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AULA 12
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. de Rosa Freire d
´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
1. Tempo passado
A guinada subjetiva
Há décadas, tem crescido o interesse dos historiadores e cientistas sociais ao detalhe
excepcional, àquilo que se opõe à normalização e as subjetividades que se distinguem por uma
anomalia (o louco, o criminoso, a bruxa, etc.). Também se acentuou o interesse pelos sujeitos
“normais”. Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, foi pioneiro ao destacar os desvios da
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história, as “tretas do fraco” que por muito tempo ficaram invisíveis para uma “visão do passado”
dominante que não tinha interesse pela inventividade subalterna.
As histórias da vida cotidiana tem atingido um público para além do espaço acadêmico,
justamente pelo interesse “romanesco” de seus objetos. Nelas, “o passado volta como quadro de
costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que
já não se encontram no presente” (17).
Os sujeitos marginais, há muito ignorados em outros modos de narração do passado, demandam
“novas exigências de método e tendem à escuta sistemática dos ‘discursos de memória’: diários,
cartas, conselhos, orações” (17).
Sarlo também cita a obra The uses of literacy (1957), estudo de sociologia da cultura pioneira de
Richard Hoggart. Neste livro, Hoggart constrói uma nova forma de abordar um objeto que ainda
não estabelecera de vez sua legitimidade (cultura cotidiana da classe operária inglesa) – trabalhando
com suas lembranças e experiências de infância e adolescência, utilizando a primeira pessoa. Em
suma, o autor sustenta seu projeto desde uma perspectiva autobiográfica, embora não tenha se
ocupado em fundamentar essa abordagem subjetiva.
Essas linhas de força convergem numa viragem com relação à legitimidade das narrações do
passado:
“Tomando-se em conjunto essas inovações, a atual tendência acadêmica e do mercado de bens
simbólicos que se propõe a reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da
experiência, a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma
dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do
presente, não são surpreendentes. São passos de um programa que se torna explícito, porque há
condições ideológicas que o sustentam. Contemporânea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 de
‘guinada linguística’ ou muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, impôs-se a guinada
subjetiva” (p.18, grifos da autora).
Essa guinada subjetiva acompanha também as recentes renovações no campo da sociologia, em
que a identidade dos sujeitos voltou a tomar o lugar ocupado pelas estruturas. “Restaurou-se a
razão do sujeito, que foi, há décadas, mera ‘ideologia’ ou ‘falsa consciência’” (p.19, grifos da
autora). Por conseguinte, a história oral e o testemunho restituíram a confiança nessa primeira
pessoa que narra sua vida para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade ferida.
“Os combates pela história também são chamados agora de combates pela identidade” (p.23).
Nessa mutação do vocabulário transparece a primazia do sujeito e o seu papel na esfera pública.
“Mais uma vez, sujeito e experiência reaparecem” (23).
No registro da experiência, se reconhece um regime de verdade e uma fidelidade ao ocorrido.
Surge então a questão de saber como experiência e relato podem ser relacionados. A experiência se
dissolve ou se conserva no relato? Que relato da experiência tem condições de superar a contradição
entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? É possível relembrar uma experiência? Ou o
que se relembra é apenas a lembrança previamente posta em discurso, e assim apenas uma sucessão
de relatos incapazes de recuperar a experiência? Qual é a garantia da primeira pessoa para captar
um sentido da experiência?
Essas perguntas são atuais no contexto pós-ditatorial na Argentina, quando o testemunho se
converteu num relato de grande impacto para além do cenário judiciário, atingindo a dimensão
cultural e ideológica. É seus impactos nesses últimos campos que a autora vai buscar respostas a
essas perguntas.
Narração da experiência
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“A narração da experiência está unida ao corpo e a voz, a uma presença real do sujeito na cena
do passado” (24).
Não há testemunho sem experiência, mas também não há experiência sem narração 3. Isso se
deve sobretudo à relação entre narração e temporalidade: “A narração inscreve a experiência numa
temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do
tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade,
que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.
Para tratar da questão da narrativa e experiência, a autora retoma as teses de Benjamin.
