certas técnicas. E elas só podem ma de uma finalidade técnica, mas nasce do pro-
ser evidenciadas por uma interpretação que cesso interno de constituição e de formação e,
ressalte certas ligações e/ou mediações, e não por isso, permanece em constante evolução e
nos moldes de uma validação “científica”. Nes- aperfeiçoamento (...) Nesse sentido, tudo que
te sentido, a hermenêutica não pode ser con- ela assimila, nela desabrocha. Mas na forma-
siderada um método na acepção cartesiana do ção, aquilo que foi assimilado não é como um
termo. Diz Gadamer (1997): (...) um uso metó- meio que perdeu sua função. Antes, nada desa-
dico e disciplinado da razão é suficiente para parece na formação adquirida, mas tudo é pre-
nos proteger de qualquer erro. Esta é a idéia car- servado. A formação é um conceito genuinamen-
tesiana do método. te histórico (...) (Gadamer, 1997).
A pressão em relação à precisão metodo- A noção de formação, tal como trabalha-
lógica também se exerce nas ciências sociais da por Gadamer no parágrafo acima, é apro-
em saúde, e um dos seus pilares tem sido a priada para enquadrar a discussão da confor-
questão do “recorte” do objeto. Recorte que, mação de um campo, que, como no caso do
algumas vezes, extrapola a necessária delimi- planejamento, não poderia ser pensado sim-
tação para se transformar naquilo que consi- plesmente no seu caráter de campo discipli-
deramos uma “amputação” do objeto das mi- nar (de teorias ou de saberes), mas deveria
cro e macrorrelações de sua produção. Portan- abranger a reflexão sobre o desenvolvimento
to, neste artigo, escolhemos trabalhar desta- de certas práticas. Tratando-se de planejamen-
cando e não recortando o objeto. to, consideramos que a discussão sobre o cam-
Japiassu, apresentando os textos de Paul po deveria ser sempre uma discussão sobre o
Ricoeur, diz: “saber fazer”.
Todos [os textos da coletânea] se inscrevem O Dicionário Aurélio registra vários usos
em uma problemática fundamental: a de con- possíveis da palavra campo. Conceito polissê-
verter o método hermenêutico ou interpretativo mico. A hermenêutica ensina que não existe
num esforço por salvar o homem da (ou mesmo nenhum que não o seja. Aos fins deste traba-
apesar da) ciência (...) Diríamos que contra o lho, resgatamos os seguintes: 1 – Área, espaço;
esprit géometrique ainda muito vivo nos cien- 2 – Matéria, assunto; 3 – Domínio, esfera, âm-
tistas humanos, a hermenêutica opta pelo esprit bito; campo de ação (Dicionário Aurélio, 1997).
de finesse que só compreende o cogito quando Bourdieu, talvez um dos pensadores que
mediatizado pelo universo dos signos: a cons- mais tenha trabalhado com a noção de cam-
ciência não é imediata, porém mediata; não é po, nunca a define exatamente, ou seja, não
uma fonte, mas uma tarefa, a tarefa de tornar-se construiu um conceito “fechado”. Contudo,
consciente, mais consciente. Neste sentido não deixa claro que a noção de campo tem uma
há hermenêutica geral (...) (Japiassu, 1990). amplitude maior e mais abrangente que, por
Para Foucault (1987), a interpretação her- exemplo, a de corpus. Para Bourdieu (1992), o
menêutica moderna está sempre relacionada corpus está como que contido ou incluso num
com uma certa terapêutica. Assim, Freud, certo campo.
