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AULA 12

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. de Rosa Freire d
´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

1. Tempo passado

“O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história,


porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma
reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça,
de subjetividade)” (p.9).
Sempre há algo de inabordável no passado. Ele não é convocado exclusivamente por um ato de
vontade, tampouco é sempre um momento libertador da lembrança, mas um advento e uma captura
do presente. A lembrança acomete mesmo quando não é convocada e, além disso, nunca está
completa.
Por meio da lembrança o passado se faz presente; além disso, o tempo próprio da lembrança é o
presente, isto é, o presente é o único tempo apropriado para se lembrar.
Para Sarlo, vigora atualmente um lugar-comum de que o passado se enfraquece diante do
“instante”. A autora refuta essa visão, lembrando que as últimas décadas também foram as décadas
de museificação, do passado-espetáculo, das heritages, da “mania preservacionista”1, do
surpreendente renascer do romance histórico, dos filmes, das histórias da vida privada, etc. Charles
Maier chamou esse fenômeno de “auto-arqueologização”2 das sociedades ocidentais.
Esse “neo-historicismo” indica que as operações com a história entraram no mercado simbólico
do capitalismo tardio “com tanta eficiência como quando foram objeto privilegiado das instituições
escolares desde o fim do século XIX” (p.11).
Outras linhas de força residem no interior do próprio campo historiográfico nas últimas décadas.
De um lado, a história social e cultural deslocou seu estudo para as margens das sociedades
modernas, alterando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos ao destacar os pormenores
cotidianos, numa poética do detalhe e do concreto. Por outro lado, a história de grande circulação,
não acadêmica, também adota um foco próximo dos atores acreditando assim poder reconstituir
uma vida de forma “verdadeira”. Tudo isso acompanhado de uma variação nas fontes: o lugar cada
vez mais importante da história oral, e as histórias do passado mais recente, apoiadas quase
inteiramente em operações de memória, e que atravessa várias disciplinas e se estende à esfera
pública e à política.
1
Expressão de Raphael Samuel, Theatres of memory.
2
Charles Maier, The unmasterable past: History, Holocaust and German national identity.
2
Em toda “visão de passado” que se constrói discursivamente, estão presentes determinados
aspectos ideológicos que evidenciam um continuum significativo e interpretável do tempo. Esses
discursos (narrações) do passado implicam uma concepção do social e introduzem um tom
dominante nas “visões de passado”.
No caso das narrações históricas de grande circulação, está presente “um fechado círculo
hermenêutico [que] une a reconstituição dos fatos à interpretação de seus sentidos e garante visões
globais, aquelas que, na ambição dos grandes historiadores do século XIX, foram as sínteses hoje
consideradas ora impossíveis, ora indesejáveis e, em geral, conceitualmente errôneas” (p.12-13).
Essas histórias não acadêmicas pressupõem sempre uma síntese, e são sensíveis ao que a
opinião pública presente demanda em relação ao passado. Ao contrário, nas histórias escritas por e
para especialistas, as regras do método da disciplina histórica supervisionam os modos de
reconstituição do passado. Nelas também a discussão das modalidades reconstitutivas é explícita.
Essa diferença não torna as histórias não acadêmicas pura e simplesmente falsas, mas sim que está
mais ligada ao imaginário social contemporâneo, “cujas pressões ela recebe e aceita mais como
vantagem do que como limite” (13).
Nas histórias de massa, um princípio teleológico garante origem e causalidade a qualquer
fragmento do passado, algo que a história acadêmica considera a partir de princípios múltiplos.
“Essa redução do campo das hipóteses sustenta o interesse público e produz uma nitidez
argumentativa e narrativa que falta à história acadêmica” (14).
“As modalidades não acadêmicas de texto encaram a investida do passado de modo menos
regulado pelo ofício e pelo método, em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas,
morais ou políticas” (14). Esse é o estilo a que pertencem as reconstituições baseadas em fontes
testemunhais. Nelas, “ao contrário da boa história acadêmica, não oferecem um sistema de
hipóteses, mas certezas” (15).
Nesse concorrência, as modalidades comerciais sempre tendem a derrotar a história acadêmica,
por motivos de método e também pelas próprias restrições formais e institucionais desta última, que
a tornam mais preocupada com regras internas do que a busca de legitimação externa, sob risco de
gerar a desconfiança de seus pares. “As histórias de grande circulação, em contrapartida,
reconhecem na repercussão pública de mercado sua legitimidade” (15).