Para Sarlo, o apogeu do testemunho é em si mesmo uma refutação daquilo que Benjamin e
outros consideravam definitivo nas primeiras décadas do século XX, isto é, o esgotamento do relato
devido ao esgotamento da experiência. “É inegável que Benjamin se equivocava quanto à escassez
de testemunhos, justamente porque a guerra de 1914-8 marca o começo do testemunho de massas”
(25).
No entanto, a autora considera importante analisar o núcleo teórico do pensamento
benjaminiano. A autora indica uma aporia própria das teses de Benjamin a partir de duas linhas de
força:
Por um lado, Benjamin nos leva a afirmar a impossibilidade do relato da experiência na
modernidade e, especialmente, nas épocas posteriores ao choque da Primeira Guerra. Por outro
lado, sua filosofia da história “é uma reivindicação da memória como instância reconstituidora do
passado” (p.28). Este último ponto significa de modo mais amplo que o historiador não reconstitui
os fatos do passado (isso equivaleria a uma filosofia positivista da história), mas sim os “relembra”,
dando-lhes dessa forma seu caráter de passado presente. Contra a reificação do passado em “fatos”
operada pela visão positivista, Benjamin se rebela com o seu “gesto romântico-messiânico da
redenção do passado pela memória, que devolveria ao passado a subjetividade: a história como
memória da história, isto é, como dimensão temporal subjetiva” (28).
Ainda assim, permanece a dificuldade de se construir uma experiência numa época (a
modernidade) que erodiu sua própria possibilidade e que, ao fazê-lo, também erodiu as forças do
relato. O pensamento de Benjamin se move entre um extremo e seu oposto, e essa aporia não se
resolve.
“Poder-se-ia dizer que as aporias da relação entre história e memória já se esboçam quase
totalmente nesses textos” (29).
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Aqui vale a pena relembrar a distinção benjaminiana entre vivência e experiência
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A autora discute a trajetória da subjetividade nas últimas décadas. O estruturalismo triunfante
por muitos anos anunciou a “morte do sujeito”. Há duas décadas, porém, produziu-se no campo dos
estudos da memória “um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os
anos anteriores. Abriu-se um novo capítulo, que poderia se chamar ‘O sujeito ressuscitado’” (p.30).
Antes de considerar essa ressureição, a autora apresenta os argumentos que decretaram sua
morte, principalmente a partir de Paul de Man4 e Derrida5.
Paul de Man elaborou uma crítica radical à própria possibilidade de se equiparar o eu e um
relato, seu autor e a experiência vivida. (Uma refutação clara do “pacto autobiográfico” de
Lejeune). Man nega a própria ideia de gênero autobiográfico. O que esses textos produzem não é
mais que a ilusão de uma vida como referência, a ilusão de que existe um sujeito unificado no
tempo. Para ele, não há sujeito exterior ao texto que consiga sustentar essa ficção de unidade
experiencial e temporal. As autobiografias seriam assim indiferentes da ficção em primeira pessoa.
Man define a autobiografia com a figura da prosopopeia (o tropo que outorga a palavra a um morto,
a um ausente, etc). Nada resta de autenticidade de uma experiência que se articula assim. “A voz da
autobiografia é a de um tropo que faz as vezes de um sujeito que narra, mas sem poder garantir a
identidade entre sujeito e tropo” (31). Por conseguinte, sua máscara não está ligada a nenhum pacto
referencial. “A crítica de Paul de Man à autobiografia é provavelmente o ponto mais alto do
desconstrucionismo literário, que ainda hoje é uma linha hegemônica” (32). Caso se queira avançar,
é preciso responder a essa crítica radical.
Derrida apresentou críticas sobre a autobiografia que tem fortes afinidades com o texto de Paul
de Man. “Em sua crítica, as bases filosóficas de um testemunho autobiográfico são impossíveis.
Derrida nega que se possa construir um saber sobre a experiência, porque não sabemos o que é a
experiência” (32). O que se manifesta na autobiografia como identidade de um sujeito com seus
enunciados só é sustentado pela assinatura. Não há fundamento exterior ao círculo assinatura-texto
e nada nessa dupla tem condições de asseverar que se diz uma verdade.
