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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

LILIANE PEREIRA BRAGA

De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:
Xangô e o patrimônio civilizatório nagô
na identidade de um rapper afrodescendente

Mestrado em Psicologia Social

São Paulo
2007
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

LILIANE PEREIRA BRAGA

De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:
Xangô e o patrimônio civilizatório nagô
na identidade de um rapper afrodescendente

Mestrado em Psicologia Social

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Social, sob a orientação
do Prof. Doutor Antonio da Costa
Ciampa.

São Paulo
2007
Banca Examinadora

..........................................................................

..........................................................................

..........................................................................
Dedico este trabalho...

... A dona Jeraci. Mulher negra que criou seus filhos e filhas como catadora de
papel – a exemplo de Carolina de Jesus – e que agora ajuda a criar os netos e
as netas. Que a luta da avó pela sua emancipação inspire suas netas a
buscarem suas próprias emancipações.

...Às crianças da Vila Primavera, periferia da zona leste paulistana – onde nasci
e cresci e onde esta dissertação foi concebida, onde se estabeleceram meu
avô mineiro e minha avó baiana, após algumas migrações. Onde meu pai e
minha mãe constituíram família. O som da rua, das crianças brincando,
alimentou esta pesquisa: crianças negras-brancas-pardas misturadas, crianças
que moram em cortiços, em casas pequenas, médias e grandes, mas que têm
a rua por quintal.

...Ao hip-hop, às hip-hoppers e aos hip-hoppers, ao candomblé e ao povo-de-


santo, que me ajudaram a conhecer quem sou, de onde eu sou e o caminho
que quero seguir.

... Ao “Neguinho” e ao “Baiano”, amigos da Escola Estadual Beatriz do Rosário.


Onde quer que estejam, que tenham buscado suas emancipações

...Ao Saulo, primo crescido, querido... A Isabelle, Isadora e Manoela,


“priminhas” queridas. Pelas novas vidas. Vidas novas.
Agradeço
Aos meus ancestrais
À minha querida avó Tuta (Olídia), madrinha do primeiro batismo que recebi
À minha família nuclear (Oswaldo e Maria Aparecida, Ligia e Luciana), pelo
suporte material e emocional necessários à realização desta pesquisa
À minha família estendida tios-avôs, tias-avós, tios e tias, primos e primas,
amigos e amigas cujos nomes não estão aqui
A Alexandre Linguanotes e Fernando Vieira (dizem que cunhado não é
parente...rs)
A Alain Garcia Artola, pela troca
A Lina Gisela Artola Sola, Ramón García Repilado e a toda a família Artola
Aos meninos do TNT, de Santiago de Cuba (Raulicer, Gerald, Hamlet) e ao
coletivo “Zona Caliente”
A Julio Moracen Naranjo, irmão cubano
À minha amiga Cris Moscou, ao lado de quem tudo isto começou
À Kátia Pavani Gomes, por todo o apoio
A Ingrid Veronesi, Valéria Gomes, Fernanda Castello Branco, Cris Batista,
Elcimar Pereira, Viviane Ferreira, Patty Marinho, Maria Tereza, minhas amigas
A Alessandro Campos, colega do núcleo de pesquisa, amigo em todo lugar
À Margot Videcoq – os ventos que a trouxeram e a levaram são os mesmos
que nos mantêm próximas
À Kátia Coelho que, a partir da PUC, tem me ajudado a continuar abrindo
estradas
À Miriam Benedeti e à Lenita Zampieri
A Troy e à Sherie Brown, casal exemplar, irmãos na diáspora
Ao Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e aos amigos que pude fazer lá
Ao Professor Antonio da Costa Ciampa, pelo estímulo. Mas, principalmente,
pelo conjunto de sua obra
Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Identidade José Roberto Malufe
À secretária do programa, Marlene, pelo socorro dentro e fora de hora
À professora Josildeth Gomes Consorte e ao professor Juarez Xavier, por suas
trajetórias. E por aceitarem compor a banca para avaliação desta pesquisa
Ao Movimento Negro, pela formulação e aprovação da Lei 10.639. Que ela
ajude a formar identidades com possibilidades emancipatórias em todo o
território brasileiro
Ao YOWLI Brasil e às jovens mulheres negras que o compõem, pelo desafio
À Cidinha da Silva, pelos muitos aprendizados e pelas portas para o caminho
da cura
À Mãe Caçulinha (Olokum D´Oxum) e ao povo-de-santo da casa fundada por
ela há cerca de 40 anos no bairro do Cangaíba (SP), o Abaçá Oxum Oxóssi. Ali
fui acolhida em momentos de angústia, ali voltei para partilhar alegrias
A Ian Kamau, poesia diaspórica
À família de Ilícito, família nuclear e família estendida, de coração
Por último, e principalmente, ao Ilícito. Pela pessoa que é, pela sua obra e pela
disposição – não sem contra-sensos – em participar desta pesquisa
Axé
RESUMO

BRAGA, Liliane Pereira. De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”: Xangô e o patrimônio civilizatório


nagô na identidade de um rapper afrodescendente. São Paulo, 213 p.
(Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A presente pesquisa procura compreender como o patrimônio civilizatório dos


iorubás - conhecidos como nagôs no Brasil - possibilita que identidades
afrodescendentes se constituam com um sentido emancipatório ao respeitarem
a liberdade das diferenças com a valorização da igualdade social.

O respeito à alteridade é valor fundamental entre os nagôs e o candomblé, um


dos grandes depositários da sua tradição, dissemina esse valor principalmente
por meio da mitologia iorubana. Retratada aqui como parte desse patrimônio
civilizatório, tal mitologia traz na figura dos orixás a busca de uma sociedade
em que haja espaço para a diversidade dos tipos humanos, de forma
igualitária.

Para compreender como a herança originária de um pedaço de África


possibilita que identidades afrodescendentes se constituam com um sentido
emancipatório, foi realizado um estudo de caso envolvendo a história de vida
de Ilícito - um rapper que, em suas músicas, demonstra compartilhar muitos
dos aspectos presentes no legado africano em questão. Entre eles, está a
identificação com as figuras dos orixás, especialmente com Xangô. O enredo
em torno desse orixá permite-nos explorar um pouco mais a questão do
respeito à alteridade presente entre os nagôs.

Como suporte teórico desta pesquisa, é utilizada a abordagem teórico-


metodológica de Antonio da Costa Ciampa, para quem identidade é o processo
de metamorfose em busca da emancipação humana.

Palavras-chaves: identidade; identidade afrodescendente; metamorfose


humana; emancipação; nagôs; hip-hop; rap; negros; racismo; diáspora
africana.
ABSTRACT

BRAGA, Liliane Pereira. From the Oyó-Ilé to the “Ilé-Yo": Xangô and the
civilizatory nagô patrimony in the identity of an afrodescendent rapper. São
Paulo, 213 p. (Master's degree thesis). Pontifícia Universidade Católica at São
Paulo.

This research tried to understand how the civilizatory patrimony of the yorubas -
known as "nagôs" in Brazil – make it possible to constitute the afrodescendent
identities with an emancipatory sense as they respect the freedom of the
differences with the valorization of the social equality.

The respect to diverseness is a fundamental value among the nagôs and the
candomblé, one of the main receivers of its tradition, disseminates that value
mainly through the yoruba mythology. This mythology is portrayed here as part
of that civilizatory patrimony and encompasses, in persona of the orixás, the
search for a society in which there is space for the diversity of human types, in
an equalitarian way.

To understand how the original inheritance of a piece of Africa makes it possible


to constitute the afrodescendent identities with a emancipatory sense, a case
study was done which involves the life history of Ilícito - a rapper who
demonstrates in his music to share many of the present aspects of the African
legacy being studied. Among them, it is the identification with the persona of the
orixás, especially with Xangô. The plot around that orixá allows us to explore a
little more the subject of the respect to alteration among the nagôs.

We used the theoretical-methodological approach of Antonio da Costa Ciampa


as the theoretical support for this research, in whose opinion identity is a
metamorphosis process in search of human emancipation.

Key words: identity; afrodescendent identity; human metamorphosis;


emancipation; nagôs; hip-hop; rap; black; racism; African diaspora.
SUMÁRIO

1 Introdução: hip-hop, candomblé e a questão identitáriaErro! Indicador não


definido.

2 Metodologia .............................................................. Erro! Indicador não definido.


2.1 A pertença identitária no Rap e o uso de história de vida como técnica de
pesquisa ........................................................... Erro! Indicador não definido.
2.2 Identidade como metamorfose ......................... Erro! Indicador não definido.
2.3 A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de casoErro! Indicador não
definido.
2.4 Do contato da pesquisadora com o tema ......... Erro! Indicador não definido.
3 Identidade ................................................................. Erro! Indicador não definido.
3.1 Identidade-metamorfose................................... Erro! Indicador não definido.
3.2 Identidade afrodescendente ............................. Erro! Indicador não definido.
4 Candomblé como herança dos patrimônios civilizatórios africanosErro! Indicador
não definido.
4.1 Ilícito e o candomblé......................................... Erro! Indicador não definido.
4.2 O império nagô e o candomblé......................... Erro! Indicador não definido.
4.2.1 A oralidade, o gestual e a roda sagrada: transmissores de axé fora da
esfera do terreiro ................................... Erro! Indicador não definido.
4.2.2 A importância dos mitos ........................ Erro! Indicador não definido.
4.2.2.1 O mito do ori: os seres humanos como autores do seu destinoErro!
Indicador não definido.
4.3 Alteridade como valor do legado “nagô” ........... Erro! Indicador não definido.
5 Análise da entrevista da perspectiva étnica .............. Erro! Indicador não definido.
5.1 Etnicidade......................................................... Erro! Indicador não definido.
5.2 O Brasil e a “cordialidade transracial”............... Erro! Indicador não definido.
5.3 Mestiçagem e afrodescendência ...................... Erro! Indicador não definido.
5.4 Pensando a questão da religiosidade............... Erro! Indicador não definido.
5.5 Latinidade versus Negritude ............................. Erro! Indicador não definido.
5.6 Índices e critérios de pertença étnica ............... Erro! Indicador não definido.
6 Análise da entrevista da perspectiva da pobreza...... Erro! Indicador não definido.
6.1 Pobreza versus qualidade de vida.................... Erro! Indicador não definido.
6.2 Pobreza versus racismo ................................... Erro! Indicador não definido.
7 Análise da entrevista da perspectiva da identidade .. Erro! Indicador não definido.
7.1 Por uma espiritualidade de muitas verdades.... Erro! Indicador não definido.
7.2 Hip-hop como mecanismo para conhecer as diferenças e chegar à
afrodescendência ............................................. Erro! Indicador não definido.
7.3 Processos civilizatórios africanos e cultura brasileiraErro! Indicador não
definido.
7.4 A questão racial brasileira é problema de todos os cidadãos brasileirosErro!
Indicador não definido.
7.5 Identidade como processo................................ Erro! Indicador não definido.
7.6 Do nome ao futebol, do futebol ao rap, do rap à pluralidade musicalErro!
Indicador não definido.
7.7 A nordestinidade como mais um elemento de identidadeErro! Indicador não
definido.
7.8 Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”Erro! Indicador não
definido.
7.9 Ser ilícito em lugar de estar em um manicômio Erro! Indicador não definido.
7.10 A questão do negro e do branco ...................... Erro! Indicador não definido.
7.11 De como o candomblé apareceu nas entrevistasErro! Indicador não
definido.
7.12 Xangô: de como a figura do orixá se “descola” do panteão para possibilitar
afirmação de identidades.................................. Erro! Indicador não definido.
7.13 Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidãoErro! Indicador
não definido.
7.14 O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito pela imposição de um
padrão particular como padrão universal ......... Erro! Indicador não definido.
7.15 Chuta que é macumba: a diferença entre o homem livre, o doente e o
inconsciente...................................................... Erro! Indicador não definido.
8 Considerações finais................................................. Erro! Indicador não definido.

9 Bibliografia ................................................................ Erro! Indicador não definido.

10 Anexos ...................................................................... Erro! Indicador não definido.


Entrevista I ............................................ Erro! Indicador não definido.
Entrevista II ........................................... Erro! Indicador não definido.
Entrevista III .......................................... Erro! Indicador não definido.
... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
- É pena você ser preta.
(...)
... Um dia, um branco disse-me:
- Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os
brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto
conhece a sua origem.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco?
Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto,
atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não
seleciona ninguem.

(Carolina de Jesus. Trecho do livro “O quarto de despejo”)

...Murallas de negras y blancas manos protegen mi identidad


(...)
Arde en mi pecho, vive en mi techo,
El derecho de andar con esta fusion a cuestas
Que al final es la verdadera fuerza de mi respuesta al futuro
(....)
En este ajiaco1, somos todos condimientos del mismo sabor
En cuestiones de raíces, somos mas parientes de sangre que de sol...

(TNT, grupo de Santiago de Cuba. Trechos do rap “Raíces”)

1
Molho que se usa em várias partes do continente americano e cujo principal ingrediente é a pimenta.
Como produto de arte culinária, é universal: é o cozido da Espanha, o “pot pourri” francês, o
“minestrone” italiano... Caracteriza-se pelo uso das hortaliças próprias de cada território. Fernando Ortiz
usou o termo como metáfora para a “síntese” das diferentes etnias que formam o povo cubano (Cf.
ORTIZ, 1990).
1

1 Introdução: hip-hop, candomblé e a questão


identitária

No dia 22 de janeiro de 2007, estive em um debate do qual participaram

as rappers do filme “Antônia” e a diretora Tata Amaral. Eu tinha uma pergunta a

fazer, que saiu mais ou menos assim: “Na matéria publicada na revista Raça1

deste mês, consta que Tata Amaral buscou em uma deusa grega o arquétipo

de mulher jovem para as quatro personagens femininas do filme. Além de

guerreira, essa deusa se relacionava livremente com os homens. Na mitologia

africana a correspondente dela é Iansã. No filme, Quelinah e Leilah Moreno

cantam um rap que fala de orixás2 e que cita Iansã. Levando-se em

consideração que uma das facetas do racismo brasileiro é a desqualificação

das culturas trazidas pelos africanos e a demonização do universo espiritual

dos povos que vieram escravizados para o Brasil, eu queria saber de quem

partiu a referência a orixás no filme”. Meu interesse era falar da herança

positiva da valorização feminina presente no candomblé, uma vez que o filme

encerra uma trilogia de Tata Amaral sobre a mulher. Mas fui cortada pelo

moderador do debate e não pude fazer esta indagação.

Quando comecei a aprender a respeito dos orixás, em um curso de pós-

graduação3, me causou enorme alívio saber que as divindades existentes na

costa ocidental da África (e que possivelmente algum ancestral meu tenha

cultuado) não eram aquilo que eu ouvia dizer, que a “religião” da qual essas

divindades fazem parte não correspondia às reduções e aos xingamentos

1
Neusa Barbosa, Revista Raça, Ano 11, nº 106.
2
Divindades do panteão iorubá, grupo étnico que vive na costa ocidental da África, e de cujo império
Oyó foi o maior e mais poderoso dos reinos. A cidade de Oyó, ou Oyó-Ilé, foi a maior cidade dessa parte
do continente africano e seu apogeu foi no século XVIII (Cf. Adékóyà, 1999, p. 30).
3
Especialização lato lensu em Jornalismo Cultural (Cogeae-Puc/SP), concluída em 2000.
2

ofensivos que eu já havia ouvido tanto contra pessoas de minha família como

de familiares meus (afrodescendentes4) contra outras pessoas. Mas, em

contrapartida, também me trouxe um questionamento: entender de onde vinha

tal distorção em relação às religiões (e também às culturas) de matriz africana.

Talvez Tata Amaral soubesse da existência de uma deusa africana

análoga à deusa grega citada por ela na entrevista... Talvez sim, talvez não.

Fiquei sem saber, porque ela não fez comentário algum a respeito. Um ou

outro detalhe me levaram a pensar que a menção à Iansã no filme havia sido

idéia da diretora (também autora do roteiro). Juntando a entrevista que li, o

nome da personagem de Leilah (Bárbara, nome da santa do catolicismo

relacionada com a orixá citada), a imagem de São Jorge-Ogum que aparece ao

lado de um vaso com espadas-de-são-jorge, a pintura de uma mulher negra,

aparentemente usando o adê (coroa) de Oxum – orixá do amor e da

fecundidade –, na casa da personagem que engravida, pressupus que as

referências ao universo afro-cultural-religioso no filme eram intencionais, no

sentido de mostrar que o hip-hop valoriza essa herança, tanto por conviver com

ela (mesmo que indiretamente, à medida em que os terreiros de candomblé

estão espalhados pelas periferias das cidades do Brasil) como por combater o

racismo em suas diferentes vertentes.

O filme também traz a presença das religiões protestantes na

Brasilândia, bairro periférico da zona norte de São Paulo: assim como

candomblé, umbanda, catolicismo, as religiões protestantes também estão lá. E

é relativo a esse ponto que a pergunta que eu fiz no debate vem se relacionar

com a minha dissertação de mestrado, como será explicitado a seguir.

4
Segundo XAVIER (2000), o termo não está no dicionário. Porém, como prefixo, “afro” exige hífen
somente na constituição de adjetivos pátrios. Não há hífen nos demais casos compostos (p. 5, nota de
3

Três das quatro rappers quiseram fazer considerações a respeito de

minha pergunta. Primeiro, Quelinah, a qual pontuou que a referência aos orixás

vinha depois da referência a Deus, mas que era, sim, uma forma de falar da

cultura afro-brasileira. Em seguida, Leilah, que fez menção à minha

curiosidade-não-revelada, ao dizer que o nome de sua personagem foi

escolhido por ela mesma, mas quando o fez não sabia da relação da santa

com a orixá do candomblé. Uma das duas cantoras afirmou que mencionar

orixás naquele rap havia sido idéia delas, que escreveram todos os raps

cantados no filme sem interferência da diretora. Em terceiro, Cindy, cuja fala foi

mais ou menos assim: “eu cresci na periferia, no meio de candomblé,

umbanda, esses folclores todos. Mas eu sou evangélica. Queria pontuar isso

porque eu também participei do filme, mas sou evangélica. E a música (que o

grupo cantou no filme) falou de orixá, mas falou de Deus em primeiro lugar.

Porque, quer vocês queiram, quer não, ele é o criador”.

Ferreira (2000) comenta que apresentar as culturas africanas como

folclóricas, primitivas e inferiores - se comparadas às culturas branco-européias

- integra o processo de construção e manutenção do racismo e que “o africano

tem sido considerado até como construtor de cultura, mesmo vista como

folclórica, porém dificilmente como construtor de civilização” (pp. 52-53). Por

esse motivo, a maioria das pessoas deixaria de incluir, na construção de sua

identidade, “matrizes culturais africanas que, historicamente, são referências

participantes da cultura de todo brasileiro (Ibid., p. 73).

Cindy afirma pertencer a uma religião de matriz cristão-européia que há

séculos se coloca como “superior” às demais religiões do planeta. E que, do

rodapé).
4

século XVI aos dias atuais, inferioriza e demoniza as heranças culturais

africanas, fazendo desse um pensamento presente na subjetividade de

cidadãos praticantes e não-praticantes do protestantismo na Europa, na

América e na própria África.

Na pesquisa que segue, esse universo simbólico de matriz africana

presente no candomblé é olhado para além dos limites da religiosidade. Por

essa razão, cabe a pergunta: por que um afrodescendente (ou alguém que

queira valorizar a ascendência africana) se referencia em deuses gregos para

pensar em “arquétipos5” relacionados a jovens negras brasileiras, se existem

os orixás, inquices6 e outras divindades africanas oriundas de elaborações

culturais tão sofisticadas quanto as de gregos, nórdicos e romanos?

Cindy é negra de pele preta. Negra Li talvez seja um pouco mais clara.

Quelinah e Leilah Moreno têm pele parda, como a autora desta pesquisa.

Leilah usa cabelos tingidos de loiro. Por informações apresentadas no filme e

na série homônima a ele exibida na TV, elas – assim como esta pesquisadora

– se reconhecem como negras. E cantam rap - apesar de Leilah ter declarado

que, antes do filme, não era familiarizada com o estilo, e sim com o “primo”

dele, o R&B, cujo canto é melódico e não falado.

O movimento hip-hop, do qual o rap faz parte, nasceu nos guetos de

Nova York, feito por jamaicanos, afro-norte-americanos e latinos, na década de

70. Música, dança e arte visual são suas expressões, surgidas das “block

parties”, ou festas de quarteirão, em que diversão e protesto, reivindicações

anti-racistas e pró-direitos-civis tinham lugar.

5
Carl G. Jung designou esse termo para denominar as “imagens primordiais”, instância psíquica
composta de imagens muito antigas; conceito psicossomático que une instinto e imagens; representação
simbólica coletiva e histórica que aguarda o momento de se expressar na personalidade. (Cf. José Jorge
de Morais ZACHARIAS, 1998, p. 69)
5

Cerca de 30 anos depois, o rap que predomina nos Estados Unidos não

é mais o rap de protesto e, sim, a música comercial que fala de e/ou feita por

“mulheres-objeto” e nas quais impera a ostentação capitalista, temas sensuais,

etc... O protesto, lá, ficou para alguns poucos resistentes7... No restante da

América Latina, ao contrário, o rap continua sendo a expressão dos que se

sentem excluídos do processo político-econômico-social. E o rap vem sendo

grande aliado das conquistas dos movimentos negros contemporâneos nessa

região do planeta, por fortalecer a auto-estima de jovens afrodescendentes, ao

falar de uma história que foi diminuída, ocultada e, quando dita, foi,

propositadamente, distorcida.

De 1996 a 2004, foram realizadas no Brasil 49 pesquisas acadêmicas

envolvendo hip-hop8. Dessas, cinco se relacionam com o tema “identidade”

(uma delas, na Psicologia Social, fazendo “um estudo psicossocial a partir de

depoimentos”, focalizando em uma rapper mulher). Das 49 pesquisas, há duas

apenas que trazem como foco questões relacionadas à “cultura negra” e uma

delas fala em “questões raciais” no título. No portal da Capes, não constam

pesquisas que relacionem hip-hop (ou rap), identidade afrodescendente e o

patrimônio nagô, temas relacionados na pesquisa que aqui é apresentada e na

qual figura um estudo de caso a partir da história de vida de Ilícito – que não

pertence a nenhuma “comunidade-terreiro”, mas freqüentou toques para orixás

e já tiraram os búzios para ele.

6
Divindades do povo bantu, complexo étnico africano que será melhor referenciado mais adiante.
7
Como exemplos temos nomes como os rappers Mos Def e Talib Kweli e o grupo Dead Prez.
8
Levantamento realizado no portal da Capes - a fundação do Ministério da Educação que investe no
desenvolvimento de pós-graduação no Brasil - com resumos de teses e dissertações defendidas de 1987 a
2004. De 1987 a 1995 não há registros de pesquisas sobre o tema em questão. Endereço:
http://www.capes.gov.br/
6

Ilícito não é preto e nem a pele parda tem. A mãe descende de italianos,

cabelo loiro, olhos claros. O pai descende de índios e de negros e,

possivelmente, de brancos também. Na cultura hip-hop, Ilícito tem o seu “ilé”9:

faz versos, cria as bases musicais a partir da “batida universal do bumbo-e-

caixa10”, sobre as quais faz caber as métricas de suas rimas. Empunha o

microfone em shows - para fazer o seu “canto-falado” - e em palestras, oficinas,

debates, para falar de negritude, anti-racismo e valorização das raízes negras,

brancas e indígenas brasileiras ao lado de pretos, brancos, indígenas,

japoneses, ciganos, árabes, judeus e de quem mais vier...

“Yo”, no hip-hop, é um “grito de guerra”. E de “Oyó-Ilé a ‘Ilé-Yo’” procura

compreender um percurso cheio de embates, que possibilitou a um rapper

reconhecer a afrodescendência na construção de sua identidade a partir de um

conjunto de significados herdados do patrimônio civilizatório nagô11 na

sociedade brasileira e em sua história de vida.

9
Do iorubá, “casa” (Nei LOPES, 2004, p. 337).
10
Usando as palavras de Ilícito.
11
Ribeiro (1996) nos informa que a denominação pela qual os iorubás ficaram conhecidos no Brasil
provém da forma adotada pela França para chamar essa parte da população da República do Benin,
colônia francesa de onde veio a maior parte dos iorubás para o País (p. 245).
7

2 Metodologia

Sobre o uso do termo “metodologia”, cabe aqui uma explicação. Como

nos diz Queiroz (1983), trata-se de um termo usado nas ciências sociais para

designar a totalidade dos procedimentos de investigação e das técnicas

utilizadas em uma pesquisa, assim como o conjunto de instrumentos

empregados para se resolver um problema. Traz, também, como nos diz a

autora, outra acepção, relacionada com a apreensão do sentido íntimo do que

se pretende efetuar, assim como das operações a serem realizadas no

decorrer do trabalho. Para essa finalidade, implica também a busca de um

desvendamento do significado profundo existente nos objetivos da pesquisa e

nos procedimentos dela, incluindo aí a própria linguagem utilizada. Seria,

então, a reflexão sobre o(s) caminho(s) seguido(s) pelo cientista em seu

trabalho orientado pela práxis (e não por normas ou valores ideais), pela ação

do cientista sobre a realidade (Queiroz, 1983, pp. 11-12). Este capítulo

apresenta a metodologia deste trabalho nas acepções do termo aqui

mencionadas.

O interesse em realizar esta pesquisa partiu da constatação de que, dos

grupos de rap ou rappers que mencionam positivamente o universo cultural

afro-religioso em suas letras, poucos pertencem a esse universo. Os

questionamentos surgidos a partir dessa constatação culminaram no problema

que, posteriormente, resultou nesta pesquisa: como o patrimônio nagô,

presente, sobretudo, no candomblé, pode colaborar na construção de

identidades positivamente afirmadas para os afrodescendentes?


8

2.1 A pertença identitária no rap e o uso de história de vida


como técnica de pesquisa

O rapper, enquanto representante da música rap (que integra o

movimento hip-hop) que surgiu como movimento cultural de resistência e

contestação social e que tem possibilitado a revitalização de reivindicações do

movimento negro contemporâneo12, costuma falar de sua pertença identitária

nas letras. A questão racial é uma constante nessa pertença, ao lado do lugar

de origem – que pode ser expresso pelo nome do bairro, da cidade, do estado

e/ou do país. No geral, as letras de rap revelam conflitos diários enfrentados

pelas camadas menos privilegiadas da população: repressão policial, a

realidade das favelas e subúrbios, precariedade e ineficiência dos meios de

transporte coletivo, racismo, etc13. Por vezes, aparece também a questão da

opção religiosa. O Rap Gospel é um estilo de rap já consagrado. E, dos

rappers que não são protestantes, há os que falam de Jesus, há os que falam

dos orixás, há os que falam de ambos.

Um grupo de rap em especial chamou minha atenção, por causa das

letras que procuram retratar uma parte da história que não costumava ser

contada nas escolas brasileiras14 - falando da contribuição de negros e índios

para a nossa sociedade - e por ter entre os seus interlocutores, ao lado de

rappers pretos e pardos, um MC de pele branca que se vê como

afrodescendente e se apresenta como um contumaz ativista anti-racismo e um

crítico debatedor das questões referentes à miscigenação no País.

12
Micael HERSCHMANN, 2000, p. 192.
13
Ibid., p. 188.
14
A Lei nº 10639, de 2003, que altera a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, deve mudar esse quadro,
com a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira no País.
9

O encontro com o rapper desta pesquisa possibilitou o trabalho com um

estudo de caso. E o procedimento que se mostrou mais adequado para este

trabalho foi a história de vida. Chamada de “técnica da liberdade” por Roger

Bastide, essa técnica “revela muito mais a realidade, mesmo que sob a

aparente desordem, do que entrevistas muito dirigidas ou questionários”

(Bastide apud Queiroz, 1983, p. 148).

Ao ouvir a história de vida desse rapper, procuramos compreender as

metamorfoses presentes na formação de sua identidade – metamorfose que,

segundo a teoria aqui adotada, está presente em todos os seres humanos. “O

singular materializa o universal”, a exemplo da pesquisa de Ciampa (1987-

2004), autor da referida teoria, que será melhor explicada no próximo capítulo.

A partir da fala do rapper escolhido, são buscados os elementos que

respondam à pergunta formulada nesta pesquisa. Pela opção da técnica de

história de vida, o que se procura é dar importância tanto ao que o sujeito

pesquisado relata quanto ao ritmo de seus pensamentos e de suas

recordações. Nas palavras de Queiroz, esta é uma técnica apropriada para a

coleta de narrativas longas, com encadeamento de ações, de acontecimentos,

de circunstâncias, no tempo; em que também se pretende conhecer de

maneira profunda o modo de pensar do informante e, por meio dele, sua visão

de mundo (Queiroz, 1983, p. 48). Além disso, essa técnica assegura ao

informante falar sua própria linguagem e abordar seus próprios problemas, em

contraposição ao uso da técnica de questionário fechado (Ibid., p. 71).

2.2 Identidade como metamorfose


10

O método da abordagem da identidade como metamorfose é o

materialismo histórico formulado por Karl Marx, na perspectiva do filósofo

alemão Jürgen Habermas (Ciampa, 1987-2004, p. 149), cuja análise sobre a

individuação advinda de sua Teoria da Sociedade, explicitada no próximo

capítulo, distingue ação comunicativa (orientada para o entendimento) e ação

estratégica (voltada para fins).

“Estar localizado em um determinado paradigma implica ver o mundo a

partir de uma ótica específica”, como já disseram Burrel & Morgan (1979, p.

20). A ótica adotada nesta pesquisa, na divisão estabelecida pelos autores, é a

do paradigma humanista radical, que se distingue por “sua preocupação em

desenvolver uma sociologia da mudança radical a partir de uma perspectiva

subjetivista” (Ibid., p. 25) e comprometida com uma visão de sociedade que

enfatiza a necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos

arranjos sociais atuais. É uma teoria social desenvolvida para a crítica ao

status quo15 e que se preocupa em articular formas que nos permitam

transcender os “grilhões espirituais” que nos amarram à ordem social atual e,

dessa forma, desenvolver o seu pleno potencial (Ibid., pp. 25-26).

É nesse contexto que se enquadra o conceito de identidade de Ciampa,

definido no sintagma identidade-metamorfose-emancipação. A proposta desta

pesquisa sobre como o patrimônio civilizatório nagô pode contribuir na

construção de identidade positivamente afirmada para um afrodescendente é

identificar fragmentos emancipatórios presentes na construção da identidade

desse rapper que se relacionem com o seu contato com a cultura nagô e com o

15
No caso brasileiro, a questão volta-se para a auto-estima rebaixada existente entre a parcela negra da
população, que auxilia na manutenção do status quo, à medida que, “a nível individual, oferece suporte a
toda a mecânica sócio-econômica que garante privilégios (por parte dos brancos) e prejuízos (por parte
dos negros)” (Ribeiro, 1998, p. 244).
11

candomblé de matriz iorubá, aqui visto não apenas como religião, mas como

“universo simbólico” – na expressão de Berger & Luckman (2005).

2.3 A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de caso

As identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que as

identidades são, cada uma, constituídas por ela (Ciampa, 1987-2004, p. 127).

Com esta observação, justificamos também a escolha pelo estudo de caso. Um

único sujeito terá sua identidade analisada nesta pesquisa, levando-se em

consideração que “cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando

uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida (...) Uma

identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia” (Ibid.).

A proposta presente nesta pesquisa é dialogar com uma Psicologia

Social que parta da materialidade histórica produzida por e produtora de

homens. Nas palavras de Silvia Lane, “é dentro do materialismo histórico e da

lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a

reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano

de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações

sociais que define cada indivíduo - objeto da Psicologia Social” (2004, pp. 15-

16).

Esta é também uma “pesquisa-ação”, em que “pesquisador e

pesquisado se apresentam enquanto subjetividades que se materializam nas

relações desenvolvidas, e na qual os papéis se confundem e se alternam,

ambos objetos de análises e, portanto, descritos empiricamente”. É por meio da

pesquisa-ação que se chega à “compreensão do indivíduo como manifestação

da totalidade social, ou seja, o Indivíduo concreto” (Ibid., p. 18). Está em foco a


12

natureza histórico-social do indivíduo, pela qual não se concebe conhecer o ser

humano isolando-o ou fragmentando-o, como se existisse de si e por si. A

proposta da Psicologia Social que nos propomos a realizar nesta pesquisa é a

de procurar conhecer o indivíduo no conjunto de suas relações sociais, tanto

naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupal e

social (Ibid., p. 19).

Trata-se, portanto, de um estudo qualitativo: não nos interessam os

dados estatísticos. Interessa-nos analisar o processo de formação da

identidade de um rapper. Esse processo nos permitirá um mergulho na forma

de pensar de um ser humano que, nesse processo, singulariza o universal –

como mencionado anteriormente.

2.4 Do contato da pesquisadora com o tema

Achamos relevante trazer algumas informações sobre a experiência

desta pesquisadora referente ao tópico da presente pesquisa: o meu contato

com o hip-hop começou nos bailes da adolescência, no bairro de periferia no

qual nasci e cresci. Os “passinhos” dançados no baile eram chamados de hip-

hop, a música “falada” (em inglês) era chamada de hip-hop. Diante dos meus

olhos essa cultura foi crescendo, se “abrasileirando”... As pichações foram

passando a elaborados grafites, as coreografias diversificavam-se... E o meu

contato com o hip-hop se fez mais intenso a partir 2001, como espectadora de

shows e eventos relacionados ao assunto e como co-proponente16 de um

projeto para o Ministério da Cultura do Brasil com a finalidade de promover um

16
Ao lado da cientista social e educadora Cristiane Moscou.
13

intercâmbio entre hip-hop cubano17 e hip-hop brasileiro. Como jornalista, o

contato com o tema havia se iniciado alguns anos antes, quando do meu

trabalho na rádio paulista Musical FM (105,7) e, posteriormente, rádio on-line

Musical MPB. O meu trabalho com jornalismo e hip-hop se estendeu a veículos

impressos e a outros meios de comunicação eletrônicos18.

O sujeito escolhido para a presente pesquisa (de pseudônimo Ilícito) foi

alguém com quem o primeiro contato se fez a partir de janeiro de 2004, por

ocasião do início do projeto de intercâmbio mencionado anteriormente. De lá

para cá, o contato foi preservado. Shows de rap e de estilos musicais variados

e eventos como lançamentos de livros e debates foram espaços de encontros

casuais que permitiram a esta pesquisadora acompanhar um pouco das

andanças e das idéias de Ilícito, que poderão ser melhor conhecidas por meio

das entrevistas realizadas e apresentadas na íntegra ao fim desta dissertação.

Entre os pontos que marcam a trajetória de Ilícito (presentes em suas

letras e nas entrevistas), estão a questão étnica e a questão da pobreza no

Brasil – considerando-se também que essas questões estão presentes entre a

parcela da população da qual ele provém. Daí a existência de dois capítulos

que analisam as entrevistas realizadas a partir de tais perspectivas.

17
O contato desta pesquisadora com o hip-hop cubano serviu de ponto de partida para a elaboração do
problema desta pesquisa, pela constatação de que a presença da religiosidade afro-cubana em letras de
rap naquele país provinha da vivência dos jovens cubanos junto a esse universo. O meu questionamento
sobre essa questão no Brasil acabou por me trazer ao tema presente.
18
Revista Super Interessante; jornais Brasil de Fato e Estação Hip-hop; sites das revistas Caros Amigos e
Revista Raiz entre os veículos brasileiros. Entre os estrangeiros, a revista alemã Matices e o site norte-
americano Bet.com.
14

3 Identidade
3.1 Identidade-metamorfose

Quando chegamos ao mundo, acontecem transformações por meio das

quais deixamos de ser criança e nos tornamos adultos. Com a progressiva

socialização e individuação, nos formamos enquanto seres humanos:

nascemos humanizáveis e só mediante a interação com o outro nos tornamos

humanos. Enquanto seres históricos e sociais, a metamorfose é um processo

inescapável de constituição da identidade social da pessoa humana. Assim, a

identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente

individual, mas, acima de tudo, relacional. Ela se constitui a partir de nossas

relações sociais, definindo, conseqüentemente, nossa localização na

sociedade. É o que nos diz a teoria de identidade de Ciampa (1987-2004).

Um rapper de pele branca que improvisava versos em um evento outro

dia dizia “não é questão de cor, é questão de alma”. Ele se referia,

possivelmente, a fazer rap sendo branco – rap, sendo “música de preto”,

teoricamente, seria feito com mais “autenticidade” por pretos. Ele poderia estar

querendo dizer algo como “pra fazer rap, não precisa ser preto” ou “se eu sinto

‘na alma’ o que o preto sente, eu posso fazer rap também”. Por que tirar a cor

da questão? Pretos pensam em sua cor. Quando? Brancos pensam? Mestiços

pensam?

Ciampa nos diz que nascemos animais humanizáveis. Socialização e

individuação nos constituem enquanto humanos e nos permitem construir

identidades. Desta perspectiva, não é a “alma” o que nos faz humanos, uma
15

vez que podemos entender “alma” como construída pela socialização e pela

individuação.

Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade

pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida-que-nem-sempre-é-

vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política,

dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao

mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade,

assim, deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente

acadêmica: é sobretudo uma questão social, uma questão política.

(Ciampa, 1987-2004, p. 127)

No processo de compreensão da identidade de Ilícito, sua história de

vida é analisada partindo do pressuposto de que “a identidade, individual ou

coletiva, é sempre a história da metamorfose em busca de emancipação que

nos humanize” e que a concretização desse processo emancipatório se dá

como ação política - explícita ou não (Ciampa, 2003).

Essas idéias serão elucidadas para que seja possível prosseguir nesse

intuito.

À medida que o indivíduo vai adquirindo capacidade de agir e de falar,

vai também passando a se reconhecer e a ser reconhecido pelo outro como

alguém que pode afirmar ‘eu’ de si mesmo. Esse ‘eu’, constitutivo da identidade

do indivíduo, forma-se e transforma-se constantemente. Identidade, na teoria

desenvolvida por Ciampa (1987-2004) e adotada nesta pesquisa, é

metamorfose; resultante tanto do processo de socialização como de

individuação. A identidade pessoal, então, é um conceito inter-relacionado à


16

integração de todos os aspectos do desenvolvimento humano: a subjetividade

do indivíduo é articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da

sociedade e a intersubjetividade da linguagem (Ciampa, 1987-2004).

No pesquisar sobre identidade, a questão é de compreensão, de

entendimento. “Precisamos captar os significados implícitos, considerar o jogo

das aparências. A preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com

o desvelamento do que se mostra velado” (Ibid.,, p. 139).

Como expõe o autor,

Ao estudar a identidade de alguém, (...) estuda-se uma determinada formação

material, na sua atividade, com sua consciência, não como três coisas justapostas

[identidade, atividade e consciência], mas presença de todas em cada uma delas,

como uma unidade. Com isto, o que se está querendo afirmar é a materialidade da

identidade.