A guinada subjetiva
Há décadas, tem crescido o interesse dos historiadores e cientistas sociais ao detalhe
excepcional, àquilo que se opõe à normalização e as subjetividades que se distinguem por uma
anomalia (o louco, o criminoso, a bruxa, etc.). Também se acentuou o interesse pelos sujeitos
“normais”. Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, foi pioneiro ao destacar os desvios da
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história, as “tretas do fraco” que por muito tempo ficaram invisíveis para uma “visão do passado”
dominante que não tinha interesse pela inventividade subalterna.
As histórias da vida cotidiana tem atingido um público para além do espaço acadêmico,
justamente pelo interesse “romanesco” de seus objetos. Nelas, “o passado volta como quadro de
costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que
já não se encontram no presente” (17).
Os sujeitos marginais, há muito ignorados em outros modos de narração do passado, demandam
“novas exigências de método e tendem à escuta sistemática dos ‘discursos de memória’: diários,
cartas, conselhos, orações” (17).
Sarlo também cita a obra The uses of literacy (1957), estudo de sociologia da cultura pioneira de
Richard Hoggart. Neste livro, Hoggart constrói uma nova forma de abordar um objeto que ainda
não estabelecera de vez sua legitimidade (cultura cotidiana da classe operária inglesa) – trabalhando
com suas lembranças e experiências de infância e adolescência, utilizando a primeira pessoa. Em
suma, o autor sustenta seu projeto desde uma perspectiva autobiográfica, embora não tenha se
ocupado em fundamentar essa abordagem subjetiva.
Essas linhas de força convergem numa viragem com relação à legitimidade das narrações do
passado:
“Tomando-se em conjunto essas inovações, a atual tendência acadêmica e do mercado de bens
simbólicos que se propõe a reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da
experiência, a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma
dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do
presente, não são surpreendentes. São passos de um programa que se torna explícito, porque há
condições ideológicas que o sustentam. Contemporânea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 de
‘guinada linguística’ ou muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, impôs-se a guinada
subjetiva” (p.18, grifos da autora).
Essa guinada subjetiva acompanha também as recentes renovações no campo da sociologia, em
que a identidade dos sujeitos voltou a tomar o lugar ocupado pelas estruturas. “Restaurou-se a
razão do sujeito, que foi, há décadas, mera ‘ideologia’ ou ‘falsa consciência’” (p.19, grifos da
autora). Por conseguinte, a história oral e o testemunho restituíram a confiança nessa primeira
pessoa que narra sua vida para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade ferida.

Tema e objetivo do livro:


“Este livro trata do passado e da memória das últimas décadas. Reage não aos usos jurídicos e
morais do testemunho, mas a seus outros usos públicos. Analisa a transformação do testemunho em
um ícone da Verdade ou no recurso mais importante para a reconstituição do passado; discute a
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primeira pessoa como forma privilegiada diante de discursos do quais ela está ausente ou deslocada.
A confiança no imediatismo da voz e do corpo favorece o testemunho. O que me proponho é
examinar as razões dessa confiança” (p.19).
Privilegia o caso da ditadura militar na Argentina. Na transição democrática, a questão da
memória exerceu papel crucial.
“Vivemos uma época de forte subjetividade e, nesse sentido, as prerrogativas do testemunho se
apoiam na visibilidade que ‘o pessoal’ adquiriu como lugar não simplesmente de intimidade, mas de
manifestação pública” (20-21).
Reitera que seu propósito é abordar a primeira pessoa do testemunho e as formas do passado
que daí resultam quando o testemunho é a única fonte (ou quando se considera como a fonte mais
confiável). Não se trata apenas de analisar uma forma de discurso, mas de sua produção e das
condições culturais e políticas que o tornam confiável e fidedigno.
Conclui que “é mais importante entender do que lembrar, embora para entender também seja
preciso lembrar” (22).

2. Crítica do testemunho: sujeito e experiência

“Os combates pela história também são chamados agora de combates pela identidade” (p.23).
Nessa mutação do vocabulário transparece a primazia do sujeito e o seu papel na esfera pública.
“Mais uma vez, sujeito e experiência reaparecem” (23).
No registro da experiência, se reconhece um regime de verdade e uma fidelidade ao ocorrido.
Surge então a questão de saber como experiência e relato podem ser relacionados. A experiência se
dissolve ou se conserva no relato? Que relato da experiência tem condições de superar a contradição
entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? É possível relembrar uma experiência? Ou o
que se relembra é apenas a lembrança previamente posta em discurso, e assim apenas uma sucessão
de relatos incapazes de recuperar a experiência? Qual é a garantia da primeira pessoa para captar
um sentido da experiência?
Essas perguntas são atuais no contexto pós-ditatorial na Argentina, quando o testemunho se
converteu num relato de grande impacto para além do cenário judiciário, atingindo a dimensão
cultural e ideológica. É seus impactos nesses últimos campos que a autora vai buscar respostas a
essas perguntas.