Marx e Nietzsche seriam os principais formu- O conjunto de transformações tecnológicas,
ladores da mesma. econômicas e sociais, correlato ao desenvolvi-
(Talvez, no fundo, estejamos atrás de uma mento das cidades e, em particular, aos progres-
“cura” – a dos males provocados pela aplica- sos da divisão do trabalho e à aparição da sepa-
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ração do trabalho intelectual e do trabalho ma- em campo e núcleo poderia subsidiar uma sé-
terial, constitui a condição comum de dois pro- rie de negociações nas instituições de saúde.
cessos que só podem realizar-se no âmbito de Para eles, campo de competência seria o espa-
uma relação de interdependência e de reforço ço mais geral dos saberes de uma especialida-
recíproco, a saber, a constituição de um campo de dada, um espaço de sobreposição de exercí-
(...) relativamente autônomo e o desenvolvimen- cio (...) ou seja, campo de interseção com outras
to de uma necessidade (...) de sistematização áreas, e o núcleo, o mais específico, “incluiria as
das (...) práticas (...) (Bourdieu, 1992). atribuições exclusivas” da especialidade em
Retiramos o adjetivo religioso(a) do pará- questão, (...) assim, o campo de competência te-
grafo acima para mostrar sua pertinência se ria limites e contornos menos precisos e o nú-
pensado em relação ao planejamento. cleo, ao contrário, teria definições as mais deli-
Se, como já dissemos, planejar é uma tare- neadas possíveis (...) (Campos et al., 1997). Es-
fa que faz parte do mundo da vida dos seres ses autores assumem que esses espaços seriam
humanos, quando essa capacidade foi expro- construídos mediante um jogo de negociações
priada da maioria dos mortais e elevada ao lu- provisórias que, inelidivelmente, deveriam
gar de corpus complexo e secreto, só acessível abarcar aspectos corporativos, técnicos e polí-
para experts? ticos em uma reconstrução permanente.
Bourdieu continua: Enquanto resultado da Os conceitos de campo e núcleo foram ela-
monopolização da gestão dos bens (...) por um borados originalmente para subsidiar a refle-
corpo de especialistas (...) socialmente reconhe- xão sobre as especialidades médicas, e propu-
cidos como os detentores exclusivos da compe- semos a sua utilização para pensar o saber-fa-
tência necessária à produção ou reprodução de zer em equipes multiprofissionais de saúde
um corpus deliberadamente organizado de co- (Onocko, 1998). O uso de campo e núcleo nes-
nhecimentos secretos (e portanto raros), a cons- ses autores não é, acreditamos, análogo ao tra-
tituição de um campo (...) acompanha a desa- balho de Bourdieu. Para Bourdieu, a passagem
propriação objetiva daqueles que dele são ex- do campo ao corpus é uma passagem de um
cluídos e que se transformam por esta razão em certo senso comum ao saber dos especialistas.
leigos (...) (op. cit., grifos do autor). Passagem que implica o controle (e a regula-
Concordando com esse autor, poderíamos ção) de certas técnicas, e que se faz possível
entender que se trata, na verdade, de dois mo- por meio de uma expropriação dos leigos
mentos: primeiro, a conformação de um certo constituídos nesse mesmo processo. Diferen-
campo, e logo, como resultado da monopoli- temente, os conceitos de campo e núcleo como
zação da gestão dos saberes, da produção de propostos por Campos et al. subsidiam uma
um corpus fechado. É preciso, para Bourdieu, tensão e um reordenamento dos saberes e
situar o corpus assim constituído no inteiro do compromissos no interior mesmo de um cam-
campo (...) de que faz parte, bem como estabe- po profissional já constituído, visando desa-
lecer as relações entre a posição deste corpus lienar a relação dos especialistas com as prá-
neste campo (...) Em outros termos, é necessá- ticas e saberes com os quais estão envolvidos.
rio determinar previamente as funções de que Nesse sentido não produzem um questiona-
se reveste este corpus no sistema de relações de mento sobre a técnica, mas sobre o trabalho
concorrência e de conflito entre grupos situados como práxis social.
em posições diferentes no interior de um campo Consideramos, assim, que ambos os usos
intelectual (...) (Ibidem, grifo nosso). do termo campo têm sentido no nosso traba-
Consideramos que estas funções estão re- lho: o de Bourdieu, para entender como foi se
lacionadas a um certo valor de uso, vincula- constituindo o campo do planejamento no
das à produção de certos fins e não de outros. Brasil da Reforma Sanitária; e o de Campos,
Isto é válido para o campo em análise: certas para a fase mais propositiva do estudo, enfa-
metodologias de planejamento, que foram am- tizando o entendimento do possível valor de
plamente difundidas, eram/são funcionais pa- uso em jogo para o planejamento em saúde no
ra quais fins sociais? fim do milênio.