(Ibid., p.151)

Uma identidade-metamorfose, portanto, seria a unidade da atividade, da

consciência e da identidade – as três categorias científicas eleitas por Ciampa,

com especial atenção para esta última (Ibid., p. 146 e p.151).

Há também um “caráter transversal” nesta pesquisa. O sujeito que aqui

é estudado e que está sendo abordado pelo viés da identidade

afrodescendente é um afrodescendente que é visto como branco. Ao

estudarmos a sua identidade, no entanto, aparecem questões comuns à

identidade de afrodescendentes em geral - preconceito, estigma, exclusão,

como apontado por Ciampa (2003).


17

Ser rapper e ter tom de pele, cabelo e olhos que denotam ascendência

européia trazem para Ilícito implicações relativas à ambigüidade vivida por ele

ao transitar entre esses “dois mundos”, como poderá ser verificado na fala do

próprio em outros capítulos desta dissertação. É preciso, então, captar os

sentidos da metamorfose para o sujeito em questão para compreender a

formação de sua identidade social. Reproduzo, aqui, a formulação de Ciampa

(2003): quando pensamos na identidade de afrodescendentes, “a abolição da

escravidão foi um momento importante de emancipação para seus ancestrais.

Se numa sociedade escravocrata aparecia como utopia a libertação dos

escravos, qual a utopia hoje em nossas sociedades para esses descendentes

que, em sua maioria, se tornaram ‘homens livres e pobres’?”. A questão que se

faz presente é ouvir as respostas de Ilícito.

Outra questão é compreender como se dá a emancipação de um

afrodescendente em contato com o patrimônio civilizatório nagô presente na

cultura brasileira. A emancipação é o que dá sentido ético à metamorfose e

pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela coerção, invertendo a

metamorfose como desumanização (Ciampa, 2003). A possibilidade de

desobstrução do caminho da emancipação é um dos aspectos que a história de

vida de Ilícito nos ajuda a compreender, iluminada pela teoria de identidade de

Ciampa – que dialoga estreitamente com o trabalho de dois outros autores: o

alemão Jürgen Habermas (1929-) e o norte-americano George Herbert Mead

(1864-1931).

Para Mead, a identidade de indivíduos socializados forma-se

simultaneamente no meio do entendimento lingüístico com outros e no meio do


18

entendimento “intra-subjetivo-histórico-vital” consigo mesmo (apud Habermas,

1990, p. 187).

En la conversación ocurren cambios definidos, de los que nadie tiene

conciencia. Es necesaria la investigación de los hombres de ciência, para descubrir

que tales procesos se han llevado a cabo. Esto rige también para otras fases de la

organización humana.”

(Mead, 1972, p.218)

O conceito meadiano de identidade delineada intersubjetivamente foi

utilizado por Habermas para o desenvolvimento de sua Teoria da Ação

Comunicativa, pela qual o autor apresenta as condições sociais que devem

estar presentes na formação da identidade para que o indivíduo seja autônomo

e emancipado.

Na leitura de Habermas sobre o processo de individuação social na

visão dos indivíduos atingidos por ele, exige-se dele tanto a autonomia como

uma conduta consciente de vida (grifos do autor). Paralelamente à

diferenciação de identidades singulares, o crescimento da autonomia pessoal é

o que torna possível medir o que ele chama de “uma individuação crescente”.

(Habermas, 1990, p. 219).

No indivíduo, são múltiplas personagens que ora se conservam, ora se

sucedem; ora coexistem, ora se alternam. Essas diferentes maneiras de se

estruturar as personagens “indicam como que modos de produção da

identidade (...); quando há predominância de uma, talvez se pudesse falar num

modo dominante de produção” (Ciampa, 1987-2004, p. 156).


19

Uma identidade é a articulação de várias personagens, articulação de

igualdades e diferenças, constituindo e constituída por uma história pessoal.

“Identidade é história (...). Não há personagens fora de uma história, assim

como não há história (ao menos história humana) sem personagens” (Ibid., p.

157). Como nos explicita Ciampa,

... personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem,

círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e

de regressão. (...) O que determina o desenvolvimento da identidade de alguém são

as condições históricas, sociais, materiais dadas, incluídas as condições do próprio

indivíduo.

(Ibid., p. 198)

Na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, em que o agir está

voltado para o entendimento (esfera que ele chama de “mundo da vida”), o

falante pretende, enquanto ator, ser reconhecido simultaneamente como

vontade autônoma e como ser individual. “No agir comunicativo, cada um

reconhece a própria autonomia no outro” (Habermas, 1990, p. 224).

Na visão dos indivíduos socializados, a dissolução dos mundos vitais

tradicionais (“mundo da vida”) que se reflete na decomposição das

cosmovisões religiosas, das ordens estratificadas de dominação e das

instituições aglutinadoras de funções que ainda cunham a sociedade em seu

todo na sociedade individualizada19, seria um processo que caminha junto com

19
Há traduções de textos de Habermas em que o termo usado é “individualizado” no lugar de
“individuado”. Preferimos o uso de “individuação” à “individualização”, para distinguir o conceito
trabalhado nesta pesquisa do uso “individualizar” relacionado a práticas egocêntricas. Na passagem em
questão, no entanto, procurou-se respeitar o termo utilizado na citação transcrita.
20

a perda de apoios convencionais e junto com a emancipação frente a

dependências naturais (Ibid., pp. 227-228).

Encarar a des-tradicionalização do mundo da vida (uma das formas

como é descrito o processo de modernização social pela sociologia) como

“conseqüência do destino” impõe aos indivíduos uma diferenciação de

situações de vida multiplicadas e expectativas de comportamento conflitantes,

sobrecarregando-os com novas realizações de coordenação e de integração. O

número crescente de decisões que o indivíduo precisa tomar o sobrecarrega:

qual é a escola a ser freqüentada? A profissão escolhida? (Ibid., p. 229).

Na sociedade individualizada o indivíduo precisa aprender (...) a se

compreender a si mesmo como um centro de ação, como uma secretaria de

planejamento em relação ao seu currículo, suas capacidades, parcerias, etc. A

‘sociedade’ precisa ser manipulada individualmente como uma variável sob condições

de uma história de vida a ser construída.

(Beck20 apud Habermas, 1990, pp. 229-230 )

Nas palavras de Habermas, “soltura social não é sinônimo de

emancipação bem-sucedida”, mesmo que o indivíduo singular se torne cada

vez mais uma “unidade de reprodução social”. A inclusão crescente num

número cada vez maior de sistemas de funções não significa, para ele, um

crescimento da autonomia – quando muito, significaria uma modificação no

modo do controle social (Ibid., p. 230).

À luz de Mead, Habermas propõe que, para produzir um novo tipo de

ligação social entre os sujeitos individualizados, é necessário que os


21

participantes criem suas formas de vida integradas socialmente reconhecendo-

se reciprocamente como sujeitos capazes de agir autonomamente, como

sujeitos que são responsáveis pela continuidade de sua vida, assumida de

maneira responsável. A referida “produção de um novo tipo de ligação social”,

posterior ao processo de individuação que ocorre intersubjetivamente (e,

portanto, impossível sem o outro) é o que proporcionará a emancipação do

indivíduo em relação ao controle social.

Esse novo tipo de ligação social teria que ser pensado como realização própria

dos indivíduos [grifos do autor]. Mead já mostrou, no entanto, que para isso não basta

uma formação convencional de identidade (...). Este indivíduo, ao mesmo tempo

liberado e só, não dispõe, para a elaboração racional de uma necessidade crescente

de decisão, de nenhum critério a não ser as preferências próprias, reguladas pelo

imperativo natural da auto-afirmação. Uma instância-eu destituída de todas as

dimensões normativas e reduzida a realizações de adaptação cognitiva forma, é

verdade, um complemento funcional aos subsistemas comandados por meios; não

pode, porém, substituir as realizações próprias da integração social, que um mundo da

vida racionalizado exige dos indivíduos. Somente uma identidade-eu pós-

convencional [grifo nosso] poderia satisfazer a essas exigências. E esta somente

pode formar-se no bojo de uma individuação progressiva.

(Habermas, 1990, pp. 231-232)

Os princípios habermasianos de ética libertária e moral igualitária

presentes no conceito de identidade-eu pós-convencional integram o conceito

de agir comunicativo de Habermas (1990), em que “as suposições de

autodeterminação e de auto-realização mantêm sentido intersubjetivo: quem

20
U. BECK, Sociedade de risco. A caminho de uma outra modernidade, Ffm., 2001, p. 216.
22

julga e age moralmente tem de poder esperar o assentimento de uma

comunidade de comunicação ilimitada e quem se realiza numa história de vida

assumida responsavelmente tem de poder esperar o reconhecimento dessa

mesma comunidade”. Para o autor, “minha identidade própria, minha

autocompreensão como um ser individuado que age autonomamente, só pode

estabilizar-se se eu for reconhecido como pessoa e como esta pessoa”. Sob o

agir estratégico (em que, para Habermas, a “ordem sistêmica” – e não o

“mundo da vida” - determina a ação do indivíduo), o Selbst (si mesmo) da

autodeterminação e da auto-realização cai fora das relações intersubjetivas.

Quem age estrategicamente não se alimentaria mais, segundo ele, de um

mundo da vida compartilhado intersubjetivamente; “como que fora do mundo,

ele se vê perante o mundo objetivo e decide somente conforme preferências

subjetivas”. Neste caso, o indivíduo não dependeria de um reconhecimento por

parte de outros. A autonomia se transformaria em livre-arbítrio e a individuação

do sujeito socializado no isolamento de um sujeito libertado, “que se possui a si

mesmo”, como expõe Habermas (1990, pp. 226-227). Para o filósofo alemão,

“os pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo formam reservas

semânticas das quais as sociedades históricas extraem, cada uma à sua

maneira, idéias acerca do espírito, da alma, concepções de pessoa, conceitos

de ação, consciência moral, etc., passando a articulá-las” (Ibid., p. 225).

A preocupação de Habermas com o que ele chama de “colonização do

mundo da vida” (em que a “ordem sistêmica” predomina na vida do indivíduo)

integra a visão de sociedade presente nesta pesquisa, que enfatiza a

necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos arranjos

sociais atuais. É mantendo o sentido intersubjetivo da autodeterminação e da


23

auto-realização, pelas trocas que se dão no “mundo da vida”, que essa

superação – e, conseqüentemente, a formação de uma identidade-eu-pós-

convencional – se faz possível.

Neste trabalho, o sagrado é um importante aspecto entre os observados

na história de vida de Ilícito. A sua identidade se constrói em constante diálogo

com a visão de mundo do sagrado que carrega consigo.

Para o psicólogo Ricardo Franklin Ferreira,

(...) a experiência psicológica encerra um caráter de construção permanente,

em que as especificidades das experiências pessoais determinam a maneira como o

indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas através das quais ele

pode reconhecer-se como um determinado indivíduo – sua identidade.

(Ferreira, 2000, pp. 45-46)

Como nos ensina Ferreira, a identidade não se reduz a uma

representação do indivíduo a distingui-lo de outros. Em relação à identidade do

afrodescendente em uma sociedade hegemônica de valores “brancos”, é

preciso pensar que a identidade é uma referência em torno da qual a pessoa

se constitui (Ibid., p. 47).

Se adotarmos o pressuposto de Ferreira, de que as qualidades

“negritude” e “africanidade” são aspectos constitutivos e essenciais das

construções simbólicas de brasileiros e brasileiras, incluindo sua identidade,

independente de seu aspecto físico, entendemos também que a visão

deformada de qualidades que permitiu ao europeu colonizador legitimar a

dominação e o genocídio históricos sobre povos não-brancos determina


24

dificuldades para o desenvolvimento da identidade dos brasileiros

afrodescendentes (Ibid., p. 47).

3.2 Identidade afrodescendente

A respeito de teorias psicológicas e da relação dialética entre identidade

subjetiva e atribuições sociais de identidade, Berger & Luckman (2005)

apontam para uma questão que convém mencionar. Para eles, as teorias

psicológicas fornecem a ligação teórica entre a identidade e o mundo, elas

servem para “legitimar os procedimentos de conservação da identidade e da

reparação da identidade estabelecidos na sociedade”.

Assim, as teorias psicológicas poderiam ser adequadas ou inadequadas

empiricamente, no que se refere ao seu valor como “esquemas interpretativos

aplicáveis pelo perito ou pelo leigo a fenômenos empíricos da vida cotidiana”.

Os autores entendem que uma das maneiras de dizer que uma

determinada teoria psicológica é adequada consiste em dizer que ela “reflete a

realidade psicológica que pretende explicar”.

Na medida em que as teorias psicológicas são elementos da definição social

da realidade, sua capacidade de gerar a realidade é uma característica, de que

participam com outras teorias legitimadoras. Contudo, seu poder realizador é

particularmente grande, porque é atualizado por processos de formação de identidade

emocionalmente carregados. Se uma teoria se torna socialmente estabelecida (isto é,

torna-se geralmente reconhecida como uma interpretação adequada da realidade

objetiva), tende forçosamente a se realizar nos fenômenos que pretende interpretar.


25

(Berger & Luckman, 2005, p. 234)

Dessa perspectiva, o grau de identificação de um sujeito com uma

determinada psicologia varia com as condições de interiorização dessa

psicologia por parte do sujeito; dependendo, segundo Berger & Luckman, de

essa interiorização ter ocorrido durante a socialização primária ou a

socialização secundária21.

A questão da adequação das teorias psicológicas se faz presente nesta

pesquisa para que seja levado em consideração que, ao falarmos de

afrodescendência em países de colonização européia, falamos da necessidade

de se pensar a negação da perspectiva negro-africana e da sua humanidade. A

intenção deste subcapítulo é nos introduzir a essa perspectiva.

Nos diversos ambientes freqüentados pelo brasileiro para a construção

da identidade (seja ele doméstico, escolar, de trabalho ou de lazer), o único

modelo disponível é o racista e capitalista, fundado na dupla opressão

classe/cor22.

Segundo Ribeiro,

Souza (1983)23 aponta para o fato de que a construção de identidades

individuais nas sociedades em que vencedor é sinônimo de branco, a primeira regra

para os afrodescendentes é a negação, o expurgo de qualquer mancha negra, a

eliminação dos sinais de negritude.

(SOUZA apud RIBEIRO, 2004, p. 155)

21
Socialização primária é definida pelos autores como a primeira socialização que o indivíduo
experimenta na infância, em virtude da qual se torna membro da sociedade. Socialização secundária seria
qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo
objetivo de sua sociedade (Berger & Luckman, 2005, p. 175).
22
Cf. Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 155.
26

Esses “sinais” estão tanto nas características físicas (cabelo crespo,

nariz largo, tom de pele preto ou pardo) quanto nas práticas culturais/religiosas

das quais afrodescendentes procuram se afastar, distanciando-se da dor

causada pelo preconceito herdado, de brinde, junto com a ascendência negra.

A identidade afrodescendente24 traduz a luta do negro e seus

descendentes para serem reconhecidos como gente25. Dentro dessa luta, está

o reconhecimento de que o candomblé é parte significativa do legado cultural

dos povos africanos que vieram escravizados para o Brasil e grande

depositário do patrimônio civilizatório “importado” pelo nosso país com a vinda

de milhões de pessoas escravizadas, que aqui chegaram durante cerca de 350

anos.

A escravidão no Brasil fez com que as religiões de diferentes povos

africanos entrassem em contato. A estratégia do colonizador de separar

pessoas do mesmo grupo étnico a fim de evitar ou dificultar que se rebelassem

contra os escravizadores e o sistema escravista levou à troca entre elementos

culturais de diferentes povos fosse inevitável. Dessa maneira, sobrepuseram-

se e fundiram-se ritos de origem distinta num amálgama comum de que

surgiram as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras – que recebem

23
Neusa SOUZA. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.
24
A opção, neste trabalho, pelo uso de “identidade afrodescendente” em lugar de “identidade negra”
decorre do ponto de vista de que o termo afrodescendente “tem a dimensão política de um projeto de
identidade para um ‘segmento excluído’ do bem-estar social e que reivindica o exercício da cidadania”
(Xavier, 2000, p. 9) e também diz respeito ao reconhecimento de uma etnia de descendência africana
(Cunha Jr. apud Xavier, 2000, p. 10), em detrimento do termo “negro” que “homogeneíza” uma
população de culturas diversas ao referir-se a ela pelo termo criado por europeus para referir-se à sua cor
de pele.
25
Segundo o dicionário Houaiss, uma das significações para o termo “gente” é “o gênero humano”. Da
perspectiva dos portugueses, foi necessário criar uma palavra diferente para humanos considerados
“pagãos” por não seguirem os dogmas do catolicismo cristão - também chamados de “gentios”
(HOUAISS, 2006). “Gentílico” é a palavra da língua portuguesa para denominar o que é próprio de
27

nomes distintos em função do lugar e do modelo de suas práticas rituais. O

candomblé prevalece na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O seu

panteão é constituído por orixás, inquices e voduns – divindades dos povos

iorubá, banto e jeje, respectivamente26. Permanências e transformações se

deram e continuam a acontecer nas religiões que possuem matrizes africanas

e nas religiões que se formaram de heranças africanas com outras matrizes,

formando o conjunto das religiões afro-brasileiras.

Uma religião que foi discriminada, numa tentativa de impedi-la de ser

professada, deve compartilhar da premissa da liberdade religiosa – até mesmo

pelos fatores históricos que condicionaram a sua existência no contexto

brasileiro.

A demonização das religiões em questão nega a liberdade religiosa.

Como afirma Ciampa (2003), “um fundamentalista convicto [contrário, portanto,

à liberdade religiosa] não deve concordar com a noção de metamorfose e

emancipação; pelo menos para a sua identidade, que seria a encarnação da

Verdade Absoluta, conseqüentemente eterna”. O pensamento de Ciampa se

alinha ao de Habermas (1990), para quem uma identidade pós-convencional

caminha no sentido oposto ao de aprisionamento a dogmas, uma vez que se

caracteriza por uma autonomia crescente.

Como um afrodescendente que luta pelo seu reconhecimento pode

integrar criticamente a tradição de seu povo, de maneira a distinguir autonomia

de heteronomia? Nesse sentido, seria possível dizer que metamorfose e

“gentio” e também para dizer-se do nome que designa a nação à qual se pertence. Outros povos possuem
como “gentílicos” palavras que significam “ser humano”, como apontado mais adiante.
26
Cf. NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DO MUSEU AFRO BRASIL, Roteiro de visita ao acervo, As
religiões afro-brasileiras.
28

emancipação fazem parte dos significados partilhados pelo legado nagô

presente no candomblé?

Para responder a essas perguntas, a “tradição”, no que se refere aos

afro-brasileiros, precisa ser olhada por autores que valorizam as raízes

africanas da identidade afrodescendente na diáspora.

Para a filosofia bantu, o sentido de pertencimento (the sense of

belonging)27 constitui a essência da identidade (Mukuna, 2006, p. 159).

Pertencer, assim, pode aqui ser entendido como fazer parte. “Bantu”, no uso de

Mukuna, diz respeito ao “conjunto das tribos que ocupavam o vale do rio Congo

e, particularmente, a área que definimos como ‘zona de interação cultural’, que

se estende pelos dois lados da fronteira Congo-Angola” (Ibid., p. 23). No

verbete relativo ao termo no “Novo Dicionário Banto do Brasil”, Nei Lopes

(2004) define “banto” (com variação na grafia) como sendo “cada um dos

membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os

escravos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas,

moçambiques, etc”. E que, hoje, englobariam “inúmeros idiomas falados na

África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental”.

Os bantus e os sudaneses28 são os dois grandes grupos africanos que

foram trazidos como escravos ao Brasil. E a distinção entre eles, para Mukuna,

é uma distinção essencialmente lingüística, uma vez que estudos têm

demonstrado o princípio da unidade cultural em termos de conceitos

fundamentais da concepção de mundo pelos africanos. Dessa perspectiva, ser

27
No livro, a expressão em português usada é “o sentido de posse” e, entre aspas, aparece o original em
inglês (“the sense of belonging”). Optei por traduzir o verbo “to belong” como “pertencer”, por entender
o termo como sendo mais adequado ao intuito desta pesquisa, após assistir à palestra de Kazadi wa
Mukuna na Semana da Consciência Negra da PUC-SP, em novembro de 2006, e notar que ele também o
utiliza.
29

“bantu-descendente” ou “sudanês-descendente” implicaria visões de mundo

muito próximas – com exceção de diferenças menores específicas dentro

desses espaços29. Mukuna nos diz que, “para o africano, o ser é concebido

como um elemento constitutivo do cosmo criado por sua comunidade, sua tribo,

seu clã, sua família e pelo conjunto de normas e valores próprios dessas
30
instituições” . Em outras palavras, o “eu” africano só existe quando está

enquadrado por outros elementos (sociedade, mito, terra, etc.) que o

completam. Da perspectiva harbemasiana, pode-se dizer que o “eu” se

completa pela socialização e pela individuação, uma vez que, como aponta

Mukuna, o conjunto de valores vitais da tradição do ser humano africano

completa sua identidade31. Essa “visão de mundo” está presente na fala de

Ilícito, sujeito desta pesquisa. E está presente no candomblé, que muitos

brasileiros conhecem por “macumba” – denominação inicial da religiosidade

afro-carioca que ganhou forte conotação pejorativa32.

No Brasil e na América em geral, foram divulgadas idéias sobre a prática

religiosa africana (e afro-brasileira) a partir de fatos resultantes de um processo

de anomia, como cita Mourão no prefácio do livro de Mukuna (2006, pp.17-18).

Entre tais idéias, está “o conceito de ‘feiticeiro’, que não é mais do que o

desenvolvimento de uma faceta do adivinho ou do curandeiro tradicional, cujas

práticas são uma resposta à situação de desestruturação social, quer

estruturalmente, quer psicologicamente”. Esta é parte da idéia que muitos

brasileiros têm e que os distancia de sua ancestralidade africana. Mesmo entre

28
Designação dada aos povos africanos localizados a oeste, entre o Saara e Camarões (Nei LOPES, 2004,
p. 634). Mais detalhes em nota constante do capítulo 4.
29
Kazadi wa MUKUNA, 2006, pp. 17-18.
30
Ibid., p. 167
31
Ibid., p. 168.
30

os que valorizam as características físicas negro-africanas, uma grande parte

quer distanciar-se de uma herança cultural tida como inferior e ligada a práticas

“demoníacas”. Mourão alerta para a construção européia que também atuou na

distorção em relação à cosmovisão dos povos africanos: o “surgimento” de um

“conceito autônomo” de religião - quando, na verdade, para os africanos, a

religião emerge “no plano do cotidiano em todos os momentos da vida”. A

integração ser humano-natureza-sociedade constitui a prática do sagrado que

se dá na vida cotidiana, segundo essa cosmovisão.

Como nos alerta Ronilda Iyakemi Ribeiro, um olhar “africano” para essa

história nos possibilita estabelecer um contraponto com o olhar europeu:

Construído com base na antropologia, na lingüística e na história oral, tal olhar

[africano] questionou a imagem de uma África bárbara e inculta, sem história e sem

passado, ao expor evidências do florescimento no continente africano de grandes

civilizações e culturas, entre as quais a egípcia, a etíope, a ioruba e a haussa33.

(Ribeiro, 2004, p. 149)

Se a ética é o que dá sentido à emancipação na teoria de Identidade

formulada por Ciampa, para a “tradição” afrodescendente é ela que faz com

que os direitos e as obrigações vinculados ao estatuto do indivíduo e da

comunidade sejam rigorosamente observados. “O homem de axé, o muntu34 e

congêneres têm de se manter nos limites de seus direitos e deveres. O

descumprimento das obrigações afeta ao mesmo tempo o indivíduo e o grupo”

32
Termo usado para designar todas as práticas de magia popular e tradicional, com ou sem cerimônias
religiosas (Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 151).
33
Dessas, a escravidão trouxe para o Brasil as culturas iorubás e a haussa.
34
Termo multilinguístico banto cujo significado é “ser humano” (mu-ntu, plural ba-ntu). Nei LOPES,
2004, p. 459.
31

(Sodré, 1988, p. 88). Muntu, ser humano. Ao ter consciência de sua

humanidade desde o étimo da palavra que o nomeia, esse “ser humano”

aprende, desde muito cedo, que sem a comunidade ele não existe. O singular

(indivíduo) depende do particular (comunidade) para ser universal (humano).

O contexto histórico de ter sido feito escravo e ter sofrido com a

desumanização por gerações seguidas fez nascer a luta pelo reconhecimento

de sua identidade, a fim de manter a humanidade que lhe foi negada.

No pós-abolição, a busca de manter uma identidade por parte de

afrodescendentes nas Américas implicou a configuração de uma forma de ser e

viver, de um convívio social que pode ser visto hoje nas periferias de diferentes

partes do Brasil. Essa identidade passa por uma sociabilidade voltada para o

espaço da rua e de organizações associativas em torno do que costumamos

ver como “atividades de lazer” (para os africanos, as relações entre “trabalho” e

“lazer” teriam outras perspectivas, diferentes das dos europeus trazidas ao

Brasil com a colonização). Sodré tece um quadro rememorativo da construção

dessa identidade:

(...) Era esse o drama da identidade na diáspora que informava as festas, as

danças, os cultos (...). Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de

‘acerto’ ou transação, onde as classes e etnias subalternas tanto se esforçavam pela

apropriação de alguma parte do produto social (empregos, pequenos negócios) como

por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja, aproveitar por mil ‘jeitinhos’

os interstícios das relações sociais de produção), em busca de um lugar próprio, de

uma identidade, em suma. O carnaval, o futebol, as festas religiosas foram jogos que

os negros tomaram aos portugueses para constituir lugares de identidade e transação

social.
32

(Sodré, 1988, p. 139)

O padrão do “indivíduo total” é o que regula a ação na cosmovisão

negra, segundo Sodré, quando, em seu livro, ele nos fala dos “lugares da

alegria” para o negro-brasileiro. Trata-se da visão de um sujeito articulado

consigo mesmo e com os outros em comunidade. “O que diz a esse sujeito a

intuição de mundo negra é que o jogo, mesmo fora do poder, tem a força de

promover uma certa integração da existência [grifo meu], a exemplo de uma

instância, quase orgânica, da vida” (Ibid., p. 143). Nessa concepção, o “jogo”

não é sinônimo de descompromisso, informalidade. O “jogo” é outra forma de

relacionar-se35.

O hip-hop, como expressão afrodescendente na diáspora, traz marcas

da identidade que nos remete a esse “lugar da alegria”, “lugar do jogo” da

sociabiliade negro-africana pontuada por Sodré. Na luta anti-racista que se

manifesta com música, dança e artes visuais, o hip-hop tem se mostrado um

importante meio de expressão desse movimento de configuração da identidade

afrodescendente, tão complexo nas sociedades multirraciais – e nas quais a

construção da identidade afrodescendente é fundamental, como nos aponta

Xavier (2000, p. v).

No artigo intitulado “Psicoterapia e religiões brasileiras de matriz

africana”, Ronilda Iyakemi Ribeiro apresenta aspectos da noção de pessoa da

perspectiva do grupo iorubá, que se relacionam com o mu-ntu apresentado por

Sodré, quando fala dos conceitos iorubá de saúde, doença e cura:

35
Sodré chama de “jogo” o conceito “de uma outra perspectiva quanto à consciência de si, em que viver e
morrer, alegria e dor não estão radicalmente separados, pois fazem parte de uma mesma força de
engendramento, de um mesmo poder de realização (...). O culto aos deuses, com seus rituais – onde
33

(...) felicidade [para os iorubás] é ser forte. Ser forte é estar carregado de axé, a

força vital. Ser forte é ser saudável e isso inclui estar bem fisicamente, ou seja, com

saúde física, estar bem situado socialmente, dispor de recursos econômicos

satisfatórios, bons amigos, boa vida conjugal...(...) Considerando que a saúde

individual integra um sistema de trocas energéticas que inclui o entorno, qualquer

desequilíbrio é desequilíbrio energético.

(Ribeiro, 2005, p. 186)

Para restaurar esse equilíbrio, recorre-se à medicina tradicional iorubá

que é indissociável da magia, definida como “arte e ciência de preservar ou

restaurar a saúde através de recursos e forças naturais” (Dopamu apud

Ribeiro, 2005, p. 187). O uso das folhas está entre esses recursos naturais,

realizados por meio de rituais, uma vez que certas substâncias naturais

possuem qualidades de significado oculto – para além de seus princípios ativos

comprovados cientificamente (Ribeiro, 2005, p. 188).

Completando a noção de pessoa, para os iorubás, supõe-se saudável o

indivíduo que, de modo solidário, realiza o próprio destino (Ribeiro, 2005, p.

188).

Os conceitos apresentados por Ronilda Ribeiro, assim como os de

Sodré, falam de uma identidade negro-africana presente no candomblé, mote

desta pesquisa para compreender a contribuição do legado nagô para a

construção da identidade afrodescendente do rapper aqui analisado, que se

traduz tanto em uma luta anti-racista como no que a autora chama de

“reapropriação dos valores de origem”, ocasionada pela descoberta de um

vigora a linguagem não-conceitual dos gestos, imagens, movimentos corporais, cânticos – é a matriz de
34

grupo de pertença, que “permite ao indivíduo a reorganização perceptual que

lhe possibilita perceber-se novo num mundo igualmente novo” (Ribeiro, 1998,

pp. 242-243).

Ao falar em identidade afrodescendente no Brasil (ou em outros países

da diáspora africana), procurando o diálogo com a perspectiva de autores que

olham da perspectiva negro-africana-brasileira, estamos trilhando o percurso

que nos sugere a pergunta de Munanga: “qual seria o método científico capaz

de captar o fenômeno da identidade em seus diversos aspectos e contextos e

em sua dinâmica?” (1988, p. 146). A resposta a essa pergunta se dará durante

esta pesquisa, que intenciona compreender o processo de construção de uma

identidade afrodescendente “positivamente afirmada”36 – que se orgulhe tanto

de suas características fenotípicas como das elaborações culturais legadas por

essa ascendência.

todo jogo” (1988, p. 115-116).


36
Ferreira (2000) é quem traz o conceito em questão.
35

4 Candomblé como herança dos patrimônios


civilizatórios africanos

Para além das marcas espalhadas pela sociedade, as religiões de

matrizes africanas são os grandes depositários dos patrimônios civilizatórios

das culturas que vieram com as populações escravizadas de África para a

América. No Brasil, a religião de matriz iorubana mais conhecida é o

candomblé37. Para chegar até ela, faremos um breve percurso histórico.

A história da civilização negra é a mais antiga do mundo. O homem,

como o conhecemos hoje, surge na África, por volta de 150.000 a.C. O primeiro

ser humano era, portanto, negro. Na Europa, o homem só foi aparecer por volta

de 40.000 a.C, por motivo das correntes migratórias desde o centro sul da

África em direção ao norte até o mar Mediterrâneo (Cf. Luz, 2000, p. 25).

A partir de imigrações e trocas culturais, o processo histórico resultou na

formação das diferentes sociedades existentes nas diversas partes do planeta.

Há estudiosos que afirmam que, no século XV, quando os portugueses chegaram à

África, a civilização negra era muito mais avançada em valores e tecnologias que a

européia. Entre esses avanços, estavam técnicas metalúrgicas de plantio, colheita,

criação, comércio e navegação – os africanos teriam sido os primeiros a chegarem

à América, antes mesmo dos europeus –, além de suas elaborações religiosas,

filosóficas, científicas e estéticas, incluídas em um “processo civilizatório negro” que

as ideologias racistas e colonialistas tentaram historicamente apagar (Ibid., p. 27).

37
Ribeiro (1996, p. 213), citando Bastide, utiliza os termos “candomblé” e “xangô” para as religiões de
nações do grupo sudanês (iorubá e jeje) e “candomblé de caboclo” e “candomblé de angola” para as de
nação bantu.
36

Ao advento da escravidão de africanos para o Novo Mundo opõe-se a

luta de indivíduos escravizados e portadores de culturas que lhes permitiram

resistir à escravidão. Dessa resistência resulta a afirmação existencial do

homem negro, que implica na “continuidade transatlântica de seus princípios e

valores transcendentes” – no Brasil, vivemos hoje esses princípios e valores

que, mesmo tendo passado por transformações, não tiveram alterada em sua

totalidade “a dinâmica constituinte de um mesmo continuum” (Ibid., p. 31).

Foi com as instituições religiosas e da irradiação a partir delas para a

sociedade brasileira que o legado de valores africanos permitiu essa

continuidade transatlântica.

Essa “trajetória” dialoga com a forma de organização social de diferentes

grupos africanos, para os quais espiritualidade e vida cotidiana não se

separam.

Desse patrimônio herdamos práticas sociais e culturais que são

“extensão” das práticas dos terreiros de candomblé38.

[No terreiro de candomblé] guardavam-se conteúdos patrimoniais valiosos (o axé,

os princípios cósmicos, a ética dos ancestrais, mas também ensinamentos do xirê –

os ritmos e as formas dramáticas que se desdobram ludicamente na sociedade

abrangente.

Na verdade, os grupos de festa, os cordões e blocos carnavalescos, os

ranchos, sempre estiveram vinculados direta ou indiretamente (através dos músicos,

38
“Os cultos negros são, de fato, reservatórios de ritmos e jogos, suscetíveis de confluência para o âmbito
da sociedade global. No rito nagô, a palavra xirê designa a ordem em que são entoadas nas festas as
cantigas para os orixás, mas também a própria festividade, o ludismo. Os ritmos que chegam à sociedade
global são, no fundo, expansões da atmosfera do xirê” (Sodré, 1988, p. 128).
37

compositores ou pessoas de influência) ao candomblé. (...) Cada casa de culto tinha o

seu bloco carnavalesco.

... Em quintais diversos realizavam-se reuniões de jongo (canto e dança de

linha mística com pontos e desafios, de onde se deriva o samba de partido alto),

caxambu (forma semelhante ao jongo, mas com diferenças rítmicas) e rodas de

samba39.

(Sodré, 1988, p. 135)

A oralidade, a gestualidade, as “rodas sagradas”, presentes na capoeira,

no jongo, nas rodas de samba... Um grande número de marcas sociais

oriundas dos patrimônios civilizatórios presentes na identidade nacional

brasileira provém das culturas iorubá, fon e bantu – às quais pertenciam os

maiores contingentes populacionais de africanos vindos para o Brasil durante

os cerca de 350 anos em que perduraram o tráfico negreiro para o país.

Foi na dimensão da religiosidade que as identidades dessas diferentes

culturas puderam se manter, mesmo que de forma reelaborada.

Quando se fala em candomblé, fala-se em pelo menos sete nações40

diferentes. O reconhecimento das diferentes nações está associado ao idioma

que é usado para referir-se ao nome das divindades, alimentos e roupas,

cânticos rituais e histórias (Cf. Ribeiro, 1996, p. 213-214). Segundo Lody41

(apud Ribeiro, 1996), as nações foram organizadas em: Kêtu-nagô (idioma

iorubá); Jexá ou Ijexá (iorubá); Jeje (fon); Angola (banto); Angola-Congo [ou

39
Foi a partir das festas da mãe-de-santo conhecida como Tia Ciata, no Rio de Janeiro, que o mercado
fonográfico conhece o primeiro samba de que se tem registro, “Pelo telefone”, de Donga. Os músicos que
participaram dessa gravação foram “recrutados” entre os freqüentadores da casa: Donga, João da Baiana,
Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres e outros (Sodré, 1988 p. 136-137). A gravação data do
ano de 1916 (Para mais detalhes, ver Enciclopédia da música brasileira, 1998, p. 616).
40
O uso do termo “nação” faz alusão ao fato de que os terreiros, além de tentarem reproduzir os padrões
africanos de culto, possuíam uma identidade grupal (étnica) como nos reinos da África (Cf. Gonçalves da
Silva, 2005, p.65)
38

somente Angola] (banto); Caboclo (modelo afro-brasileiro) e Jeje-nagô (união

dos elementos iorubá e fon)42.

Vagner Gonçalves da Silva (2005) nos informa que os sudaneses43

(entre os quais se encontram os iorubás) foram os grupos que predominaram

no século XIX no Brasil. Nesse período, as condições urbanas, históricas e

sociais de perseguição aos cultos diminuem em relação ao período colonial –

no qual os bantos é que haviam sido majoritários. Condições como essas

favoreceram para que a estrutura religiosa dos povos de língua iorubá

fornecesse ao candomblé sua infra-estrutura de organização, mas

influenciadas pelas contribuições dos demais grupos étnicos. Desse processo

teriam resultado os modelos jeje-nagô e o angola, reconhecidos por ele como

os mais praticados no candomblé.

4.1 Ilícito e o candomblé

41
Raul LODY. candomblé . Religião e resistência cultural. São Paulo, Editora Ática, 1987.
42
Apesar de considerar as religiões africanas como politeístas (diferente da perspectiva desta pesquisa) e
de se referir genericamente por “religiões afro-brasileiras” às religiões de matriz africana e as formadas
com referências culturais adquiridas no Brasil, a obra de Vagner Gonçalves da Silva (2005) é uma das
referências indicadas para os que quiserem mais informações sobre o processo histórico das religiões
formadas do encontro entre tradições africanas, catolicismo português e crenças indígenas brasileiras.
43
“Sudaneses” é a denominação dos grupos originários da África Ocidental e que viviam em territórios
hoje denominados de Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. Incluem os povos iorubás ou nagôs
(subdivididos em keto, ijexá, egbá, etc.), os jejes (ewe ou fon), os fanti-achantis e nações islamizadas
como os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Por “bantos” são chamadas as populações com origem
no atual Congo, Angola e Moçambique e incluem os povos angolas, caçanjes e bengalas, entre outros.
Estima-se que o maior número de escravizados seja proveniente do grupo banto, que também foi o que
exerceu maior influência sobre a cultura brasileira, deixando marcas na música, na língua, na culinária,
etc. (Gonçalves da Silva, 2005, p. 27-28). Xavier (2000, p. 89) diz que os bantos “foram os povoadores do
país, na fase mais ‘hard’ da escravidão brasileira”, trazidos ao Brasil durante os cerca de três séculos e
meio em que aqui perdurou o tráfico negreiro.
39

Na fala do sujeito desta pesquisa, há a presença dos orixás – divindades

do panteão ioruba – Oxóssi, Iansã, Oxum, Ogum e Xangô, além de referências

a Zambi44 e a Pretos-Velhos45, ambos relacionados à matriz banto.

Ilícito é um “simpatizante” do candomblé , alguém que não vive a sua

espiritualidade dentro do terreiro, mas no universo da “percepção percebida” –

acessível pelo contato indireto com as tradições do candomblé . Ao recorrer

aos búzios, ele teve contato com quais seriam, possivelmente, os seus orixás

(em entrevista, foram mencionados Oxóssi e Iansã). Em suas letras, aparecem

com mais freqüência nomes de orixás iorubanos do que nomes de

divindades/entidades das práticas religiosas de influência banto.