Narração da experiência
5
“A narração da experiência está unida ao corpo e a voz, a uma presença real do sujeito na cena
do passado” (24).
Não há testemunho sem experiência, mas também não há experiência sem narração 3. Isso se
deve sobretudo à relação entre narração e temporalidade: “A narração inscreve a experiência numa
temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do
tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade,
que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.
Para tratar da questão da narrativa e experiência, a autora retoma as teses de Benjamin.
Para Sarlo, o apogeu do testemunho é em si mesmo uma refutação daquilo que Benjamin e
outros consideravam definitivo nas primeiras décadas do século XX, isto é, o esgotamento do relato
devido ao esgotamento da experiência. “É inegável que Benjamin se equivocava quanto à escassez
de testemunhos, justamente porque a guerra de 1914-8 marca o começo do testemunho de massas”
(25).
No entanto, a autora considera importante analisar o núcleo teórico do pensamento
benjaminiano. A autora indica uma aporia própria das teses de Benjamin a partir de duas linhas de
força:
Por um lado, Benjamin nos leva a afirmar a impossibilidade do relato da experiência na
modernidade e, especialmente, nas épocas posteriores ao choque da Primeira Guerra. Por outro
lado, sua filosofia da história “é uma reivindicação da memória como instância reconstituidora do
passado” (p.28). Este último ponto significa de modo mais amplo que o historiador não reconstitui
os fatos do passado (isso equivaleria a uma filosofia positivista da história), mas sim os “relembra”,
dando-lhes dessa forma seu caráter de passado presente. Contra a reificação do passado em “fatos”
operada pela visão positivista, Benjamin se rebela com o seu “gesto romântico-messiânico da
redenção do passado pela memória, que devolveria ao passado a subjetividade: a história como
memória da história, isto é, como dimensão temporal subjetiva” (28).
Ainda assim, permanece a dificuldade de se construir uma experiência numa época (a
modernidade) que erodiu sua própria possibilidade e que, ao fazê-lo, também erodiu as forças do
relato. O pensamento de Benjamin se move entre um extremo e seu oposto, e essa aporia não se
resolve.
“Poder-se-ia dizer que as aporias da relação entre história e memória já se esboçam quase
totalmente nesses textos” (29).

Morte e ressureição do sujeito

3
Aqui vale a pena relembrar a distinção benjaminiana entre vivência e experiência
6
A autora discute a trajetória da subjetividade nas últimas décadas. O estruturalismo triunfante
por muitos anos anunciou a “morte do sujeito”. Há duas décadas, porém, produziu-se no campo dos
estudos da memória “um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os
anos anteriores. Abriu-se um novo capítulo, que poderia se chamar ‘O sujeito ressuscitado’” (p.30).
Antes de considerar essa ressureição, a autora apresenta os argumentos que decretaram sua
morte, principalmente a partir de Paul de Man4 e Derrida5.
Paul de Man elaborou uma crítica radical à própria possibilidade de se equiparar o eu e um
relato, seu autor e a experiência vivida. (Uma refutação clara do “pacto autobiográfico” de
Lejeune). Man nega a própria ideia de gênero autobiográfico. O que esses textos produzem não é
mais que a ilusão de uma vida como referência, a ilusão de que existe um sujeito unificado no
tempo. Para ele, não há sujeito exterior ao texto que consiga sustentar essa ficção de unidade
experiencial e temporal. As autobiografias seriam assim indiferentes da ficção em primeira pessoa.
Man define a autobiografia com a figura da prosopopeia (o tropo que outorga a palavra a um morto,
a um ausente, etc). Nada resta de autenticidade de uma experiência que se articula assim. “A voz da
autobiografia é a de um tropo que faz as vezes de um sujeito que narra, mas sem poder garantir a
identidade entre sujeito e tropo” (31). Por conseguinte, sua máscara não está ligada a nenhum pacto
referencial. “A crítica de Paul de Man à autobiografia é provavelmente o ponto mais alto do
desconstrucionismo literário, que ainda hoje é uma linha hegemônica” (32). Caso se queira avançar,
é preciso responder a essa crítica radical.
Derrida apresentou críticas sobre a autobiografia que tem fortes afinidades com o texto de Paul
de Man. “Em sua crítica, as bases filosóficas de um testemunho autobiográfico são impossíveis.
Derrida nega que se possa construir um saber sobre a experiência, porque não sabemos o que é a
experiência” (32). O que se manifesta na autobiografia como identidade de um sujeito com seus
enunciados só é sustentado pela assinatura. Não há fundamento exterior ao círculo assinatura-texto
e nada nessa dupla tem condições de asseverar que se diz uma verdade.