Em outro trabalho (Onocko, 1998), vale- Pretendemos mostrar como o campo do
mo-nos do uso ampliado dos conceitos de cam- planejamento em saúde no Brasil da Reforma
po e núcleo na concepção de outros autores. Sanitária foi se estruturando até se constituir
Campos et al. afirmam que a diferenciação de em vários corpi fechados; como as mudanças
áreas de competência e de responsabilidade de cenário podem ter influenciado esse movi-
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mento; e, por fim, propor alguns caminhos
teórico-metodológicos para subsidiar uma saí- A falsa contradição teoria/prática na
da do corpus superespecializado na direção da atual conjuntura do setor (risco de adoção
constituição de um novo campo. de um movimento pendular de teórico/
Para isso, faz-se necessário “voltar a pas- crítico para o técnico/pragmático)
sar por onde já passou” (Foucault, 1987). Daí
a escolha metodológica, a opção por uma lei- No relatório aparece também a posição de
tura hermenêutica de alguns documentos his- dois subgrupos: um, que avaliava que o pre-
tóricos do planejamento da década de 1980 no domínio teórico existente na área era deter-
Brasil. minado pela dificuldade de inserção prática
nos serviços (enfatizando, o “é assim”), e ou-
tro, que advogava a imperiosa necessidade de
Análise de alguns documentos aproximação dos serviços, visando ao equilí-
brio entre o político/conceitual e o técnico/ins-
Vejamos o desenvolvimento da área. No ano de trumental (enfatizando o “deve ser”) (Abras-
1974, no curso de saúde pública da Escola Na- co, 1983). Consideramos que este último sub-
cional de Saúde Pública, o planejamento ocupa- grupo estava chamando para o interior do
va 50 horas/aula em um total de 1.120 (4,5%). campo do planejamento a própria ação polí-
Já no ano seguinte, ocupava 80 de um total de tica. Como se pode ver, o grupo que discutiu o
800 horas (10%) (Abrasco, 1982). Ou seja, o que estava sendo chamado de “falsa” contra-
peso do planejamento no currículo duplicou dição evidenciou, em seu relatório, uma ou-
de um ano para o outro. Isso marca, no míni- tra contradição, a da existência de dois olha-
mo, uma valorização, um aumento da expec- res com ênfases diferentes que levariam, sem
tativa na época sobre a contribuição que esse dúvida, a práticas diferentes na hora de ope-
novo conteúdo poderia trazer à saúde pública. rar no campo.
Em 1982 realizou-se a Primeira Reunião
Nacional sobre ensino e pesquisa em adminis- Aspectos gerais
tração e planejamento na área da saúde coleti-
va, sob o patrocínio da recém-criada Abrasco. Esse grupo abordou diversos temas. Em re-
Nesse encontro, três temas constituíram o ei- lação ao “papel político do planejador”, apa-
xo dos trabalhos de grupo: receram também duas visões diferentes: uma
considerava que o planejador sempre tinha um
Delimitação do espaço do planejamento espaço a conquistar na instituição, indepen-
e da administração em saúde dentemente da política partidária ou da ideo-
logia (papel técnico “puro”); a outra acredita-
Dois olhares convivem no relatório final va que a atividade política faz parte do real e
desse grupo: o dos que consideraram o plane- supõe a necessidade de negociação permanen-
jamento como parte constituinte do processo te, que deveria ser enfrentada (papel técnico-
administrativo (concepção instrumental), e o político). O grupo analisou que se impunha a
dos que colocaram a planificação em saúde formação de um novo tipo de profissional e a
como uma proposta historicamente mais re- redefinição de modelos de planejamento
cente que teria a pretensão de modificar as prá- (Abrasco, 1983).
ticas em saúde de maneira abrangente (con- Esta divergência, coincidentemente cons-
cepção política) (Abrasco, 1983). As expecta- tatada nos três grupos de trabalho, leva-nos a
tivas desses subgrupos parecem diferentes em pensar que sendo essas as questões dilemáti-
relação à constituição do campo do planeja- cas da área, compunham, naquele momento,
mento: o primeiro o pensa como uma instru- o desenho de um certo campo de saberes e fa-
mento administrativo e o segundo, como um zeres.