Em se tratando, nesta pesquisa, de compreender como o patrimônio

nagô, presente no candomblé , ajuda na construção da identidade

afrodescendente de Ilícito (e, a partir da teoria de identidade aqui utilizada,

como ele pode ser emancipatório na construção dessa identidade), o recorte

metodológico adotado neste capítulo propõe um aprofundamento em dois

temas:

- O patrimônio civilizatório das culturas iorubás, por ser ela a

cultura de onde provém a identidade kêtu/nagô que, no Brasil, é

o “locus” dos orixás, dentre eles, Xangô, a divindade de maior

referencial para o sujeito desta pesquisa.

- A importância dos mitos para os iorubás ou nagôs – como

ficaram conhecidos no Brasil os povos de uma parte da costa

44
Zambi é como ficou conhecida no Brasil a divindade suprema dos cultos de origem banto e da
umbanda. O nome provém do termo multilinguístico banto “Nzambi”, que significa “Ser supremo”.
Zambi corresponde à divindade iorubana Olorum e ao Deus católico (Lopes, 2004, p. 693).
45
Já os Pretos-Velhos são entidades da umbanda, tidos como “espíritos purificados de antigos escravos.
São sempre exemplos de bondade, carinho e sabedoria, agindo como ancestrais protetores, aconselhando
e admoestando, quando necessário” (Lopes, 2004, p. 543).
40

ocidental da África – permitindo-nos conhecer um pouco mais da

relação do sujeito desta pesquisa com aspectos desse

patrimônio civilizatório.

4.2 O império nagô e o candomblé

A presença de um panteão nagô em território brasileiro traduz uma

continuidade civilizatória transatlântica desde a África (Cf. Luz, 2000, p. 50).

O império nagô46 tinha duas cidades que possuíam significado especial:

Oyó, a capital política, e Ilé Ifé47, a cidade sagrada. Esta, a cidade mais

antiga48. Na mesma região em que ela está situada, esteve também o povo nok

– do qual escavações arqueológicas demonstraram haver ali resquícios de uma

civilização que datam de 4 mil anos (Ibid, p. 106).

Para Xavier (2000), a cultura desenvolvida pelo povo nok atesta o grau

de desenvolvimento dessa civilização: vegetais e animais variados foram por

eles domesticados e responsáveis por uma grande produção de cerâmica, ferro

e esculturas, chegando até as esculturas de barro. O período clássico dessa

cultura teria sido entre 900 a.C e os séculos II ou III da era atual. Ainda

46
Cada cidade do império nagô se caracteriza tradicionalmente pelo culto ao seu orixá patrono. Xangô é o
patrono de Oyó; Oxóssi, de Ketu; Oxum, de Oshogbo; Odudua, de Ilé Ifé e assim por diante (Luz, 2000,
p. 104). Segundo Adékoyà (1999), entre os reinos que se desenvolveram nas terras dos iorubás até 1800
estão Owu, Ijebu, Ijexá, Pópó, Egba, Sabé, Dassa, Egbado, Igbomina, Ekiti e Ondó. Esse autor informa
ainda que houve povoamentos iorubanos que não se desenvolveram em reinos (1999, p. 28-40).
47
“Ilé-Ifé é considerada a cidade onde ocorreu a criação do mundo. (...) Talvez Ifé não seja o local de
origem da humanidade, mas bem pode ser um desses locais, uma vez que as descobertas feitas em Asselar
– esqueletos de tipo negróide de várias épocas, alguns extremamente antigos – sugerem que o foco
original desse tipo humano foi precisamente entre o Saara e a África Meridional” (Ribeiro, 1996, p. 84-
85).
48
Segundo Hofbauer (2006), métodos de radiocarbono usados por arqueólogos fizeram com que
estipulassem o seu surgimento entre os séculos IX e XII (“ou até antes”), por ser o período em que teriam
registros da presença de povoado nessa região (p. 295). Para Adékoyà (1999), Ilé-Ifé era habitada
possivelmente desde o século VI d.C, “a data mais antiga fornecida pelo método de radiocarbono a
materiais recolhidos em escavações na cidade” (p. 20).
41

segundo esse autor, os artefatos encontrados na região datariam de antes de

3900 a.C e são associados a períodos remotos da história do Continente.

A tecnologia do ferro, conhecida pelos nok, potencializou a produção de

sua cultura. Com ela, eles puderam produzir lâminas, pontas de lanças e

flechas, argolas para braços, pulsos e tornozelos (Ibid.).

Os traços que ligam a cultura nok aos iorubás estariam relacionados à

conexão existente entre a arte nok e a arte da fase clássica de Ifé, a cidade

sagrada iorubana. Apesar de não haver estudos que assegurem essa relação,

o “link” entre essas culturas é pressuposto pelos que confirmam a presença

antiga de iorubanos49 em terras próximas às que haviam sido habitadas pelo

povo nok, como o historiador Alberto da Costa e Silva, onde hoje se localiza a

Nigéria (Ibid.).

Segundo Bertaux50 (apud Xavier, 2000), o povo iorubá foi o único povo

africano que espontaneamente se aglomerou em grandes cidades, realizadas

em bases urbanas. Esse povo teria desenvolvido instituições políticas

baseadas em laços familiares e ancestrais. Cada cidade e vilarejo dividia-se

em várias linhagens familiares e os seus chefes eram escolhidos segundo a

idade ou pela proximidade genealógica com um grande ancestral, fundador do

primeiro núcleo familiar daquela árvore. Aos mais velhos cabiam as

responsabilidades religiosas, judiciárias e as principais decisões políticas. Mas,

como afirma Xavier, o núcleo central da organização dos iorubás é a família.

49
Alguns autores falam na presença de iorubanos na região desde o ano 1000 (ver XAVIER, 2000, p.
106).
50
P. BERTEAUX. África desde la prehistoria hasta los estados actuales. História Universal Siglo XXI, 3
ed., 1974.
42

Os laços familiares são as ligas que atam toda a estrutura política, social,

cultural e religiosa desse povo. No seio da família e nas suas múltiplas inter-relações

repousam os mecanismo que movem toda a engrenagem do complexo civilizatório

iorubá.

(Xavier, 2000, p. 107)

A sociedade iorubá é patriarcal e os laços de parentesco determinados

por vínculo consangüíneo ou pelo casamento “constituem uma das maiores

forças na vida tradicional africana e controlam as relações entre as pessoas da

comunidade, determinando o comportamento de cada indivíduo em relação aos

demais” (Ribeiro, 1996, p. 91).

Mas, além de estender-se horizontalmente, o sistema de parentesco se

estende também verticalmente, incluindo os falecidos e os ainda não nascidos.

“É forte o senso de pertença histórica, o sentimento de posse de profundas

raízes e o senso de sagrada obrigação para com os antepassados51” (Ibid.,

p.92).

As famílias são quase sempre numerosas e cada indivíduo é

considerado parte de um todo e seu nascimento físico é apenas o primeiro

passo para o ingresso em sua comunidade, havendo rituais de integração ao

grupo. “O ocorrido ao indivíduo ocorreu a seu grupo e o ocorrido ao grupo,

ocorreu ao indivíduo: somos porque sou e por sermos sou” (Ibid., p. 92).

Para Luz (2000), a ancianidade é o maior dos valores da “visão de

mundo do sagrado” do povo iorubá. Dentre esses valores, o indivíduo deve

valorizar-se a si próprio em primeiro lugar, à família, em segundo, mas a

ancianidade prevaleceria na organização do espaço de poder em nível


43

comunitário. Luz (2000, p. 93), citando Fadipe52, diz que a ancianidade é “que

assegura a continuidade, a estabilidade e permanência política e social das

instituições, e que garante os valores de lealdade, cooperação, ajuda mútua e

liderança”.

Outro valor civilizatório iorubá: no plano institucional, o poder masculino

e feminino se complementam e se entrelaçam. Essa complementaridade se

verifica nos cultos dos diferentes grupos e sociedades secretas iorubás, entre

elas, no culto aos ancestrais masculinos (Egunguns), em que, embora as

mulheres não façam parte do segredo, elas possuem títulos e postos de grande

significado; no culto Gelede53, dedicado aos ancestrais femininos e no culto aos

orixás, em que, em geral, são as mulheres que têm acesso ao segredo; os

homens, porém, possuem importante funções e títulos honoríficos (Cf. Luz,

2000, p. 40).

4.2.1 A oralidade, o gestual e a roda sagrada: transmissores de axé


fora da esfera do terreiro

As contações de histórias, os antigos pregoeiros que ainda hoje passam

pelos bairros de periferia de São Paulo, a corporalidade do contato, que faz

com que brasileiros sejam vistos como um povo caloroso, acolhedor, as rodas

51
“Serão os filhos que representarão os pais depois da morte, e os cultuarão como ancestrais, mantendo
continuamente presente a sua existência” (Luz, 2000, p. 40).
52
Apud Vivaldo da Costa LIMA. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de
relações intergrupais. Salvador-BA: UFBA. (Tese de MS em Ciências Sociais), 1977, 208 p.
53
“A Sociedade Gelede, integrada por homens e mulheres, cultua as Iya-agba, também chamadas Yami,
que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino. Dirigidas pelas erelu, mulheres
detentoras dos segredos e poderes de Iyami, (...) o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar
os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de
conduta. Seu festival é realizado anualmente, por ocasião da colheita do inhame, e dura sete dias. No
Brasil, a festa de Gelede, realizada no candomblé do Engenho Velho, era comemorada no dia 8 de
dezembro, em Boa Viagem (Bahia), sob a condução da ialorixá Maria Júlia Figueiredo, que recebia o
nobre título de Iyalode-erelu (Ribeiro, 1996, p. 159).
44

de samba, os pagodes de mesa... Esses são alguns exemplos de como a

oralidade, o gestual e a roda marcam a identidade do povo brasileiro. Para a

historiadora Antonieta Antonacci (2002, p. 176), trata-se de corpos que trazem

“memória” e, nela, saberes, crenças e costumes. “Entre nós, tais corpos e

culturas refizeram-se, colorindo, musicalizando, encantando nosso cotidiano”,

por exemplo, com os chamados “cantos-falados” (embolada, repente, moda-de-

viola, ladainha e outras cantorias) que, vindo aos dias de hoje, chegam ao rap

– conexão que é feita por Ilícito, como será visto mais adiante.

O som e a fala, para os iorubás, se constituem em “expressões da força

individualizada nos seres do aiyê [terra]”. Todos os seres possuem força, axé, e

falam e escutam – incluindo-se aí dos elementos minerais aos vegetais, dos

animais aos seres humanos (Luz, 2000, p. 454). Sodré também nos fala a esse

respeito:

... a transmissão de axé implica na comunicação de um cosmos que já inclui

passado e futuro. Nesse processo, a palavra pronunciada é muito importante, porque

pressupõe hálito – logo, vida e história do emissor. Não têm aí vigência, no entanto,

mecanismos de lógica analítica ou da razão instrumental, pois a transmissão se opera

pelo deslocamento espacial de um conjunto simbólico – gestos, danças, gritos,

palavras – em que o corpo do indivíduo tem papel fundamental. A língua deixa de ser

regida pelo sentido finalístico (isto é, por seu valor de troca semântico), para atingir a

esfera própria do símbolo (a instauração ou a recriação de uma ordem) e tornar-se

veículo condutor de força.

(1988, p. 96)
45

Culturas tradicionais do mundo todo podem apresentar esses mesmos

elementos. O que se apresenta, aqui, é a necessidade de apontar que valores

estão por trás desses elementos no patrimônio civilizatório dos nagôs.

Como nos informa Xavier (2000), a oralidade “tem como função a

comunicação cotidiana, a formação da identidade, a preservação do saber

ancestral via transmissão oral, a formação da herança cultural, a constituição

da memória coletiva daquela tradição e a transmissão do patrimônio cultural às

gerações futuras” (p. 108).

A importância da oralidade está em uma forma peculiar de sociabilidade,

que preserva a importância do contato pessoal com os mais velhos como forma

de aprendizado a respeito da vida. Essa sociabilidade própria do grupo humano

em questão (os nagôs) traduz-se no candomblé na questão da iniciação,

quando pensamos que, no terreiro, os ensinamentos provêm de alguém mais

velho, que por mais tempo recebeu outros ensinamentos de alguém também

mais velho que ele, e assim sucessivamente.

Entre os iorubás, a tradição também está vinculada à dinamicidade de

sua cosmologia, “a propulsão de todo o sistema cosmográfico, tanto nas

dimensões religiosas quanto na vida social do povo iorubá”. A palavra, entre

esse grupo, mobilizou o movimento perpétuo da criação cósmica: ela é um dos

agentes de renovação da existência (Ibid., p. 113-114).

A sociabilidade por meio da cultura oral e gestual, em que a dança e o

movimento conformam símbolos importantes na comunicação e no contato

com o sagrado, está entre as particularidades presentes em diferentes povos

africanos que foram vistas como inferiores pelos europeus e usadas entre os

argumentos usados para justificar a escravidão.


46

A “roda sagrada” marca muito das expressões coletivas brasileiras.

Futebol, samba e capoeira são alguns dos exemplos. A dramatização temporal-

espacial na “cultura negra”, o ritmo do universo, o ciclo vital, o ciclo dos

nascimentos, morte, renascimentos, a passagem do dia e das noites... Tudo

isso é representado pela roda. Como aprofundamento, peguemos o exemplo

da capoeira, que se caracteriza por “imprimir uma cadência, um ritmo de

envolvimento, procurando criar o vazio para o adversário para então arrematar

sobre ele o golpe inusitado. O vazio está onde não se espera” (Luz, 2000, p.

489-490).

A “roda” também é o lugar onde os filhos-de-santo e os orixás

incorporados dançam no xirê – onde, portanto, se encontram unidos todos

esses elementos: a oralidade (pelas cantigas) e as danças e sistemas gestuais,

combinados com códigos e repertórios de cores, vestuário, jóias, emblemas...

(Ibid., p. 458).

4.2.2 A importância dos mitos

Campbell considera que os mitos “são pistas para as potencialidades

espirituais da vida humana” (Campbell & Moyers, 1990, p. 6). O autor também

entende o mito como sendo a abertura secreta através da qual as inexauríveis

energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. Segundo

ele, no mundo habitado, “em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os

mitos humanos têm florescido” (1997, p. 15). Entre o povo iorubá, ao contrário

das civilizações ocidentais, os mitos nunca deixaram de constituir forte

referência em sua cultura e formas de organização social.


47

Segundo Prandi (2001), os mitos dos orixás fazem parte dos poemas

oraculares cultivados pelos babalaôs54 e falam da criação do mundo, de como

ele foi repartido entre os orixás e relatam inúmeras situações envolvendo

deuses, homens, animais, plantas, elementos da natureza e da vida em

sociedade:

Na sociedade tradicional iorubá, sociedade não histórica, é pelo mito que se

alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o

presente

e se prediz o futuro, nesta e na outra vida.

(Prandi, 2001, p. 24)

Esse corpo mítico é transmitido oralmente, uma vez que esse é um dos

fundamentos das sociedades iorubanas.

Salami (1997) pontua que a compreensão do discurso iorubá, no

entanto, exige um esforço de “interpretação exegética” de seus mitos e não

uma desmitificação (p. 67). Para ele, os povos iorubás têm no mito muito de

suas bases de realidade.

A narrativa remete o ouvinte ao universo onde o mito se constitui e é

impregnada de mistério religioso. Ao desencadear sentimentos de reverência, respeito

e amor pelo Divino, o mito favorece que o grupo firme e reafirme sua sociabilidade e

identidade.

(Ibid., p. 66)

54
Os babalaôs, ou “pais do segredo”, são os sacerdotes do oráculo de Ifá (Orunmilá), a quem é
transmitido “todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o
governo do mundo dos homens e da natureza” (Prandi, 2001, p. 17)
48

4.2.2.1 O mito do ori: os seres humanos como autores do seu


destino

O diálogo mais profundo entre mito e identidade se dará no capítulo

referente à análise da identidade. Para dar início a esse diálogo, no entanto,

vejamos o mito iorubano que fala de como os seres humanos são autores de

seu destino.

Oxalá e Ijalá são as divindades modeladoras do ori55. Cada ser criado escolhe

livremente o próprio ori e o próprio Odu – signo regente de seu destino. Ijalá, embora

notável em sua habilidade, não é muito responsável e, por isso, muitas vezes modela

cabeças defeituosas: pode esquecer de colocar alguns acabamentos ou detalhes

necessários, como pode, ao levá-los ao forno para queimar, deixá-las por tempo

demasiado ou insuficiente. Tais cabeças tornam-se, assim, potencialmente fracas,

incapazes de empreender a longa jornada para a terra, sem prejuízos. Se,

desafortunadamente, um homem escolhe uma dessas cabeças malmodeladas, estará

destinado a fracassar na vida. Durante sua jornada para a terra, a cabeça que

permaneceu por tempo insuficiente ou demasiado no forno poderá não resistir à ação

de uma chuva forte e chegará mais danificada ainda. Todo o esforço empreendido

para obter sucesso na vida terrena terá grande parte de seus efeitos desviada para

reparar tais estragos. Pelo contrário, se um homem tem a sorte de escolher uma das

cabeças realmente boas, tornar-se-á próspero e bem-sucedido na terra, uma vez que

sua cabeça chega intacta e seus esforços redundam em construção real de tudo

aquilo que se proponha a realizar. O trabalho árduo trará ao homem afortunado em

sua escolha excelentes resultados, já que nada é necessário despender para reparar a

própria cabeça. Assim, para usufruir o sucesso potencial que a escolha de um bom ori
49

acarreta, o homem deve trabalhar arduamente. Aqueles, entretanto, que escolheram

um mau ori têm poucas esperanças de progresso, ainda que passem o tempo todo se

esforçando.

(Ribeiro, 1996, p. 110-111)

O mito do ori pode ser relacionado à idéia de identidade-metamorfose ao

falar do homem enquanto autor de sua identidade e de quem dependem as

decisões tomadas para que possa viver melhor. E essas decisões podem ser

emancipatórias, dependendo dos caminhos que ele escolher. Usando os

termos presentes no referencial teórico desta pesquisa, para que sua

identidade seja emancipatória, ele deve ir à busca de uma autonomia em

contraposição à heteronomia, deve buscar uma sociedade mais igualitária e

democrática.

4.3 Alteridade como valor do legado “nagô”

Para iniciar este subcapítulo, comecemos com a definição de alteridade:

Substantivo feminino. Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto

(Houaiss, 2006).

O respeito à alteridade é uma das marcas da cultura iorubá. Alteridade

que foi e continua sendo, no contexto mundial atual, uma questão que nos

custa caro. No Brasil, o não-respeito à alteridade tem início com a chegada dos

portugueses, com os valores presentes no cristianismo, cuja característica é a

55
Na tradição dos orixás, denominação da cabeça humana como sede do conhecimento e do espírito.
Também, forma de consciência presente em toda a natureza, inclusive em animais e plantas, guiada por
uma força específica que é o orixá (Nei LOPES, 2004, p. 498).
50

de se proclamar detentor da única verdade absoluta “revelada por Deus” (Cf.

Luz, 2000, p. 191).

Em sua tese de doutorado, Luz chama a atenção para a atuação dos

portugueses no Brasil e para os valores civilizatórios opostos ao dos

europeus presentes, originariamente, na África e na América.

Segundo o autor, uma característica marcante da política

implementada tanto pela Igreja – que compunha o governo colonial - como

pelas instituições constituintes de tal governo é a identificação dela “pelos

valores de uma cultura de imposição e redução da alteridade à

desigualdade”.

Esse impulso à imposição, característico da cultura ocidental, se distingue

completamente do impulso à aceitação da alteridade presente nas culturas dos

diferentes povos da África e da América. Aqui, o outro é qualificado de estrangeiro,

respeitado em sua diferença, merecedor de modo geral das honras de hospitalidade.

Esta forma de lidar com a alteridade, por outro lado, realça a identidade própria do

hospedeiro, que valoriza a diferença e assim destaca a sua pertinência grupal.

(Luz, 2000, p. 189)

A respeito da concepção dos iorubás, Sodré aponta que os poderes

decorrentes do axé (a autoridade) também dependem de um consenso

comunitário: “são poderes sutis, que implicam energias poderosas, umas mais

velhas que as outras, como também acontece na ontologia banto” (1988, p.

89).
51

Quem tem autoridade, nas sociedades iorubás, é o mais velho. Não pelo

fator biológico exclusivamente, mas por causa de sua antiguidade iniciática56

ou de sabedoria. Um conceito fundamental iorubá (inalterado mesmo após os

fatores históricos com europeus) é o conceito presente no aforismo “Ogbon ju

agbara” (“a sabedoria é maior que a força física”). A sabedoria do iorubano, no

entanto, não é a mesma do saber das letras – já (re)conhecidas por eles

durante o período colonial –, mas a sabedoria ética, presente nos valores,

mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos, inseridos no “quadro da

antiguidade ou da tradição”. Essa sabedoria, nos diz Sodré, “implica sempre

(grifo nosso) em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do

axé é requisito indispensável à aquisição do conhecimento real” (Ibid., p. 90-

91).

O mesmo autor (Ibid., p. 164) aponta que a “comunidade-terreiro” nos

tem oferecido um antídoto para essa “dificuldade visceral do Ocidente em

face da aproximação do real, territorial, das diferenças”. Para ele,

...não se trata de nenhuma comunidade fundada em ‘raça’ ou em ‘autenticidade

nacional’, mas de afirmação de um espaço de alacridade, de jogo do cosmos com o

mundo. Através dele, os negros [ou os que partilhem, por identificação, desse

repertório] instauram ritmicamente lugares de acerto entre os homens, de

56
Iniciação, para os iorubás e os nagôs, está relacionado ao conceito de que o conhecimento é “prático”.
Conhecer, saber, é experimentar, sentir, vivenciar. O conhecimento “alcança planos de elaboração e de
poder inerente à lida com forças que dinamizam o mundo que são, de certa forma, indizíveis ou inefáveis;
a palavra escrita é, portanto, incapaz de relatar” (Luz, 2000, p. 458). No Brasil, “iniciar-se” pode referir-
se ao ciclo relativo à raspagem da cabeça por parte de um filho-de-santo de uma casa de candomblé. Este
termo é mais usado entre antropólogos. Entre o povo-de-santo, usa-se “fazer o santo”, como referido por
Vanda Machado durante palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Salvador
(BA), em novembro de 2006. Esse uso possivelmente se deva ao fato de que, ao fazer parte de um egbé, o
período iniciático de um filho-de-santo compreende estágios anteriores e posteriores à feitura do santo e o
conjunto dessas etapas é que integra o período total da iniciação.
52

reversibilidade entre os entes e assim expõem a ambivalência de toda identidade

(que o Ocidente quer, no entanto, estável, universal, hegemônica)

(Sodré, 1988, p. 164)

O aspecto social do candomblé também é um ponto que gostaríamos de

ressaltar. A esse respeito, Hofbauer nos diz que

...As concepções iorubanas do sagrado e das relações de poder (princípio

àse/axé) não apenas podiam servir [no pós-abolição] aos desprivilegiados de base de

interpretação de sua realidade social, mas podiam também orientar e incentivar ações

sociais eficazes que, dentro das regras impostas, proporcionassem os resultados

ansiados. Além disso, não se deve esquecer de que as casas de candomblé

constituíram, certamente, desde sempre, comunidades de solidariedade nas quais os

adeptos podem também encontrar conforto e criar forças para enfrentar as

discriminações e frustrações do dia-a-dia. E até hoje funcionam, nos bairros das

periferias urbanas, freqüentemente como espaços de acolhimento que atendem

pessoas à procura de conselho e ajuda para os mais diversos problemas pessoais.

(Hofbauer, 2006, p. 327)

Sendo uma religião “aberta a todos” (Bernardo, 2003, p. 150) – um dia

visto como religião étnica57 como reverso do racismo do qual foi e ainda é

vítima e que afasta(va) os “não-negros” do terreiro –, o candomblé traz, em

si, o respeito ao homem enquanto ser universal, no qual o respeito às

diferenças é essencial.

57
Ou pela denominação homogeneizante que os europeus atribuíram aos descendentes de africanos no
Brasil, religião “de negros”.
53

Uma nota antes de finalizar este capítulo, a partir dos escritos da

educadora baiana Vanda Machado: no candomblé, “a crença e a

observância dos ‘fundamentos’ (segredos da religião) não invalidam o

espírito de insurgência característico do povo negro [ou afrodescendente, na

denominação adotada nesta pesquisa]”. Aspectos culturais que podem

parecer estáticos e conformistas, nos lembra a autora, “recriam-se a si

mesmos, sempre que as relações que determinam a condição da existência

sofrem interferência inadequada” (2002, p. 129).

5 Análise da entrevista da perspectiva étnica


5.1 Etnicidade

Para Max Weber, a crença na (e não o fato da) origem comum constitui

o traço característico da etnicidade. O que Weber chama de “grupos étnicos”

são os grupos humanos que alimentam a crença subjetiva na sua

descendência comum em razão de semelhanças físicas, de costumes ou de

ambas; ou por causa de memórias relativas à colonização e migração, sem

importar se há ou não relação consangüínea. “Ethnic membership

(Gemeinsamkeit) differs from the kinship group precisely by being a presumed

identity, not a group with concrete social action, like the latter”58 (Weber, 1968,

p. 389).

Nesse sentido, a pertença59 étnica não constitui um grupo: ela facilita a

formação de grupos de muitos tipos, especialmente na esfera política. Seria

58
“Pertença étnica se diferencia dos grupos de parentesco exatamente por ser uma identidade presumida,
não um grupo com ação social concreta, como este último” (tradução nossa).
59
No texto em inglês, o termo usado é “membership”, qualidade ou estado de membro ou sócio, aqui
traduzido como “pertença”.
54

pela comunidade política que as crenças na etnicidade comum seriam

estimuladas e essa crença tenderia a persistir mesmo após a desintegração da

comunidade política, a menos que existam entre seus membros diferenças

drásticas nos costumes, no tipo físico ou, principalmente, na linguagem (Cf.

Weber, 1968, p. 389).

A definição de Weber parece adequada para a questão dos

afrodescendentes no Brasileiro – em que indivíduos, por iniciativa pessoal (às

vezes fruto de discussões no interior da família), decidem fazer parte de um

grupo em função de interesses políticos, interesses relacionados a direitos

iguais para uma parcela da população que é historicamente discriminada nos

vários níveis da sociedade.

A mistura entre diferentes grupos humanos também é um dos elementos

que nos faz refletir nessa direção: a filiação, portanto, não bastaria para definir

uma identidade étnica. Dependendo do grupo ou das circunstâncias, ela pode

ser mais útil ou menos útil para “determinar a pertença”, afirmam Poutignat &

Streiff-Fenart (1997). Para os autores, é preciso também que a identidade seja

manifestada. “Na maioria dos casos, a exibição de certos atributos que são

considerados como a marca de origem comum basta por si mesma para

corroborar a idéia do laço genealógico presumido”. O que diferenciaria a

identidade étnica de outras formas de identidade coletivas (religiosas ou

políticas) é que ela seria orientada para o passado (Ibid., p. 162).

Falar uma língua comum, viver em um mesmo território, compartilhar,

tradicionalmente, uma mesma religião. Essas são dimensões classicamente

levadas em conta para definir o grupo étnico que, da perspectiva dos autores
55

em questão, passariam a funcionar como recursos que podem ser mobilizados

para manter ou criar o mito da origem comum.

Embora determinados atributos culturais (como a língua) estejam em melhor

posição para serem nisso utilizados, nenhum pode merecer o crédito de uma validade

universal e essencial para a identificação étnica. Nem o fato de falarem uma mesma

língua, nem a contigüidade territorial, nem a semelhança dos costumes representam

por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como

marcadores de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum.

(Poutignat e Streiff-Fenart, 1997, p. 163)

É o caso dos descendentes dos imigrados e os povos em diáspora, em

que o território de origem constitui um recurso sempre disponível, mesmo

quando as semelhanças culturais e lingüísticas já se apagaram (Ibid., p. 163).

Entre os povos em diáspora, estão os diferentes grupos de africanos levados

forçadamente ao Novo Mundo com a escravidão.

Ilícito apresenta a questão étnica como elemento central para a

problemática social brasileira. “[No Brasil há] O lance de não saber respeitar as

etnias, muito mais que a [questão da] pigmentação e a cor da pele. As etnias

indígenas, africanas, européias, árabes, toda a influência mundial... A raça do

planeta tá aqui. Todas [as raças]. Os orientais... tudo. É [preciso] saber

respeitar isso. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que eu

vejo que foi tão agressiva quanto a norte-americana, e talvez até muito mais,

porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado?, mas que é loco, [aqui] é

o caldeirão das raças, caldeirão do mundo”.


56

“Agressiva”. É assim que ele se refere à mistura de raças levada a cabo

no Brasil em grande parte pela ideologia racial elaborada a partir do fim do

século XIX até meados do XX pela elite brasileira, baseada no ideário do

embranquecimento e responsável por alienar negros e mestiços do processo

de identidade de ambos (Cf. Munanga, 2004, p. 15). O processo em questão,

no entanto, é melhor desenvolvido no capítulo referente à análise das

entrevistas da perspectiva da identidade do sujeito desta pesquisa.

5.2 O Brasil e a “cordialidade transracial”

No Brasil, raça para Sansone (2004) se entrelaça com etnicidade: a

“raça” existe e é praticada graças a um conjunto de símbolos étnicos, ao passo

que a identificação étnica é freqüentemente racializada – adquire conotações

fenotípicas. O autor está entre os pesquisadores que “abominam” o termo – e,

por isso, o utiliza entre aspas – mas entende que, para além da popularidade e

da indeterminação que ele tem no País, raça é uma das muitas maneiras de

expressar e vivenciar a etnicidade, colocando-se a ênfase no fenótipo.

Sansone chama a esse processo de “racialização”. Para o autor, “devemos

desconstruir o significado de negritude e da branquidade no contexto de

nossos locais de pesquisa, e devemos insistir em (processos de) racialização,

em vez de entrarmos em sintonia com o clima popular e começarmos a usar

‘raça’ sem nenhum questionamento de sua naturalidade intrínseca” (Ibid.) .

A tese de Sansone é de que, em toda a América Latina, as relações

interétnicas e a racialização dos grupos sociais ocorreram segundo um padrão

comum, que se caracteriza por uma tradição de casamentos mistos, muito

difundidos entre pessoas de fenótipos diferentes, por um continuum racial ou


57

de cor, em vez de um sistema polarizado de classificação racial, por uma

cordialidade transracial nas horas de lazer, entre as classes mais baixas, por

uma longa história de sincretismo no campo da religião e da cultura popular, e

por uma organização política relativamente fraca com base na raça e na

etnicidade, a despeito de uma longa história de discriminação racial. Para esse

autor, os negros, e às vezes, os índios, não são vistos e tendem a não ver a si

mesmos como constituindo uma comunidade étnica e entre as razões disso

estaria a desvalorização e a conotação negativa existente sobre o negro na

América Latina (Cf. Sansone, 2004, p. 19)60.

Sansone coloca que o tipo de relações raciais que se podem considerar

típicas da América Latina deu margem à manipulação da identidade racial (a

qual Ilícito se referiu quando mencionou a atuação da mistura no inconsciente

da população), sobretudo no plano individual, e tendeu a não fomentar a

mobilização étnica e a formação de grupos étnicos (Ibid., p. 20). Nas últimas

décadas, no entanto, a atitude dos cientistas sociais para com as relações

raciais na América Latina se modificou. Os estudiosos latino-americanos se

tornaram mais críticos (1) quanto ao sistema de relações raciais dos países da

região, (2) em relação aos mitos raciais nacionais (as “identidades nacionais”

que suprimem as identidades étnicas, como apontará Munanga mais adiante) e

(3) à tendência a excluir cor e a etnia como variáveis na explicação de

fenômenos sociais como a pobreza (Sansone, 2004, p.21). Nessa perspectiva,

60
Para Bacelar, professor da Universidade Federal da Bahia, há uma “confusão conceitual” na ponte feita
entre raça e etnia por Sansone. Bacelar pontua que o que pode ser assinalado aí é que “a identidade
cultural (negra) não estabelece uma relação causal com as formulações coletivas da identidade racial da
militância negra”. Para ele, o indivíduo pode ser rastafari, membro de um grupo cultural negro ou do
candomblé, o que não quer dizer que ele problematize a questão racial ou se envolva necessariamente
com os “movimentos negros” (Jeferson BACELAR, 2004).
58

Sansone alerta que o Brasil – antigamente retratado como um paraíso racial,

com sua enorme população negra –, passou a ser visto como um inferno racial.

A partir dessa observação, voltamos às formulações de Ilícito: “Eu luto

contra o racismo. Luto contra as diferenças, as indiferenças, minha luta é

baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a sociedade brasileira, onde o

racismo é implantado nas leis e foi jogado pro povo, como lidar [com] e

respeitar as etnias. É problema étnico”. A esse respeito, Josildeth Consorte

escreve que a assunção de uma “identidade negra” (aqui, afrodescendente) é

condição essencial à luta contra o racismo no Brasil (1999, p. 117). E que os

“mestiços”, ao negarem a mestiçagem como um valor e compartilharem de

uma identidade afrodescendente, como é o caso de Ilícito, têm papel

fundamental nessa luta. É o caso da luta presente no movimento hip-hop, que

tem procurado fazer-se cada vez mais presente na cena política brasileira

(eleitoral, inclusive: em 2006, candidatos a cargos no Legislativo de várias

cidades saíram levantando a bandeira racial e, em São Paulo, um desses

candidatos era um rapper – Aliado G, candidato pelo PC do B a Deputado

Estadual). Na direção do que Consorte chama de “assunção de uma identidade

negra”, Ilícito diz

eu acho que [negritude] é um lance que vai além da cor da pele, é um


lance de uma poesia que fala “que a pele negra não seja escudo para os que
habitam na senzala do silêncio porque nascer negro é conseqüência, ser é
consciência”.

5.3 Mestiçagem e afrodescendência

A fala do rapper presente nesta pesquisa dá a entender que, quando é

visto como “negro”, é mais pela atitude (fazer música de preto, manifestar

idéias críticas ao “poder branco hereditário”) do que pelo fenótipo.


59

Pra mim, o mais difícil, foi me assumir como branco, tá ligado? (...) O
lance tá na ligação da pigmentação, né? Vai muito mais além dos traços e... se
falar ‘sou afro-descendente’, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu sou
branco, entendeu? Isso aí, pra mim, foi difícil de assumir.

Negritude versus branquidade. Essa parece ser a problemática apontada

por Ilícito que, ao ter pele branca, é branco. Mas, pelos “traços”, é mestiço de

negro com branco. Afrodescendente, no termo usado por ele.

A mestiçagem está entre os legados do ideário do branqueamento

implantado no Brasil pelos colonizadores portugueses. O processo de

branqueamento físico da sociedade fracassou, mas o seu ideal, por meio de

mecanismos psicológicos, não. Segundo Munanga (2004), esse ideal

“prejudica qualquer busca de identidade baseada na negritude e na

mestiçagem, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por

julgarem superior”.

Munanga critica os que tentam encaminhar a discussão em torno da

identidade “mestiça”, enxergando nessa proposta uma nova “sutileza

ideológica” para recuperar a idéia de unidade nacional não alcançada pelo

fracasso do branqueamento físico. “Essa proposta de uma nova identidade

mestiça, única, vai na contramão dos movimentos negros e outras chamadas

minorias, que lutam para a construção de uma sociedade plural e de

identidades múltiplas” (2004, p. 16). A utilização do termo “afrodescendente”,

empregado por Ilícito, seria uma das possibilidades de se criar um “consenso”

em torno da questão negra. Consenso esse que a identidade “negra” ou

“mestiça” não estaria conseguindo criar, como pontua o autor.

Ilícito se identifica com uma identidade “mestiça”? Será que, para ele,

uma possível condição social “comum” de negros pobres e brancos pobres

neutraliza o racismo? “Sou branco”, ele diz. Mas também diz: “sou
60

afrodescendente”. Será que isso se deveu à já referida condição social de

situação de pobreza? “Não sou esse branco que cê tá falando”. Não ser “esse

branco” faz referência ao sistema “hereditário escravocrata” herdado do Brasil

colônia até os dias de hoje. Diz, também, respeito à situação de classe. Mas,

nas palavras dele, “o branco continua superior em tudo”. “Tudo”, aí, extrapola a

situação social. A mistura não neutraliza o que enxerga como racismo na

sociedade brasileira. Na visão de Ilícito, ela foi agressiva no País, trabalhou no

inconsciente do povo. Que desconhece as suas origens, como o rapper coloca

quando fala que perguntava ao meu pai e aos amigos negros sobre a origem

dos povos negros presentes no Brasil e ouvia como resposta que vinham da

“Cafelândia” (em referência às plantações de café do interior de São Paulo de

onde vieram parte dos negros para a capital do estado), enquanto o que ele

queria saber era de que etnias africanas eles provinham.

Para Ilícito, a mistura que atuou no inconsciente do povo brasileiro foi a

que levou a sua população ao ideal do branqueamento, a “mestiçagem

perversa” como a chama Sansone. Em meio a essa mistura, a gente comum se

vê dentro do que ele chama de continuum racial, definição do pesquisador para

a gradação de cores da população brasileira, fruto das muitas misturas de raça

(Cf. Sansone, 2004, p. 24). O autor aponta para o fato de que, para o povo, não

há diferença entre cultura, etnia e raça; as distinções entre os três termos

desaparecem pela influência dos meios de comunicação de massa. Sansone

aponta ainda para o fato de que a maioria das definições de negritude

empregada por estudiosos e por órgãos de governo na América Latina teriam

pouca ou nenhuma correspondência com as definições usadas na vida

cotidiana pela gente comum, negra e não-negra (Ibid., p. 25). É no sentido


61

dessa constatação, já apontada pelo Movimento Negro brasileiro, que o uso do

termo “afrodescendente” foi escolhido para essa pesquisa. E Ilícito faz

referência a esse fato quando diz que

Assim como o negro teve várias definições [várias nomenclaturas], eu,


fazendo música de preto [rap], também tem várias definições. Quando eu ando
pelo Brasil, me chamam de várias formas, tá ligado? O último foi ‘africano de
pele clara’.

Falar da variedade de nomenclaturas relativas aos diferentes tons de

pele no Brasil é refletir sobre a importância dada ao fenótipo como

diferenciador nas relações sociais. As culturas vindas de África foram

inferiorizadas. A colonização agiu no sentido de solapá-las e a República deu

continuidade a essa tentativa. Como aponta Consorte (1999), o universo

cultural que aqui se construiu a partir de matrizes africanas não combinava com

o projeto de país comprometido com a civilização ocidental que se desejava

implantar. Ao longo dos anos 30, o samba, a capoeira e, sobretudo, o

candomblé foram alvos de dura perseguição policial (p. 113-114).