4
Paul de Man, Autobiography as de-facement, 1979
5
Jacques Derrida, Otobiographies: L´Enseignement de Nietzsche et la politique du nom propre, 1984. Em inglês saiu
com o título: The ear of the other.
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mortos, mas porque sabe de antemão que esse lugar não lhe corresponde” (34). Levi fala
transmitindo uma matéria-prima, porque quem deveria ter sido o sujeito em primeira pessoa do
testemunho está ausente, um morto do qual não existe representação vicária.
“Em suma, não se pode representar tudo o que a experiência foi para o sujeito, pois se trata de
uma ‘matéria-prima’ em que o sujeito-testemunha é menos importante que os efeitos morais de seu
discurso; Não é o sujeito que se restaura a si mesmo no testemunho do campo, mas é uma dimensão
coletiva que, por oposição e imperativo moral, se desprende do que o testemunho transmite” (36).
Sarlo debate agora com a maneira como Ricoeur apresentou a questão dos testemunhos de
eventos-limites enquanto a própria crise do conceito de testemunho. Para Ricoeur, trata-se de uma
exceção sobre a qual é complicado ou impróprio exercer o método historiográfico, pois se tratam de
experiências extraordinárias. “Mas se Ricoeur está certo, sua advertência sobre os testemunhos do
Holocausto como caso-limite permitiria também pensar para dentro dos limites” (37). Nesse
sentido, a crítica do sujeito e de sua verdade, mesmo quando não se seguem as conclusões radicais
de Man e Derrida, é necessária.
“O testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata sua
experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos de intenção
referencial, alegando a verdade da experiência, quando não a do sofrimento, que é justamente a que
deve ser examinada. Existe aqui um problema” (38).
3. A retórica testemunhal
O modo realista-romântico
O tom da época atual, como descreveram Susan Sontag e Annette Wieviorka, é de que o relato
individual tende muitas vezes a ocupar o lugar da análise.
A pontencialidade explicativa da intriga reside muitas vezes em que, para dar alguma
inteligibilidade (pouco importa quão problemática) aos fatos reconstituídos, deve manter um
controle sobre o detalhe.
“Sem dúvida, a verdade está no detalhe. Mas, se não submetido à crítica, o detalhe afeta a
intriga por sua abundância realista, isto é, por seu aspecto verossímil mas não necessariamente
verdadeiro” (52). Além disso, o detalhe reforça o tom de verdade íntima do relato. O efeito de
verdade do relato memorial depende dos detalhes, inclusive de sua acumulação e repetição.
No entanto, adverte Sarlo: “Nenhuma soma de detalhes consegue evitar que uma história fique
restrita às interrogações que lhe deram origem” (53).
“O modo a que chamei de realista-romântico se adapta bem a essas características da narração
testemunhal que justamente por estarem respaldadas por uma subjetividade que narra sua
experiência, dão a impressão de colocá-la além do exame” (55).
A qualidade romântica tem a ver com duas características: 1) o fato de centrar-se na primeira
pessoa ou numa terceira pessoa apresentada pelo discurso indireto livre, que confere ao narrador a
perspectiva de uma primeira pessoa; e 2) os textos de inspiração memorialística sobre as décadas de
1960 e 1970 se referem à juventude de seus protagonistas.
A qualidade realista sustenta que “a acumulação de peripécias produz o saber procurado e que
esse saber poderia ter um significado geral” (56). Assim, reconstituir o passado através de
testemunhos de inflexão autobiográfica implica que o sujeito que narra se aproxime de uma verdade
que, até o próprio momento da narração, ele não conhecia totalmente.
As ideias e os fatos
Essa dualidade de temporalidades fica claro no caso dos relatos testemunhais argentinos sobre
as décadas de 1960 e 1970. Naquela época existia uma forte carga ideológica, tanto na esquerda
como na direita. Pois bem: quanto do peso e da reverberação das ideias restou nas narrações
testemunhais? Quanto subsiste desse teor ideológico da vida política nas narrações da
subjetividade? “Ou, caso se prefira, qual é o gênero histórico mais afim com a reconstituição de
uma época como aquela?” (65).
Reitera que não se trata de discutir os direitos da expressão da subjetividade, mas sim de dizer
que essa subjetividade é histórica.