“Quis dar ao leitor a matéria-prima da indignação”


A frase acima é de Primo Levi. Seu testemunho sobre Auschwitz é uma matéria a partir da qual
pode emergir um sentimento de caráter moral. No seu caso, não é possível colocar os mesmos
problemas de primeira pessoa que o desconstrucionismo submete na sua suspeita à centralidade do
sujeito. Levi não fala em busca de retomar uma unidade. Ele fala porque outros morreram, e em seu
lugar. O sujeito do testemunho do campo não está convencido de ser sujeito pleno do que vai
enunciar. “Pelo contrário, é um sujeito ferido, não porque pretenda ocupar vicariamente o lugar dos

4
Paul de Man, Autobiography as de-facement, 1979
5
Jacques Derrida, Otobiographies: L´Enseignement de Nietzsche et la politique du nom propre, 1984. Em inglês saiu
com o título: The ear of the other.
7
mortos, mas porque sabe de antemão que esse lugar não lhe corresponde” (34). Levi fala
transmitindo uma matéria-prima, porque quem deveria ter sido o sujeito em primeira pessoa do
testemunho está ausente, um morto do qual não existe representação vicária.
“Em suma, não se pode representar tudo o que a experiência foi para o sujeito, pois se trata de
uma ‘matéria-prima’ em que o sujeito-testemunha é menos importante que os efeitos morais de seu
discurso; Não é o sujeito que se restaura a si mesmo no testemunho do campo, mas é uma dimensão
coletiva que, por oposição e imperativo moral, se desprende do que o testemunho transmite” (36).
Sarlo debate agora com a maneira como Ricoeur apresentou a questão dos testemunhos de
eventos-limites enquanto a própria crise do conceito de testemunho. Para Ricoeur, trata-se de uma
exceção sobre a qual é complicado ou impróprio exercer o método historiográfico, pois se tratam de
experiências extraordinárias. “Mas se Ricoeur está certo, sua advertência sobre os testemunhos do
Holocausto como caso-limite permitiria também pensar para dentro dos limites” (37). Nesse
sentido, a crítica do sujeito e de sua verdade, mesmo quando não se seguem as conclusões radicais
de Man e Derrida, é necessária.
“O testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata sua
experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos de intenção
referencial, alegando a verdade da experiência, quando não a do sofrimento, que é justamente a que
deve ser examinada. Existe aqui um problema” (38).

Diante de um problema, o recurso ao otimismo teórico

A atualidade mostra-se aberta a aceitar a construção da experiência como relato em primeira


pessoa. Demonstra-o a grande proliferação das narrativas chamadas “não-ficcionais”: testemunho,
histórias de vida, entrevista, autobiografia, memórias, relatos identitários. “A dimensão
intensamente subjetiva (um verdadeiro renascimento do sujeito, que nos anos 1960 e 1970 se
imaginou estar morto) caracteriza o presente” (38).
Atualmente, e ao contrário do que asseverava Benjamin, considera-se possível a restauração de
um relato significativo da experiência. A memória e os relatos de memória aparecem então como
uma “cura” da alienação e da coisificação. E a questão da verdade é posta assim em outros termos:
“Se já não é possível sustentar uma Verdade, florescem em contrapartida verdades subjetivas que
afirmam saber aquilo que, até três décadas atrás, se considerava oculto pela ideologia ou submerso
em processos pouco acessíveis à simples introspecção. Não há Verdade, mas os sujeitos,
paradoxalmente, tornaram-se cognoscíveis” (39).
Essa pulverização da noção de verdade também está ligada à questão da subjetividade. O
surpreendente retorno do sujeito não significa a restauração daquele Sujeito anterior ao século XX,
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mas igualmente sujeitos múltiplos. Convivem agora um desconstrucionismo filosófico brando e um
otimismo identitário.
Essa situação é sintetizada por Sarlo:
“Seja como for, as contradições teóricas admitem ao mesmo tempo a indizibilidade de uma
Verdade e a verdade identitária dos discursos de experiência criam problemas não só para a
filosofia, mas para a história. E é isto que agora me interessa: o que garante a memória e a primeira
pessoa como captação de um sentido da experiência?” (40).
Quando ninguém está disposto a aceitar a Verdade de uma história, todos parecem mais disposto
à crença nas verdades de história no plural.