A introdução do conceito de raça na reflexão sobre o negro no Brasil se

dá no fim do século XIX, quando se pretendeu compreender a diversidade que

caracterizava os africanos e seus descendentes da perspectiva dos seus

atributos físicos. Por esse viés, as manifestações culturais dos negros eram

analisadas a partir das capacidades intelectuais geneticamente herdadas. Essa

tradição, herdada do evolucionismo, foi combatida pela crítica culturalista,

responsável por deslocar a ótica biologizante para a ótica da cultura e dissociar

raça de cultura. Essa dissociação, no entanto, não impediu que as relações


62

sociais entre pretos, mestiços e brancos continuassem a ser mediadas pelo

preconceito racial (Consorte, 1998).

É com a passagem de objeto a sujeito das pesquisas sobre o negro no

Brasil e com o início da discussão sobre o problema de sua identidade que a

dimensão étnica entra em pauta, apontando um novo referencial de abordagem

para o tema – em que estão presentes as idéias de comunidade de origem,

língua, religião, costumes e, principalmente, sentimento de pertença (Ibid.) .

Esta última, talvez, a mais presente entre os que reinvidicam uma identidade

afrodescendente no Brasil. As demais, ao que parece, passam pelo processo

de construção. Nas palavras de Consorte, “quer nos parecer que enquanto a

utilização exclusiva do conceito de raça aponta para o passado, para uma

forma distorcida de pensar a alteridade constituída pelo negro na sociedade

brasileira, o conceito de etnia aponta para o futuro, para o que se deseja e

busca construir” (Ibid.) .

Pensar sobre a especificidade das culturas constituídas a partir das

matrizes africanas no Brasil mostra-se um caminho adequado para essa

reflexão.

Para Sansone (2004), a peculiaridade das culturas e identidades negras

(ou afrodescendentes) em relação a outras formas de identificação étnica e de

produção cultural consiste em poder definir a cultura negra como a subcultura

específica das pessoas de origem africana dentro de um sistema social que

enfatize a cor, ou a ascendência a partir da cor, como um critério importante de

diferenciação ou segregação das pessoas. Para ele, convém considerar a

cultura negra como uma subcultura da cultura ocidental, muitas vezes quase

submergida na cultura popular ou numa determinada cultura de classe baixa:


63

ela não é fixa nem completamente abrangente e resulta de um conjunto

específico de relações sociais, neste caso entre grupos racialmente definidos

como “brancos e negros” (Ibid., p. 23).

Já para Munanga (2004), a particularidade da identidade negra está no

fato de que “as culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que

resistiram, ou que elas conquistaram em seus novos territórios”. E essa

identidade é sempre um processo e nunca um produto acabado. No que diz

respeito à identidade negra construída pelos movimentos negros

contemporâneos, essa construção é buscada

... a partir de peculiaridades do seu grupo: seu passado histórico como herdeiro

dos escravizados africanos, sua situação como membros de grupo estigmatizado,

racializado e excluído das posições de comando na sociedade cuja construção contou

com seu trabalho gratuito, como membros de grupos étnico-racial que teve sua

humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identificação passa por sua cor, ou

seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente.

(Munanga, 2004, p. 14)

Ao colocar no centro do debate a construção da diferença, a questão da

identidade afrodescendente exige de nós, pesquisadores, um repensar dos

elementos que entram no seu processo de construção. Utilizo do pensamento

da professora Josildeth Gomes Consorte (1991) para falar em identidade

afrodescendente – e não identidade negra, como colocado por ela, Munanga

(2004) e Sansone (2004). Entre as questões a serem repensadas, estão as

perguntas referentes aos lugares por onde passa a identidade do

afrodescendente brasileiro, se essa identidade pode ser considerada a partir


64

das múltiplas experiências vividas por ele aqui, neste solo brasileiro, e quais os

espaços, as circunstâncias e que cara tem a cultura “negra” no Brasil. É

caminhando por esse repensar que esta pesquisa se propõe a trilhar o

percurso da etnicidade apontada por Ilícito.

5.4 Pensando a questão da religiosidade

Há casos em que a religião pode desempenhar um papel central no

processo de definição do grupo étnico, particularmente quando ela se apóia

num mito de eleição, ou quando ela é substituída por um código legal distintivo,

regrando os aspectos mais íntimos da vida (Cf. Poutignat & Streiff-Fenart,

1997, p. 163). Sabemos, este é o caso do islã. E, em partes, também do

candomblé, uma das muitas religiões afro-brasileiras, que tem como

fundamento o culto aos ancestrais míticos do povo iorubá, os orixás.

Ilícito vê uma relação existente entre o santo daime e o candomblé por

ambas dizerem respeito a culto a ancestrais:

O daime, pelo que eu tô entendendo ultimamente, é uma parada que


vem dos indígenas, passou pro ‘Negrão’, que é o Raimundo Irineu, depois do
‘Negrão’, foi pruns brancos. E hoje tá na mão da elite, não generalizando,
porque várias tribos indígenas tem seu ritual do daime, que às vezes usam
outros nomes.

Há “várias matrizes” do daime, nas palavras de Ilícito. A que ele

freqüenta é mais ligada ao candomblé. Mas a diferença entre o candomblé e o

daime, na opinião dele, está neste último “não ser tão fechado assim”. E em

sendo ele um hip-hopper, sinônimo de ser universal, é preciso “não ser tão
65

fechado assim”. Como quando ele explica o processo “evolutivo” de alguém

que passa de “querer ser” do hip-hop a “ser” do hip-hop.

Ele [alguém hipotético] começou indo comprar um ‘kit’ na galeria [24 de


Maio, em São Paulo]. Então ele ‘pára’ no estilo, e só fica a roupa, né? Pelo
menos foi um início. Daí ele conhece o som. Depois ele quer entender do que
aquele som tá falando, aí ele ouve um rap brasileiro, aí ele vai numa palestra,
aí ele acha que é [play]boy, depois ele fala ‘não, eu sou branco; não, sou
preto’.

“Ser universal”, então, parece adquirir contornos de “abrir-se” para

questões que estão sendo discutidas mundo-afora. E essas questões passam

pela discussão sobre “etnia”, na leitura que Ilícito traz do termo.

Aí quando cê vê, depois de uns cinco, dez anos, dependendo da


evolução de cada pessoa, ele não é mais um ‘kit’ hip-hop, ele já tá vivendo
aquilo. Aquilo tá transformando ele pro mundo, pra ter uma visão universal da
parada, entendeu? É isso que eu tô falando, que o hip-hop é o mecanismo, é o
trabalho cultural...

O trabalho cultural do hip-hop leva a uma visão “universal” e que, para

exemplificar, Ilícito traz a experiência do Ilê Ayê que, ensinando sobre as

culturas africanas, possibilita que crianças e jovens afrodescendentes possam

conhecer suas raízes africanas, o que os coloca em lugar de igualdade com os

demais povos ao entenderem que os grupos humanos são diversos e por isso

têm diferentes culturas, mas elas podem ser compartilhadas e merecem estar

em lugar de igualdade na sociedade.

Pega das raízes africanas. O Ilê Ayê, lá da Bahia, tem um trabalho de


base até a 4ª série, dentro do Ilê Ayê, com ensino da visão que eles têm,
partindo das origens africanas que eles têm, e da tradição que eles têm no
Brasil e da forma que eles imaginavam que deveria ser nas escolas públicas,
principalmente voltado a essa coisa da questão étnica. Pelo que eu entendi,
além do moleque estar ali no Ilê Ayê, ele tem a escola pública dele também. E
no Ilê Ayê ele faz tambor, aprende a história dos orixás, entendeu?
66

O hip-hop é uma escola, como é o Ilê Ayê para a população inserida em

seus projetos educacionais. O Ilê Ayê é a escola do “moleque” na Bahia. O hip-

hop é a escola do “cara que é universal”. “Não é tão fechado. O hip-hop agrega

o mundo inteiro, tá ligado? Mas passa por esse processo, que vai desde o

negro, do indígena, passa por todo esse processo das situações do País, dos

caras que tão morrendo na rua, fala sobre o mundo da droga, sobre

sexualidade. É uma parada infinita, sobre o preconceito, sobre racismo. Nesta

pesquisa, o hip-hop é visto da perspectiva da manutenção de um referencial

ioruba-nagô. Nesse sentido, assim como há um Ilê Ayê que é uma escola, há

um “Ilê-Yô”, um hip-hop, que também o é.

O contato com o sagrado é fundamental para Ilícito – como atestam as

entrevistas realizadas com ele. Mas, para ele, o conjunto de significados

presentes nas diferentes religiões devem possibilitar que a convivência entre os

diferentes seja um valor a ser buscado. Por ter uma dimensão universal, por

ser portador de cultura, o ser humano precisa buscar a convivência igualitária.

Esse parece ser o seu pressuposto também quando pensa em termos de

religiosidade.

5.5 Latinidade versus Negritude

Ilícito entende que é discriminado no grupo negro, dentro do qual

convive. Na sua luta contra todas as formas de discriminação, ele entende que

é preciso lembrar que, no hemisfério norte, todo brasileiro, branco ou negro,

seria discriminado por ser latino. Além de ser discriminado entre os negros, por

ser um branco que fala de negritude, é também discriminado entre os brancos.


67

E como no rap eles não queriam me aceitar porque eu sou branco,


entendeu?, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento negro
isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco, falando
do lado dos preto, os cara fala ‘cê é loco, cê podia tá aqui’, só que naquele
esquema eu não vou, tá ligado?, nessa parte eu não participo.

Negritude, assim como a branquidade, não é uma entidade dada, mas

um constructo que pode variar no espaço e no tempo, e de um contexto para o

outro. A identidade negra, como todas as etnicidades, é relacional e

contingente. Branco e negro existem, em larga medida, em relação um ao

outro; as “diferenças” entre negros e brancos variam conforme o contexto e

precisam ser definidas em relação a sistemas nacionais específicos e a

hierarquias globais de poder, que foram legitimados em termos raciais e que

legitimam os termos raciais (Sansone, 2004, p. 24).

E aí é um grande conflito, entendeu? Cê acaba sendo discriminado pra


caralho tamém, sabe? Eu sou uma minoria dentro do meu contingente,
entendeu? E cê acha que é fácil? Cê acha q é fácil ser 1% de branco, 10% de
branco numa parada de maioria preta, tá ligado? Por isso que eu falo assim, no
lance do grupo, se os meninos do grupo (que são negros) não levar mais a
parada, acabou. Porque eu não posso levar. Como que vai chegar uns caras
(fala o nome do grupo, que menciona um Brasil negro), em que o líder é um
galego, de zóio azul, zóio verde? Posso ter todo o conhecimento do mundo,
experiência e o caralho, mas não tem quem güenta, essa parada. É muito forte
sabe? Eu seguro a bronca, do que for preciso. Mas é contraditório demais.
Então por isso que eu jogo muito a parada hoje pros caras, tá ligado? Contribui
e contribuo da forma que eu puder enquanto precisar, agora, eu não vou sofrer
mais, tá ligado?

O “sofrimento” de Ilícito demonstra que, para ele, branco pobre não é

sinônimo de preto. A sua condição de classe não lhe dá uma identidade étnica

diferente do que a sua cor de pele lhe impinge. A “elite branca” cobra de Ilícito

o fato de ele estar “do lado de lá”. Os “pretos”, quando o vêem falando de

negritude, ficam, de algum jeito, “chocados”. A nordestinidade deu mais (grifo

nosso) identidade a Ilícito no hip-hop. Nordestinidade que, como demonstra o


68

capítulo sobre o patrimônio civilizatório iorubá, tem na oralidade – palavra e

memória – das culturas negras o seu “núcleo pesado61”. Mas é o pai que é

nordestino, não ele. Por que a dificuldade em ter na afrodescendência essa

identidade também? Os traços que o identificam como afrodescendente não

poderiam ser “usados” em sua auto-defesa, nos momentos de confronto com

os que questionam sua negritude?

Poutignat e Streiff-Fenart (1997) observam que a etnicidade pode ser

vista como um modo de identificação em meio a possíveis outros, já que ela

não remeteria a uma essência, mas a um conjunto de recursos disponíveis

para a ação social.

De acordo com as situações nas quais ele se localiza e com as pessoas com

quem interage, um indivíduo poderá assumir uma ou outra das identidades que lhe

são disponíveis, pois o contexto particular no qual ele se encontra determina as

identidades e as fidelidades apropriadas num dado momento.

(Ibid., p. 166)

Nessa perspectiva, em determinadas situações, a etnicidade é um fator

pertinente que influencia a interação; em outras situações, a interação é

organizada de acordo com outros atributos, tais como a classe, a religião, o

sexo, etc. Uma identidade étnica nunca é auto-explicativa: não podemos dar

conta do fato de dizermos de alguém que ele é X (ou do fato de alguém dizer

“eu sou X”) porque ele é X. Não se trata de saber quem é X, mas saber

quando, como e por que a identificação X é preferida (Ibid., p. 166-167). Não

ser “esse branco”, como diz Ilícito, ser afrodescendente (a filiação paterna e

61
Termo de Muniz SODRÉ (2000).
69

alguns dos traços herdados atestam isso) são identificações que Ilícito carrega

consigo, ao lado da identificação de classe (ser “pobre”).

A possibilidade de manipular sua própria identidade étnica e de escolher

ou não realçá-la é desigual segundo os contextos nos quais as interações se

situam. Nas situações em que a etnicidade se apresenta como um estatuto

prescrito, os papéis étnicos são reificados sob a forma de uma sorte ou de um

destino inevitável, e os indivíduos têm mínimas possibilidades de estabelecer

uma distância subjetiva entre eles mesmos e seu jogo de cena (Ibid., p. 167).

É o caso dos negros de pele preta e de mulatos no Brasil. Não parece ser, no

entanto, o caso de Ilícito.

A especificidade dessa questão no contexto brasileiro pode ser melhor

compreendida quando lemos o que Munanga escreve sobre a ambigüidade

raça/classe e a mestiçagem como mecanismos de aniquilação da identidade

negra e afrobrasileira. Ele cita o pensamento de Marvin Harris62, para quem a

classificação racial brasileira baseada na cor é ambígua, na medida em que

expressaria pouco a importância da identidade racial em contraste com a

importância assumida pela classe. “Daí a idéia comum entre os estudiosos

norte-americanos”, lembra Munanga, “de que o brasileiro pode mudar de raça,

ou melhor, de identificação racial, no decorrer de sua vida. Essa interpretação

se aproxima dos ditados populares ‘dinheiro branqueia’ e ‘o preto rico é branco’

ou ‘branco pobre é preto’“. Por essa razão”, diz ele, “é que Oracy Nogueira63

pede cuidado na interpretação desses ditos, sempre empregados com certa

62
Munanga utiliza três estudos do autor, citados na referencia bibliográfica de seu livro. São eles:
“Town and country in Brazil”. Nova York: University Press Columbia, 1956; “Padrões raciais nas
Américas”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. “Patterns of race in the Américas”. Nova York:
Walker, 1964.
63
Oracy NOGUEIRA. “Tanto preto quanto branco: Estudos de relações raciais”. São Paulo: T.A.
Queiroz Editora, 1985.
70

ironia e cujo sentido mais exato seria: ‘o dinheiro compra tudo, até status para

o negro’”, o que, segundo ele, está longe de ser uma negação do preconceito

ou da discriminação (Munanga, 20004, p. 96). É para onde parece caminhar o

pensamento de Ilícito quando fala de um sistema hereditário que se perpetua

no Brasil. Na opinião dele, “o branco continua sendo superior em tudo”.

5.6 Índices e critérios de pertença étnica

Os traços fisionômicos de Ilícito denotam sua afrodescendência. Já a

sua cor da pele demonstra que ele descende de europeus. Os chamados

“índices” se fazem insuficientes para falar da pertença étnica de Ilícito. Torna-

se necessário então recorrer a outras informações para falar de sua etnicidade.

Índices de pertença étnica precisam ser distinguidos de critérios de

pertença étnica para a compreensão da dinâmica dos processos identitários

(Poutignat e Streiff-Fenart, p. 150). Um, no entanto, não é idependente do

outro. Os símbolos ligados a uma identidade étnica - reivindicados pelos

membros ou estigmas impostos pelos outsiders - determinam em grande parte

os traços comportamentais, língua falada, índices visuais que designam essa

identidade étnica. Mas uma vez que essa identidade não se impõe como dado

natural (e sim como uma divisão culturalmente elaborada do mundo social), a

relação entre critérios e índices torna-se, freqüentemente, problemática. Para

os autores, os índices perceptivos mediante os quais costumam-se realizar-se

as identificações étnicas são equívocos.

É porque a informação transmitida pelos índices (traços fisionômicos, a cor da

pele, o sotaque, etc) é freqüentemente insuficiente que os atores podem


71

conscientemente fornecer elementos complementares de informação, permitindo-lhes

controlar, em certa medida, a apresentação de um Eu étnico específico.

(Poutignat e Streiff-Fenart, p. 152)

Será que a observação dos autores, acerca da distinção entre critérios e

índices da pertença étnica, poderia ajudar para que Ilícito diminuísse a sua

angústia diante do fato de representar um grupo que leva a África e o “Afro

Brasil” em seu nome? Convivendo com negros, fazendo “música de preto”,

reivindicando respeito às diferenças do lado dos que, historicamente, tiveram

esse direito negado, Ilícito possui os “critérios” de pertença étnica para

identificar-se como negro?

Para Ilícito, a questão do desrespeito às diferentes etnias é mais forte do

que a questão da cor da pele. Ele propõe, nas suas letras de rap, o uso dos

termos “negrígena” e “branquindíafro”, apontando para um caminho diferente

daquele proposto pelo ideal homogeneizador do branqueamento, que permitiu

com que, durante a escravidão, os mestiços (chamados de “mulatos”)

recebessem tratamento privilegiado em relação aos negros. Favorecimento

esse forjado num contexto que foi sempre altamente discriminador, tanto de

atributos físicos como de pertenças étnicas. Indígenas, africanos e os seus

descendentes foram historicamente submetidos a uma visão eurocêntrica e

tiveram seus atributos corporais e seus modos de ser e viver avaliados por

essa visão desde a colonização (Consorte, 1999, p. 108).

Hoje, os afrodescendentes são filhos e filhas de pais e mães da classe

pobre, na sua grande maioria, constituindo-se na maior vítima da discriminação

racial, devido à ambigüidade cor/classe, além de serem mais numerosos que

os “negros” (Cf. Munanga, 2004, p. 101).


72

Embora tenha havido uma resistência cultural dos povos indígenas e dos

negros que para cá foram trazidos à força, suas identidades foram inibidas de

manifestar-se em prol de uma suposta cultura nacional – que acabou por

integrar as diversas resistências como símbolos da “identidade nacional”. Tal

identidade deveria obedecer ao ideal do branqueamento, pensado pela elite

política do país, e perseguido por negros e seus descendentes, ansiosos por

escaparem dos efeitos da discriminação racial. A falta de unidade e de

consciência coletiva entre os grupos politicamente excluídos foi conseqüência

desse processo (Ibid., p. 109).

A resistência a ele, na visão dos movimentos negros contemporâneos,

passam pelo resgate de um passado histórico negado e falsificado pela elite e

pela recuperação de sua negritude, na sua complexidade biológica, cultural e

ontológica. É a construção de uma sociedade plural, biológica e culturalmente,

que defendem os movimentos negros contemporâneos (Ibid., p. 109-110).

Negá-la seria continuar o processo de formação de uma “identidade nacional”

às custas da supressão das identidades étnicas, fato mencionado por Munanga

e apontado por Ilícito, ao dizer que “o problema do Brasil é étnico”.


73

6 Análise da entrevista da perspectiva da pobreza

Nas entrevistas realizadas com Ilícito, a palavra “pobre” foi

mencionada algumas vezes, assim como “rico”, “elite”, “favela” e “desigualdade

social”.

A primeira vez que o termo “pobre” é mencionado por ele na entrevista,

é em meio a uma fala sobre o atual momento do grupo, ao qual ele se refere

como “época das colheitas”. Pergunto a ele o que quer dizer com a expressão,

e ele responde que significa ser beneficiado com o fruto do próprio esforço.

Entre as iniciativas em que Ilícito procura trabalhar a problemática social da

região em que vive está a festa anual do time da região em que mora e para o

qual torce. Na festa realizada no Dia da Criança há cinco anos, em que

também se comemora o aniversário da torcida do time, distribuem-se

presentes, além de haver a realização de uma confraternização com

espetáculos culturais. Também a atuação de Ilícito nos saraus de poesia que

freqüenta é importante para o fortalecimento do processo associativo

comunitário em torno dos textos produzidos pelos moradores desse pedaço da

zona sul de São Paulo e da auto-estima da população64.

O raciocínio prossegue, até ele chegar ao trecho em que faz a ligação

explícita do conteúdo de sua fala com a questão do capitalismo. “... são várias

coisas que eu vejo que hoje o capitalismo condiciona (...) Essa coisa de

condicionar dentro de uma lei, de uma forma de sociedade onde a felicidade

gira em torno do bem material, entendeu? E que é um bem material que o cara

64
A respeito da importância das diferentes formas associativas comunitárias para a redução da pobreza,
ver Spink, 1999.
74

acha que vai tê, vai tê, vai tê. E o pobre fica querendo tê e quando tem, se

perde, porque nunca teve...”.

Ilícito não procura a felicidade junto a bens materiais, mas entende que,

para estar mais tranqüilo em alguns aspectos, precisaria de mais recursos

financeiros. A sua condição social se encaixa no que ele chama de “pobre”,

termo usado entre aspas por motivo da perspectiva adotada nesta pesquisa, de
65
não “individualizar” a pobreza na figura do “pobre” . Ilícito fala em poder dar

tranqüilidade para a família. Entre os ideais que permitiriam essa tranqüilidade

está um plano de saúde – que só é um ideal por vivermos sob o capitalismo.

Tenho uma véinha de 86 ano (referindo-se à avó), minha mãe, meu pai,
meu irmão, tano doente, a gente tem que ir nos postos do governo, entendeu?
Eu queria ter um plano de saúde. Coisas que eu posso acreditar que eu posso
mudar pra minha vida e pra minha família, ter um plano de saúde, poder pagá
as conta... São coisas bestas, supérfluas, que, pra quem tem qualidade de
vida, são detalhes. Poder se alimentá beeem... umas parada assim, sabe?

No livro “Desenvolvimento como liberdade”, o filósofo hindu Amartya Sen

propõe que a pobreza seja vista como privação de capacidades básicas que

ultrapassam a questão de falta de renda. Em determinado momento do texto,

Sen explica que

Os papéis de heterogeneidades pessoais, diversidades ambientais, variações

no clima social, diferenças de perspectivas relativas e distribuições na família tem de

receber a séria atenção que merecem na elaboração das políticas públicas.

(Sen, 2000, p. 133)

65
Nessa perspectiva, reduzir a pobreza ao “pobre” significa vê-lo como culpado e incompetente (Cf.
Spink, 1999).
75

Nesses termos, um sistema público de saúde adequado tornaria

desnecessária a verba para pagar um plano de saúde para a família de Ilícito.

Uma organização comunitária em torno da questão produtiva e distributiva de

alimentos seria útil para a boa alimentação da população do “pedaço” de São

Paulo em que vive Ilícito e em muitos outros “pedaços” da cidade e do estado.

A preocupação de Ilícito é genuína. A relação entre teoria e prática é o que

parece estar longe de se fazer possível.

6.1 Pobreza versus qualidade de vida

Outra das preocupações do MC retratado nesta pesquisa é fazer com

que o retorno de seu trabalho com o hip-hop possa melhorar a qualidade de

vida de sua família. Ilícito falou em “coisas supérfluas” quando se referiu a itens

que integram os quesitos para uma condição de vida psicológica e fisicamente

saudável. As idas a casa de Ilícito no decorrer da pesquisa possibilitaram

algum contato com o cotidiano dele e de sua família, bem como da sua

dinâmica de trabalho, com a circulação por lá dos integrantes da produtora do

grupo. De algum tempo pra cá, a família de Ilícito pode contar com os frutos do

trabalho dele com o rap para ajudar a pagar as contas de casa. Ainda assim,

nem sempre é possível pagá-las em dia. Os frutos colhidos até hoje permitem

alguma melhora na vida cotidiana, mas de forma relativa. Exemplo: o dinheiro

com o rap possibilitou a Ilícito comprar um carro, necessário para a família,

principalmente se pensado em caso de necessidades como emergência

médica. No entanto, são muito altas as despesas relativas a essa

“comodidade” proporcionada pelo carro. Um sistema de transporte público

adequado seria mais adequado à família de Ilícito do que a posse de um carro


76

diante dessas circustâncias. Ou, na impossibilidade do estado de oferecer um

transporte público adequado, a adequação das cobranças de taxas e impostos

aos cidadãos poderiam variar segundo a faixa de renda dos proprietários dos

veículos – e não segundo apenas modelo ou ano dos veículos.

Ilícito e seu grupo trabalham também no sentido de serem autônomos

em relação à sua capacidade de produção nos diferentes trabalhos que

realizam: gravação de disco, distribuição, negociação de shows e oficinas

educativas, etc. Histórias como a que viveram quando do processo de trabalho

relativo ao novo CD do grupo, cujo período entre gravação e lançamento durou

cerca de quatro anos.

O trabalho desenvolvido por Ilícito e os rapazes que trabalham com ele é

feito entre “ricos” e “pobres”. Há shows e eventos que são realizados em

lugares de freqüentação das classes média e alta. Também entre os parceiros

musicais do grupo estão artistas de diferentes classes sociais. Os parceiros

das classes altas são os que possibilitaram ao grupo a gravação de seu novo

disco em um estúdio de alta geração. Circular por diferentes espaços, dar

conta de uma platéia de centenas de pessoas em uma favela e, no outro dia,

centenas de outras em uma casa de shows de classe média fazem parte do

cotidiano do grupo – que procura manter a coerência entre o discurso presente

nas letras e as atitudes do dia-a-dia. “A gente tem realmente um compromisso

com a mensagem, entendeu? Eu vejo muito os cara entrando no ‘esqueminha’

(aspas nossas), porque há necessidade no nosso mundo. A gente nasceu pra

ser ‘pobre’. Pra mudar isso aí na vida é um grande dilema (...) Cada um tem

sua ética, faz o que acredita, eu caminho pelo certo, já não sei mais o que é

errado também, acho que sabe o que é certo é quem tá passando pela
77

dificuldade. (...) Agora... Sou do hip-hop, eu não sou pop. O meu som é pra

todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto, branco, girl... , tá ligado?”. Pobre-

rico. Preto-branco. Boy-girl. O som de Ilícito é para diferentes classes sociais,

raças, gêneros. Ser hip-hop, para ele, é fazer som para todos,

democraticamente.

Para o pobre mudar de classe, é que está o dilema.

A gente nasceu pra ser pobre. (...) Pra quem é pobre, precisa se levantar
(...) na maioria das vezes, acaba seguindo a hierarquia, de criar monopólio, e
fica sempre em torno de uma parada só e os rico... se comunicam entre si e
ficam cada vez mais rico, e aí tem quem se segura dentro do universo que tem,
e o outro fica mais pobre.

O olhar de Ilícito retorna de diferentes formas a essa questão. Para

“quebrar” esse monopólio, Ilícito e seu grupo fundaram um selo e uma

produtora, entendendo a importância da autonomia nesse processo e nas

mudanças que são favoráveis à problemática social apontada por ele e seus

parceiros. Obviamente, o processo é lento e sujeito a percalços como todo

aprendizado autodidata.

Estabelecer-se no mercado com um trabalho musical coerente e de

qualidade também é parte desse longo processo.

O bagulho tá esse inferno (referindo-se às privações existentes entre a


população de periferia que têm causado inveja e até mortes). Por isso que eu
penso que gira em torno da obra, tá ligado? Tem que fazer um bagulho bem
feito, que seja inquestionável desses universos de vaidade de que ‘se vale
mais ou pesa menos’, tá ligado? Que seja uma parada sólida (em relação a sua
obra), que contribui no país e pro mundo, tá ligado? Isso aí leva tempo. Muitos
tão vivendo pro momento, pela moda, pela evolução tecnológica.
78

Os que vivem sob a ganância e a pressa dos modismos estão entre os

que são vistos como “favelados de espírito”66. A favela positiva é a favela das

letras de rap, que trabalha a auto-estima de seus moradores, os aspectos

positivos do cotidiano dentro dela. A “favelização” negativa caminha na direção

vista pelo conceito formulado pelo intelectual brasileiro Milton Santos, que se

explicaria pela adoção de modelos de consumo recém-adotados. A falta de

dinheiro líquido induziria os indivíduos a economizar nas despesas fixas com

habitação, dando, portanto, preferência a outros tipos de consumo relacionados

com hábitos “modernos” (aspas minhas)67, que é questionada por Ilícito e, de

forma geral, pelo hip-hop brasileiro.

Entre as diferentes formas de privação por que passam as populações

de periferia no Brasil estão a convivência com altos índices de violência, o

crescimento populacional vertiginoso desacompanhado pela estrutura de

serviços básicos (saúde, educação...) e, conseqüentemente, com piora relativa

à qualidade de vida. Viver o hip-hop, para Ilícito, é relacionar-se diariamente

com essas questões. É refletir sobre a pobreza, ou sobre “as pobrezas” e as

possibilidades de minimizá-la(s).

A vontade de Ilícito é ir para perto da natureza junto com a família,

mudando-se da casa em que vivem.

O que vai me dar qualidade de vida é dinheiro, tá ligado? É essas


paradas material, tá ligado? Quero tirar logo minha família daqui, pra gente ir
morar num sítio, todo mundo, com seus quarto, suas rede, cada um faz o que
quer da vida. E já é.

66
A expressão foi retirada do livro do MC e escritor do Jardim Colombo (São Paulo), Dugueto Shabazz.
Ver Dugueto SHABAZZ (2006).
67
Milton Santos, 1979.
79

A qualidade de vida buscada por Ilícito dialoga com a sua percepção

dos problemáticos índices da região em que vive (extremo sul da cidade de

São Paulo), que trabalha para tentar reduzi-los.

No entanto, conquistar qualidade de vida com a ajuda material não

implicaria ascensão social para Ilícito. O uso de artesanatos nos braços e no

pescoço, por exemplo, diz respeito à forma como ele enxerga o mundo. “Vem

do reggae, porque o nosso rap é um rap jamaicano, não é o rap gangsta68

norte-americano. (...) A gente sempre teve a ligação jamaicana. (Comer) Fruta,

legume, tá ligado? Esses bagulho jamaicano, cor da África, tá ligado?”. Essa

forma de ver o mundo se relaciona diretamente com a possibilidade de melhor

qualidade de vida com as mudanças advindas do acesso a bens materiais. No

caso desse acesso vir a aproximá-lo das classes mais altas, sua postura,

quando olhada pela elite, continuaria a relacionar Ilícito entre os “pobres”. O

estilo das roupas, a maneira de se portar (ele veste marcas das grifes que

fabricam street-wear e tênis, comum entre os que, nas favelas brasileiras,

conseguem trabalhar pelo menos para comer e se vestir) associada à maneira

de falar dos jovens de periferia (“até pra falar errado tem que saber”, ele diz),

com muitas gírias, estão entre os estereótipos criados em torno da pobreza.

Acesso à renda não implicaria perda desses estereótipos, no caso de Ilícito.

O trecho da entrevista transcrito a seguir fala dessa visão de mundo:

As coisas vão se subtraindo cada vez mais. A sua vida se subtrai em


sentidos principalmente materiais (...) Essa é a lei do egoísta materialista...
passar por cima com um rolo compressor. (...) é muito mais fácil passar com o
seu carrão, não sei o que, mostrar tudo o que cê ganhou materialmente. Mas...
espiritualmente é um bosta, sabe? Como pessoa, não contribui em nada, só
quer ostentar. Eu acho ridículo isso aí. Quero ter tipo um barato pra ir pra
cachuera, tá ligado?, pra mim acampar em Paranapiacaba... Minha família

68
Gangsta Rap é um subgênero dentro do hip-hop (conhecido também como G-funk) com letras
violentas. Geralmente, os autores têm problemas com a lei, alguns inclusive têm ou já tiveram
envolvimento com gangues. (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gangsta_Rap)
80

nunca passou um final de ano na praia, tá ligado? Uns baguio besta. E é um


baguio que é mais espiritual, sabe. Eu conheço cara que compra até bolinha de
baiseball, taco, tá ligado?, a luva... (ri). É muito... sei lá... acho que é cada um
no seu skate, mas tipo enquanto os (rappers) norte-americanos ficam
mostrando lá os brilhantes, tá ligado?, os ouros, tal... eu dou mais valor pro
tiozinho que passa aí direto e entorta os arames, que vende os bagulho
artesanal. Acho da hora...

6.2 Pobreza versus racismo

Para Ilícito, o racismo no Brasil está “implantado” e é “institucional”. E

dentro da “desigualdade social” do País estão todos: negro, favelado,

nordestino. Que, para o mundo, são agregados sob o epíteto de “latinos”. Para

Ilícito, os que estão excluídos do processo político deveriam se unir. No caso

brasileiro, ele entende que o problema é étnico. Conseqüentemente, a pobreza

teria um recorte racial69 que precisa ser observado e que é prejudicado pela

sofisticada ideologia do branqueamento70. Ele demonstra estar atento às

diferentes nuances do racismo brasileiro, como quando comenta que

a gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os caras põem os
preto pra tocar no fundo, reprodução da senzala, sabe? Da época dos casarão
antigo. Cê pára no farol, o cara te dá um panfleto daquele que, pra você
comprar o apartamento, cê vê lá um quarto de empregada, reprodução da
época dos escravocrata.

Entre essas nuances, existem aquelas que chegam a ele diretamente

por que lhe dizem respeito, e que o obrigam a repensar cotidianamente sobre o

“dar a cara ao tapa” a que se sujeita com o seu ativismo em relação às

desigualdades raciais brasileiras. A pele branca de Ilícito faz com que ele sofra

preconceito no meio do Rap. Ilícito é afrodescendente e, também, descendente

69
A esse respeito, ver Cidinha da SILVA, 2000, p. 133.
70
Ver, a esse respeito, capítulo 5 desta dissertação. Ver também Kabenguele MUNANGA (2004) e Iray
CARONE & Maria Aparecida BENTO (2002).
81

de nordestino, mas é discriminado por brancos “não pobres”, que lhe dizem:

“cê é loco, cê podia tá aqui”. Utilizando-se de sua cor de pele, Ilícito poderia

estar do lado dos “privilegiados” mencionados por Bento & Carone. Há uma

“identidade ambígua” que lhe causa conflito. Mas ele não se nega a enxergá-la,

a relacionar-se com ela “encarando” as diferentes situações colocadas diante

de si: do lugar de “branco” em uma sociedade racista, moldada pelo legado da

colonização e da escravidão que forjou a cidadania do brasileiro71; mas

também do “afrodescendente”. No contexto contemporâneo, o olhar que Ilícito

tem para essa questão implica atenção: trata-se de refletir sobre o fenômeno

das identidades sem se furtar à sua complexidade e ao processo histórico do

qual derivam.

Na seção Tendências e Debates da Folha de S. Paulo de 18 de

novembro de 2006, o jornal perguntou a dois acadêmicos se o Brasil é um país

racista. Antonio Sérgio Guimarães72, autor do artigo que respondia pelo “sim”,

justifica sua resposta dizendo que

... somos um país racista, se por racismo entendermos a disseminação no

nosso cotidiano de práticas de discriminação e de atitudes preconceituosas que

atingem prioritariamente os pardos, os mestiços e os pretos. Práticas que diminuem as

oportunidades dos negros de competir em condições de igualdade com pessoas mais

claras em quase todos os âmbitos da vida social que resultam em poder ou riqueza.

(Guimarães, 2006, p. A3)

71
A esse respeito, ver José Murilo de CARVALHO (2001).
72
A outra acadêmica consultada, autora do artigo justificando o “não” à pergunta feita pelo jornal, não é
pesquisadora do assunto.
82

O autor se refere às desigualdades presentes no Brasil como

“desigualdades raciais”. Ilícito, em determinado momento da entrevista, diz que

“o branco continua sendo superior em tudo no Brasil”. “Continua sendo

superior”: ele se impôs como superior quando chegou, em 1522, e se manteve

nesse lugar durante esses mais de 500 anos de história. Em outro momento do

texto, Guimarães discorre sobre a questão:

As desigualdades raciais, ou seja, os diferenciais de renda, saúde, emprego,

educação etc. entre brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro, são gritantes e

estão muito bem documentados. A julgar pelos resultados, portanto, somos racistas. E

esse é o modo como, no mundo atual, a sociologia e as instituições internacionais

definem o racismo. Não é pelas intenções, pelas doutrinas ou pela consciência racial,

mas pelo resultado de uma miríade de ações e omissões.

(Ibid., p. A3)

A Conferência de Durban realizada em 2001 e tida como um dos

acontecimentos internacionais mais importantes do final do século XX, em sua

Declaração reconhece que a desigualdade de condições, incluindo-se aí

condições econômicas, podem “reproduzir e promover o racismo73”.

Desigualdade de renda pode ser totalmente diferente de desigualdade em

outros espaços, como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade

de vida, como saúde e longevidade (Sen, 2000, p. 116). Esses “outros

espaços” são relacionados, para o autor, com “outras variáveis relevantes”. No

caso brasileiro, a variável em questão diz respeito ao racismo, levantado por

Ilícito. No capitalismo, “o dinheiro compra tudo, até status para o negro”

73
Sobre como o racismo se estrutura e se manifesta no Brasil, ver também Cidinha da SILVA, 2002.
83

(Munanga, 2004, p.96). Mas não o impede de ser “barrado” ao tentar entrar em

determinados lugares, de ser seguido pelo segurança dentro de um shopping,

ou mesmo de ser morto por um tiro de policiais ao dirigir um veículo que o torne

“suspeito” de algum crime74. Essa “desigualdade em outros espaços” de Sen é

a mesma que é sofrida pelos negros no Brasil. Conseqüência dos efeitos da

discriminação hereditária75 que afeta pessoas discriminadas e suas estruturas

psíquicas, como pontua Munanga76. Faz pouco mais de 20 anos que foi dado

direito a voto à população analfabeta no Brasil. Segundo Alencastro, historiador

e professor da Universidade de Sorbonne, “a proibição dos votos aos

analfabetos (...) foi feita com o objetivo explícito de barrar a ascensão à

cidadania aos ex-escravos (...). A maioria da população analfabeta adulta era

negra”. Para ele, os negros estiveram excluídos da cidadania na maior parte do

século 2077. Nesses termos, a fala de Ilícito parece corroborar com as

proposições de Sen - quanto às diferentes formas de desigualdade – e de

Guimarães, quanto à desigualdade racial no Brasil.