4. Experiência e argumentação
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Paolo Rossi. O passado, a memória, o esquecimento.
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epistemológico que não surge dela própria, mas das regras advindas da história ou das ciências
sociais. Eles buscam assim elaborar mais um conhecimento do que um testemunho.
Emílio Ípola – “La bemba” – artigo escrito em 1978, quando o autor saiu da prisão (após quase
dois anos). Trata-se de um estudo de comunicação social (La bemba pode ser traduzido por ruído ou
rumor, discursos fragmentados). O autor utiliza essa categoria para discutir as condições de
comunicabilidade no interior de um sistema prisional. A sua análise teórica predomina sobre a
experiência pessoal, o que pode ser notado inclusive na disposição física do texto: a análise teórica
no corpo, e as experiências pessoais somente nas notas de rodapé.
Pilar Calveiro – Poder y desaparición – o livro é a síntese de sua tese de doutorado apresentada
no México. Calveira foi uma prisioneira que ficou desaparecida durante um ano e meio no final dos
anos 1970. A autora também abre mão do relato em primeira pessoa e testemunhal em favor de uma
análise interpretativa. E nesse mesmo movimento, seu livro adquire um caráter diferenciado, pois se
sustenta não pela experiência vivida reivindicada como verdadeira, mas sim pela análise da
experiência dos outros. Nesse caso, “A verdade do texto se desvincula da experiência direta de
quem o escreve [...]. Por isso, o texto não exerce uma pressão moral particular sobre o leitor, que
sabe que Calveiro foi uma presa-desaparecida, mas sobre aquele de quem não se exige uma crença
baseada em sua própria história, e sim nas histórias de outros, que ela mesma retoma como fonte e,
portanto, submete a operações interpretativas” (83). Sua obra demonstra a diferença: o texto em
primeira pessoa oferece um conhecimento que, de certo modo, é indiscutível (tanto pelo
imediatismo como pelo princípio moral que o movimenta). O texto em terceira pessoa, ao contrário,
coloca em discussão esse conhecimento ao se colocar uma distância analítica com respeito aos
fatos; sendo assim, pode-se concordar ou discordar de Calveiro. A autora rejeita o discurso
autobiográfico em nome de um discurso mais analítico, que se sustenta a partir de algo que é
universal e não em circunstâncias terríveis. O leitor teria assim mais liberdade de leitura (intelectual
e moral) no terreno da terceira pessoa do que na primeira. “Nessa cessão da primeira pessoa,
Calveiro sacrifica não apenas, como se poderia pensar, a riqueza detalhada e concreta da
experiência, mas sua autoridade imperativa, seu caráter, afinal, intratável” (89).
5. Pós-memória, reconstituições
Nesta primeira parte, Sarlo discute a noção de “pós-memória” apresentada por James Young e
Marianne Hirsch. Trata-se fundamentalmente da “lembrança” que não vem de uma experiência
direta, mas sim da experiência dos outros. Não é aquela memória como prolongamento da nação,
cultura, etnia, que mobiliza mitos, heróis fundadores e monumentos; trata-se de uma dimensão mais
específica, íntima, subjetiva.
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“Como pós-memória se designaria a memória da geração seguinte àquela que sofreu ou
protagonizou os acontecimentos (quer dizer: a pós-memória seria a ‘memória’ dos filhos sobre a
memória dos pais)” (91).
Para os autores, o traço diferencial da memória reside em duas características principais: o
caráter vicário e mediado (Young fala em “hipermediação”); e seu caráter fragmentário, que
envolve dois níveis de subjetividade.
“A pós-memória, que tem a memória em seu centro, seria a reconstituição memorialística da
memória de fatos recentes não vividos pelo sujeito que os reconstitui e, por isso, Young a qualifica
como ‘vicária’” (93).
Porém, Sarlo lembra que toda experiência do passado é vicária (93), toda narração do passado é
uma representação, algo dito no lugar de um fato. Portanto, o vicário não pode ser o específico da
pós-memória.