A imaginação faz uma visita


Reflete agora sobre o papel da imaginação na elaboração da experiência. Utiliza a imagem de
Hannah Arendt: “Pensar com uma mente aberta significa treinar a imaginação para que ela faça uma
visita” (41). Na falta da imaginação, a experiência perde sua dizibilidade. A imaginação “faz uma
visita” quando opera o distanciamento com o que está mais próximo, reflexivamente. Isso vale
também para o passado.
“As narrativas de memória, os testemunhos e os textos de forte inflexão autobiográfica são
espreitados pelo perigo de uma imaginação que se instale ‘em casa’ com firmeza demais e o
reivindique como uma das conquistas da tarefa da memória: recuperar o que foi perdido pela
violência do poder, desejo cuja inteira legitimidade moral e psicológica não é suficiente para
fundamentar uma legitimidade intelectual igualmente indiscutível” (42).
O valor de verdade do testemunho pretende se sustentar no imediatismo da experiência; e sua
capacidade de contribuir para a reparação do dano sofrido a localiza naquela dimensão redentora do
passado, que Benjamin caracterizou como a força messiânica do passado.
Para a história, essa ascensão do testemunho coloca um desafio. É fato que a história se
aproximou e aprendeu a interrogar a memória (expansão das histórias orais e das micro-histórias).
Contudo, é preciso problematizar a extensão dessa hegemonia moral reivindicada pelo discurso
memorial. “Estendido pelo uso a outros objetos históricos, o ‘dever de memória’ induz uma relação
afetiva, moral, com o passado, pouco compatível com o distanciamento e a busca de inteligibilidade
que são o ofício do historiador” (43).
Já do lado da memória, “parece-me descobrir a ausência de possibilidades de discussão e de
confrontação crítica, traços que definiriam a tendência a impor uma visão do passado” (43). E
ainda: “Não se deve basear na memória uma epistemologia ingênua cujas pretensões seriam
rejeitadas em qualquer outro caso. Não há equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de
9
uma verdade da lembrança; tampouco o dever de memória obriga a aceitar essa equivalência” (44).
O papel da imaginação desestabiliza o conceito simples de verdade na dimensão biográfica.

3. A retórica testemunhal

Na Argentina, a transição democrática ocorreu junto à proliferação dos testemunhos, exigidos


pelos processos judiciais e também na mídia. A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de
Pessoas em 1983-1984 resultou no livro Nunca más, que levou ao julgamento dos militares da
ditadura.
Nesse contexto, “a indispensável narração dos fatos não foi recebida com desconfiança sobre as
possibilidades de reconstituir o passado, salvo pelos criminosos e seus representantes” (46). Sem
dúvida teria sido “monstruoso” aplicar os princípios de dúvida metodológica a esses discursos, já
que as vítimas falavam pela primeira vez e o que contavam transformava-se em “matéria-prima” da
indignação pública.
“Pois bem, esses discursos testemunhais, sejam quais forem, são discursos e não deveriam ficar
confinados numa cristalização inabordável. Sobretudo porque, em paralelo e construindo sentidos
com os testemunhos sobre os crimes das ditaduras, emergem outros fios de narrações que não estão
protegidas pela mesma intangibilidade nem pelo direito dos que sofreram” (47).
Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia estabelecer
uma ordem presidida pelo discurso testemunhal, com peso superior a outros documentos.

Uma utopia: não esquecer nada


“Da perspectiva da disciplina história, em compensação, já não se pretende reconduzir os
acontecimentos a uma origem; ao renunciar a uma teleologia simples, a história renuncia, ao mesmo
tempo, a um único princípio de inteligibilidade forte e, sobretudo, apropriado à intervenção na
esfera pública. [...] Justamente o discurso da memória e as narrações em primeira pessoa se movem
pelo impulso de bloquear os sentidos que escapam; não só eles se articulam contra o esquecimento,
mas também lutam por um significado que unifique a interpretação” (50).
No limite está a utopia de um relato completo. A tendência ao detalhe que marca o discurso
memorial cria a ilusão de que o concreto da experiência passada foi capturada no discurso. “Muito
mais que a história, o discurso é concreto e pormenorizado, por causa de sua ancoragem na
experiência recuperada a partir do singular” (50). Nesse sentido, “o primado do detalhe é um modo
realista-romântico de fortalecimento da credibilidade do narrador e da veracidade de sua narração”
(51).
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O modo realista-romântico
O tom da época atual, como descreveram Susan Sontag e Annette Wieviorka, é de que o relato
individual tende muitas vezes a ocupar o lugar da análise.
A pontencialidade explicativa da intriga reside muitas vezes em que, para dar alguma
inteligibilidade (pouco importa quão problemática) aos fatos reconstituídos, deve manter um
controle sobre o detalhe.
“Sem dúvida, a verdade está no detalhe. Mas, se não submetido à crítica, o detalhe afeta a
intriga por sua abundância realista, isto é, por seu aspecto verossímil mas não necessariamente
verdadeiro” (52). Além disso, o detalhe reforça o tom de verdade íntima do relato. O efeito de
verdade do relato memorial depende dos detalhes, inclusive de sua acumulação e repetição.
No entanto, adverte Sarlo: “Nenhuma soma de detalhes consegue evitar que uma história fique
restrita às interrogações que lhe deram origem” (53).
“O modo a que chamei de realista-romântico se adapta bem a essas características da narração
testemunhal que justamente por estarem respaldadas por uma subjetividade que narra sua
experiência, dão a impressão de colocá-la além do exame” (55).
A qualidade romântica tem a ver com duas características: 1) o fato de centrar-se na primeira
pessoa ou numa terceira pessoa apresentada pelo discurso indireto livre, que confere ao narrador a
perspectiva de uma primeira pessoa; e 2) os textos de inspiração memorialística sobre as décadas de
1960 e 1970 se referem à juventude de seus protagonistas.
A qualidade realista sustenta que “a acumulação de peripécias produz o saber procurado e que
esse saber poderia ter um significado geral” (56). Assim, reconstituir o passado através de
testemunhos de inflexão autobiográfica implica que o sujeito que narra se aproxime de uma verdade
que, até o próprio momento da narração, ele não conhecia totalmente.