A discriminação, como a sofrida pelos afrodescendentes no Brasil, está

entre os aspectos colocados por Sen no fenômeno da pobreza “não

homogênea”78 – e, conseqüentemente, fator a ser levado em consideração

para a formulação de políticas públicas no País. Nos últimos vinte anos, os

mapas comparativos entre a situação de trabalhadores brancos e negros

acusaram que estes possuem déficit muito maior em todas as dimensões da

74
Acerca de mortalidade, acesso à educação, desemprego e violência entre afro-brasileiros ver Darien
DAVIS (2000).
75
Luiz Felipe de ALENCASTRO In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5
76
Ver Iray CARONE & Maria Aparecida BENTO, 2002, pp. 9-11.
77
Luiz Felipe de Alencastro In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5
78
Outros autores que pensam a pobreza como fenômeno heterogêneo: Alinsky (1965), Castel (2000),
Friedmann (1992) e Spink (1999)
84

vida (saúde, educação, trabalho...79) em relação a aqueles. Como os brancos

saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta positiva, fez-se

histórico o silêncio a respeito do lugar ocupado por esse grupo na trajetória do

Brasil (Bento, 2002, p. 27) – fato que começou a ser questionado com os

estudos de um grupo de psicólogas da USP na década de 9080.

Ilícito, fruto de um casamento inter-racial (mãe branca, pai

afrodescendente), que lhe deu características fenotípicas de ambos, e criado

em situação de pobreza em uma das muitas periferias paulistanas que têm em

seu contingente uma população majoritariamente negra, carrega consigo

questões referentes a um processo identitário complexo. Se por um lado, esse

processo identitário não tem respostas rápidas, prontas, ele lhe permitiu olhar

para a heterogeneidade da pobreza de seu país.

Nessa heterogeneidade está o racismo e a necessidade de combatê-lo -

uma das bandeiras de luta de Ilícito. A igualdade de oportunidades real para

todos em todas as esferas (dentre elas, a do desenvolvimento) foi colocada

pelo Comitê Internacional81 de Durban como fundamental no caminho de

erradicação do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância

correlata82.

As variações nos diferentes “climas sociais” mencionadas por Sen

anteriormente, e as preocupações expostas por Ilícito, demonstram a

necessidade de reflexões sobre “equidade”83 no Brasil: como pensar em

79
A esse respeito, ver Gomes & Paixão, 2006, pp. 31-40.
80
Iray Carone, 2002, pp. 13-23.
81
Formado por membros da sociedade civil e de Ministérios de diferentes países.
82
III Conferencia Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
correlata (2001), p. 30
83
Conceito reintroduzido pela Teoria da Justiça de Rawls (1997) e mencionado no documento de Durban.
85

oportunidades iguais para pessoas que sofrem privação histórica em uma

sociedade.
86

7 Análise da entrevista da perspectiva da identidade

Acho que a melhor maneira de eu me apresentar é lendo Luiz Gama,


que era um advogado, que entrou na política, [a] conheceu de perto, e era
abolicionista.

É assim que Ilícito, 28 anos por ocasião de nossa primeira entrevista,

responde à primeira parte da pergunta que lhe fiz: “Quem é você?”. Ele sai à

procura de um texto. Pega as folhas impressas entre outros papéis em uma

estante.

Este texto é de 1859. Na verdade, ele já [o] tinha escrito em [18]56 e foi
publicado acho que em [18]59, e ele foi um dos maiores da luta abolicionista. E
a mãe dele também, era Luiza Mahin, que lutou na Inconfidência dos Malês em
1835 na Bahia. E ele foi vendido pelo pai que era branco, fazendeiro, feudal,
que perdeu toda a riqueza em jogos, ele era viciado em jogos e vendeu o filho
como escravo, porque a mãe dele era negra. Depois ele veio pra cá, pro
interior de São Paulo e venceu, tá ligado84?

Ilícito é quem traz a questão racial do negro e do branco logo nos

minutos iniciais de nossa primeira entrevista. A pergunta é “quem é você”. E o

texto que ele escolhe para iniciar a resposta a essa pergunta é, antes,

introduzido por um preâmbulo, por uma apresentação de quem é o autor do

texto. A história desse autor tem implicação na identificação de Ilícito com o

texto. E a questão racial aí aparece duplamente: (1) por Luiz Gama

84
Natural de Salvador, onde nasceu em 1830, Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai em 1840,
levado ao Rio de Janeiro e posteriormente a São Paulo, após atravessar a pé a Serra do Mar. Aos 17 anos,
aprende a ler e a escrever. Doze anos depois, ele publica a primeira edição de seu único livro, “As
primeiras trovas burlescas de Getulino”. Para a professora Ligia Ferreira, autora do texto de apresentação
de Luiz Gama na publicação “Luiz Gama: poeta e cidadão – memória da luta negra em São Paulo” (Silva
et al., [2004], p. 7-10), “Quem sou eu”, poema mais célebre de Luiz Gama, “zomba da pretensa brancura
racial dos que, ‘embranquecidos’ socialmente, renegavam sua descendência africana”. Como advogado,
Luiz Gama teria contribuído para a libertação de mais de 500 escravos. Foi, talvez, o único intelectual
autodidata brasileiro a passar pela experiência da escravidão.
87

(1830/1882) ter sido alguém que foi escravizado, mas que lutou contra o

sistema escravista destacando-se na luta abolicionista e (2) ao jogar luz sobre

a origem desse poeta, advogado e jornalista, filho de pai branco e mãe negra,

como Ilícito faz questão de nos informar.

Acho que a melhor forma de eu me apresentar nessa pergunta sua é...


“Quem sou eu?”. “Quem sou eu? Que importa quem? Sou um trovador
proscrito, que trago na fronte escrito essa palavra: ninguém”. É isso. Eu sou
aqueles cara que fico... Sou o último do boteco.

“Trovador proscrito”. O dicionário nos ajuda a entender de que falou Luiz

Gama e de que fala Ilícito.

Trovador: s.m. 1. designação dos poetas líricos dos séculos XII e XIII do

sul da França, especialmente, de Provença. 2. Designação dos poetas líricos

portugueses que, nos últimos séculos da Idade Média, seguiam o estilo dos

poetas provençais. 3. Aquele que trova, poeta. 4. Poeta medieval; menestrel.

(Aurélio, 2006, p. 795)

Proscrito: adj. 1. Que se proscreveu. 2. s.m. Aquele que foi desterrado.

(Aurélio, 2006, p. 660)

O trecho que Ilícito utilizou para se apresentar é um pequeno texto que

Luiz Gama usa para abrir o seu poema “Quem sou eu?”85, também conhecido

como “Bodarrada”. Trata-se de um texto pelo qual é possível entender muito

das “veleidades raciais” que impregnaram a sociedade brasileira no século XIX,

85
De autoria de A.E. ZALUAR, do livro “Dores e Flores”.
88

período da formação do Brasil com a Independência do País em relação a

Coroa portuguesa, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República,

como escreveu o poeta e jornalista Oswaldo de Camargo86 no texto de abertura

do livro “O negro em versos” (Santos; Galas; Tavares, 2005). Naquele período,

Luiz Gama representou o que Camargo chamou de “o melhor perguntador e

respondedor sobre a questão racial brasileira, enrolada desde o início, uma

confusão que agradava a muita gente, porque não exigia responsabilidade

nenhuma na solução dos problemas do negro brasileiro”87 (Ibid., p. 15-16).

Nesse contexto de muitas misturas étnicas, marcado pela escravidão do

homem negro pelo branco, a luta pela liberdade virá acompanhada da sua irmã

identidade e vai lançar as grandes questões para a nova sociedade brasileira.

Portanto, a questão de Luiz Gama levantada no seu famoso ‘Bodarrada’ parte dos

negros para os brancos, fazendo-nos pensar que a partir de Quem sou eu? é que

devemos identificar Quem somos nós?

(Santos; Galas; Tavares, 2005, p. 28)

Na medida em que Ilícito vai se apresentando no decorrer das

entrevistas, a preocupação quanto a “quem somos nós” aparece repetidas

vezes. Quer no que se refere ao País, no que se refere à cidade de São Paulo,

e no que se refere à “raça humana” ou a brancos, negros e indígenas.

86
Herdeiro das buscas culturais de negros que, no início do século XX, iniciaram a reavaliação da
situação do elemento afro-brasileiro e partiram para uma tentativa de inseri-lo social e culturalmente,
tendo como armas sobretudo agremiações de cultura, jornais alternativos para a coletividade, teatro negro,
a Literatura, sobretudo escrita por poetas de temática afro-brasileira, como Lino Guedes e Solano
Trindade. É autor dos livros “O carro do êxito” e “O negro escrito – apontamentos sobre a presença de
negros e mulatos na literatura brasileira” (Santos; Galas; Tavares, 2005).
87
Sobre os problemas relativos aos negros brasileiros, nesta pesquisa, não serem tratados como
problemas dos negros exclusivamente, ver comentário de Munanga nas próximas páginas.
89

Ilícito é um MC, um rapper. Um poeta do hip-hop. Que, de início, se

apresenta como um “trovador proscrito”. Um trovador. A exemplo do Rap, a

trova é uma composição popular. Esta chegou ao Brasil com os portugueses, a

partir da tradição européia. Aquele, com os estadunidenses. Em uma história

que inclui negros, latinos e jamaicanos moradores das periferias de Nova York.

Proscrito. Desterrado, expulso, portanto, condenado. Mas que “fica”. É “o

último do boteco”. Ser desterrado, destituído de sua terra, de seu país. Essa

questão está presente quando ele fala sobre não sabermos de que povos

indígenas (desterrados) eram as terras por nós hoje habitadas, não sabermos

de onde são os africanos (desterrados) dos quais descendemos. Ao dizer-se

“ninguém”, um “ninguém” que “fica”, que insiste em uma determinada luta, dá

indícios do esforço pelo reconhecimento que é o que poderá lhe garantir

qualidade de vida, como ele nos diz a seguir. Esse reconhecimento viria dos

frutos colhidos com o trabalho junto aos que são as questões da sua vida.

A gente plantou, agora tem que colher né? E é o ciclo natural do ser
humano que trabalha. Ser beneficiado com o fruto do esforço dele, né? É
natural. Agora pra muitos, é o que tô falando, entendeu, vitória é qualidade de
vida. Dar tranqüilidade pra minha família, poder continuar transformando o que
tá à sua volta, entendeu, porque não adianta mudar pra você sendo que a sua
volta tá a mesma merda, entendeu? Então pra mim essa situação continua a
mesma, só que eu sou um ponto de ligação que posso transcender e levar
muito mais coisas. E pras pessoas podê acreditar que eu posso levar isso a
eles, eu tenho que tá bem. Só que o momento não tá bom pra ninguém. E aí
que tá o mundo ilusório, da arte, da fama, de você achar que é antes de ser.

Mudar, mudar para melhor. Para Ilícito, não faz sentido mudar

pessoalmente e não poder colaborar para uma mudança positiva em relação

ao que está ao redor. E essa mudança diz respeito a conhecer e, assim, ter

melhores condições de refletir sobre o que está em volta e, então, atuar.


90

Ainda sobre quem é ele, Ilícito responde:

E tem meu trabalho, que é a minha obra, [obra] da minha vida. Hoje
como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma
alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes. É isso.
Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na metade, tá
ligado?

E o que é a tua obra?, eu pergunto. A que Deus mandou pra mim. Só tó

psicografando, cê tá ligado?, a parada. É bem isso assim, na verdade, é isso.

Tudo que é feito tem uma força superior agindo sempre, responde.

A obra é a que Deus mandou pra ele, mas ainda não sei de que deus ele

fala. Logo em seguida, ele informa que não gosta de seguir dogmas e que sua

religião é o Corinthians.

O pessoal almeja sucesso, almeja fama, Ibope, dinheiro, pá, acredito só


num lance, que é qualidade de vida. Minha religião é o Corinthians e Deus é
fiel.(...) O que age sobre mim são as forças superiores, que tá em tudo assim,
não o homem. Só isso que eu não gosto. Cê se apega com as coisas que cê tá
enraizado, né?

É quando ele entra na questão do Rastafarianismo88 em sua vida:

Eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta. Não
como carne, sô vegetariano, não tão radical assim. Mas eu acho que na
filosofia rasta cê alcança uma elevação espiritual e uma vida de conquista em
várias outras coisas. Você se torna um rasta com o tempo, então o importante
é partir de algum momento.(...) Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô

88
Filosofia religiosa surgida como movimento político na Jamaica, na década de 1930. Sua denominação
homenageia o ras (príncipe) Tafari Makonen, sagrado imperador da Etiópia, com o título dinástico de
Hailé Selassié I. O rastafarianismo propagou-se pelos guetos de Kingston, a capital jamaicana, e, em
1940, o líder Leonard Howell fundava na paróquia de Saint Thomas uma comunidade religiosa chamada
The Pinnacle, destruída pela polícia em 1954, quando grande número de jovens, convertidos a essa
filosofia, são julgados subversivos. Estreitamente ligado ao reggae, gênero musical surgido em seu
contexto, o rastafarianismo deve a ele a sua difusão em escala planetária. Para os rastas, a ganja
(maconha) tem status de erva santa e meio de comunicação com Jasrah, o Deus Supremo (Nei LOPES,
2004, p. 560).
91

ali com o Corão, com bastante presságios do Islão89, que eu acho que é uma
religião de resistência... Ir prum templo, vô, sem nenhum problema; leio, pra
mim, tudo é informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado? Muitos
tão esperando Jesus voltar, pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá
ligado? Minha família aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a
maioria são católicos, eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros
habitantes da terra, na ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida
de poder, tá ligado?

Ao falar da sua ligação com o Rastafarianismo, que ele não vê como

religião, ele traz também a questão da convivência com a religiosidade alheia e

com o exercício de suas próprias crenças – quando se refere ao candomblé,

por exemplo, presente no tema desta pesquisa. Na vida de Ilícito, coexistem

rastafarianismo, candomblé e santo daime90, introduzido por ele quando se

referiu à “bebida de poder” do Daime, também conhecida como “ayahuasca”.

Gosto do Daime, leio muito [Pablo] Castañeda, lance de xamanismo91,


de xamã, os “brujo” antigo. Eu ajo muito nessas coisas voltadas à terra memo,
tá ligado? Reino Vegetal, alimentação vital. Que é da natureza, que é vital pro
homem, se alimentar sem precisar se alimentar dos animais, entendeu?
Alimentação vital, comida tradicional dos rastas. Que é baseada em legumes,
ervas, frutas, entendeu? Coisas da terra, sem muito extrativismo animal. Mas
não tão radical, né?

7.1 Por uma espiritualidade de muitas verdades

“Não tão radical”. Ilícito não gosta de radicalismos, como as três

entrevistas realizadas com ele apontaram. E o sentido de “radicalismo”

89
O Aurélio traz “islã” ou “islame” para o conjunto dos mulçumanos, sua religião, cultura e civilização.
Para a religião monoteísta fundada por Maomé, o dicionário traz o termo “islamismo” (AURÉLIO, 2006,
p. 492)
90
A expressão se refere ao movimento religiosa que teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado do
Acre e, a partir de 80, expandiu-se por todo o Brasil e para o exterior. Santo Daime também é o nome que
os participantes deste movimento religioso dão à bebida que, consumida durante os rituais, teria poder de
cura e de transmissão de conhecimento (ROSE, 2005).
92

apreendido das entrevistas com Ilícito é próximo ao de “fundamentalismo”. Na

perspectiva utilizada nesta pesquisa, a identidade humana é metamorfose.

Metamorfose humana é a progressiva e infindável concretização histórica do

vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das limitações das

condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades. Nós

somos humanos porque passamos por uma “metamorfose humana”, possível

graças à nossa natureza humanizável e que se dá num mundo previamente

humano (Ciampa, 1997).

A “metamorfose humana” de fato se concretiza durante todo o caminhar,

quando o caminho inteiro se faz. Por essa razão, nascemos para começar. O início é

como uma semente que, num certo sentido, oculta um segredo, o segredo da vida.

Talvez por isso na tradição do Oriente se diz que é próprio dos sábios conhecer os

segredos das sementes. Valendo-se dessa imagem, pode-se dizer que o segredo que

constitui a semente da “metamorfose humana” é a emancipação; em conseqüência,

desenvolver esta significa concretizar aquela.

(Ibid.)

Ilícito nos mostra uma busca da autonomia quando escolhe não se

prender a dogmas. Prender-se a um dogma seria um fundamentalismo, a

recusa do que está para além de uma doutrina. E o que o ajudou a descobrir o

caminho para essa escolha foi o Hip-hop.

Podemos entender o fundamentalismo como uma pretensão de verdade

absoluta que exclui toda e qualquer outra pretensão de verdade.

91
Conjunto de crenças e práticas associadas às atividades dos xamãs, espécie de sacerdote que recorre a
forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc.
(AURÉLIO, 2006, p. 826)
93

As tradições africanas que chegaram ao Brasil, dando origem ao

candomblé, demonstraram que não é essa visão presente no cerne dessas

tradições, uma vez que dialogaram com outras “pretensões de verdade”, do

catolicismo português e das crenças indígenas.

Se cada representante de cada religião estiver indiscutivelmente convicto de

que sua fé encarna a Verdade, a comunicação com o outro diferente – comunicação

entendida como busca do entendimento comum – inviabiliza-se como tal, a menos que

sempre esse outro seja desqualificado como portador de qualquer verdade e que, por

isso, o único entendimento possível é o dele, fundamentalista.

(Ciampa, 2004[b])

Ao chegar à África, os portugueses desqualificaram os africanos como

portadores de qualquer verdade. Ao chegar ao Brasil, fizeram o mesmo com os

indígenas. A ambos tentaram impor a sua verdade – do catolicismo – como a

única verdade. Outros povos tiveram e têm atitudes semelhantes a essa, com

experiências que aterrorizam o mundo atual. É dessa “imposição de uma

verdade” que foge Ilícito e que ao mesmo tempo em que afirma que é um

homem religioso, dando o referencial das diversas crenças que carrega, de

outro lado, sua religião estaria no futebol, mais precisamente no Corinthians –

proposição que pode ser interpretada como uma crítica às instituições

religiosas dogmáticas e mercantilizadas, como ele nos dá pistas em uma de

suas falas.

Combater o fundamentalismo é necessário quando se busca por uma

sociedade menos hierárquica e autoritária, mais igualitária e democrática. “Isso

não é suficiente; porém é necessário, pois esse é o combate que pode unir
94

todos os que estão dominados e impedidos de continuar na diversificada busca

emancipatória da infindável metamorfose humana” (Ibid.).

Em todas as tradições é possível encontrar um sentido de emancipação.

Elas trazem a presença “do humano se revelando, em sua diversidade, na

multiciplidade de diferentes formações histórico-culturais” (Ibid.). No caso

brasileiro, a formação histórico-cultural de religiões de constituição, em algum

grau, “afro”, compreendem candomblé, umbanda, variações regionais e

referentes aos seus grupos étnicos fundantes, mas também as diferentes

crenças e filosofias resultantes da diáspora africana nas Américas – caso do

rastafarianismo e do santo daime.

E o que permite encontrar um sentido de emancipação nas diferentes

tradições é que cada uma delas “pode nos libertar do etnocentrismo de nossos

particularismos, sem o que nos tornamos fundamentalistas. Sem diferenças

não há diálogo; há tão-só o eco do que se repete como mesmice e que nada

cria” (Ibid.).

Do ponto de vista psicossocial, o sentido da vida nos é dado pela noção

que adquirimos de sagrado. Seja individual ou coletivamente, vivemos em

busca de um sentido para nossas vidas decorrente do significado do sagrado

que interiorizamos ao longo de nossa vivência, num processo que, ao mesmo

tempo, é de socialização e de individualização (Ibid.). A noção de sagrado

desenvolvida por Ilícito é, para ele, um referencial de grande valor: “minha vida

é minha obra. Minha obra é Deus quem manda. Só estou psicografando”. Para

ele, há uma força superior que age em tudo, que está em tudo.

É tudo que tá ao redor, né? O ar, o béque (cigarro de maconha), a


natureza, o sol... Tudo é deus pra mim. Tudo que é divindade que é sagrado,
eu respeito. Tudo que é entidade. Eu acredito em toda essa parada (sopra a
95

fumaça do cigarro). Por isso que eu não tenho religião. Por causa disso. Minha
religião é o Corinthians.

Ampliar a perspectiva dessa formação histórico-cultural das diferentes

tradições na vida de Ilícito coube ao hip-hop.

O hip-hop acaba sendo essa escola, do cara que é universal hoje, não é
tão fechado por grupos, como o Movimento Negro ou uma entidade africana, o
candomblé92... não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado?

Na experiência religiosa de Ilícito de contato com o sagrado, a

preocupação em não seguir dogmas demonstra a existência de um sentido

crítico em relação à forma de se apropriar da tradição. No caso do candomblé,

tradição que lhe chega pela via indireta, por consulta já realizada aos búzios,

por idas a toques para orixás, por conversa com uma e outra pessoa e leitura

de textos a respeito...

Para ele, é importante que não caiba a ninguém a “palavra final”. O

espaço para o diferente precisa estar aberto, em direção contrária à crença do

fundamentalista, para quem “é dele a última palavra, pois, dele, quem fala

diferente está errado” (Ciampa, 2004[a]).

Nesse sentido, a identidade postulada por Ilícito é o que Ciampa,

baseado em Habermas, define como “identidade pós-covencional do eu”,

Identidade que hoje é possível somente sob a forma reflexiva. Por isso, nega a

articulação com imagens de mundo, já que essa identidade não se apóia em

conteúdos fixos, o que não significa não ter conteúdos, mas sim dispor de sistemas de

interpretação cujo status é sempre passível de revisão. Daí se entender que a

92
Sobre o significa do candomblé enquanto sistema religioso e da forma como foi conceituado nesta
pesquisa, ver capítulo 4.
96

identidade pós-convencional implica o procedimento comunitário de participação nos

processos de aprendizagem criadores de normas e de valores.

(Ciampa, s/d)

Ao criticar a normatividade vigente nas suas diferentes possibilidades de

castração do humano, ao voltar-se sempre para o coletivo, ao desenvolver o

seu entendimento próprio de sagrado – a partir de práticas que foram

historicamente vilipendiadas pelas “normas vigentes” – Ilícito está apontando

para o desenvolvimento de uma identidade pós-convencional.

Ilícito luta contra a “colonização do mundo da vida”, ao negar que tudo

não passe de uma questão de eficiência e ao procurar um sentido para a sua

vida.

“A ordem sistêmica, além de incrementar a opressão e a exploração,

cada vez mais amplia a colonização do mundo da vida, através de uma ação

ideológica que afirma ser a busca de sentido uma questão sem sentido, pois

tudo passa a ser uma questão de eficiência” (Ciampa, 2002).

Ilícito busca caminho contrário ao da internalização da coerção social

pelos indivíduos que representa a degradação da vida social e das pessoas em

suas relações cotidianas (Cf. Ciampa, 1997).

Após algum tempo sem resposta, a segunda parte da pergunta foi

refeita: quem você gostaria de ser?

Eu mesmo. Ser quem?

E como é que é, eu mesmo?

É essa coisa que eu me transformei aqui, mutante.

Mutante? Como assim?


97

Que não pára de se transformar, meu. É que nem o hip-hop. O hip-hop


não cresce o tempo inteiro? Os cara acha que é só música. Não é só música.
Tem muita coisa acontecendo. Mutante memo.

7.2 Hip-hop como mecanismo para conhecer as diferenças


e chegar à afrodescendência

Ilícito, em vários momentos, apontou para a característica múltipla do

hip-hop. É o que ele traz quando fala sobre a diferença entre ser do hip-hop e

ser hip-hop.

Ser hip-hop é dormir e acordar fazendo essa parada.


Ser do hip-hop é só ir na galeria [referindo-se à galeria da Rua 24 de
Maio, no centro de São Paulo] e comprar o kit, tá ligado? Agora, “ser hip-hop”,
é você dormir e acordar fazendo essa parada, dentro de todo o universo que
ele proporciona, tá ligado? Ser do hip-hop é só ir na galeria e comprar o kit, que
é o que mais acontece. Mas penso que é positivo também, sabe?, porque... a
pessoa tem que começar de algum ponto, tá ligado? É do bumbo, ou é da
caixa, ou é da bombeta, é do estilo... aí depois é todo um processo de evolução
que é natural. Pelo menos já pegou um ponto do... da matrix. Porque... acordar
da parada é um processo também. O que a gente precisa pra fazer essa
parada do hip-hop ligada à mente é fazer... é ter uma evolução, que é o que os
elementos do hip-hop proporcionam. Toda a história, toda a atuação social,
cultural, política, militância, é... educacional. Tudo que o hip-hop proporciona
pra se transformar nessa evolução musical, ou da trança, ou da parada
artística, pra você tomar um nível nacional, mundial, porque é o que os caras
fazem lá fora. Quebrar essa barreira de falar assim “eu só sou do hip-hop”. Hip-
hop é um mecanismo, é a cultura que te transforma, pra você ser um artista de
ponta como qualquer outro de outro estilo musical, por exemplo, no mundo da
dança e assim também no mundo das artes plásticas, tá ligado?

Ilícito se autodenomina um hip-hopper. Um hip-hopper mutante.

Pergunto a ele o que isso quer dizer.

É ser universal, mano. Todos os lugares do mundo que eu já fui, tem um


irmão que é que nem eu. Iss´é da hora. Independente da etnia dele. O
problema do Brasil é étnico, tá ligado? O lance de não saber respeitar as
etnias. Muito mais que a pigmentação e a cor da pele, é respeitar as etnias,
entendeu? As etnias indígenas, africanas, européias, árabes, toda a influência
98

mundial... Que a raça do planeta tá aqui. Todas. Os orientais... tudo. É saber


respeitar isso93.

Para se dar conta da existência das diferenças entre os grupos humanos

e do não-respeito a elas, o hip-hop foi um mecanismo. O hip-hop é infinito, ser

hip-hopper é ser universal. Ilícito é universal. Ele olha ao seu redor e,

simultaneamente, olha pro mundo.

Paul Gilroy (2001) possivelmente trataria Ilícito como um “intelectual

orgânico”. Em sua análise sobre os negros da diáspora e da modernidade, o

autor trata a música negra (“tradições inventadas de expressão musical”) como

apoiadora do surgimento dessa “casta distinta” (que ele chama de “intelectual

orgânico”) que tem se apresentado como guardiões temporários de uma

sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também tem operado como

um recurso político e filosófico (Gilroy, 2001, p. 163-164).

[Ainda que] as colônias de cada país que não perderam as suas origens
[aqui no Brasil]. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que
eu vejo que foi tão agressiva quanto à norte-americana e talvez até muito mais,
porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado?
Mas que é loco, que [aqui] é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo,
e eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as
indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a
sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro
povo, como lidar e respeitar as etnias. É problema étnico. Assim como o negro
teve várias definições, eu fazendo música de preto também tem várias
definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado? Me chamam de várias
formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance
que vai além da cor da pele, é um lance de uma poesia que fala “que a pele
negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio, porque
nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. O conhecimento, que
é a definição do quinto elemento, né?, dos cinco elementos que o hip-hop
contém.

93
A respeito da análise conceitual de etnia nesta pesquisa, ver capítulo dedicado à análise da entrevista da
perspectiva étnica.
99

A mistura de que fala Ilícito faz parte da crença que sustenta a ideologia

racial brasileira (Telles, 2003). Mais adiante, ele fala em “embranqueamento”,

ou “branqueamento” que, anteriormente à difusão do conceito de “democracia

racial” propalado por Gilberto Freyre, sustentava-se na idéia de que a

miscigenação era negativa (Ibid., p. 50-51).

Ilícito também fala o que pensa sobre o que é ser negro quando se

refere à poesia que cita. Ser negro, para ele, depende menos da cor da pele e

mais da consciência que se tem do processo histórico, do patrimônio cultural

do qual se partilha. Mas não é como “negro” que Ilícito se classifica. “Negro” é

uma concepção associada à cor da pele. É por essa razão que ele diz que se

se dissesse negro, chocaria seus interlocutores. “Mas se disser que eu sou

afrodescendente, eu sou”.

O psicólogo Ricardo Franklin Ferreira (2000, p. 140), ao analisar em sua

tese de doutorado a identidade de um militante do Movimento Negro que fazia

parte do meio acadêmico (João), concluiu que a noção de identidade

afrodescendente (defendida por João) em lugar de identidade negra sugere

... um indivíduo que se constrói em torno de uma história de ancestralidade

africana, uma concepção não necessariamente associada à cor de pele, tonalidade,

matiz ou especificidades anatômicas. Valoriza uma de suas particularidades, o fato

histórico de ter, cultural e fisicamente, raízes africanas, favorecendo muito mais um

posicionamento afirmativo dos indivíduos em torno de valores pessoais do que uma

atitude de negação e confronto para com um grupo de pessoas consideradas

“contrárias”.

(Ferreira, 2000, p. 140-141)


100

O conceito de identidade afrodescendente apontado por João (Ibid, p.

139) dialoga com o conceito de identidade que “se faz dentro de um exercício

político”. Disso, Ferreira apreende que a identidade afrodescendente não é

“uma mera representação de indivíduos com determinadas características

físicas e cor de pele negra, mas um constructo pessoal, referência constituinte

do mundo simbólico de pessoas, construído por meio de práticas sociais,

contendo especificidades históricas e, principalmente, determinante de atos

sociais” (Ibid., p. 139-140). Nesse sentido, a afrodescendência é uma

referência “que pode ou não ser internalizada pelo indivíduo”. Se internalizada,

poderia ser considerada como um valor a fazer parte da identidade do

indivíduo.

...Pessoas com identidades pessoais articuladas em torno de valores

semelhantes podem unir-se e mobilizar-se com muito mais consistência para causas

comuns, como se fosse uma “bandeira” construída a partir de identidades já

corporificadas pelos indivíduos.

(Ibid., p. 140)

Ciampa, em seu texto “Políticas de Identidade e Identidades Políticas”

(2002), nos diz que grupos sociais lutam pela afirmação e pelo

desenvolvimento de suas identidades coletivas, no esforço de controlar as

condições de vida de seus membros, enquanto que os indivíduos buscam a

transformação e o reconhecimento de suas identidades pessoais “na tentativa

de resolver conflitos em face de expectativas sociais conflitantes”. Mais


101

adiante, ele traz como exemplo o estudo de Neuza Guareschi94 sobre Políticas

de Identidade, em que a autora trata do tema de como determinados grupos

sociais e culturais têm lutado para afirmar suas identidades (Guareschi apud

Ciampa, 2002), referindo-se a “grupos com identidades discriminadas,

marginalizadas ou oprimidas por setores dominantes ou elitizantes da

sociedade” – situação encontrada na história de vida apresentada por Ilícito.

Ciampa remete o trabalho de Guareschi à “chamada identidade negra”95. Ao

lado de uma “identidade negra” haveria que se considerar uma “identidade

branca”, não se podendo ignorar as políticas de identidade de setores

dominantes ou elitizantes da sociedade. As formulações de Ilícito caminham

paralelas a esse raciocínio (Ibid.).

O Brasil ficou preto, tá ligado?, e índio, aí os caras falou “porra mano,


ficou preta essa porra aí, tem que deixar branco”. Aí trouxeram mais de 3
milhões de europeus96 com condições de trabalho, com pedaços de terra, já
com sementes pra plantar, com apoio do governo, aí colocaram eles mais pro
Sul, lá pros lados de Crisciúma, tá ligado?, e foram dando as terras mais
produtivas, tá ligado? Foi diferente com o que aconteceu com os indígenas que
‘rancaram a terra deles; com os negros que vieram como... mercadoria.
Entendeu? Então o quê? O país ficou preto. Ainda mesmo assim, nóis é preto,
ainda continua sendo a segunda maior nação e mesmo assim não
conseguiram embranquecer o País.

Ao apresentar a sua leitura do contexto histórico em que vieram para cá

europeus e africanos, ao reconhecer na vinda dos europeus a política de

embranquecimento que foi implantada no País e ao concluir que “ainda mesmo

assim, nóis é preto”, Ilícito está falando do fato de o Brasil, sendo um país de

94
Neuza GUARESCHI. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para a psicologia
social – in Psicologia & Sociedade, 12 (1/2): 110/124; jan/dez. 2000.
95
A explicação sobre a opção pelo uso de identidade afrodescendente nesta pesquisa está no subcapítulo
3.2.
102

população majoritariamente negra97, ainda continuar sofrendo com o racismo

institucional.

Eu sei que minha família é descendente de italiano porque os italianos,


os europeus vieram com uma condição melhor. Dentro desse processo de
embranqueamento, que veio esses padrões que a gente tem, entendeu? Na
televisão, por exemplo. Que é, é tudo padrão europeu, né? E norte-
americanizado. E... E é isso. E eu acho que o rap que abre sua mente pra
essas parada... E as influências com o sagrado, né?

Em contraposição ao fato de não saber de onde vieram os africanos que

aqui foram escravizados98 e dos quais ele também descende, é possível

imaginarmos o seguinte raciocínio: “epa, sei quem são meus ancestrais

brancos. Epa, só tem branco na TV. Epa, não sei quem são meus ancestrais

negros. E ninguém sabe me dizer quem foram, de onde vieram”. Ilícito não

usou essas palavras na sua fala, mas a suposição de seus questionamentos

demonstram ter caminhado nessa direção.

Segundo Telles (2003), o branqueamento e a democracia racial são os

dois pilares da ideologia racial do Brasil. A ideologia do branqueamento tentou

afastar o temor que dominou o País no século XIX, de que a miscigenação –

malvista em função das crenças pseudocientíficas de que a humanidade era

dividida biologicamente em raças e os negros estariam na base dessa pirâmide

– condenaria o Brasil ao subdesenvolvimento. Foi então que as elites

96
Darcy Ribeiro (2006, p.176) fala na chegada de 7 milhões de europeus que vêm ao Brasil por causa da
crise do desemprego em seu continente de origem. Desses, 4 milhões e meio teriam se estabelecido
definitivamente no país, principalmente em São Paulo.
97
Na denominação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para o qual a população
negra brasileira é constituída por pessoas de pele preta e de pele parda.
98
“Com o primeiro disco do grupo, o objetivo era traçar o caminho da origem do povo brasileiro. De
onde que veio essa galera? Eu perguntava pro meu pai, perguntava pros meninos do grupo, só sei que
veio da Cafelândia, da Cafelândia, num sei... Mas que etnia africana? Então começamo a traçar a nossa
história, do que é a periferia, a partir dos quilombos. Nós somo da rua, hip-hop é da rua, e aí [viemos]
misturando essa parada, essa parada étnica do povo brasileiro” (Ilícito, em uma das entrevistas para a
pesquisa).
103

brasileiras, com o apoio de pequena parcela da comunidade científica,

decidiram que podiam eliminar a grande população de negros por meio de um

processo de branqueamento que fazia uso da miscigenação, acompanhada de

uma imigração européia maciça. O branqueamento se tornou uma “ideologia

popular”, categorizando a qualidade do indivíduo com base na raça (Ibid, p. 62-

63).

Quando o racismo científico entrou em decadência, a elite brasileira

passou a defender a idéia de democracia racial. Os seus defensores se apóiam

no fato de que se não há diferenças biológicas entre os diferentes povos que

formam o País, então, não faz sentido dizer que haja divisão de grupos

humanos hierarquicamente. A comprovação de uma possível não-existência de

racismo no país estaria no processo histórico da miscigenação no Brasil,

transformada por Gilberto Freyre no mais importante símbolo da nossa cultura.

Para o autor de “Casa Grande & Senzala”99, as relações sociais entre negros e

brancos no Brasil eram fluidas, desde o período da colonização em função do

nascimento de cidadãos brasileiros “mestiços”. Segundo Freyre, a

miscigenação foi possível por causa da falta de mulheres brancas para os

colonizadores portugueses e também pela predisposição desses para a mescla

cultural. Foi assim que, sob influência do antropólogo Franz Boas, Freyre

apresentou na década de 30 “uma nova ideologia nacional”, em vigor no Brasil

até a década de 90 – quando o Estado brasileiro reconheceu a existência do

racismo no país e passou a implementar reformas raciais (Ibid., p. 62-63).

99
1933 é o ano da publicação do livro, tido como original à época por “considerar a contribuição africana
como um fator cultural importante, embora secundário, à formação de nossa nacionalidade”. Nessa
sociedade “culturalmente sincrética” de Freyre, as diferentes “etnias” que a formavam teriam
contribuições diferentes qualitativamente. “Uma diferença que se basearia na centralidade do português
104

O que Ilícito faz com sua obra é buscar uma convivência igualitária entre

as raças, a partir do respeito às diferenças, na tentativa de superação o

racismo.

Nessa linha de raciocínio também nos coloca Munanga, para quem a

solução para o racismo não está na negação das diferenças ou na erradicação

da raça, mas sim na luta e numa educação que busquem a convivência

igualitária das diferenças. Segundo esse raciocínio, não é a raça o que cria

problema, mas sim a diferença fenotípica por ela simbolizada (2005-2006, p.

56).

Todo brasileiro é afrodescendente100. Isso é uma música nova que eu tô


fazendo. Todo brasileiro é afrodescendente, entendeu? Então é isso. Todo
brasileiro é afrodescendente. Todo. É. É isso aí. Porque o Brasil é uma África.
Né? Depois da Nigéria, eu acho que é onde tem mais concentração de negros
no mundo. Isso fora do continente africano. E o Brasil não se vê, tá ligado? O
Brasil não se vê, porque... o padrão estipulado é essa..., esse padrão norte-
americano-europeu-nórdico, né? Mas assim..., é..., a presença africana no
Brasil é muito forte e até a presença do Brasil na África é forte, entendeu101?
Todo brasileiro é afrodescendente e tem que ter consciência disso, entendeu?
Por exemplo, no meu caso, que... não tenho muita melanina, né, e várias
definições, mas assim, é, é eu sou... Eu posso falar que eu sou
afrodescendente, entendeu? Se eu falar que eu sou negro, os caras podem
chocar um pouco, né, pela minha falta de melanina, mas pra mim, tamém, o
que importa é o que eu sinto, né?, que eu sei o que eu sou. E o que importa é
que alguém também ache que eu deva ser alguma coisa, se o cara achar que
eu sou branco, tá bom, vou ser o branco, se o cara falar “cê é preto”, eu sou
preto. Se o cara falar “cê é universal”, sou universal! “Cê é alienígena!” Eu sou
alienígena! “Você é um fantasma, né?” Eu sou um fantasma, véio. Tá ligado? É
isso. O que for necessário pra plantar o amor e as coisas fluírem, nóis se
adapta, entendeu?

como responsável pela adaptação da civilização européia aos trópicos, através da assimilação da cultura
indígena e da africana na formação nacional” (Muryatan BARBOSA, [2007]).
100
Alguns dias após a realização dessa entrevista, em uma atividade coletiva em que nos encontramos,
ele veio até mim para me dizer que a música “Olhos Coloridos”, de Sandra de Sá, foi o que despertou
nele esse pensamento, no verso que diz “todo brasileiro tem sangue crioulo” (Cf. Olhos Coloridos. Sandra
de Sá. Sandra Sá. Faixa 5, n. 103.0689 RCA-Victor. 1986).
101
Para o historiador Alberto da Costa e Silva ([2007], p. 67), estabeleceram-se padrões culturais comuns
nas “duas margens do Atlântico”, cidades e vilarejos costeiros ligados pelo tráfico de escravos. Entre eles,
padrões relacionados a habitação, cozinha, vestimentas, festas, ou seja, “em quase todos os modos de
vida”.
105

Em outro momento da entrevista, ele diz:

Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém,
sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto,
tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de
frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita... Eu sou positivo, não sou
esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo capitalista, me
deixou um monstro, tá ligado?