dispositivo para promover mudanças. É inte- (E hoje, já estão resolvidas?)
ressante perceber como esse campo nasce na No mesmo documento aparece a biblio-
controvérsia. Uma análise mais extensa pode- grafia mais utilizada tanto nos cursos de es-
ria rastrear essa controvérsia até os dias de ho- pecialização como nos de mestrado e douto-
je. Por vezes ela aparece sob a forma de pos- rado. Nela se encontram dois textos mimeo-
turas explícitas, por outras, implicitamente. grafados de Testa: “Estrutura de poder no se-
tor saúde” e “Planificación estratégica en el
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sector salud” (que posteriormente integrariam rios), ainda sem hegemonia clara. Na verda-
o Pensar em salud) e um livro de Matus (Es- de, o planejamento em saúde aparece como
tratégia y plan), o que confirma nossa percep- um campo em formação, ganhando autono-
ção sobre a influência desses autores na cons- mia em relação ao campo – esse sim, já cons-
tituição teórica do campo do planejamento tituído – da administração pública.
em saúde na reforma sanitária brasileira. Avancemos no tempo e chegamos aos anos
Por sugestão desse encontro, realizou-se, 90. Vários autores denunciam o predomínio
no final de 1983, o primeiro curso de Atualiza- tecnocrático, administrativista, na área de pla-
ção em Planejamento, sob a coordenação da nejamento em tempos recentes (Campos, 1989;
Abrasco e de caráter interinstitucional. Du- Chorny, 1998). Chorny defende: Se puede afir-
rante 80 horas, trinta docentes de planejamen- mar, sin temor a cometer grandes injusticias,
to debateram, com a metodologia de “seminá- que, actualmente, gran parte de los modelos de
rio interpares”, o seguinte temário: Capitalis- planificación en el área de la salud son orienta-
mo e Planejamento em Saúde; Problemas Fun- dos por el simple y único objetivo de reducir gas-
damentais do Planejamento em Saúde; Práti- tos, privilegiando la racionalidad de los medios
cas de Planejamento em Saúde; e Perspectivas sobre los fines (Chorny, 1998).
do Planejamento em Saúde (Abrasco, 1984). Concordando com esse autor, considera-
Na avaliação do curso, ressaltava-se sua mos o predomínio da racionalidade instru-
grande contribuição no propósito de promover mental como indicativo da constituição de um
o Planejamento de Saúde no Brasil, a grande campo (o do planejamento em saúde pública)
oportunidade havida na época de realização do e, talvez, de uma passagem ao corpus. O mesmo
curso, quando o momento político nacional, es- autor conclui:
pecificamente na área de saúde, trazia à discus- Los planificadores, todo poderosos ayer, hoy
são boa parte dos conteúdos do curso; e a im- se refugian en las academias o en núcleos, que
portância do apoio institucional da Abrasco a bajo la denominación de planificación se ocu-
esse tipo de iniciativa (Abrasco, 1984). pan del control de gastos. Mientras florecen pro-
O conteúdo desse documento da Abrasco puestas teóricas y se incrementa la discusión, la
mostra a preponderância que o planejamen- realidad queda cada vez más lejana. La inno-
to vinha ganhando nessa época e as potencia- vación se transformó en un fin en sí mismo, no
lidades que lhe eram atribuídas em relação ao se inova para hacer frente a nuevos problemas
cenário da saúde coletiva daquele momento e o a viejos problemas no resueltos, se crean “on-
naquela conjuntura. das” para hacerse un lugar (...) (op. cit.).