O que foi o presente?


Nesta seção a autora aborda o problema do anacronismo nos relatos da memória e da história e a
relação desse problema com a verdade.
Com efeito, “todo ato de discorrer sobre o passado tem uma dimensão anacrônica” (57). Isso já
fora reconhecido por Benjamin, para quem o presente não só opera sobre a construção do passado,
mas que também é seu dever fazê-lo.
Mas a dimensão do problema varia em cada um dos discursos. A história simplesmente não
pode cultivar o anacronismo por escolha e sabe que não pode se acomodar nessa dupla
temporalidade de sua escrita e de seu objeto. “Isso a distingue das narrações testemunhais, em que o
11
presente da enunciação é a própria condição da rememoração; é sua matéria temporal, assim como o
passado é aquela matéria temporal que se quer recapturar (58).
Nesse sentido, “o testemunho pode se permitir o anacronismo” (58), em franca oposição ao
relato histórico. Isso exige não uma aceitação resignada do fato, uma vez que não seria possível
eliminá-lo; pelo contrário, “é preciso lembrar a qualidade anacrônica porque é impossível eliminá-
la” (59, grifos dela).
Esse anacronismo também nunca pode ser totalmente eliminado porque ele também é
constitutivo da experiência vivida, dos “fatos”. Reconhecer isso não implica, porém, que todo relato
do passado se entregue a essa heterogeneidade. Trata-se de conhecer melhor como a matéria em
questão era tecida temporalmente.
“Sem dúvida, não é um ideal de conhecimento renunciar à densidade de temporalidades
diferentes. Isso indicaria apenas um desejo de simplicidade que não é suficiente para recuperar o
passado num impossível ‘estado puro’” (60). Um exemplo: nas décadas de 1960 e 1970, inexista a
ideia de direitos humanos. E se é impossível e indesejável extirpá-la do presente, tampouco é
possível projetá-la intacta para o passado.
Outro ponto destacado por Sarlo é que o relato testemunhal existe também em meio a uma
massa de material escrito, contemporâneo aos fatos, que são fontes ricas e seria insensato deixar de
lado. Daí a necessidade de um maior diálogo com a história:
“Saber como pensavam os militantes em 1970, e não limitar-se a lembrança que agora eles têm
de como eram e agiam, não é uma pretensão reificante da subjetividade nem um plano para expulsá-
la da história. Significa, apenas, que a ‘verdade’ não resulta da submissão a uma perspectiva
memorialística que tem limites nem, muito menos, a suas operações táticas” (61).

As ideias e os fatos
Essa dualidade de temporalidades fica claro no caso dos relatos testemunhais argentinos sobre
as décadas de 1960 e 1970. Naquela época existia uma forte carga ideológica, tanto na esquerda
como na direita. Pois bem: quanto do peso e da reverberação das ideias restou nas narrações
testemunhais? Quanto subsiste desse teor ideológico da vida política nas narrações da
subjetividade? “Ou, caso se prefira, qual é o gênero histórico mais afim com a reconstituição de
uma época como aquela?” (65).
Reitera que não se trata de discutir os direitos da expressão da subjetividade, mas sim de dizer
que essa subjetividade é histórica.

Contra um mito da memória


12
Sarlo cita uma passagem de Paolo Rossi6 que vai ao cerne de seu argumento, em que se diz que
o passado é sempre reconstruído sobre a base de uma coerência imaginária. E esse passado
imaginado é um problema não só para a psicologia, mas também para a historiografia.
Para Sarlo, a narração dá sentido ao passado, mas apenas na medida em que, conforme assinalou
Arendt, a imaginação atua para provocar o distanciamento de seu imediatismo identitário. É pela
imaginação que se abrem as vias da subjetividade e de uma história sensível a ela, mas que se
distingue conceitual e metodologicamente de suas narrações.
“Os discursos da memória, tão impregnados de ideologias como os da história, não se submente,
como os da disciplina histórica, a um controle que ocorra numa esfera pública separada da
subjetividade” (67). O discurso testemunhal se sustenta numa reivindicação de sentido moral e
jurídica. Até aí tudo certo. “Mas, como isso se transforma numa interpretação da história (e deixa de
ser apenas um fato de memória), custa admitir que ela se mantenha alheia ao princípio crítico que se
exerce sobre a história” (67).
Por fim, conclui que quando uma narração memorialística concorre com a história e apoia sua
exigência nos privilégios de uma subjetividade que seria sua garantia, “ela se coloca, pelo exercício
de uma imaginária autenticidade testemunhal, numa espécie de limbo interpretativo”. (68). –
MEMORIALISMO – LIMBO INTERPRETATIVO.