Dos sentimentos expressos nesses dois trechos, chamam a atenção

quando ele diz que “o que importa é o que eu sinto”, próximo à fala sobre a

questão da sua afrodescendência; mas também a questão de ser universal –

que reaparece quando ele diz que a raça é humana.

O fator histórico que “aprisionou” os afrodescendentes à margem dos

direitos básicos da humanidade, marginalizando-os por todos esses séculos de

história e nesse pouco mais de um século de fim da escravidão no Brasil,

parece exercer papel fundamental na luta de Ilícito pelo fim das diferenças

como razão de discriminação, e pela valorização daquele que, ao ser visto

como “o diferente”, foi excluído, estigmatizado. Um sentimento de identificação

o une ao que foi visto como diferente, pela luta do reconhecimento da sua

diferença de forma não hierarquizada, mas igual. Afinal, somos todos humanos,

o homem, no seu multiverso102, é universal.

7.3 Processos civilizatórios africanos e cultura brasileira

Uma das perspectivas para se falar da forte presença africana no Brasil

– que permite uma reflexão sobre a afrodescendência dos brasileiros – está na

concepção de um “processo civilizatório” desenvolvida por Joel Rufino (2000).

O autor nos fala que nós, brasileiros, nos encontramos diante de um processo
106

civilizatório (grifo nosso) em que as culturas negras representam o “núcleo

pesado”.

Ao dizer civilização, queremos significar encontro prolongado de culturas

distintas gerando produtos novos e sofisticados – como foi o caso, por exemplo, do

Egito faraônico, do Renascimento ou da Revolução Americana; e ao dizer culturas,

nomeamos campos-de-força em que se condensam as representações e os sentidos.

Essa percepção é antiga no pensamento brasileiro, vem pelo menos da segunda

metade do século passado, quando se tratou de projetar a Nação designando um

lugar para a maioria negra e mestiça excluída da “cultura”. Nos anos 70, com a

emergência dos movimentos negros, acentuou-se o que diferenciava negros de

brancos, mas isso só funciona como tática – digamos assim – de luta organizada

contra o racismo. Efetivamente, negros e brancos são, no Brasil, desiguais sociais e,

freqüentemente, muito desiguais. Democracia racial nunca passou aqui de atroz ironia.

No campo das representações e dos gestos – das expressões sinceras – não há

diferenças importantes entre o brasileiro negro e o branco. A discriminação dos não-

brancos fica sendo entre nós, portanto, uma espécie de esquizofrenia – a divisão de

mente com a subseqüente rejeição de uma das partes e substituição da visão realista

por fantasias e delírios.

(Rufino, [2000], p. 377)

Quando Ilícito nos diz que “o Brasil é uma África que não se vê”, ele se

refere ao projeto da Nação que designou um lugar para a maioria negra e

mestiça excluída da “cultura”. Mas se as culturas negras são o “núcleo pesado”

do nosso processo civilizatório, porque do encontro prolongado delas com as

culturas dos portugueses e dos indígenas nasceu esse produto sofisticado que

102
Aplicando o termo usado por Xavier (2000).
107

é o patrimônio cultural da sociedade brasileira, então, brancos(as) e negros(as)

brasileiros(as) se “igualam” por trazerem em si essas “expressões sinceras”.

Dessa perspectiva, todo brasileiro é afrodescendente.

Uma das formas que Ilícito vê de combate às diferentes formas de

discriminação que sofrem afrodescendentes é partilhando desse conjunto de

significados e promovendo uma reflexão sobre a mistura conformadora da

sociedade brasileira. Não da perspectiva biologizante ou fenotípica (pela qual

ele é discriminado), mas da perspectiva cultural.

Não dá pra você falar que cê é preto, simplesmente, ou que você é índio
simplesmente, ou se você é branco, ou se você é nordestino, porque é tanta
influência, e tanta contribuição que a gente teve... É diferente por exemplo em
Kingstom, que... 100% da favela é preta, se aparece um branco é uma vez na
vida, então cê entende que ali é um contingente, entendeu?, africano, mesmo,
entendeu?, aí cê define. Mas São Paulo? O que cê define em São Paulo? Não
tem mais [o que definir]. O que que é a sua família? Já ficou branco e preto, o
que que você é, entendeu? Que nem já foi falado num debate do Movimento
Negro, aí um cara falou que era preto, o outro falou que era branco, “minha
mãe é branca o meu pai é preto”, um negócio assim. Então alguém perguntou
“e eu sou o quê? Cor de ...103? Então eu vou embora dessa .... Vão todo mundo
se ..., que eu vou embora”. Entendeu? “Então minha cor é de ...?”. Racista tem
que se .... Vai se ..., mano. Racista, não importa se é branco, se é preto, índio,
da onde ele saiu, tá ligado?, é racista, tem que se ..., mano, e eu não fiquei lá
porque não concordo com isso aí, sou ser humano, entendeu?

A discriminação a que Ilícito se refere nesse trecho da entrevista é, para

ele, uma atitude racista. Sabemos que na definição de racismo para o

Movimento Negro brasileiro, somente um grupo hegemônico pode ser racista

contra outro grupo humano de uma determinada sociedade104. Sejam racistas,

sejam preconceituosas ou de discriminação, tais atitudes não dizem respeito

103
Reticências foi a forma escolhida por Ilícito para ocuparem, no corpo da dissertação, o lugar de
palavras utilizadas por ele como xingamentos.
104
Para uma explicação mais detalhada a respeito, ver Xavier, 2000.
108

apenas ao indivíduo ou ao grupo contra o qual são dirigidas, mas a todos os

membros da sociedade a que pertencem.

7.4 A questão racial brasileira é problema de todos os


cidadãos brasileiros

Em entrevista a Ciampa, por ocasião dos 500 anos da chegada dos

portugueses ao Brasil, Kabenguele Munanga formulou uma longa resposta a

respeito da discussão sobre a quem competiria a reflexão sobre a problemática

referente ao negro no Brasil e à participação de negros e não negros nesse

debate.

Sempre achei errado falar do “problema do negro na sociedade brasileira”, pois

o negro não cria – como nunca criou – problemas para a sociedade. Pelo contrário, ele

ajudou a desenvolver a economia, criar riquezas, povoar o território e construir a

cultura e a identidade do País. A própria sociedade brasileira é que tem uma enorme

dívida histórica com o negro. Há problemas, sim, mas devemos entendê-los como

problemas da sociedade brasileira em relação ao negro e não o contrário. (...) Vejo o

preconceito, a discriminação e o racismo antinegros como problema da sociedade

brasileira, ou seja, como problema nacional cuja solução depende da participação de

todos os cidadãos. No campo da pesquisa social, da reflexão crítica e das propostas

de transformação da sociedade, devemos contar com a participação de todos, sem

discriminação de cor, sexo ou religião.

(Ciampa & Munanga, 2000, p. 9)

Segundo a visão do antropólogo, “todos – vítimas e não vítimas do

racismo – temos o direito – e até a obrigação – de tecer nossas reflexões sobre


109

os fenômenos sociais nacionais, independentemente de nossa origem social,

racial, sexual e religiosa” (Ciampa & Munanga, 2000, p. 9-10). Nesse sentido,

“desqualificar a reflexão dos brancos sobre os não-brancos e vice-versa seria

despojar alguém de seus direitos de cidadãos brasileiros perante uma questão

nacional” (Ibid., p.9-10).

Quando Ilícito traz seu ponto de vista sobre a discriminação que sofrem

os que não têm pele escura em atividades do Movimento Negro ou de

debatedores das questões raciais no País, ele também fala do processo

histórico em que as culturas e o modo de vida do negro foram historicamente

desmerecidos, encobertos, diminuídos, e do qual partilhamos todos, brasileiros

e brasileiras. As diferenças estão aí. Diferenças que, para ele, deveriam ser

pensadas menos da perspectiva fenotípica, da aparência, do tom da pele, e

mais pela diversidade cultural dos diferentes grupos que formam este país;

menos pelas características biológicas e mais pela perspectiva histórica:

Tem “blackitude105”, tem agora até branquitude, que é o que eu faço,


entendeu? Tá ligado? A minha atitude é de branquitude. Quem tinha que
combater a doença, não era o índio, nem o negro, era o branco, porque foi ele
que fez a merda. Todas as raças já foram escravas, mas ele que fez a merda.
Quem tinha que ter movimento, era branco, pra rebater a merda que eles feiz
com o povo oprimido, com os latinos, com os indígenas, na América indígena,
com os africanos... Quem tinha que tá lutando contra essa parada era os
brancos. E eles são os últimos a conscientizar disso. Como que eles querem
formar nóis numa faculdade, pra ser doente? Pra escravizar o nosso povo? Tá
ligado? Eles estudam a vida inteira pra ser um escravocrata? Então eu não
quero estudar, não quero formação de coisa nenhuma, entendeu? sabe?, eu
vou viver no submundo, vou viver em vários mundos, em vários sub-
submundos. Tá ligado?

105
Ilícito aqui se refere ao coletivo da Bahia de nome “Blackitude”, que entende o hip-hop como
desdobramento do movimento negro. “Da sua forma, a Blackitude concebe a arte como forma de luta
contra o racismo que vitima o povo africano onde quer que ele se encontre. Por isso Blackitude: blacks +
atitutde, blacks com atitude” (Maca, 2005).
110

Atitude de “branquitude106”, para Ilícito, é a atitude do branco em –

reconhecendo o seu papel histórico na conformação do Brasil – engajar-se

politicamente na luta contra o racismo. Na Psicologia Social, “branquitude” é o

conceito relacionado aos traços da identidade racial do branco brasileiro a

partir das idéias sobre branqueamento. Alguns pontos da branquitude são a

não-percepção da discriminação e o desconforto por parte dos brancos quando

têm de abordar assuntos raciais; a raça não é vista como diferença, mas como

hierarquia e as fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e

contraditórias (Bento, 2002).

Essa concepção de Ilícito demonstra que ele não vê a questão racial no

Brasil como “um problema do negro” e que o seu raciocínio se alinha com a

idéia de reconhecer a sua branquitude, ou seja, a existência da omissão do

branco em relação à problemática resultante dos cerca de 400 anos de

escravidão do negro para a sociedade brasileira. Evitar focalizar o branco é

evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de

pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura107. Além disso, há

benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado

pelo branco na história do Brasil (Cf. Bento, 2002, p. 27).

Para Bento (Ibid.), no entanto, a referência da questão dos negros no

Brasil como problema “do outro” está relacionada à noção de que o humano

universal é o branco. A psicóloga nos informa que, para Janet Helms108, a

evolução de uma possível identidade racial branca não-racista pode ser

106
Na Psicologia Social, “branquitude” é o conceito relacionado aos traços da identidade racial do branco
brasileiro a partir das idéias sobre branqueamento. Alguns pontos da branquitude são a não-percepção da
discriminação e o desconforto por parte dos brancos quando têm de abordar assuntos raciais; a raça não é
vista como diferença, mas como hierarquia e as fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e
contraditórias (Bento, 2002).
107
Discussão também presente no capítulo sobre etnia.
111

alcançada se a pessoa aceitar sua própria branquitude, e as implicações

culturais, políticas, socioeconômicas de ser branca, definindo uma visão do eu

como um ser racial.

“Ó véio, eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando

não, véio”. Com essa frase usada por Ilícito em uma discussão em que ele foi

“discriminado” por ser branco, ele fala de seu reconhecimento histórico do

papel do branco na problemática racial brasileira e de seu engajamento na luta

contra o racismo no Brasil.

Para Ilícito, é conflitante a situação dos que apontam para o branco e

dizem “você é branco” e, do outro lado, dos que dizem “você é louco, poderia

estar aqui”. Ao terem essa atitude diante do posicionamento de Ilícito, esses

indivíduos demonstram introjeção do ideário racista pelo qual ser negro é estar

fora da cultura hegemônica e da qual os próprios afrodescendentes são

“vítimas”. Se o negro está inserido em um meio social em que apreende que

ser negro não é bom porque os referenciais associados a essa identificação

étnica são negativos, os brancos inseridos nesse mesmo meio social também

terão esse ideário tatuado em seu imaginário. A “identificação étnica que passa

a ser reprimida em função de um contexto desfavorável” que leva um indivíduo

negro a se esforçar para aderir a uma cultura hegemônica está presente

também no imaginário do indivíduo branco. O racismo que pode gerar

ambigüidade e conflito identificatório em um indivíduo negro pode também

gerar ambigüidade e conflito identificatório em um indivíduo (visto como)

branco, mas e que não se identifica com o grupo de pertença que lhe é

atribuído (Cf. Ferreira, 2001, p. 29-30).

108
Apud Bento (2002)
112

Como no Rap, eles não queriam me aceitar porque eu sou branco,


entendeu, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento negro,
isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco, falando
do lado dos preto, os cara fala “cê é loco, cê podia tá aqui”. Só que naquele
esquema eu não vou, tá ligado? Nessa parte eu não participo. E aí é um
grande conflito, entendeu? Cê acaba sendo discriminado pra caralho tamém,
sabe? Porque meu contingente, eu sou uma minoria dentro do meu
contingente, entendeu? E cê acha que é fácil? Cê acha que é fácil ser 1% de
branco, 10% de branco numa parada de maioria preta?

Ilícito é minoria dentre os brancos brasileiros, ao reconhecer a sua

branquitude, ao entender que todo brasileiro é afrodescendente, que ele é

afrodescendente mesmo tendo pele, cabelo e olhos claros e traços nem-tão-

negróides-assim. Ilícito é minoria dentro do Hip-hop, por ter a pele branca e

estar, entre os pretos, falando de negritude, anti-racismo, defendendo o lugar

de Zumbi dos Palmares entre os heróis da história do Brasil, participando de

passeata no dia 20 de novembro109 e subindo no palco entre lideranças e

ativistas do Movimento Negro para “fazer o movimento” que a grande maioria

dos brancos do País não fazem.

7.5 Identidade como processo

A emancipação de Ilícito está presente na luta contra a opressão

econômica (o sistema capitalista que impõe regras de consumo e

comportamento com base na exclusão de uns e inclusão de outros), que ele

enxergou como sendo, no caso brasileiro, intrínseca ao processo histórico de

109
Dia Nacional da Consciência Negra, decretado por lei feriado em algumas cidades brasileiras. A data é
celebrada em lembrança à morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695. Segundo Lopes (2004), sua
criação foi resultado do trabalho da militância negra, a partir da campanha deflagrada em 1971, no Rio
Grande do Sul, pelo Grupo Palmares, sob a liderança do poeta Oliveira Silveira. A data foi estabelecida
por assembléia nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) realizada em Salvador (BA), em 4 de
novembro de 1975 (p. 235).
113

formação do País, a partir da exploração da mão-de-obra de africanos

escravizados e que nunca tiveram sua contribuição e sua diversidade cultural e

humana reconhecidas nesse processo - e a quem tardiamente começaram a

ser destinadas políticas reparativas pelos danos causados pelos cerca de três

séculos e meio de escravidão.

Ilícito não tem uma comunidade de referência no grupo humano no qual

a sociedade o enquadraria por suas características físicas mais evidentes em

termos fenotípicos. Na abordagem relacional da identidade, o reconhecimento

entre os indivíduos de um mesmo grupo é por onde se dá essa consciência de

si necessária à construção identitária dentro do grupo em questão.

“O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos

indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe

objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses,

etc.” (Ciampa, 2004[a], p. 64). O autor nos alerta que um grupo pode existir

objetivamente, mas seus componentes podem não se identificar como seus

membros, e nem se reconhecerem reciprocamente. Talvez esse seja o caso de

Ilícito em relação ao grupo racial branco: ele precisa se defender, ao ser

chamado de “branco”, dizendo não ser “esse branco” de que se está falando. E

o grupo racial branco, ao vê-lo com sua identidade visual, com sua fala ao lado

dos negros, lhe diz “você é louco, você poderia estar do lado de cá”.

Diferença e igualdade são a primeira noção de identidade. No decorrer

da vida, nos diferenciamos e nos igualamos conforme os vários grupos sociais

de que fazemos parte. Por exemplo, sendo brasileiros, partilhamos

características em comum em contraposição a estrangeiros; sendo homem ou


114

mulher, partilhamos características relacionados a questões de gênero (Ibid., p.

64).

Para entender a idéia de identidade constituída pelos grupos de que

fazemos parte, é necessário refletir antes como um grupo que existe

objetivamente. Isso se dá por meio das relações que seus membros

estabelecem entre si e com o meio onde vivem; em outras palavras, pela sua

prática (Ibid.). “...Nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática”. Isso

nos coloca diante de um complicado problema teórico: a resposta à pergunta

“Quem sou eu” é uma representação da identidade. “Torna-se necessário partir

da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de

produção” (Ibid.), para não se incorrer no risco de olhar a identidade como um

“dado” pré-existente a ser pesquisado.

Assumir-se branco foi um processo.

Pra mim, o processo mais difícil da coisa foi me assumir como branco. O
lance tá na ligação muito da pigmentação né? Vai muito mais além dos traços
e... se falar “sou afro-descendente”, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu
sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil de assumir. Até fiz um
refrão esses dias que eu vou usar que é, é... “não tenha medo em dizer que tu
é preto/ não tem espanto em dizer que tu é branco/ não seja omisso em dizer
que tu é índio/ nos toca-disco corre sangue nordestino / não tenha medo em
dizer que tu é preto/ não tenha espanto em dizer que tu é branco/ não seja
omisso em dizer que tu é índio/ nos toca disco-disco corre sangue nordestino”
(ele rapeia, percutindo na mesa). É... que é bem isso, pra mim foi um processo.
Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do branco que, que... que
era esse lance de todos caras que... essa dominação, toda essas... sistema
hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de hoje, entendeu? E
ainda... o branco continua sendo superior em tudo né?

Em fala trazida anteriormente, Ilícito diz que o importante – a respeito de

sua pertença identitária – é o que ele sente. Isolar essa fala neste momento

nos dá possibilidade para pensar no complexo processo de construção da


115

identidade humana, de metamorfose, de vida-morte-e-vida de Ilícito. Ilícito traz

um sentimento de pertença no que diz respeito à identidade afrodescendente.

A presença/consciência da mistura lhe permite concretizar essa

afrodescendência. Apoiando este raciocínio, estão as teorias psicológicas e

antropológicas aqui citadas (ver Ciampa (2001), Ferreira (2001), Munanga

(2005-2006)).

Assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe?
Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada
entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no
ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é
coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que
eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe? E de
diversas formas. Pode passar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles,
tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo.
(...)
E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu vim, desde
que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada se faz
sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego num
momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra mostrar
o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir fazer
isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu? Vai ser
dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais
meu “eu”.
(...)
Tudo é um processo, da hora que Deus quer, que jah quer, dessa força
quer. Ou quando a gente consegue abrir todos os caminhos, entendeu? É
sempre assim, muito loco.

“Estar cada vez melhor” diz respeito, antes de tudo, à sua preocupação

com o coletivo. Apesar de considerar que “pra nóis nunca foi fácil” (em

referência aos que vivem nas grandes periferias), é possível agir para “abrir os

caminhos”. “Abrir os caminhos” começa pela ação. Há que se ter em

consideração, no entanto, o grande número de referências de Ilícito à questão

espiritual – o que nos leva a inferir que tal afirmação possa ser interpretada

também nesse sentido.


116

A segunda constatação da pesquisa sobre identidade de Ciampa

(2004[a]) é que o homem não está liberado de suas condições históricas, o

que, para o autor, nos coloca um problema e uma tarefa.

O problema: não é possível dissociar o estudo da identidade do

indivíduo do da sociedade. “As possibilidades de diferentes configurações de

identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem

social” (Ibid., p. 72). Com isso,

O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade

moderna impedem-nos de ser verdadeiramente sujeitos. A tendência geral do

capitalismo é constituir o homem como mero suporte do capital, que o determina,

negando-o enquanto homem, já que se torna algo coisificado (torna-se trabalhador-

mercadoria e não trabalha autonomamente; torna-se capitalista-propriedade do capital

e não proprietário das coisas).

(Ciampa, 2004[a], p. 72)

Para que Ilícito chegasse a esse entendimento a respeito da sua

“tarefa”, foi preciso antes começar a conhecer o contexto histórico no qual

estava inserido, a história que não lhe havia sido contada e que o hip-hop o

ajudou a “desvendar”.

Então assim, eu acho que foi tudo isso assim, a história de Palmares110
é... depois chegou na... eu já escrevia bastante as coisas e... e o rap, crescer
no Capão e escutar rap... Aí já tem o lance do canto falado, que eu peguei do
forró do meu pai, né, samba e forró, então pra mim é tudo uma coisa só assim.

110
Clóvis Moura (2004) definiu Palmares como “a maior manifestação de rebeldia e organização política,
militar e econômica contra o escravismo na América Latina”. Palmares teria perdurado por quase cem
anos e, nesse período, teria sido responsável pela desestabilização do sistema escravista na região (p.
347).
117

Hoje eu vejo isso como uma coisa só, mas o rap foi o que abriu a mente, eu
comecei a entender a parada, entendeu? É foda, é mó responsa fazer rap.

Se o homem é universal, não cabe ao branco nem ao negro querer

ocupar esse lugar. Historicamente, procurou-se impor o “padrão branco”. Mas a

luta seja pela identidade negra, seja pela identidade afrodescente, não é a da

imposição do padrão negro ou afrodescendente. É a luta pela diversidade, o

homem na sua diversidade é que é universal. O funcionamento da sociedade

capitalista inviabiliza a convivência das diferenças, dividindo, segregando,

acentuando as diferenças e distanciando indivíduos de uma mesma sociedade.

7.6 Do nome ao futebol, do futebol ao rap, do rap à


pluralidade musical

Ilícito é alguém que se apresenta por meio de sua obra. Em nenhum

momento de nossas duas primeiras entrevistas Ilícito usou o nome pelo qual é

conhecido no rap ou o nome com o qual foi registrado por seus pais para falar

sobre quem era ele. Em nossa terceira e última entrevista foi que eu perguntei

a ele a esse respeito.

O nome pelo qual você é conhecido, eu queria que você falasse um

pouco sobre ele.

Acho que é de, de... Boa pergunta... De moleque mesmo, de moleque e


acho que na escola. Acho que é isso. E tamém eu tirei o “inho”, né? cê vê que
inho não funciona né? Todos os “inho” é estranho. Eu tirei esse negócio de
“inho”, essa coisa no diminutivo. Não gosto nem que chame de “neguinho”, tá
ligado? “Qualé neguinho?”. Tá tirando? [Foi] O povo que mais sofreu. Não vira,
né? Tudo que tem “inho” não vira, né?
118

O apelido herdado na infância, dos amigos de escola, é o nome que o

acompanhou quando começou sua atuação no Hip-hop e pelo qual é

conhecido. Sua mãe às vezes o chama pelo nome-apelido. Pergunto pelo

nome com o qual foi registrado.

Foi o meu pai [quem escolheu], por causa do jogador do Corinthians. De


1978.

Ele, então, começa a falar sobre a sua experiência como jogador de

futebol e, dela, sua derivação para a música – considerada herança paterna.

E eu jogava bem futebol, era pra mim ser profissional se eu tivesse tido
um acompanhamento assim desde pivete, e não tivesse interferido os
problema que a gente teve, familiar tal, não tivesse interferido no meu ciclo, eu
tinha certeza que eu ia ser profissional, jogava muita bola. Aí depois com as
frustração, jogar em tanto lugar, comecei a cantar rap e desliguei do futebol.

Ele detalha a trajetória que não lhe permitiu prosseguir no futebol. Nela,

lembranças amargas, ressentimentos; mas também um sentimento de que o

caminho seguido foi um misto entre fazer escolhas e ser escolhido.

Eu cuidava do bar do meu pai... E aí eu ficava no bar à tarde. E eu ficava


no bar à tarde assim, que ele ia dormir, ele dorme, dormia à tarde, e eu ficava
no bar. Aí saía do bar e ia jogar bola. Ficava fazendo pipa pra comprar chuteira
e eu jogava no “Pequeninos do Jóquei”, minha mãe me pôs. Aí [joguei] no
“Pequeninos do Jóquei” e na rua. Jogava na escola, quadra também. Eu acho
que tem uma coisa que eu fico chateado, que meu pai nunca foi me ver jogar,
entendeu? Acho que isso me feriu muito. Minha mãe fez o que ela pôde. Desde
chuteira, de tentar comprar as coisas, não tinha grana, o meu pai não “sortava”
o dinheiro, nem as caneleira... Eu andava nos pano do futebol porque eu
vendia os pipa e comprava os baguio, eu acho que esse negócio do meu pai de
não ter [me] acompanhado, eu acho que pesou também. O amigo do meu pai
levou eu pra jogar lá na Portuguesa lá, aí eu passei nos testes, fiquei lá
jogando uns dois meses e foi quando teve problema aqui, que meu pai teve
que ir pro Ceará, aí não tinha uma pessoa pra mim poder ficar, e nem um
alojamento, não teve um acompanhamento pra mim ficar num alojamento da
Portuguesa, tal, na época, aí fui pro Ceará, fiquei lá, passei uns dois anos, ou
119

um ano... Um ano, o meu pai ficou um ano. Eu nem lembro, que eu era
pequeno. E aí quando eu voltei foi mais duro ainda, porque a gente não voltou
pra cá, né? Hoje nóis tem paiz aqui porque eu e meu irmão crescemos
entendeu? E porque tem a sintonia da quebrada e ninguém mais mexe, mas
antes o meu pai já comeu o diabo que o pão amassou aqui. E a gente voltou
pra cá depois de ficar perambulando. Que a gente resolveu as coisas que
tinham problemas. Teve uma época mais sofrida assim. Porque meu pai
passou por vários probl..., a gente arrendou um bar, pagava aluguel, e
trabalhava que nem um cachorro, sabe?, e lá era moleque, assim, lá eu sofri
pra caramba. O meu pai foi preso, e eu estudava de manhã e trabalhava no
boteco até às duas da manhã, eu estudava das 7h às 11h, então foi a época
que eu fui largando mesmo a parada [referindo-se ao futebol]... Nóis morava
numa casa em oito, com dois cômodos, foi uma época bem difícil, eu acho que
isso que foi me afastando do futebol. Ainda tentei jogar, depois fui pra várzea, ó
meu... Ó como que é meu, minha perna... porque na várzea é roçadeira, né? Aí
eu falei “não, não güento isso aqui não”. Então eu parei de jogar. Mas é... eu
gostava muito, tinha mó potencial. Tem um cunhado meu né, que minha irmã
teve uma filha com ele, minha sobrinha, e ele trabalha com isso aí, com futebol,
né, de empresariar jogador tal, e ele sempre fala, “se você não tivesse viajado
nas idéias, não tivesse parado tinha conseguido”. Ele me levou também em
vários lugar, me ajudou bastante. Mas eu acho que o tava escrito, né, porque
na época em que o meu pai me fez era a época em que ele era novão, ficava
nas cantoria fazendo forró, né, minha mãe ficava em casa ele ia pros forró e
tal, acho que isso aí já tava no sangue também, o lance da música, e calhou de
nossa vida ser um pouco conturbada, aí veio o sofrimento, e o sofrimento gerou
essas parada aí, né, essa forma de ser. Hoje a gente não tem muita grana,
mas vive em paz, entendeu? Isso é que é importante.

Ao narrar os acontecimentos que afastaram Ilícito do futebol, ele vai nos

revelando o percurso que o levou à música. Ele enxerga a música como

herança paterna. Mas ele também entende a sua chegada até a música como

fruto de sua trajetória pessoal, da consciência crítica que foi adquirindo com

relação às coisas que se passavam em sua vida, das dificuldades passadas

por ele e por sua família. Ele começou com o rap. Que abriu sua consciência e

lhe fez ver a “árvore musical” que poderia ser explorada. Mas para fazer rap

houve um elemento fundamental: o sofrimento.

7.7 A nordestinidade como mais um elemento de identidade


120

Quando perguntado a respeito da “veia artística”, Ilícito aponta a herança

paterna:

Tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno
ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase
todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85,
meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do
Serra, o Serra é que deu pra ele. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas
paradas. Eu era pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai.
Só que jogava bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma
ilusão... aí comecei a fazer, já escrevia umas letras...
Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró, conheço
bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do Rap, fazendo uma coisa norte-
americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso cantar um
forrozinho. É loco.
Foi muito nessa ligação, que a gente sempre tá fazendo e dizendo, da
ligação nordestina, porque é isso que..., principalmente pra mim, né, me deu
mais identidade dentro do hip-hop, pra mim falar da coisa nordestina, e um dia
o Museu da Pessoa tava fazendo um seminário e convidou eu pra participar da
mesa, pra falar sobre a questão indígena, a questão negra quilombola, e sobre
o lance da periferia. Aí eu toquei no que fala da questão indígena eu fui falar
sobre periferia. Lá, a gente, o grupo tocou e eles convidaram o Verdelins e
Pardal e o Sebastião Marinho. E isso aí resultou em muitas outras coisas
assim, uma visibilidade importante também nessa ligação do hip-hop e o rap
com a embolada e o repente, né, o cordel, todo esse universo, porque eu faço
o que o meu pai fazia antes, só que agora com a tecnologia, mas é o mesmo
canto-falado, é isso que eu to fazendo. Se o cara tocar um pandeiro, eu faço
uma embolada em forma de rap, se tocar a sanfona, eu canto e se o DJ soltar
uma batida de bumbo-e-caixa, eu rimo, se o cara soltar um drum’n’bass111 eu
rimo, se o cara tocar um grime eu rimo, se vim um tambor do Espírito de Zumbi
eu faço um som, tá ligado? Fui no Maranhão, fiz um som ao vivo com os cara,
fui em Teresina também fiz, então... na Bahia, dá pra fazer com o Olodum. É
infinito, é um universo...
Minha vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o ”contrapunto” de
tudo. Desde o som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais
pesado, gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu “inverto” tudo. Né, essa
idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia duma
cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas idéia, tá
ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente. A mesmice é tipo você
vê um pensamento radical e não querer abrir o leque, tá ligado? E ficar vivendo
num universo fechado, numa mesmice, num ego, tal, sendo que a parada não
é desse jeito. Tem muita coisa lá acontecendo e você tá fechado num canto
achando que é o dono, que tem o dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá

111
Drum´n´Bass (também abreviado como D&B ou DNB) é um estilo de música eletrônica que
surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra. O gênero é caracterizado por batidas rápidas,
próximas a 170 BPM (http://pt.wikipedia.org/wiki/Drum_and_Bass, acesso em 17 de agosto de
2007).
121

ligado? É abrir o leque, sabe?, assumir os erro, não ter medo, não ter
vergonha, medo de pedir perdão, nem dó. Tem muita gente numa mesmice,
fechado.

Ao falar de sua fuga da “mesmice”, Ilícito nos remete ao uso que Ciampa

faz do termo, quando define que a mesmice ocorreria da re-posição da

identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou

inconsciente compulsão a repetição. O que sustenta a mesmice é o

impedimento da emancipação (Lima, 2005, p. 85). Ao fugir da mesmice, no

conceito formulado por Ciampa, Ilícito estaria desimpedido a emancipar-se.

Ao conceito de “mesmice” se contrapõe a “mesmidade”, pela qual se

expressaria a alterização, que se refere à superação da personagem vivida

pelo indivíduo e que se torna possível a partir da possibilidade de formular

projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente

definidos (Ibid., p. 86).

Sabemos que a criação de novas normas, novos valores e projetos na esfera

universal encontram grandes dificuldades de concretização e superação no nível

coletivo, entretanto, no nível individual essa transformação torna-se mais facilmente

possível, ainda que, muitas vezes, de forma parcial ou fragmentada.

(Ibid., p. 86)

A cada minuto, o hip-hop dá vazão à criação de novas normas na esfera

universal. A cada minuto, um jovem, em algum lugar do planeta, procura esses

novos valores no nível individual. A cada vez que um deles conquiste esse

objetivo, mesmo que parcialmente, a humanidade tem uma chance a mais de


122

caminhar rumo à emancipação. Daí o fato de cada identidade configurar-se

enquanto um projeto político.

7.8 Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”

É isso que é o rap, entendeu, que eu falo pros moleque. O rap não é
uma musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. Rap é revolução, é
transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha
concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi
oprimido. Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa indignação e
transformá-la. Eu costumo falar assim “mano, cê não sofreu, não tem como
você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado? Mesmo que o reggae seja
uma música de resistência, entendeu? Só que o reggae teve uma característica
que dentro dessa música de resistência eles plantaram o amor. E hoje o
reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado como uma música
marginalizada, e pesada que bate contra as regras universais em termos de
sociedade no mundo, então o rap é a quebra da sociedade, entendeu? Então
quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu, que já foi preso, pobres,
então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse processo de
transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se não eu teria
cantado o forró do meu pai, entendeu? Tem muitas letras de conteúdo [no
forró], entendeu? Mas o rap foi o que abriu o portal, entendeu? Foi quando eu
entendi toda a manipulação governamental, a história que não era contada, os
heróis que não eram nossos, entendeu?

O hip-hop foi e tem sido o mecanismo para Ilícito, a ferramenta. E ele

devolve para o hip-hop aquilo que ele lhe tem proporcionado, com suas

oficinas, a organização das festas na quebrada (revertendo lazer,

entretenimento, o jogo lúdico nas palavras de Muniz Sodré (1988), a população

de onde ele provém. A circularidade está presente na vida de Ilícito. A “roda

sagrada” do candomblé está presente no hip-hop112, assim como na capoeira,

no samba113... Não só na circularidade, na continuidade, no ciclo vida-e-morte-

morte-e-vida da metamorfose-emancipação, mas também na sacralidade de

que o hip-hop é parte: ele é revitalização a quem o acompanha, ele é fonte de

112
Não me refiro, aqui, exclusivamente à dança original de rua e todos os seus estilos, mas a algo
relacionado ao hip-hop na sua integridade, relacionado a todos os seus cinco elementos – DJ, MC, grafite,
break dancing e conhecimento.
123

um outro “axé114”, do “axé” simbólico que re(tro)alimenta o ciclo diário de

milhares de jovens espalhados pelas periferias de todo o Brasil e por todas as

periferias do mundo. E entre as “forças intelectuais” de ação do hip-hop

encontra-se o candomblé115 que, em sua estrutura, permite esse “acionamento”

por parte mesmo dos que não são filhos-de-santo de um egbé.

Cabe a lembrança de que, no candomblé, não é o indivíduo quem

decide ser ou não ser filho-de-santo de uma casa. Pelo menos no que diz

respeito a fazer o santo116, é preciso que haja uma necessidade para isso,

revelada pelo oráculo. Já ouvi de mães-de-santo diferentes comentários a esse

respeito.

Na contrapartida disso, Ilícito não quer se iniciar. Mas preserva para si o

direito de professar parte da sua fé na direção do candomblé, a partir de um

caminho pessoal, sem partilhar de ensinamentos junto a um sacerdote, junto a

alguém portador de ogbon117. E nesse caminho pessoal, é na direção de Xangô

que ele sente uma vibração maior – que, no candomblé, poderia ser explicada

de muitas formas que não necessariamente ser filho desse orixá ou ter a sua

cabeça em disputa por esse orixá.

O MC é uma evolução do canto falado, por isso que o rapper é o


erudito, como que é o repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele

113
Ver capítulo referente aos patrimônios civilizatórios dos povos iorubás e candomblé.
114
A definição de axé para os iorubás e para o povo-de-santo também pode ser encontrada no capítulo já
mencionado.
115
Utilizando a definição da professora Josildeth Gomes Consorte por ocasião do exame de qualificação
desta pesquisa, realizado no dia 08 de abril de 2007.
116
Alguém que queira fazer parte de uma família-de-santo, mesmo que não tenha necessidade de raspar a
cabeça para o orixá, tem espaço para essa “negociação” com o sacerdote da casa, o que significa dizer que
isso varia de terreiro para terreiro.
117
Ogbon é “sabedoria” para os iorubás, a sabedoria que não se adquire junto aos livros, mas “da
experiência estética (valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos) que se insere no quadro
da antiguidade e da tradição”. Repetindo o que já está registrado no capítulo referente ao candomblé,
“essa sabedoria implica sempre em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é
requisito indispensável à aquisição do conhecimento do real” (Sodré, 1988, p. 90).
124

cara que estudou pra produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra,
videoclip, é o rapper. Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se
aprofundou nas técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas
orações, nos motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu
sextilha, decassílabo, passou por vários universos. Eu tô falando da coisa
regional. São vários ritmos, tá ligado? Que se for pegar um lundu, jongo, é, o
coco, é... o maracatu, a própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for
pegar só os toques de capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento
pequeno, angola, cavalaria, é uma infinidade de ritmos, entendeu?
Nós faiz música, mano, e é universal. Faz [música] num tambor, o que
você me der a gente [ele e os demais MC´s de rap] desempenha, chegô num
nível musical que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um
tambor, uma batida do nagô118, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso
que é você chegar num nível musical num lance raiz e saber contar história,
tipo o lance do griot119 de reproduzir os antepassados, coisa que foi passada
de pai pra filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é
sempre uma nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro
dessa nova roupagem, por exemplo, bumbo e caixa universal120 hoje, que é
essa parada do hip-hop. Então esse que é o grande lance de fazê arte, de fazê
música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que o hip-
hop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-cultural-
educacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma.
Viajo nessa parada, o canto falado universal e da batida universal, que
tipo, é o universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra
mim vai do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? É o universo do
canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem
modalidade, tá ligado? Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro rap-
hip-hop no samba, tá ligado? Tem uma linha de como você fazer uma
embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem que ser
respeitada essa linha.

O MC é uma evolução das tradições orais africanas. Assim como os

contos litúrgicos, presentes no âmbito das comunidades-terreiro, o patrimônio

oral das narrativas e gêneros da cultura negra também se desenvolveram no

território da diáspora africana e no Brasil com os contadores de história, “seja

118
Entre os ritmos nagôs disseminados na música brasileira estão o afoxé e o ijexá. Ver Lopes, 2004.
119
“Termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes
às quais, em geral, está a serviço. Presente sobretudo na África Ocidental, notadamente onde se
desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai, etc.), recebe
denominações variadas: dyéli ou diali, entre os bambaras e mandingas; guéssére, entre os saracolês;
wambabé, entre os peúles; aouloubé, entre os tucolores; e guéwel (do árabe qawwal), entre os uolofes”
(LOPES, 2004, p. 310). A cultura dos griots tem aparecido nos trabalhos de diferentes rappers
brasileiros. Um exemplo está em BRAGA (2006).
120
A explicação para o termo está na Entrevista III, nos Anexos.
125

referente aos antigos reinos e dinastias africanas, como os contos de

divertimento pedagógico” (Luz, 2000, p. 469).