Tampouco a mediação (ou hipermediação) é uma qualidade específica. Além da presença
incontornável e cada vez maior dos meios de comunicação de massa e a distância, ocorre que “a
construção de um passado por meio de relatos e representações que lhe foram contemporâneos é
uma modalidade da história, não uma estratégia original da memória” (94). Portanto, se se quer dar
o nome de “pós-memória” à história do desaparecimento do pai reconstituída pelo filho, esse nome
só se justificaria por duas razões: o envolvimento pessoal do sujeito em sua dimensão psicológica e
o caráter não “profissional” de sua atividade. Pois em princípio ela não é nem mais nem menos
fragmentária do que a reconstituição realizada por terceiros, se diferenciando apenas pelo interesse
subjetivo e moral vivido em termos pessoais.
Sarlo se pergunta sobre a real necessidade de tal conceito. “Não tenho nada contra os
neologismos criados por aposição do prefixo pós; pergunto apenas se correspondem a uma
necessidade conceitual ou se seguem um impulso de inflação teórica” (95). Todavia, “os estudos de
memória (nos últimos anos desenvolvidos em quantidades industriais, sobre todos os temas e
identidades) citam a noção de ‘pós-memória’ (sobretudo tal como Hirsch a apresenta) como se
possuísse alguma especificidade heurística além do fato de que se trata do registro, em termos
memorialísticos, das experiências e da vida de outros” (96).
Abandonando-se a ideia de uma história totalizante, toda história é fragmentária, assim como a
memória. Por isso, “ou se deseja dizer mais que isso, ou simplesmente se está jogando sobre a pós-
memória aquilo que se aceita universalmente desde o momento em que entraram em crise as
grandes sínteses e as grandes totalizações: desde meados do século XX tudo é fragmentário” (98).
Por fim, mais uma crítica ao conceito: “Os discursos da pós-memória renunciam à totalização
não só porque nenhuma totalização é possível, mas porque eles são destinados essencialmente ao
fragmento. É difícil concordar com uma definição tão totalizante como taxativa, já que, depois da
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crise e da crítica das filosofias da história, a todo discurso não autoritário são atribuídos esses traços
e, por conseguinte, o que lhe é atribuídos como específico da pós-memória pertence a um universo
generalizado. Se há diferenças, devem estar em outra parte” (100).
Após uma longa analise sobre o filme Los rubios, de Albertina Carri, Sarlo conclui:
“Não há, então uma ‘pós-memória’, e sim formas da memória que não podem ser atribuídas
diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e memória dos que são
seus filhos” (112). Evidentemente, ter vivido um acontecimento e constituí-lo por meio de
informações não é a mesma coisa; mas todo passado seria abordável somente por um exercício de
pós-memória (tornando inviável o conceito) a menos que se reserve o termo exclusivamente para o
relato da primeira geração depois dos fatos.
6. Além da experiência
“Contemporânea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 a ‘guinada linguística’ da história, ou
muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, produziu-se uma guinada subjetiva: ‘trata-se, de
certo modo, de uma democratização dos atores da história, que dá a palavra aos excluídos, aos sem-
título, aos sem-voz’”(116).
O que o livro analisou pode ser explicado por essa guinada teórica e ideológica, embora tal
explicação não esgote o potencial cultural dos relatos de memória.
Problematizou-se a questão da primeira pessoa. “A primeira pessoa é indispensável para restituir
aquilo que foi apagado pela violência do terrorismo de Estado; e, ao mesmo tempo, não é possível
ignorar as interrogações que se abrem quando ela oferece seu testemunho daquilo que, de outro
modo, nunca se saberia, e também de muitas coisas em que ela, a primeira pessoa, não pode
demonstrar a mesma autoridade” (116-117). Isso porque de todas as maneiras com que se pode
compor uma história, os relatos em primeira pessoa são os que demandam maior confiança e, ao
mesmo tempo, são os que se prestam menos abertamente à comparação com outras fontes.
Ocorre portanto um duplo movimento, contraditório: o potencial da primeira pessoa em
reconstituir uma experiência, de um lado, e as dúvidas que ela gera em relação ao problema da
verdade dessa experiência. “Já não é possível de prescindir de seu registro, mas também não se
pode deixar de problematiza-lo. A própria ideia de verdade é um problema” (117).