4. Experiência e argumentação

Além do relato testemunhal, existem outras maneiras de se trabalhar a experiência. A autora


analisa neste capítulo 2 textos raros e profundamente dissonantes da massa testemunhal na
Argentina: La bemba, de Emílio de Ípola, e Poder y desaparicíón: Los campos de concentración en
Argentina, de Pilar Calveiro.
“Eles pressupõem leitores que buscam explicações não apoiadas apenas no pedido de verdade
do testemunho, nem no impacto moral das condições que colocaram alguém na situação de ser
testemunha ou vítima, nem na identificação. Pressupõem autores que não pensam que a experiência
confere diretamente uma intelecção dos elementos que a compõem, como se se tratasse de uma
espécie de dolorosa compensação do sofrimento” (69). Eles tentam buscar princípios explicativos
além da experiência, na imaginação sociológica ou histórica. Seus textos implicam um
distanciamento dos fatos, e não privilegiam a primeira pessoa do relato nem dão uma posição
especial à subjetividade daquele que o enuncia. Por fim, a experiência é submetida a um controle

6
Paolo Rossi. O passado, a memória, o esquecimento.
13
epistemológico que não surge dela própria, mas das regras advindas da história ou das ciências
sociais. Eles buscam assim elaborar mais um conhecimento do que um testemunho.
Emílio Ípola – “La bemba” – artigo escrito em 1978, quando o autor saiu da prisão (após quase
dois anos). Trata-se de um estudo de comunicação social (La bemba pode ser traduzido por ruído ou
rumor, discursos fragmentados). O autor utiliza essa categoria para discutir as condições de
comunicabilidade no interior de um sistema prisional. A sua análise teórica predomina sobre a
experiência pessoal, o que pode ser notado inclusive na disposição física do texto: a análise teórica
no corpo, e as experiências pessoais somente nas notas de rodapé.
Pilar Calveiro – Poder y desaparición – o livro é a síntese de sua tese de doutorado apresentada
no México. Calveira foi uma prisioneira que ficou desaparecida durante um ano e meio no final dos
anos 1970. A autora também abre mão do relato em primeira pessoa e testemunhal em favor de uma
análise interpretativa. E nesse mesmo movimento, seu livro adquire um caráter diferenciado, pois se
sustenta não pela experiência vivida reivindicada como verdadeira, mas sim pela análise da
experiência dos outros. Nesse caso, “A verdade do texto se desvincula da experiência direta de
quem o escreve [...]. Por isso, o texto não exerce uma pressão moral particular sobre o leitor, que
sabe que Calveiro foi uma presa-desaparecida, mas sobre aquele de quem não se exige uma crença
baseada em sua própria história, e sim nas histórias de outros, que ela mesma retoma como fonte e,
portanto, submete a operações interpretativas” (83). Sua obra demonstra a diferença: o texto em
primeira pessoa oferece um conhecimento que, de certo modo, é indiscutível (tanto pelo
imediatismo como pelo princípio moral que o movimenta). O texto em terceira pessoa, ao contrário,
coloca em discussão esse conhecimento ao se colocar uma distância analítica com respeito aos
fatos; sendo assim, pode-se concordar ou discordar de Calveiro. A autora rejeita o discurso
autobiográfico em nome de um discurso mais analítico, que se sustenta a partir de algo que é
universal e não em circunstâncias terríveis. O leitor teria assim mais liberdade de leitura (intelectual
e moral) no terreno da terceira pessoa do que na primeira. “Nessa cessão da primeira pessoa,
Calveiro sacrifica não apenas, como se poderia pensar, a riqueza detalhada e concreta da
experiência, mas sua autoridade imperativa, seu caráter, afinal, intratável” (89).