A fonte estruturadora das cantorias nordestinas são a narrativa oral da

tradição da arte poética dos orikis121 e das cantigas de sotaque ou demanda.

Trata-se de um gênero “lítero-musical”, nas palavras de Luz.

No espaço da poética, ou da poesia, onde a tradição européia procurava

caracterizar-se como “universal”, a cantoria é atravessada por uma verdadeira luta

ideológica”, abrindo espaço na sociedade oficial, atuando em um terreno em que

precisará afirmar seus princípios primordiais, característicos da tradição negra e dos

valores africanos emergentes.

(Ibid., p. 469)

Lundu, coco, jongo, maracatu, o samba, os vários ritmos da capoeira...

Os exemplos dados por Ilícito integram os vários gêneros da música negra.

7.9 Ser ilícito em lugar de estar em um manicômio


O coletivo é o trabalho legal, sabe?, é o trabalho social, é o que a gente
busca dentro da sociedade, esse lance de cidadania, de humanidade, de lidar
com vários tipos de pessoas, idosos, crianças, mais velhos... Pessoas
especiais, políticos, toda camada da sociedade pra constituir uma parada
sólida, uma base sólida, agora eu, tá ligado?, sou o inverso disso, corro na
ilegalidade. E isso é uma realidade, tá ligado? Pra mim é o controle da loucura,
tá ligado? Pros caras não me prenderem num manicômio, num presídio, num
me pôr num estoque [referindo-se ao trabalho de estoquista que já fez] ou
dentro dum escritório, tá ligado?, ou então fazer com que eu não faça alguma
besteira por dinheiro, tá ligado?, giro em torno disso, a gente vai tentando
buscar outros artifícios e outras imunidades pra não cair nessa armadilha,
entende?

121
Espécie de cântico de louvor da tradição iorubá geralmente declamado ao ritmo de um tambor. É
usado para ressaltar atributos e realizações de um orixá, um indivíduo, uma família ou uma cidade (Cf.
Lopes, 2004, p. 499).
126

Voltar a ser estoquista, “viver para o trabalho” em vez de “trabalhar para

viver”, é o que Ilícito não quer mais. Para isso, “controla a loucura” na qual a

própria cidade em que mora o coloca, no qual o “esquema” capitalista tenta

aprisioná-lo.

Quando eu saio pra rua, [tudo] gira em torno de muitas coisas que
perante a lei e a sociedade não é legal, entendeu? Eu já sou um cara ilegal. No
rap, eu assusto, tá ligado?, aí chego na elite, eu assusto, tá ligado?, assusto
meus parcero, sabe?, eu já sou um cara problemático por natureza e hoje eu
tenho que controlar a loucura sabe?, sabe? Mas eu acho que a minha
ilegalidade me leva a não entrar nesse... eu não quero falar sistema, porque
sistema não existe, mas nesse esquema, tá ligado? Nessa coisinha podre que
gira em torno da vaidade, do dinheiro, da fama, sabe? O trabalho que a gente
desenvolveu dentro da cultura hip-hop, entendeu?
[Com o anonimato] num causa problema. Mas todo o problema fosse o
ilícito, tava bão, tá ligado? Que pelo menos o ilícito tá tentando ser um cara
legal. Pelo menos o Ilícito tá tentando ser um cara legal. Agora tem outros
ilícitos que... Já perdeu as esperança...Tô me referindo ao ilícito geral. O ilícito
é um personagem que vai servir pra muita gente. O Brasil é ilegal. O mundo é
ilegal. A legalidade e a ilegalidade corre junto, tá ligado? Hoje, quantos,
quantos num vivem refugiados, o problema dos refugiados no mundo, imagina,
os caras que tão tentando se firmar num, nos paises, Aí, é... 50% da
corporação policial é ilegal. 50% dos políticos do país é ilegal. Tá ligado? Qual
a empresa no país hoje que tá totalmente legal? É... os nossos recursos
naturais tá ilegal, tá ligado. Então, tem isso, começa o Brasil é ilegal.

O trabalho com o hip-hop o ajuda a controlar a loucura. “Controlar”

implica estar na “ilegalidade”. O não-controle seria algo para além da

“ilegalidade”, possivelmente, correr o risco de ser um a mais nas estatísticas

das mortes em bairros de periferia.

À “ilegalidade” da visão de Ilícito soma-se o princípio do não-dualismo,

das forças que não são vistas como contrárias, mas como complementares.

Como no legado nagô presente no candomblé.

É isso que eu falo, assim, pra mim, as duas energias correm juntos
memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a legalidade e a ilegalidade... o
brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é contraditório e ilegal.
127

Um julgamento moral referenciado na idéia dos dualismos (e

favorecedor de maniqueísmos) prenderia Ilícito à noção do “aquele-que-deu-

errado-e-que-não-tem-conserto”, “quem é bom, é bom”, “quem é mau, é mau”,

“quem nasce pra dar certo, progride; quem não nasce, só afunda”. O

pensamento da complementaridade, a possibilidade de que em cada contexto

o referencial possibilite variadas leituras, favorece a metamorfose, indica, em

si, autonomia em relação à normatividade moral vigente.

7.10 A questão do negro e do branco


Desde que eu comecei no hip-hop, não tem como, você não bater com a
questão negra. Desde quando eu comecei fazer hip-hop eu entendo essa
questão negra porque o hip-hop, quem cai de cabeça na raiz, sabe?, que
também tem um ligação das músicas, né?, que som que não é negro?
Entendeu? Que cachaça que não é negra? Do negro, aqui é a comida, aí o
samba, tudo, tudo tem uma ligação com isso, sabe. E acho que também foi
uma das formas que eu pude também expressar e ser diferente dentro do hip-
hop que eu vejo. De eu ter assumido fortemente a questão da africanidade aí,
depois, dentro da africanidade, eu trouxe a questão indígena e a questão do
branco também, né?
[Quando o grupo começou, a gente era visto como] Um bando de
baderneiro revoltado quereno confrontar o governo aí, a elite, a burguesia, a
sociedade. De 95 pra cá, depois de muitas vitórias do Movimento Negro, o rap
foi um dos mecanismos, uma das coisas principais desse processo, entendeu.
De aceitação do negro do Brasil, que já vem desde a década de 70, né, de lutar
pela imagem do negro no Brasil e foi bem no meio desse processo.
Tipo assim, o cara fala muito do negro e do indígena, ainda muito pouco,
mas não fala do branco, como tendo feito parte do processo. Como se o, o
branco no processo, só veio pra atrapalhar. A gente tem que lidar com as
diferenças, sabe? Hoje tem playboy fazendo rap, a elite ouve rap, e dança funk,
tá ligado? Sempre teve essa ligação da elite com o pobre, sempre teve essa
coisa do cara querer fazer o que a gente faz. E também, além do hip-hop, o
cara que evolui espiritualmente ele não vai ficar se apegando a certos detalhes.

Com a pergunta/afirmação sobre “que som que não é negro”, Ilícito

expõe o seu referencial cultural identificatório. E a sua escolha foi fazer “música

de preto”. Percebeu que para lidar com as diferenças, é preciso falar do branco
128

(afinal, ele não é o “padrão de homem universal, invisível” que a ideologia racial

racista tenta nos fazer crer que é). Para que sejam respeitadas as diferenças, o

branco precisa saber que ele é diferente também. E a busca do respeito

prossegue, até que todos se saibam humanos e não seja mais preciso “se

apegar a detalhes”...

7.11 De como o candomblé apareceu nas entrevistas

O processo de conhecimento, de evolução, para Ilícito, é semelhante ao

que se dá com a religião. Mas na experiência de vida dele as crenças religiosas

são vividas em um trabalho espiritual buscado autonomamente, em que ele

próprio faz o seu contato/diálogo com o sagrado.

Xangô, assim como o assunto candomblé, aparece de forma espontânea

nas entrevistas. Nas letras das músicas de seu grupo, o orixá patrono de Oyó

também é referência constante. A ligação de Ilícito com esse orixá será fruto de

investigação mais detalhada logo mais adiante.

Em nossa terceira entrevista, eu retomo o assunto dos orixás, pedindo

que ele fale a partir das referências a eles feitas nas letras dos raps do grupo:

Os orixás na minha vida, acho que vem de pequeno mesmo. Nas festas
de São Cosme e Damião122, eu não perdia uma. Porque tinha um terreiro aqui
que era da família123 e hoje eles são da igreja dessas aí dos crente aí. E aqui
tinha dois times, um deles tinha o terreiro no fundo. E a festa de São Cosme e
Damião era todo ano né?, então essa foi a que eu acho que eu mais lembro
assim, a referência de tá participando bastante das festas que tinham lá. E aí
depois quando eu conheci a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95,
a gente fundou o grupo, né?, e aí ele [o grupo] que mostrou esse caminho. E aí
que chego em Xangô, e chego em Ogum e Oxóssi. Aí vem falando, em

122
Santos gêmeos católicos que, no Brasil, foram associados aos Ibejis – orixás “menores” da tradição
nagô, protetores dos gêmeos. São comemorados a 27 de setembro (Cf. Lopes, 2004).
123
As festas eram realizadas na casa do tio de Ilícito, irmão da mãe dele, casado com uma mãe-de-santo.
129

Zambi... É pra se entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu
tive que entender os orixás, porque era regido pelos orixás, entendeu?

Xangô, Ogum, Oxóssi e Zambi estavam no enunciado da pergunta feita

a Ilícito, por serem os orixás (à exceção de Zambi, que é um inquice124) citados

nas músicas ouvidas nos CDs e nos shows do grupo.

Os orixás citados são os mesmos que aparecem quando Ilícito narra a

sucessão dos reinos da República de Palmares125, mencionando que

Acotirene, Gangazumba e Zumbi foram “declarados” líderes de Palmares por

Oxóssi, Xangô e Ogum, respectivamente. Para entender Palmares ele sentiu

necessidade de saber sobre os orixás e, após esse contato inicial, os orixás

foram “transformando” a sua vida, como ele nos conta a seguir.

Então, aí foi transformando a minha vida, né? Por exemplo, minha


religião é o Corinthians e Deus é Fiel, entendeu? Mas assim, eu não tenho
religião e eu sou a minha religião, eu sou o meu templo. Eu sou religioso,
entende? Então eu gosto de todas as religiões. Agora, eu não tenho essa coisa
de ser doutrinado e não aceito alguém ficar me falando as coisas, entendeu?
Falando que eu tenho que fazer isso e aquilo, aí quando entra o lance do
dízimo e da grana, essa coisa que as igrejas pegam, eu já não gosto. Eu fui
batizado, fiz catecismo, essas parada, igreja católica, que vem de família, o
Brasil é católico e tal, mas depois que... eu comecei a estudar a escravidão no
Brasil, não tem como gostar da igreja católica126.

Os orixás foram transformando a vida de Ilícito, no que diz respeito à sua

visão do processo histórico no qual africanos e suas culturas foram

inferiorizados, coisificados, mas também em relação às suas práticas religiosas

autônomas – como ficará evidente mais adiante.

Quando Ilícito afirma “eu sou o meu templo”, ele está dialogando com

conceitos-chave do povo iorubá e, portanto, da matriz do candomblé nagô.

124
Ver capítulo sobre patrimônios civilizatórios dos iorubás no candomblé.
125
A narrativa está na transcrição das entrevistas na íntegra, em “Anexos”.
130

Para os iorubás, o ser humano é a mais importante das criaturas de

Deus. E ele é o veículo responsável por ativar as energias do sagrado, ele é o

manipulador do axé. Nesse sentido, o ser humano é também um templo.

É do livro de Ronilda Ribeiro (1996) que extraímos os conceitos de “axé”

e “natureza humana” que nos ajudarão a compreender a relação aqui

estabelecida.

Axé: força do invisível, força mágico-sagrada de toda divindade, de todo

ser animado, de toda coisa (Maupoil apud Elbein dos Santos, 1986)127. No

reino animal, o axé está presente no sangue propriamente dito, animal e

humano. O axé é indispensável na restauração da força. Todo ritual realiza

implante da força ou revitalização e a “presença das entidades sobrenaturais é

favorecida pela atividade ritual, ocasião privilegiada da transferência e

redistribuição do axé” (Cf. Ribeiro, 1996, p. 107-109).

No que diz respeito à “natureza humana”, para os iorubás, os seres

humanos são constituídos dos elementos ara (corpo físico), ojiji (“sombra”,

representação visível da essência espiritual), okan (sede do pensamento, da

inteligência e da ação), emi (princípio vital associado à respiração) e ori, a

essência real do ser. Falamos resumidamente dos quatro primeiros, para nos

determos na relação do ori com a fala de Ilícito.

O ori “guia e ajuda a pessoa antes do nascimento, durante toda a vida e

após a morte”. O significado literal de ori é “cabeça física”, símbolo da cabeça

interior (“ori inu”). “Orise” é a palavra usada para se referir a Deus como “fonte

da qual se originam os seres”. O ori é uma entidade parcialmente

126
A respeito do papel da igreja católica no Brasil colonial, ver RIBEIRO, 2006.
127
Juana ELBEIN DOS SANTOS. Os nagô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o Culto de Égun na Bahia.
Petrópolis, Vozes, 1986.
131

independente, considerado uma divindade em si próprio, sendo cultuado entre

outras entidades com o recebimento de oferendas e orações (Ibid., p. 109-110).

Enquanto portador e manipulador de axé, enquanto ser que carrega, na

sua constituição, a divindade ori, os humanos podem ser interpretados como

“templos ambulantes” da perspectiva iorubá.

Também no candomblé é possível encontrar eco para a proposição de

Ilícito. O ato de “dar de comer ao orixá”,

...resume a religião: se o crente não alimentar o Deus, ele deixa de exisitr. Ou

no limite, a teologia fica invertida, o ser humano é que cria e sustenta a divindade. Na

verdade, qualquer Deus que existiu ou existirá na história da humanidade depende do

crente para existir, mas o candomblé é a única religião cujos rituais admitem isso

abertamente.

Dar de comer ao orixá é alimentar o deus interior. É fortalecer seu conjunto de

características, sem pré-julgamentos, sem qualificações do tipo “bom” ou “mau”.

(Carmo, 2006, p. 21)

Minha bíblia, minha bíblia é os álbuns do Corinthians, tá ligado? Aí eu


acendo a minha vela pra Preto Véio e Exu ali, e agradeço aos orixás, porque
são energias da terra, é tudo energia, entendeu? São energias da natureza e....
E essa coisa de materializar mesmo, né?, e de te elevar prum plano espiritual,
de saber que aqui é uma das passagens e é isso que eu gosto do candomblé,
do lance dos orixás, que aqui é só uma passagem, que existe sim uma outra
vida e que também a gente tem que aprender a lidar com as forças da natureza
e os orixás são simplesmente isso. É, lá, Zambi com Olorum deu um poder pra
cada um, tá ligado?, e cada um tem um poder que esses irmãos juntos
ninguém segura, isso é os orixás, entendeu? São vários irmãos, cada um o pai
deu um poder e eles junto é uma família que... [é] invencível. E esse lance
também que a igreja católica e as igrejas convencionais, não todas, as igrejas
modernas, separam o bem e o mal, o céu e a terra, tá ligado?, e... os orixás é
tudo isso e mais um pouco, entendeu?, os caras tão separando e o bem e o
mal, né?, são duas forças, são duas energias que tem que saber lidar. No
candomblé ninguém separa o bem e o mal, são duas energias que tem que
132

saber lidar. E que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil128 que... como que era a
frase do, de Exu... É... É... “Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também
não sou o mal, não sou o diabo, eu sou Exu”129, tá ligado? Eu queria até saber,
lembrar a frase, “eu sou exu, abro os caminhos. [Para o que ] tiver na minha
frente, bem e o mal...”, entendeu? E... Os orixás me encantam.

Acendendo vela dentro de casa para orixás e para Pretos-Velhos130,

Ilícito se propõe a fazer a sua forma de oferenda particular, o seu

agradecimento particular.

Ao entender os orixás enquanto “energias da terra, energias da

natureza”, ele se refere ao fato de a natureza ser morada dos orixás. “Se a

natureza é um lugar sagrado, tudo passa a ser sagrado, uma vez que tudo é

natureza” (Zacharias, ano 1998, p. 204), pensamento presente em outro

momento da fala de Ilícito, já mencionada nesta pesquisa.

A mitologia própria de cada divindade está relacionada a algum aspecto da

natureza, seja da forma mineral, vegetal, animal ou seus processos, como a doença e

a cura. Além disso, como cada ser humano é criado a partir de um elemento da

natureza e possui a essência deste elemento, que é o axé do orixá correspondente, a

divindade também habita o ori (cabeça) de cada um...

(Ibid., p. 204)

A respeito do dualismo com o qual Ilícito não se identifica, Carmo (2006)

escreve que essa concepção chegou ao judaísmo e, deste, ao cristianismo

pela Grécia, influenciada pelos zoroastristas persas. Segundo ele, os gregos

128
Localizado no Parque do Ibirapuera (São Paulo – SP).
129
“Não sou preto, branco ou vermelho. Tenho as cores e formas que quiser. Não sou diabo nem santo,
sou exu!”. Mario Cravo Neto, “Saudação a Exu” (São Paulo, 2006, p. 117). Para os iorubás, Exu é o
responsável pela dinamização das duas polaridades (masculino e feminino) que torna a individualização
possível, ao movimentar o sistema, transportar a fala, propiciar os contatos, acelerar as trocas (Muniz
SODRÉ, 2000, p. 456).
133

tinham um panteão de divindades muito semelhantes às do candomblé atual,

com “deuses guerreiros, sensuais, justos, mas ao mesmo tempo ciumentos,

possessivos e cheios de tramas”.

A vantagem de um panteão de deuses diferenciados sobre a forma dualista é

bem evidente. Os adoradores não ficam presos a fórmulas massificantes do “bem” e

do “mal”, mas, ao identificar-se com muitos orixás e guias, desenvolvem as

características dessas entidades. (...) O que o candomblé não encoraja é o

pensamento de que há pessoas integralmente boas e outras integralmente más. (...) A

diferença, portanto, entre o cristianismo e o candomblé é que nas religiões cristãs o

indivíduo é instado a abandonar os defeitos (e até é menosprezado por causa deles),

enquanto no candomblé os defeitos são aceitos como parte essencial da

personalidade do indivíduo, com o mesmo respeito que pelas suas qualidades.131

(Carmo, 2006, p. 24-25)

7.12 Xangô: de como a figura do orixá se “descola” do


panteão para possibilitar afirmação de identidades

Ilícito tinha a manga da blusa arregaçada na primeira vez em que o vi,

em um palco. A mão que empunhava o microfone era a mesma da tatuagem

que me saltou aos olhos: um oxé de Xangô132. Um machado estilizado,

portando duas lâminas. Trata-se do emblema de Xangô que, segundo Pierre

Verger (2000), representa freqüentemente um personagem que carrega o fogo

130
Ancestrais do complexo cultural banto.
131
Ainda segundo Carmos (2006, p. 25), o limite desse princípio do candomblé é a injustiça. “Um
indivíduo pode ser esperto, mas não pode ser injusto. Pode ser sensual, amante de várias mulheres, mas
não pode tomar a mulher do seu amigo, porque isso lhe traria a ira daquele, e, naturalmente, do orixá que
preside a vida do amigo”.
132
Além dessa, ele tem outras quatro tatuagens. Segundo ele, para cada vitória, uma tatuagem é feita.
134

na cabeça e esse fogo é, ao mesmo tempo, o machado de dupla lâmina (p.

308). Verger nos informa que

(...) trata-se de um aspecto da cerimônia denominada ajere, na qual os

iniciados de Xangô devem levar na cabeça um alguidar furado (ajere) no qual as

chamas se elevam. Os iniciados não devem ser afetados por isso. Essa prova

demonstra que o transe não é simulado e é completada por outra, denominada akara,

na qual os iniciados devem engolir o fogo sob a forma de mechas inflamadas,

enfiando-as com suas mãos em potes que contêm azeite-de-dendê fervendo.

(Ibid.)

A cerimônia é realizada entre os iorubás. O quarto rei de Oyó é

reivindicado como um ancestral nesse território e, das narrativas coletadas por

Verger, quando vivo, tinha o poder de fazer o raio cair quando bem entendesse

(Ibid.) .

Xangô, diferente dos orixás relacionados ao mito de criação, foi um

ancestral divinizado.

No Brasil, é um orixá amplamente difundido. Em Recife, seu nome é

utilizado para designar o culto de matriz iorubá.

No candomblé, durante a sua dança, Xangô “empunha o seu oxê com

altivez. Mais tarde, o ritmo acelera-se e, por gestos, o deus parece tirar de uma

bolsa imaginária as pedras de raio, lançando-as na terra. Em seguida, sua

dança evidencia o caráter libertino e atrevido do Orixá” (Ibid.,p. 320):

Com Xangô que eu não sei explicar, entende? Porque eu gosto muito
assim, eu não sei explicar o lance com Xangô. Eu acho que ele rege sobre mim
sim. E... Assim, quando eu fui jogar os búzios com o pai de um amigo meu há
muito tempo, ele falava que eu sou Iansã e Oxóssi, que é a mata. E Iansã, e
135

tal. Mas eu tenho uma ligação muito forte com Xangô. Eu gosto de todos os
orixás, mas pra mim, comecei a entender a partir de gostar memo, né? E como
é resquícios, aos poucos vai, né?, eu vou me reeducando, porque isso aí eu já
sei tudo, só preciso vim trazendo as lembranças, tal.

A relação de Ilícito com os orixás é afetiva. O “seu” Xangô não é o

Xangô do xirê, que dançando incorporado no corpo de um filho-de-santo,

reproduz simbolicamente as passagens míticas presentes na liturgia do

candomblé. Não é o orixá Xangô para o qual se fazem oferendas em busca de

justiça ou da conquista da pessoa por quem se está apaixonado, mas de quem

não tem a atenção.

Ildásio Tavares (2002), em livro dedicado ao orixá Xangô, informa que,

mais que um orixá guerreiro, Xangô é um orixá justiceiro.

...Com sua grandeza e majestade guerreira, com seu papel de justiceiro,

Xangô serviu muito mais ao povo negro do que a figura pacificadora de Oxalá.

Símbolo supremo de vida, de realeza do negro, de luta, de tenacidade e de erotismo,

Xangô, sem dúvida, figura como o intenso fogo que alimentou a resistência escrava,

que aqueceu, que temperou, que vivificou e solidificou a coesão negra...

(Ibid., 69)

O “guerreiro” e o “justiceiro” são figuras com quem Ilícito tem

identificação. Essas características estavam presentes no Rei Xangô, no

homem de nome Xangô, antes que ele fosse divinizado, como nos conta a

lenda133 a seguir:

133
A autoria da história, segundo Verger (2000), é de Martiniano do Bonfim, natural da Bahia, mas que
havia vivido na Nigéria. Martiniano do BONFIM. “Os ministros de Xangô”. In: O Negro no Brasil. Rio
de Janeiro, 1940.
136

Béri, mais tarde denominado Xangô, conquistou Oyó, se impôs ao rei

Arogangan e governou em seu lugar. Dois guerreiros, Timi Agbali-Olofa-Ina e Gbonka-

Ebiri, vão aprender com ele a tática da guerra. Voltam-se em seguida contra Xangô,

que não os pode vencer. Xangô, sem que ninguém soubesse como, desaparece em

meio às tribos estupefatas. Houve grande clamor na terra e, mal Xangô desapareceu,

uma tempestade de violência jamais vista abateu-se sobre o mundo, acompanhada de

trovões, raios e relâmpagos...

Os homens da nação Nagô (Iorubá) sentiram medo e exclamaram: “Xangô

tornou-se rei”.

Os dois guerreiros que haviam provocado o desaparecimento de Xangô

regressaram a seus países de origem. Os ministros de Xangô, os Mangba, instituíram

o culto do Orixá, atribuindo-lhe no céu as mesmas preferências que ele tivera na terra

por certos animais como o carneiro, e por certos comestíveis como o quiabo etc.

Daí se origina a divinização de Xangô.

Passado algum tempo, formou-se um conselho de ministros encarregados de

manter seu culto. Esse conselho foi organizado com os doze ministros que, na terra, o

haviam acompanhado, seis do lado direito, seis do lado esquerdo.

Esses ministros, antigos reis, príncipes e governantes dos territórios

conquistados pela bravura de Xangô, não permitiram que se extinguisse a lembrança

do herói na memória das gerações. É por este motivo que, num terreiro da Bahia,

consagrado a Xangô Afonjá, doze ogãs, protetores do templo, têm o título de ministros

de Xangô.134

134
Tavares (2000) informa que a criação do corpo dos obás de Xangô na Bahia é atribuída a Mãe Aninha,
do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1935. Segundo o autor, os obás de Xangô têm funções litúrgicas,
principalmente no ciclo de festas dedicado a Xangô, mas também as exercem em todas as festas e
cerimônias por sua “preeminência hierárquica”. Os obas têm ascendência sobre os ogãs, que são ministros
dos outros orixás. Os obás seriam “ministros mais graduados”, reis de uma corte mítica de 12 reis iorubás
sob a hegemonia do rei de Oyó, o “super-rei”, orixá, Xangô. Por ocasião do lançamento do livro de
Tavares, entre os que ocupavam o cargo de obás de Xangô no Opô Afonjá estavam o escritor Jorge
Amado, o pesquisador e escritor Muniz Sodré e o músico Dorival Caymmi (p.53-57).
137

O autor nos ajuda a compreender a identificação de Ilícito com a figura

de Xangô:

Foi o egbé, a comunidade, e principalmente o culto ao vermelho135, centrado

em Xangô, e em sua corte que engendraram a dinâmica de resistência dos escravos

embasada no espírito de coesão e preservação identitária que os orixás possibilitam e

a conseqüente imitação de suas ações, identificando-se o escravo com seu orixá e

seguindo o seu odu, caminho, que é uma lenda, que é uma canção.

(Ibid., p. 70-71)

Como “o rei dos reis” responsável por um longo período de apogeu no

reino que governou (Oyó) em função de sua estratégia de guerra e da

mobilização à coesão de seu povo, Xangô foi grande referência para os

africanos e descendentes de africanos no Brasil, não só da etnia iorubá, mas

também daqueles que com os iorubás conviveram e a eles se uniram na

resistência à escravidão – muitas vezes, indivíduos de etnias inimigas em solo

africano se uniram nesse novo contexto que engendraria também novas

identidades. O homem guerreiro, referencial de liderança e justiça, faz de

Xangô uma figura com que Ilícito se identifica.

Para conhecer um pouco mais desse orixá podemos recorrer às suas

insígnias. Os símbolos de Xangô mais comumente vistos são a coroa

(expressando sua realeza), o xerê, chocalho de cobre que é usado durante o

toque em devoção a Xangô, e o oxê, ou machado duplo que Tavares (2000)

entende como, “além de símbolo do poder de Xangô sobre o raio e o trovão,

135
“As cores simbólicas ou heráldicas de Xangô são a vermelha, sua cor característica, representando o
fogo, mais a branca, indicando sua origem em Oxalá, a marca da paternidade que não é renegada mas
incorporada” (Tavares, 2002, 71).
138

como a resolução, a conciliação das polaridades como guerra x paz, masculino

x feminino, inocente x culpado, bem x mal, e o oriental yin x yang” (p. 104-105).

Faz-se necessário ressaltar ainda que cada orixá possui diversas

qualidades que, a rigor, são outros orixás. Xangô possui doze qualidades

diferentes, entre elas, o jovem, o velho e o rei. Mas os orixás também

interagem: além do orixá principal, uma pessoa tem ainda o “adjuntó” (terceiro

orixá) e pode ter outros orixás disputando a sua cabeça. Isso faz com que os

modelos de comportamentos psicológicos do candomblé formem um número

infinito de combinações possíveis. Se forem tomadas as qualidades já

catalogadas, o número pode ultrapassar a casa dos dois quadrilhões. Disso se

infere que um valor supremo do culto aos orixás é a valorização da diferença

(Carmo, 2006, p.26-27).

Diferente das religiões de “unidade”, relacionadas a existência de um

único Deus que se multiplica em atividades, campos de atuação e sub

personalidades136, os orixás estão relacionados à diversidade da psique

humana:

Um sistema que abarca várias personificações do divino se presta muito

melhor à expressão da pluralidade de forças psíquicas, que atuam de maneiras

diferentes, do que um sistema unitário, que deve, necessariamente, recorrer a

atributos e atuações diversificadas e às vezes contraditórias da divindade.

(Carmo, 1998, p. 86)

136
Como as classifica Zacharias (1998, p. 84), em contraposição às religiões de pluralidade, em que cada
uma das divindades coexiste com “personificação própria”.
139

Dentre os aspectos da psique humana aos quais Xangô está

relacionado, consta o seu atrevimento nas questões relacionadas ao amor e às

conquistas. Como no mito que narra o encantamento simultâneo de Xangô por

Iansã e Oxum:

Iansã foi mulher de Xangô.

Oxum foi sua concubina.

Ele sempre ficou com elas.

Xangô era famoso por sua maestria com a espada.

Sua fama de grande espadachim corria longe.

Um dia chegaram três desconhecidos para aprender com ele.

Xangô era desconfiado das coisas.

Pressentiu a traição e começou a lutar com os três homens.

Eles haviam acendido um fogo atrás do lugar onde seria a luta, pois queriam

empurrar Xangô para lá.

Xangô se defendia e lutava sem parar,

mas eles o empurravam para o fogo, porque eram três contra um.

Então Xangô reconheceu finalmente que seria derrotado e chamou Iansã e

Oxum.

Iansã soltou o relâmpago e Oxum deixou que corressem as águas.

E os três subiram para o Orum.

Os três se encantaram, agora em orixás.

(Prandi, 2001, p. 276)

Não será possível, nesta pesquisa, dar real atenção a esse aspecto na

mitologia iorubana. O que podemos afirmar é que as várias possibilidades de

comportamento humano estão presentes nas ações dos orixás, fazendo com
140

que seus filhos tenham uma idéia aproximada do destino ao qual estão

relacionados, com que características psicológicas estão mais afinados.

No contexto desta pesquisa, cabe registrar que, ao saber que Xangô tem

uma vida amorosa agitada, intensa, a figura de Xangô se fortaleceu como uma

referência para Ilícito.

Este mito, no entanto, mostra o guerreiro se dando conta de sua

vencibilidade na guerra. Para a vencibilidade reconhecida, havia o caminho do

orum, o mundo invisível dos iorubás – acompanhado de suas duas mulheres,

sem idéia de pecado ou bigamia presentes, mas do arbítrio humano em que o

limite é a injustiça. E levando-se em consideração a formulação de Campbell

(Campbell & Moyers, 1988), para quem todos os mitos lidam com a

transformação da consciência – quando se vinha pensando de um certo modo,

é dado o caminho para se pensar de um modo diferente –, é a possibilidade de

outros caminhos que está presente, contrariamente à idéia de um único

caminho, de um dogma a ser seguido.

7.13 Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da


escravidão

A referência de Ilícito em ter passado a querer conhecer mais sobre os

orixás a partir dos “resquícios” da história da República de Palmares nos

remete ao processo que resultou no “filtro” pelo qual, no Brasil, reduziu-se o

número de orixás em relação à quantidade de divindades presentes no

território iorubano em África.


141

Como nos informa Tavares (2002), de um modo geral, durante a

escravidão, os africanos concentraram suas “preferências” nos orixás

guerreiros e nos orixás de fundamento de sua vida, cultura, raiz e coesão, pois

... o culto, no cativeiro, mais do que uma necessidade existencial, como na

África, era um imperativo visceral de sobrevivência, estabelecendo íntimos laços

culturais entre escravos que, às vezes, nem tinham esse culto em África, mas

agruparam-se coesamente em torno dele na diáspora Brasil/Caribe.

(Tavares, 2002, p. 62-63)

A divisão familiar e étnica aplicada pelos senhores de escravos

portugueses aos africanos com a técnica de “dividir para conquistar” também

limitou o panteão do candomblé. Como nos informa Zacharias (1998), na

“Iorubalândia” (África Ocidental), fala-se na existência de cerca de 600 orixás.

Ao Brasil, chegaram algo em torno de 50 orixás; desses, 16 são os mais

cultuados no candomblé. “Muitos deles são reis e rainhas divinizados, o que

confere uma dimensão mítica ao ser humano histórico” (p. 89).

Ser um homem livre é a preocupação de Ilícito. Por isso ele entende que

não tem que ser do candomblé para “cultivar” os orixás.

Chegam em mim e falam que eu tenho que ser do candomblé ou da


umbanda, pra mim poder cultivar os orixás, sabe? Eu, eu não tenho religião, eu
sou rasta como estilo de vida, entendeu?, pra amenizar as carne, comer mais
fruta, e o cabelo, como forma de resistência, eu sou um homem livre, que é
essa coisa do rastafári, né? Cê é um homem livre, nada te atinge, cê anda no
ônibus, dane-se o povo olhar pro seu cabelo, se você é tatuado, se eu sou
preto, se eu sou branco, tô ali, eu tô imune a qualquer coisa, nada me atinge.
Andar na babilônia de São Paulo sem deixar as coisas atingirem você,
entendeu? Cê aceita as coisa errada da Babilônia, não, você combate também.
142

Essa preocupação em ser um homem livre não o impede de se

aproximar da religião. Um dos aspectos do candomblé é o acolhimento: os que

queiram/necessitem de conforto espiritual ou mesmo que procurem pelo

terreiro por se sentirem bem naquele ambiente, são bem-vindos. Essa forma de

contato com a religião é bastante freqüente.

Ao que as entrevistas demonstraram, sua concepção de convivência em

sociedade dialoga com a organização social dos nagôs. Nessas sociedades, a

organização hierárquica “obedece à regra que pressupõe a cooperação e

complementaridade entre as pessoas”. Mas também exige uma especialização

do conhecimento que cerca as atividades do trabalho, o que só se adquire com

a experiência cotidiana e, portanto, só é possível acumular conhecimento com

a idade (Salami, 1997, p. 86).

Quando Ilícito se referiu ao fato de que os orixás, na vida dele, “são

resquícios” que, ao reeducar-se, eles viriam na lembrança, ele se referiu ao

fato de que

Já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito137, já tá


no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito,
entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu? Agora só precisa trazer
as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu
nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da
tradição oral, você vem trazendo, mas isso aí já tá em mim138. A não ser que eu
não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu, me preocupe mais com o
MP3. Aí eu não vou trazer isso. É justamente, eu não gosto de ser doutrinado
numa religião, num papel que tá escrito e você tem que fazer aquilo se não cê
não serve, que nem os maçon, sabe? Rasta é isso, não é religião, rastafarismo.

137
Para o espiritismo kardecista, trata-se do “laço” que une matéria e espírito. Envoltório sutil e perene da
alma, que possibilita sua interação com os meios espiritual e físico. Empregada pela primeira vez por
Allan Kardec, no item 93 de “O Livro dos Espíritos”. Alma e perispírito constituem o espírito (Fonte:
guia de estudos e pesquisas a respeito do Homem, Espírito e Universo:
http://www.guia.heu.nom.br/perispirito.htm. Acesso em 17/08/2007).
138
Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa,
ele chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar
isso com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos
filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
143

É estilo de vida, é uma forma de ser, entendeu? E... que nem, os caras lêem o
Antigo Testamente, lêem a Bíblia Sagrada.

O que Ilícito não quer para si é também o que a tradição iorubana não

traz em si. Segundo Hofbauer (2006),

... na concepção de mundo iorubana as idéias morais, como o “bem” e o “mal”,

são definidas pelos contextos específicos e não podem ser entendidas como princípios

dogmáticos. (...) As “sociedades africanas tradicionais” não desenvolveram “doutrinas

salvacionistas” nem políticas missionárias”.

(Ibid., p.316)

Os textos sagrados que se baseiam em “princípios morais” necessitam

da palavra escrita para existir. É por meio deles que pode haver uma

divulgação da base “teológico-filosófica” de uma religião para além das

fronteiras étnicas ou nacionais (Ibid., p. 317-318), configurando o que Goody139

(apud Hofbauer, 2006) chama de “religiões de conversão”.

Um dos aspectos apontados por Hofbauer em sua análise trata da

incorporação de divindades de vizinhos (inimigos) entre os grupos étnicos da

África Ocidental – da qual os iorubás fazem parte – com o objetivo de aumentar

a força do próprio grupo. Segundo o autor, “para ‘concepções teológico-

filosóficas’ que não se fundamentam numa verdade dogmática absoluta – caso

do relativismo existente entre “bem” e “mal” –, esses processos não constituem

uma contradição” (Hofbauer, 2006, p. 320-321).

Uma parada que a gente viaja no daime é isso. Passar várias entidades,
de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o mestre Irineu,
139
Jacky GOODY, “A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa, Edições 70, 1987.
144

mestre Sebastião, da linhagem dos indígenas lá da Amazônia, manipular planta


de poder, hinos, cânticos e todo o ritual de dança com os instrumentos, sabe?,
toda uma coisa de busca interior e de limpar o espírito e o corpo também e
passar todas as entidades com o respeito do sagrado a todas as entidades. E é
loco isso.

Vários leques abertos. Várias linhagens. Uma democratização do acesso

ao sagrado presente na não-prevalência do monopólio do acesso a esse

sagrado por parte do sacerdote (a passagem das várias entidades se dá com o

“suporte” oferecido por vários indivíduos e não por um sacerdote apenas). A

recusa do fundamentalismo, necessária para a busca de uma sociedade mais

igualitária e democrática, está presente também na democratização do acesso

ao sagrado (Ciampa, 2004). Para tanto, também é necessário reconhecer a

existência de uma grande variedade de experiências religiosas, inclusive

singulares de cada indivíduo, as quais não podem ficar prisioneiras das

instituições religiosas (Cf. James apud Ciampa, 2004[a]).

7.14 O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito


pela imposição de um padrão particular como padrão
universal

O Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando errado e todo
mundo ria de mim’. Um dia um descobriu, estorou, ‘e agora todo mundo tenta
falar errado’. Até pra falar errado tem que saber entendeu? Uma das coisas
que a sociedade tem preconceito com o rap é isso, que a gente fala muito na
gíria, tem vários dialetos que... O (Geraldo) Alckmin lá acabou de inaugurar a
biblioteca de língua portuguesa, tá ligado? Em 2006 eles conseguiram acabar
de vez com o iorubá, o tupi guarani, cortar cada vez mais os dialetos e impor o
português que é a quarta, quinta língua mais falada no mundo. Isso aí vem
sendo feito desde o início do século 18, 19... Até 1900 e pouco, a gente falava
vários dialetos que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando
que a gente falava brasileiro e tal. Se um país fala tupi-guarani com mais de
cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando também todos os
povos africanos que veio. Uma grande parte falava ioruba, porque foi a língua
que tiveram que se adaptar, né?, pra que tivessem uma informação e mais
comunicação entre os negros do Brasil, porque vieram de toda parte da África,
145

entendeu?, então a gente falava iorubá também140. Vieram cortando com o


lance do português. Então o lance do brasileiro é de falar brasileiro, porque a
gente mistura aqui todos esses costumes que foram cortados pela sociedade,
pelo grande centro. E a elite não tem conhecimento.