Em um outro texto do mesmo documen- Ressaltamos nesse texto o duplo – e simul-
to, apresentam-se recomendações para cursos tâneo – movimento de constituição de um cor-
de saúde pública. A proposta era de uma car- pus e de alienação dos fins. Assim, concorda-
ga horária mínima de 630 horas, das quais 150 mos com a afirmação de Chorny de que, para
de planejamento (24%). Em uma década – de grande parte dos planejadores contemporâ-
1974 a 1984 – a área de planejamento quintu- neos, o objeto da planificação em saúde dei-
plicou seu peso relativo nos cursos de saúde xou de ser a produção de saúde para se con-
pública. É interessante perceber que, enquan- centrar na simples administração “eficiente”
to o curso de atualização deu um certa ênfase de recursos. Como pretendemos mostrar, essa
aos temas “estratégicos”, esses temas eram qua- contradição não é nova, nem aparece agora.
se ausentes da proposta oficial para cursos de Ela já estava presente nas discussões dos gru-
saúde pública. Como se o estratégico fosse pos da Abrasco na década de 1980. Isso mostra
conteúdo somente para professor aprender. que o corpus foi se fechando sob a hegemonia
Tampouco houve menção a autores do plane- dos administrativistas.
jamento estratégico na bibliografia proposta Consideramos que outra evidência da cons-
para os cursos de especialização. Considera- tituição do corpus pode ser encontrada no mo-
mos que isso reforça nossa análise de que o vimento de superespecialização que atingiu a
planejamento era um campo em constituição área, fragmentando o campo. Como bem mos-
naquele momento; estava-se conformando co- trou Campos (1999), atualmente o corpus da
mo campo (no sentido Bourdieu), mas ainda moda é a avaliação, embora, durante anos se
muito pouco como corpus. Nos conteúdos dos tenha dito que era uma parte indesligável do
cursos várias visões convivem e se confrontam planejamento, e também que era uma das me-
(as contradições dos subgrupos dos relató- nos praticadas (Silver, 1992). Parece que, no
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fim do milênio, além de se criar especialistas pouco planeja ou avalia. Quem planeja não
novos para “fazer ondas”, os corpi vão se fe- avalia. E quem avalia não o faz em relação aos
chando e se constituindo em territórios autô- fins preestabelecidos por plano algum.
nomos. (E vamos continuar assim?)
Com a fragmentação do campo, não há es- Qual a demanda (como tradução do valor
paço para a complexidade teórica e as discus- de uso) do setor público de saúde para nós,
sões se prendem apenas a aspectos parciais. planejadores, no próximo século?
Tendo se perdido o campo, a possibilidade de Fazendo um contraponto com Matus, Tes-
reconstruções teóricas é ocultada por um véu ta argumenta:
de disputas – inócuas e menores – sobre ques- Aqui o que falta é desencadear um processo.
tões técnicas ou metodológicas. No melhor Ao falar desencadear um processo estamos esta-
dos casos, com o formato de discussão tecno- belecendo prazos curtos, ou seja, começos e não
lógica, que também não resolve a questão, pois pontos da chegada (...) (Testa, 1995).
esta postura, apesar de bem-intencionada, es- No mesmo texto esse autor questiona “a
quece que as tecnologias só podem ser avalia- tendência funcionalista” de considerar a polí-
das em cada contexto singular e, assim, con- tica como objetivo e a estratégia como instru-
tribui também para sucatear o necessário de- mento, questionamento que se justifica pela
bate teórico. inseparabilidade de meios e fins.
Nem todos os planejadores da saúde fecha- De maneira que, na nossa concepção, a polí-
ram-se em algum corpus. Alguns saíram de nú- tica pode ser objetivo da estratégia, tal como es-
cleo e ampliaram o campo até diluí-lo. Como já ta é o instrumento da política, em um diálogo
tentamos mostrar em outro trabalho (Onocko, circular ou, para dizer em termos mais acadê-
1999), alguns autores da área assimilaram o micos, em um movimento recursivo que não tem
planejamento à prática política. Se isso é verda- princípio e nem fim (Testa, 1995).
de, o planejamento pode muito bem desapare- Reformulando nossa pergunta anterior: o
cer, subsumido em outro campo (o da políti- que será que o setor público de saúde espera
ca). Em outras palavras: não teria valor de uso. de nós, planejadores, e o que será que preten-
demos para o setor na próxima década (note-
se que vou reduzindo os prazos: passei de mi-
Conclusão provisória lênio a século e depois a década), talvez nos
próximos cinco anos? Concordando com os
Tentemos agora reconstituir algumas ligações prazos curtos, que processos deveríamos estar
perdidas. Se caracterizamos o Estado desen- preocupados em começar – já, agora – a de-
volvimentista como um Estado administra- sencadear?