5. Pós-memória, reconstituições
Nesta primeira parte, Sarlo discute a noção de “pós-memória” apresentada por James Young e
Marianne Hirsch. Trata-se fundamentalmente da “lembrança” que não vem de uma experiência
direta, mas sim da experiência dos outros. Não é aquela memória como prolongamento da nação,
cultura, etnia, que mobiliza mitos, heróis fundadores e monumentos; trata-se de uma dimensão mais
específica, íntima, subjetiva.
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“Como pós-memória se designaria a memória da geração seguinte àquela que sofreu ou
protagonizou os acontecimentos (quer dizer: a pós-memória seria a ‘memória’ dos filhos sobre a
memória dos pais)” (91).
Para os autores, o traço diferencial da memória reside em duas características principais: o
caráter vicário e mediado (Young fala em “hipermediação”); e seu caráter fragmentário, que
envolve dois níveis de subjetividade.
“A pós-memória, que tem a memória em seu centro, seria a reconstituição memorialística da
memória de fatos recentes não vividos pelo sujeito que os reconstitui e, por isso, Young a qualifica
como ‘vicária’” (93).
Porém, Sarlo lembra que toda experiência do passado é vicária (93), toda narração do passado é
uma representação, algo dito no lugar de um fato. Portanto, o vicário não pode ser o específico da
pós-memória.
Tampouco a mediação (ou hipermediação) é uma qualidade específica. Além da presença
incontornável e cada vez maior dos meios de comunicação de massa e a distância, ocorre que “a
construção de um passado por meio de relatos e representações que lhe foram contemporâneos é
uma modalidade da história, não uma estratégia original da memória” (94). Portanto, se se quer dar
o nome de “pós-memória” à história do desaparecimento do pai reconstituída pelo filho, esse nome
só se justificaria por duas razões: o envolvimento pessoal do sujeito em sua dimensão psicológica e
o caráter não “profissional” de sua atividade. Pois em princípio ela não é nem mais nem menos
fragmentária do que a reconstituição realizada por terceiros, se diferenciando apenas pelo interesse
subjetivo e moral vivido em termos pessoais.
Sarlo se pergunta sobre a real necessidade de tal conceito. “Não tenho nada contra os
neologismos criados por aposição do prefixo pós; pergunto apenas se correspondem a uma
necessidade conceitual ou se seguem um impulso de inflação teórica” (95). Todavia, “os estudos de
memória (nos últimos anos desenvolvidos em quantidades industriais, sobre todos os temas e
identidades) citam a noção de ‘pós-memória’ (sobretudo tal como Hirsch a apresenta) como se
possuísse alguma especificidade heurística além do fato de que se trata do registro, em termos
memorialísticos, das experiências e da vida de outros” (96).
Abandonando-se a ideia de uma história totalizante, toda história é fragmentária, assim como a
memória. Por isso, “ou se deseja dizer mais que isso, ou simplesmente se está jogando sobre a pós-
memória aquilo que se aceita universalmente desde o momento em que entraram em crise as
grandes sínteses e as grandes totalizações: desde meados do século XX tudo é fragmentário” (98).
Por fim, mais uma crítica ao conceito: “Os discursos da pós-memória renunciam à totalização
não só porque nenhuma totalização é possível, mas porque eles são destinados essencialmente ao
fragmento. É difícil concordar com uma definição tão totalizante como taxativa, já que, depois da
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crise e da crítica das filosofias da história, a todo discurso não autoritário são atribuídos esses traços
e, por conseguinte, o que lhe é atribuídos como específico da pós-memória pertence a um universo
generalizado. Se há diferenças, devem estar em outra parte” (100).
Após uma longa analise sobre o filme Los rubios, de Albertina Carri, Sarlo conclui:
“Não há, então uma ‘pós-memória’, e sim formas da memória que não podem ser atribuídas
diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e memória dos que são
seus filhos” (112). Evidentemente, ter vivido um acontecimento e constituí-lo por meio de
informações não é a mesma coisa; mas todo passado seria abordável somente por um exercício de
pós-memória (tornando inviável o conceito) a menos que se reserve o termo exclusivamente para o
relato da primeira geração depois dos fatos.

6. Além da experiência

“Contemporânea do que se chamou nos anos 1970 e 1980 a ‘guinada linguística’ da história, ou
muitas vezes acompanhando-a como sua sombra, produziu-se uma guinada subjetiva: ‘trata-se, de
certo modo, de uma democratização dos atores da história, que dá a palavra aos excluídos, aos sem-
título, aos sem-voz’”(116).
O que o livro analisou pode ser explicado por essa guinada teórica e ideológica, embora tal
explicação não esgote o potencial cultural dos relatos de memória.
Problematizou-se a questão da primeira pessoa. “A primeira pessoa é indispensável para restituir
aquilo que foi apagado pela violência do terrorismo de Estado; e, ao mesmo tempo, não é possível
ignorar as interrogações que se abrem quando ela oferece seu testemunho daquilo que, de outro
modo, nunca se saberia, e também de muitas coisas em que ela, a primeira pessoa, não pode
demonstrar a mesma autoridade” (116-117). Isso porque de todas as maneiras com que se pode
compor uma história, os relatos em primeira pessoa são os que demandam maior confiança e, ao
mesmo tempo, são os que se prestam menos abertamente à comparação com outras fontes.
Ocorre portanto um duplo movimento, contraditório: o potencial da primeira pessoa em
reconstituir uma experiência, de um lado, e as dúvidas que ela gera em relação ao problema da
verdade dessa experiência. “Já não é possível de prescindir de seu registro, mas também não se
pode deixar de problematiza-lo. A própria ideia de verdade é um problema” (117).

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