dor, ao qual teria correspondido historicamen- Alguns autores trabalharam a passagem do
te, na área de planejamento em saúde, o mo- planejamento normativo ao estratégico como
delo normativo; se houve um Estado arena uma mudança de paradigma (Rivera, 1989;
(consideramos que isto é válido, no caso bra- Chorny, 1990), e paradigma, num sentido es-
sileiro pelo menos para o setor saúde: Escorel, trito, remete à conformação de uma certa ciên-
1998), ao qual correspondeu o auge do plane- cia (Kuhn, 1962). Em contrapartida, para Tes-
jamento estratégico; pretendemos mostrar co- ta o planejamento é uma prática (Testa, 1995),
mo o Estado omisso, deste final de século pós- todavia, ainda assim, respeitando a proposta
moderno, corresponde à fragmentação do cam- metodológica da hermenêutica, é necessário
po, a superespecialização associada à aliena- saber quais os pressupostos teóricos que re-
ção dos fins pelos meios, sob o reinado da efi- gem o campo dessa prática.
ciência. No caso do planejamento, o componente
Se, na década de 1980, a instrumentaliza- teórico apresenta-se mascarado sob certos mé-
ção da política foi funcional para o campo do todos aos quais foi atribuído o caráter de teo-
planejamento, pensamos que a fragmentação ria, como conseqüência da fragmentação do
tecnocrática é funcional para as mudanças po- campo. Essa usurpação da teoria pelo método é
líticas, econômicas e do aparelho de Estado da uma das grandes armadilhas da modernidade,
década que ora se acaba. As conseqüências prá- talvez a mais indicativa da colonização que a
ticas da situação atual minam nossos serviços razão instrumental impõe ao mundo da vida.
públicos de saúde. Em geral (há exceções que Uma outra linha de análise a aprofundar
muito podem nos ensinar), quem administra deve ser a relação: teoria – método – técnica.
206
Campos, R. T. O.

Acreditamos que existe saída para essa arma- po do planejamento, como objeto de análise,
dilha pós-moderna. Propomos voltar ao cam- pode ser desmembrado em núcleos específi-
po. Mas ao campo na concepção de Campos et cos; mas não pode ser separado da discussão
al. Ou seja, reconhecermos que há valor de uso do planejamento como núcleo de saberes den-
para um campo de saberes específicos, especia- tro do campo da saúde pública. Por quê? Por-
lizados, de planejamento na saúde pública. E que isso o determina como campo e lhe ou-
esse campo é comum a todas as subespecialida- torga parte de sua especificidade. Se amputar-
des da área. A avaliação, a administração-ges- mos essas relações, vale tudo: receitas de em-
tão, as próprias técnicas de planejamento se- presas privadas seriam igualmente pertinen-
riam núcleos dentro desse campo mais amplo. tes e automaticamente aplicáveis a centros de
Esta proposta pode ser formulada a partir saúde; o objeto de nossos serviços públicos se-
de uma abordagem hermenêutica e do resga- ria a eficiência e não a eficácia em termos de
te racional, crítico e seletivo de uma certa tra- produção de saúde; enfim, nossos problemas
dição. Algumas coisas eram boas, lá, de onde seriam problemas de “caixa” e não de defesa
viemos: os planejadores sabiam programar, os da vida.
programas tinham indicadores de avaliação O planejamento está relacionado com o fu-
predefinidos, os custos eram uma parte de nos- turo (Chorny, 1998). Não podemos planejar
sos problemas e não o único problema. o passado. Mas podemos revisá-lo e aprender
Propomos também utilizar o par de con- com isso.
ceitos campo e núcleo como uma luneta que A reflexão é condenada a chegar depois do
nos permita redimensionar o foco segundo a fato, mas ao olhar para trás desenvolve uma for-
finalidade de nossa análise. Nesse caso, o cam- ça retroativa (Habermas, 1987).

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