A indignação de Ilícito com relação ao “extermínio” do iorubá no Brasil,

consensuado nas práticas “invisíveis” de legitimação da língua dominante

(historicamente considerada culta, com a negação da contribuição para o

sistema morfológico, sintático, polissêmico das línguas africanas e indígenas

na língua portuguesa falada no País), demonstra sua preocupação em que seja

valorizada aqui a presença e a participação dos povos que foram

historicamente discriminados pelo Estado brasileiro, quase que propondo um

novo paradigma – o de uma pedagogia do reconhecimento da diferença,

presente no patrimônio civilizatório dos iorubás.141

Ao propor três modelos de classificação para os indivíduos, Ilícito

possibilitou a síntese do raciocínio desenvolvido no decorrer das entrevistas

que buscavam compreender como se deu a metamorfose de sua identidade e

como foi o processo em direção à sua emancipação.

7.15 Chuta que é macumba: a diferença entre o homem livre,


o doente e o inconsciente

Na visão de Ilícito, todos os homens nascem livres. Há os que ficam

doentes no decorrer da vida. Há os que se tornam inconscientes... O homem

livre é o que luta contra a doença e o seu papel é combatê-la. No combate, não

140
A esse respeito ver CASTRO (2001).
141
A respeito da relação entre saberes africanos no Brasil e novas pedagogias para a produção de
conhecimento, sugiro a leitura de Vanda MACHADO, “Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica – as
crianças do Opô Afonjá”, Salvador (BA): EDUFBA, 2002; e Nelson PRETTO & SERPA Luiz Felipe,
“Expressões de sabedoria: educação, vida e saberes – Mãe Stella de Oxóssi e Juvany Viana”, Salvador
(BA): EDUFBA, 2002.
146

há possibilidade de “mesmice”, de reposição de uma identidade. No combate,

estão, também, a metamorfose e a busca de autonomia:

Doente tem em todo lugar, independente da etnia e da raça, né? E


infelizmente [eles] nascem pessoas livres... Tem três tipos de pessoas no
mundo: o livre, o inconsciente e o doente, entendeu? O livre é o rasta... que
nada atinge ele. E o papel desse rasta é não se acomodar, pra combater a
doença. O inconsciente é aquele cara que é doente e não sabe?, porque ele
segue simplesmente a hierarquia, as regras da sociedade e infelizmente o
racismo no Brasil é institucional, se você seguir direitinho as regras você se
torna um racista em potencial, entendeu? E... ´Tão, tem várias frases de efeito
que cê sabe que tá no popular brasileiro e... E esse inconsciente às vezes fala
“chuta que é macumba”, tá ligado? E ele não sabe o que ele tá falando,
entendeu? Ele tá falando merda, ele tá equivocado, entendeu? Então esse é o
inconsciente, ele é racista e não sabe. E tem o doente. O doente é esse memo,
que cê tem que tratar ele. E o papel do homem livre é combater a doença,
entendeu? [São os} Outros que se cuidaram e assumiram a vida como uma
luta e não deixou ficar doente, que é o meu caso.

O inconsciente não sabe que está doente. Vivendo entre outros

inconscientes, a doença fica ainda mais difícil de ser detectada. Chamar a um

negro de macaco em uma partida de futebol, como aconteceu com o jogador

Grafite na partida da Seleção Brasileira contra a Argentina em 2005. Desábato,

o agressor, somente seguiu o que os padrões culturais de sua sociedade lhe

prescreveram, tornando-se um “inconsciente”. Como “doentes”, temos os

exemplos dos neofascistas, só acobertados por outros “doentes”.

Seguir a hierarquia, como é o caso do inconsciente, é internalizar

práticas sociais de forma heterônima, sem autonomia, portanto, sem

emancipação possível. Lutar contra a doença, como Ilícito se refere ao

racismo, é sinônimo de emancipar-se, de se soltar da “manilha e do libambo”

instituídos pelos padrões sociais e culturais seculares impostos pelo “padrão

universal branco”, em que o lugar do universal é ocupado por um grupo

humano somente, cabendo aos demais a assimilação, a subordinação. A busca


147

da autonomia no processo de construção da identidade humana de Ilícito foi

acompanhada pela narrativa de sua história de vida, quando se propôs a

responder à pergunta sobre quem é e quem gostaria de ser.

O hip-hop, como uma rede, uma matriz, viabiliza esse contato com o

candomblé. Pelo hip-hop, como forma de linguagem, está se processando uma

espécie de “visão mais universalista do candomblé”,142 do qual é possível

alimentar-se “retoricamente” ou mesmo no desenvolvimento de um acesso ao

sagrado particular, de forma a possibilitar a afirmação de identidades.

Utilizando o conceito de Ferreira (2000), identidades “positivamente afirmadas”.

Ilícito foi escolhido para esta pesquisa por ser considerado um sujeito

emblemático. Outros hip-hoppers traziam o candomblé e os orixás em letras de

rap, em estampas de camisetas... Dentre eles, os que não pertenciam a um

egbé chamaram a atenção, exatamente por essa razão: se não são do

candomblé, por que expressam essa questão? Ilícito aponta um caminho,

caminho escolhido por outros, uma vez que o aumento gradativo dos que

comparecem a toques de orixás como “assistência” (como são chamados os

que vão para assistir à festa) e para consultas aos búzios têm aumentado

gradativamente, enquanto o aumento do número de “iniciados” não se

verifica143.

A pretensão universal do candomblé, exemplificada no seu princípio de

respeito à alteridade, está – no mesmo movimento da circularidade da “roda

sagrada” – “dialogando” com o hip-hop que, como em um movimento de

retribuição, difunde uma visão mais universalista desse sistema religioso e

filosófico baseado no qual é preciso vivenciar o dia-a-dia para partilhar do axé.

142
Fazendo uso da proposta do professor Juarez Xavier, por ocasião do exame de qualificação desta
pesquisa realizado em 08 de abril de 2007.
148

Nesse movimento, foi preciso morrer-para-viver-para-morrer-para-viver... Foi

necessária a metamorfose.

A semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu.
Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que no
final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo menos,
concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um tijolo de
cada vez, entendeu?

Busca o texto do Luiz Gama de novo e recita o poema todo, “rapeando”:

Amo o pobre, deixo o rico,


Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho.
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não – das Kalendas;
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira.
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal,
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,

143
Informação de Juarez Xavier. Vide nota anterior.
149

Que blasona arte divina,


Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor
Diz a todos que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça -
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
- Do beato e do sacrista -
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas, num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode negro, Mongibelo,
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo meu badalo,
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente,
Se negro sou, ou se sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
150

E também alguns tratantes...


Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas Damas emproadas,
De nobrezas empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra
- Tudo marra, tudo berra -
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos
O amante de Syringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas costas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!144

144
Para palavras inteligíveis e grafia correta dos versos, a partir da declamação de Ilícito houve
conferência junto à versão do poema que consta do livro “O negro em versos: antologia da poesia negra
brasileira” (SANTOS; GALAS; TAVARES, 2005).
151

8 Considerações finais

O respeito às diferenças presente no patrimônio civilizatório dos

iorubás – conhecidos no Brasil como nagôs – possibilita pensarmos em

identidades emancipatórias, identidades não reguladas por uma

normatividade social coercitiva, por uma única verdade dogmática, mas pelo

convívio entre os diferentes.

Para ser emancipatória, a identidade precisa ser vivida como

metamorfose resultante de escolhas autônomas, em contraposição à

reposição provocada por coerção que impede a escolha do indivíduo

(Ciampa). Ao mesmo tempo, precisa ser uma identidade pós-convencional, o

que implica um projeto ético democrático (Habermas), que recusa qualquer

forma de fundamentalismo, seja em África, Europa, Ásia, Oceania ou nas

Américas...

Não ser fundamentalista é possibilidade do candomblé, possibilidade

não exclusiva dessa tradição – em que se concentra o patrimônio cultural

nagô no Brasil. É possibilidade também de outras tradições, desde que não

comprometidas com versões fundamentalistas, seja cristianismo, judaísmo,

islamismo... O que de fato é fundamental é respeitar a diversidade humana,

tratar e ser tratado como igual. Se há uma dimensão que pode ser

considerada universal para todos os seres humanos, ela não é privilégio de

nenhuma cultura particular. Historicamente, o branco foi colocado como

padrão universal de humanidade. A luta dos afrodescedentes não é pela


152

imposição de um outro padrão. A identidade afrodescendente luta por ser

reconhecida, na sua diversidade (não se trata de uma identidade

cristalizada, trata-se de um processo). É uma luta contra as diferentes

formas de fundamentalismo.

Nesta pesquisa, foi apontado um conjunto de significados com

pretensões democráticas de uma cultura particular e esses significados

podem ser compartilhados com representantes de outras culturas. O

conjunto de significados presente na cultura nagô mostra-se adequado para

se pensar o conceito de emancipação aqui presente. Mas a condição para

um diálogo democrático entre diferentes culturas é o processo, está em

como ele se dá: é por meio de um processo democrático que se podem

encontrar formas de compartilhar esse conjunto de significados com outros.

É pelo compartilhar do conjunto de significados que estão presentes

nas culturas africanas e afro-brasileiras que Ilícito se vê como

afrodescendente. Ele busca jogar luz sobre essas culturas para que possam

figurar ao lado das demais, nenhuma delas à sombra, todas expostas à luz.

“Quem é periferia, diga yo! Quem é centro, diga yo! Quem é branco,

negro, indígena, diga yo-yo-yo”, ele diz para a platéia nos shows. O “yo” do

hip-hop se move na resistência às diferentes formas de opressão, na luta por

direitos iguais para todos, em direção à democracia. Aspectos presentes no

conjunto de significados das tradições dos descendentes de Ilé-Ifé, em seu

contexto local em África e no contexto da diáspora provocada pela

escravidão, em território brasileiro. Esse conjunto de significados

compartilhados lhes possibilitou unirem-se a grupos humanos de diferentes


153

partes do continente africano – no Brasil, principalmente a jejes e bantos

que, como foi explicitado nesta pesquisa, é o plural de “muntu”, ser humano.

Esse conjunto de significados compartilhados conformou o candomblé em

suas diferentes nações. Permitiu-lhes unirem-se, nos quilombos, na

diversidade dos povos africanos, a indígenas e a brancos. Permite que as

escolas de samba, as rodas de capoeira, o maracatu, o jongo e demais

manifestações de matriz negra sejam compartilhadas por todos,

independente da cor ou do credo. Dessa perspectiva, todo e qualquer ser

humano pode ser “muntu”, pois todo e qualquer indivíduo é gente.

Ilícito é uma pessoa que, como ele mesmo diz, a cada dia está

diferente. Uma pretensa conclusão sobre a identidade de Ilícito não nos

permite afirmar como ele vai ser: a direção que ele nos apontou no percurso

da pesquisa é a direção da liberdade. Ele será sempre a busca de liberdade.

“Uma porta abrindo-se em mais saídas”145, “muntu”, humano.

Compreender a identidade afrodescendente de Ilícito é compreender

a busca de uma sociedade em que a diversidade humana seja respeitada,

em que todos possam ser tratados como iguais. É compreender um projeto

ético de luta pela emancipação humana.

145
João Cabral de Melo Neto apud Antonio da Costa CIAMPA, 1987-2004, p. 36.
154

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1 Anexos
Anexo 1: transcrição das entrevistas com o sujeito da pesquisa

Entrevista I
Sexta-feira, 27 de outubro de 2006.
Zona sul de São Paulo.
Ilícito, 28 anos.

Explico do que se trata a pesquisa e como serão realizadas as entrevistas.


Havia uma preocupação dele em ser “mais claro nas idéias”, em “diluir mais as
idéias” e “não viajar muito”.
Perguntei se a preocupação era pelo tempo, já que a intenção era ouvir o que
ele tivesse pra dizer da forma que ele quisesse dizer. Não responde.
Faço a pergunta: “quem é você e quem você gostaria de ser”.
Ele sai à procura de um texto, pega as folhas impressas e diz “do Luiz Gama”.

Ilícito: Acho que a melhor maneira de eu me apresentar é lendo Luiz Gama,


que era um advogado, que entrou na política, conheceu de perto e era
abolicionista, este texto é de 1859. Na verdade, ele já tinha escrito em 56 e foi
publicado acho que em 59, e ele foi um dos maiores da luta abolicionista. E a
mãe dele também, era Luiza Mahin, que lutou na Inconfidência dos Malês em
1835 na Bahia e ele foi vendido pelo pai que era branco, fazendeiro, feudal,
que perdeu toda a riqueza em jogos, ele era viciado em jogos e vendeu o filho
como escravo, porque a mãe dele era negra. Depois ele veio pra cá, pro
interior de São Paulo e venceu, tá ligado?, e aqui acho que a melhor forma de
eu me apresentar nessa pergunta sua é... “Quem sou eu”. “Quem sou eu? que
importa quem? sou um trovador proscrito, que trago na fronte escrito essa
palavra: ninguém’. É isso. Eu sou aqueles cara que fico... sou o último do
boteco. (silêncio de alguns segundos).

Liliane: como é que isso?

Ilícito: “na hora em que o boteco está fechando eu sou um dos últimos, tá
ligado? Tipo, eu não tô preocupado com... (acende um cigarro) tô preocupado
de viver, sabe? Os caras... por isso que o mundo tá... o pessoal almeja
sucesso, almeja fama, ibope, dinheiro, pá, acredito só num lance que é
qualidade de vida, minha religião é o Corinthians e Deus é fiel.
(silêncio enquanto ele sopra a fumaça do cigarro, que sopra e não diz nada)

Liliane: tudo isso é você?

Ilícito: É. É. (alguns segundos de silêncio novamente)

Liliane: e tem mais coisa?

Ilícito: e tem meu trabalho, que é a minha obra, da minha vida. As pessoas só...
hoje como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma
162

alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes assim.
É isso. Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na
metade, tá ligado?
(silêncio)

Liliane: e o que é a tua obra? (o celular dele toca, interrompemos pra ele
atender. Ele desliga o aparelho. Voltamos à entrevista. Ele fica parado,
esperando que eu recomece).

Liliane: sua obra.

Ilícito: oi?

Liliane: sua vida gira em torno da sua obra e sua obra não tá nem na metade, é
isso? O que é a sua obra?

Ilícito: a que Deus mandou pra mim. Só tô psicografando, cê tá ligado?, a


parada. É bem isso assim, na verdade, é isso. Tudo que é feito tem uma força
superior agindo sempre. É isso. (silêncio)

Liliane: e o nome disso qual é, dessa força superior pra você?

Ilícito: é tudo que tá ao redor, né? O ar, o béque (cigarro de maconha), a


natureza, o sol... tudo é Deus pra mim. Tudo que é divindade que é sagrado,
eu respeito. Tudo que é entidade. Eu acredito em toda essa parada (sopra a
fumaça do cigarro). Por isso que eu não tenho religião. Por causa disso. Minha
religião é o Corinthians. Nesse sentido de não seguir dogma, não gosto de
ninguém... (interrompe a frase). O que age sobre mim são as forças superiores,
que tá em tudo assim, não o homem. Só isso que eu não gosto. Cê se apega
com as coisas que cê tá enraizado, né?, que nem o Corinthians. Aí cê vai
transformando isso assim. Meu não vai confundir que nem... pra confundir a
mente dos que se diz sábio. É isso. Chapar a mente da galera. (silêncio de
alguns segundos).

Liliane: eu queria pedir pra você falar mais dessa coisa do não ter religião.

Ilícito: não, eu não disse que eu não tenho religião.

Liliane: ah, tua religião é o Corinthians, desculpa...

Ilícito: minha religião é o Corinthians. Eu não tenho essa religião dogma, né?
Essa coisa... eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta.
Não como carne, sô vegetariano não tão radical assim. Mas eu acho que a...
rasta cê alcança uma elevação espiritual e na vida de conquista em várias
outras coisas que você se torna um rasta com o tempo, então o importante é
partir de algum momento. Minha filosofia que eu, que eu me aproximo é o lance
rasta. Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô ali com o Corão ali
assim, com bastante presságios do islão, que eu acho que é uma religião de
resistência, ir prum templo, vô, sem nenhum problema, leio, pra mim tudo é
163

informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado?, muitos tão esperando
Jesus voltar pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá ligado? Minha família
aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a maioria são católicos,
eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros habitantes da terra, na
ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida de poder, tá ligado?

Liliane: gosta de quê?

Ilícito: bebida de poder, planta de poder, gosto do daime, leio muito


Castanheda, lance de xamanismo, de Xamã, os “brujo” antigo do ..... (fala algo
parecido com Ibé, não consegui entender). Eu ajo muito nessas coisas voltadas
à terra memo, tá ligado?. Reino vegetal, alimentação vital. Que é da natureza,
que é vital pro homem se alimentar sem precisar se alimentar dos animais,
entendeu? Alimentação vital, comida tradicional dos rastas. Que é baseada em
legumes, ervas, frutas, entendeu? Coisas da terra, sem muito extrativismo
animal. Mas não tão radical, né?

Liliane: e você pode falar um pouco mais dessa parte em que você falou de ter
um orixá no seu corpo. Morando no seu corpo?

Ilícito: não, tenho tatuado. Tenho tatuado Xangô. Eu cultivo muito os orixás.
Tenho o maior respeito com o sincretismo religioso africano e também pra mim
é um processo de trabalho espiritual. Você chega numa evolução e eu tô nesse
processo. (sopra a fumaça e faz silêncio)

Liliane: Fala mais desse processo.

Ilícito: processo de conhecimento mesmo, né? É você chegar ao rito,


finalmente. Tô num processo de conhecimento, de evolução mesmo assim.
Que nem religião. Eu sou um cara religioso, tenho deus no coração, sou
cristão, sem religião (ri e faz silêncio). Eu tava conversando com um ateísta ele
falou “eu sou ateísta” e fez um discurso ateísta e tal, mas no final eu falei
“firmeza, tal”. E aí ele falou mais uma parada e a gente voltou nessa parada “tu
falou que tua religião é o corinthians, eu tenho muita fé no corinthians, sou fiel
ao corinthians”, eu falei “pô, véio, se tu tem fé então cê não é ateu” (rindo), e
ele falou “pelo corinthians...”, eu acho que o corinthians mudô, tá ligá (silêncio).
Acho que tem uma força maior agindo sempre. O lance da poesia, por
exemplo. O bagulho vem memo, sabe?, é uma psicografia, meio Chico Xavier a
parada, várias forças. Uma parada que a gente viaja no daime é isso. Uma das
organizações religiosas hoje, o lance dos hab... (não termina a frase), passar
várias entidades, de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o
mestre Irineu, mestre Sebastião, da linhagem dos indígenas lá da Amazônia,
manipular planta de poder, hinos, cânticos e todo o ritual de dança com os
instrumentos, sabe?, toda uma coisa de busca interior e de limpar o espírito e o
corpo também e passar todas as entidades com o respeito do sagrado a todas
as entidades. E é loco isso.

Liliane: isso é no daime?


Ilícito: isso é no daime, por exemplo. Tem vários rituais indígenas, não só o
daime. O daime é mais conhecido e universal hoje . Tem o “unipai”, que é da
164

tribo dos Kaxinawá. Tem cada tribo indígena mais no norte da Amazônia que
usam planta de poder, cada um tem o seu ritual. Eu tive a satisfação de
conhecer um jovem que veio estudar aqui, lá da tribo..., príncipe da tribo, né?,
filho de um grande pajé, que ele tinha o ritual do “unipai”, eu gosto dessa
parada de planta e poder. Tinha um bruxo, um amigo meu que já faleceu, que
era paraplégico, ele viajava muito nesse lance de transcender. É loco. Hoje a
gente vive na quebrada que é um lance quimical, eu na verdade curto mais um
lance das plantas de poder. (Silêncio). Mais pra abrir a percepção, a
consciência, entendeu?, pra lidar com as coisas do mundão, que hoje pra sair
pro mundão, nossa, tem que ter mó mente mil grau, agir na pura calma (rapeia)
‘o processo é lento, o barato é loco’. Que nem eu tava ouvindo um repentista
tem uma música que ele fala isso, né?, ‘o processo é lento, tô desarmado’. Mas
a gente fala que é época das colheitas, né?, reparação, época das colheitas.
É... Época das colheitas.

Liliane: agora é época das colheitas? Como assim?

Ilícito: É isso, entendeu? Como assim?! A gente plantou, agora tem que colher,
né? E é o ciclo natural do ser humano que trabalha. Ser beneficiado com o
fruto do esforço dele, né? É natural. Agora pra muitos, (é o que) tô falando
entendeu?, vitória é qualidade de vida, dar tranquilidade pra minha família,
poder continuar transformando o que tá a sua volta, entendeu?, porque não
adianta mudar pra você sendo que a sua volta tá a mesma merda, entendeu?,
então pra mim essa situação continua a mesma só que eu sou um ponto de
ligação que posso transcender e levar muito mais coisas. E pras pessoas podê
acreditar que eu posso levar isso a eles, eu tenho que tá bem. Só que o
momento não tá bom pra ninguém. E aí que tá o mundo ilusório, da arte, da
fama, de você achar que é antes de ser. Por isso que eu acho que a parada
gira em torno da obra, do que você constrói. Tava ouvindo... eu fico ouvindo
aqui uns tiozinhos... o Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando
errado e todo mundo ria de mim. Um dia um descobriu, estorou, e agora todo
mundo tenta falar errado’. Não consegue, porque até pra falar errado tem que
saber, entendeu? Uma das coisas que a sociedade tem preconceito com o rap
é isso, que a gente fala muito na gíria, tem vários dialetos que... O Alckmin lá
acabou de inaugurar a biblioteca de língua portuguesa, tá ligado?, em 2006
eles conseguiram acabar de vez com o iorubá, o tupi-guarani, cortar cada vez
mais cortar os dialetos e impor o português que é a quarta, quinta língua mais
falada no mundo. Isso aí vem sendo feito desde o início do século 18, 19 que
os... (não completa a frase). Até 1900 e pouco, a gente falava vários dialetos
que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando que a gente
falava brasileiro e tal mas até ins...(não termina) se um país fala tupi-guarani
com mais de cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando
também todos os povos africanos que veio que era (não termina), basicamente,
uma grande parte falava iorubá porque foi a língua que tiveram que se adaptar,
né?, pra que tivessem uma informação e mais comunicação entre os negros do
Brasil, porque vieram de toda parte da África, entendeu? Então a gente falava
iorubá, também. Vieram cortando com o lance do português. Então o lance do
brasileiro é de falar brasileiro, porque a gente mistura aqui todos esses
costumes que foram cortados pela sociedade, pelo grande centro. E a elite não
tem conhecimento. A gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os
165

caras põem os preto pra tocar no fundo, reprodução da senzala, sabe? Da


época dos casarão antigo. Cê pára no farol os cara te dá um panfleto daquele
que, pra você comprar o apartamento, cê vê lá um quarto de empregada,
reprodução da época do escravocrata. São várias coisas que eu vejo que hoje
o capitalismo condiciona e o capitalismo pelo capitalismo não transforma em
nada, entendeu? E essa coisa de condicionar dentro de uma lei de uma forma
de sociedade onde a felicidade gira em torno do bem material, entendeu?, e
que é um bem material que o cara acha que vai tê, vai tê, vai tê e o rico quando
tem não tem, e o pobre fica querendo tê e quando tem se perde porque nunca
teve e aí rola todo um processo de adaptação. Muito louca essa parada. Então
o lance que eu falei no início é o lance de transcender, o lance do espiritual,
uma coisa que vai ficar pra vida, então é todo um (não termina)... Isso aí vai
vim como conseqüência do trabalho que cê quer plantar, entendeu? Tenho
uma véinha de 86 ano, minha mãe, meu pai, tano doente, meu irmão, a gente
tem que ir nos postos do governo, entendeu? Eu queria ter um plano de
saúde... esses barato que eu tava falando que eu viajo que é melhor falar da
minha coisa que é legal, que é lícito, das coisas que eu posso acreditar que eu
posso mudar pra minha vida e pra minha família, ter um plano de saúde, poder
pagá as conta... são coisas bestas, supérfluas, que pra quem tem qualidade de
vida são detalhes. Poder se alimentá beeem... umas parada assim, sabe?
Outra coisa assim, o lance do meu trabalho, tem uma dimensão, essa parada,
tentando cada vez tá melhor pras pessoas que ouve o meu som, porque a
gente tem realmente um compromisso com a mensagem, entendeu?, é o lance
coletivo do grupo e tal, e meu som, eu, pessoa, essa coisa que cê quer falar,
ainda não acho (não termina), não tá (não termina) um pouco preparada pra
ouvir, mas vai chegar o momento. Pra nóis nunca foi fácil, sabe?, as parada
aqui é que nem uma lenda. Aí não tem jeito, “calma, vai sair, tem paciência.
Tudo é um processo, da hora que Deus quer, que Jah quer, dessa força quer.
Ou quando a gente consegue abrir todos os caminhos, entendeu? É sempre
assim, muito loco (Silêncio).

Liliane: então você é tudo isso?

Ilícito: não sei se sou tudo isso. Nóis somos né. Faço parte dessa, desse...
minúsculo grão de areia onde você é um ponto de ligação que brilha tá ligado?,
às vezes cê tá na praia cê vê um grão de areia que brilha mais que os outro,
entendeu, é um ponto de ligação que pode fazê com que a galera que tá
passando olhe praquele tanto de areia, entendeu? (traga o cigarro e sopra.
Longo silêncio). Cê num acha?

Liliane: Quero continuar te ouvindo.

Ilícito: ah... se cê continuar perguntando. Já tá passando a hora? Tô... no


relógio. Tá acabando já, né?

Liliane: Eu gostei dessa história do grão de areia que brilha e que faz com que
as pessoas olhem, aquele grão de areia que brilha faz com que as pessoas
olhem praquele monte de areia, é isso?
166

Ilícito: é. (ri e sopra a fumaça do cigarro). O problema que rola é quando esse
grão de areia acha que ele é uma estrela (dá risada).

Liliane: hmmmmm...
Ilícito: quer brilhar demais. Por isso que tem uma música do Varal, que é uma
banda de reggae aqui da quebrada, que ele fala (cantando) “desapegando do
plano material seguindo os meus passos sei que vou chegar, raggamuffin style
the roots, raggamuffin black and blues, quero ver a queda da Babilônia,
conquistar a paz para caminhar desapegando do plano material seguindo os
meus passos sei que vou chegar”.

Liliane: “desapegando do plano material, seguindo os meus passos sei que vou
chegar”... (cantarola, em ritmo de reggae)

Ilícito. É (pequeno silêncio). Enquanto os cara usa ouro, a gente usa a arte dos
mestres que entorta arame (mostra os braços, cheio de pulseirinhas). “Cada
um no seu skate”, que nem diz o Bocão (silêncio). Né não? (sorri e faz silêncio)

Liliane (espero um pouco e pergunto): e que mais?

Ilícito: mais o quê, meu?

Liliane: e quem você gostaria de ser?

Ilícito: eu mesmo. Ser quem?

Liliane: e como é que é eu mesmo?

Ilícito: É essa coisa que eu me transformei aqui, mutante.

Liliane: mutante? Como assim?

Ilícito: que não pára de se transformar, meu. É isso memo.


(silêncio)

Liliane: então me fala desse “não pára de se transformar”. Como é que é isso?

Ilícito diz algo incompreensível, resmungando baixinho. “Sei lá, é que nem o
hip-hop meu. O hip-hop não cresce o tempo inteiro? Os cara acha que é só
música. Não é só música. Tem muita coisa acontecendo. Mutante memo”.
(silêncio)

Liliane: então você é mutante que nem o hip-hop?

Ilícito: o hip-hop é mutante. Eu sou um hip-hoper mutante.

Liliane: você é um hip-hopper mutante.

Ilícito: com certeza.


167

Liliane: e o que é ser um hip-hopper?

Ilícito: é ser universal, mano. Todos os lugares do mundo que eu já fui, tem um
irmão que é que nem eu (assopra a fumaça do cigarro). Iss´é da hora.
Independente da etnia dele. O problema do Brasil é étnico, tá ligado? O lance
de não saber respeitar as etnias. Muito mais que a pigmentação e a cor da
pele, é respeitar as etnias, entendeu? As etnias indígenas, africanas,
européias, árabes, toda a influência mundial, que a raça do planeta tá aqui.
Todas. Os orientais... tudo. É saber respeitar isso. (ainda que) as colônias de
cada país que não perderam as suas origens. E o mais loco disso é que já se
misturaram de uma forma que eu vejo que foi tão agressiva quanto a norte-
americana e talvez até muito mais porque trabalhou no inconsciente do povo,
tá ligado?, mas que é loco, que é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo, e
eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as
indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a
sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro
povo, como lidar e respeitar as etnias, é problema étnico. Assim como o negro
teve várias definições, eu fazendo música de preto também, tem várias
definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado?, me chamam de várias
formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance
que vai além da cor da pele, é um lance da poesia de uma poesia que fala “que
a pele negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio
porque nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. (Ele mexe a
cadeira e o barulho não me deixa entender as duas primeiras palavras d frase
seguinte). ... o conhecimento, que é a definição do quinto elemento, né?, dos
cinco elementos que o hip-hop contém, tem uma música do [norte-americano]
KRS-ONE que é “Nine Elements”, tem uma música que fala de 12 elementos,
outra que fala que tem 20, então, com tantos elementos, elementos que
queriam transformar em elementos, o [Áfrika] Bambaataa1, os caras falaram
“não, é quatro elementos da forma original – o MC, o DJ, o b-boy, poping,
locking, dança original, dança de rua; grafiteiro, e o conhecimento”. Cinco
elementos. Pronto. E o conhecimento engloba tudo. Engloba tudo não: adiciona
todas essas paradas que as pessoas acham que faz parte do hip-hop, tá
ligado? Por isso que eu falo que é mutante, porque tô ouvindo bastante “crunk”
do Lil John. Os muleques ainda não sabe o que é crunk. Mas é uma batida que
os caras faz lá fora e eu acho bem loco... é do hip-hop. Lá fora tão fazendo
“grime”, na Inglaterra. É hip-hop entendeu? Então tem coisa rolano... ouço
muito break beat, eletro funk, viajo nuns crônico, que a gente faz aqui, crônico.

Liliane: crônico?

Ilícito: é. Viajo nesse lance de Luiz Gonzaga, sabe?, de criar um ritmo, sabe? A
gente viaja, eu viajo nesse naipe. Criar um ritmo é da hora. Criar um ritmo, tá
ligado? Em meia hora os cara tão criando umas parada. Tô ouvindo “double
step”, é uma parada da Inglaterra também. Ragga-core é de fudê. Então tem
muita coisa. Hoje os cara denominaro tudo black, né? Os muleque não sabe
definir cada ritmo musical. Não sabe o que é um R&B, um Soul, um Funk ou o
próprio funk do Rio de Janeiro, um volt mix, ouvir um tamborzão... os meleque
1
DJ do Bronx (Nova York) fundador do hip-hop. Maiores informações em:
http://www.zulunation.com/afrika.html.
168

não define, é tudo black, tá ligado? Porque a mídia faz que nem fizeram com o
break dance, é original funk, b-boy, b-girl, popping, locking. Original dança de
rua. Aí vem um cara e fala “ah, é break dance”. Porque eles dançam no break
da música, né? A mídia sempre fez isso. E fizeram com o black agora.
Antigamente, o cara tinha que subir o morro para ouvir samba de verdade,
partido alto, tinha que ir pras favelas ou prumas festa de 1000 grau pra ouvir
show de rap. Agora inverteu. Tem que ir pra Vila Olímpia, mano (fala rindo). Só
que a gente faz uma festa nem que seja uma vez por ano, mas a gente faz as
nossas festas. E isso é mais importante, quando cê vê, várias quebradas tem a
sua festa uma vez por ano e tá chegando num nível que em cada fim de
semana tem uma festa em cada quebrada. Isso pra nóis é o mais importante.
São Paulo é grande, o Brasil é grande (acende o cigarro). Aqui não é uma festa
que é só pra intertê não, o bagulho é sério. A batida pode ser black, mas é
verdade e traumatismo, a idéia é mil grau. E existe esse rap norte-americano
que hoje é ostentação, e existe esse rap América Latina, o rap feito no mundo
que... de resistência, não tanto europeu, mas da América Latina em si, tá
ligado?, que a consciência dos hip-hoppers lá na Itália, na França tem essa
consciência latina, não todos lá que eu acho que é outra dimensão, os caras
tem as infra-estruturas, tem todo outro acesso. Mas existe um rap feito em
Cuba, um rap feito na Argentina, no Chile, muito cabuloso, entendeu? Esse rap
“undegrund” (sic), né?, por baixo da terra, isso que é louco meu. Poucos caras
vivem essa cultura, em São Paulo memo não tá tendo muito CD de grupo aqui,
difícil ouvi tudo assim, eu gosto de tá ouvindo coisa nova, ouvindo rima nova,
idéias diferentes, é mais um lance de entrar nas favela e conhecer os moleque
de perto, tá ligado?, é outro mundo do que o de quem só ouve 105, entendeu?
Muitos caras que não teve acesso não conseguem gravar, existe um mundo do
submundo além do terceiro mundo, do quarto mundo, sei lá. É loco. Por isso
que eu... , o lance do rapper da França parceiro nosso, que ele fala “som
universal, universal, universal” que é isso, cada pessoa é um universo,
entendeu, difícil se tirar uma conclusão de uma cidade porque aquela cidade
faz vinho, tá ligado?, e achar que as pessoas, todo mundo lá, fa vinho,
entendeu? Que ali, aquela cidade é..., é Cubatão é poluída, cê tá... tipo assim,
cada pessoa é um universo, entendeu?, você é uma cidade, um país inteiro,
um universo, entendeu? O mais loco é como você consegue fazê uma parada
universal que consiga chegar em cada universo que é o ser de cada pessoa,
entendeu? E hoje com essa parada tecnológica, esse bagulho que você tem
acesso a tudo, mas se você não saber procurar nesse... (não completa a frase)
nessa informação rápida, cê não vai achar o grupo. E não vai entender a
mensgem, entendeu? Isso que é loco. Tem cara que, pô, fala que ouve, que
pesquisa pra caralho, mas não conhece Dead Prez2. Então tipo... Agora um
moleque vai chegar de um, de outro, vai correr, dentro desses milhões de
informação, que vai correndo bem divagarzinho (fala devagar) bilhões e bilhões
de dados que vão sendo acionados até chegar nesse um que vai fazer o cara
brilhar. Então são pontos de ligações, entendeu? E o Grupo, nosso som
caminha nisso, até que esses pontos de ligação vai aumentando, vai
aumentando, até que chega num nível de Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Leci
Brandão, que são pessoas que já contesto, e que hoje, o povo já gosta e já é.
Ninguém vai mudá mais isso, não é uma propaganda de cerveja vai mudá a
2
Grupo de rap “underground” dos Estados Unidos, representante do rap norte-americano que não se
vendeu à mídia e que atua na luta anti-racismo e pró-direitos civis de negros e latinos nos EUA.
169

personalidade da pessoa. Quando cê vê a pessoa num todo, são muitas


coisas, não só em cada casa que a música tem poder, mas... o projeto social
do Zeca Pagodinho é de fudê, 400 crianças fazendo música, conservatório, tá
ligado?, isso é que é loco, viajar nessa parada.

Liliane: e esse universo que é você compreende tudo isso?

Ilícito: não. A compreensão é lenta né? cê tem que ter uma reciclagem, tem
que ir prum mar, tem que saber canalizá as paradas que é todo um processo.
cê recita a letra dez vezes, sai andando, depois de duas horas cê pega ela
recita mais duas veiz e esquece. No outro dia cê já aprende, já acorda
recitando ela, tá ligado. Depois de uma semana cê já quase aprendeu, na outra
cê já tá decorando, cê fica ouvindo, vai cadenciando, vai ficando melhor, cê vai
fazendo show, vai melhorando, aparece novas melodias, é tudo um proc... é
tudo sempr... vai evoluindo, né?, o lance é a evolução, né? Tem que pensar
primeiro na evolução, pra depois poder revolucionar, tá ligado?

Liliane: e você?

Ilícito: o quê? Eu penso dessa forma também, são pensamentos coletivos. Que
vença a maioria, e a maioria é o povo oprimido. Tá ali ó (aponta para o pôster),
Glauber Rocha: “sou um artista, não me exijam coerência”. Só que eu não sou
um artista eu sou um arteiro.

Liliane: você é arteiro?

Ilícito: é. Sou artista pros autistas. Arteiro pros artistas. Sou arteiro pros
artistas... rapeia: “arteiro pra artista, frio e calculista. Altista, ativista, lê a capa
de revista” (ri)

Liliane: é uma letra?

Ilícito: é o pedaço de uma letra.

Liliane: tua?

Ilícito: é.

Liliane: do trabalho que é solo?

Ilícito: É. Mais um personagem. Diretamente do reino vegetal. O planeta terra


tá dentro dum cubo de vidro. (ri e faz silêncio)

Liliane: personagem diretamente do reino vegetal que tá dentro do cubo de


vidro... reino vegetal dentro do cubo de vidro?

Ilícito: não, ele tá em outra elevação cósmica. É uns cara de sangue verde, tá
ligado?

Liliane: sangue verde?


170

Ilícito: é (rindo). Já leu aquela poesia “De volta pra Pasárgada”?

Liliane: que que tem a poesia?

Ilícito: é então, tipo de volta pra Pasárgada.

Liliane: pera aí, a poesia do Manuel Bandeira?

Ilícito: vou me embora pra Pasárgada...

Liliane: é essa, do Manuel Bandeira. “vou me embora pra Pasárgada, lá sou


amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero...”

Ilícito: é, é. Só que numa outra parada, num outro reino. Não é bem lá nesse.
Lá até a polícia é diferente, lá tem o capitão Djamba. Aqui é a estrela do xerife,
lá é a planta da erva. A erva natural, que é de Gênesis, só não sei os capítulos
e os versículos. Se não eu te falava e cê pesquisava. Mas é Gênesis. Primeira
passagem. Naquele mais resumido cê vai entender. (ri). É esso o lance. Eu
viajo nesse lance de reproduzir umas paradas que tá feita. Mas de reproduzir
não de uma forma de você pegar catá e passá assim, sabe?, lê o que tá
escrito, borrinhá e fazê, não, eu não faço isso. Tiro minha conclusão daquilo
que existe. Por exemplo, qual que era o objetivo com o primeiro disco, era
traçar o caminho da origem do povo brasileiro. Da onde que veio essa galera?
Eu perguntava pro meu pai, perguntava pra outros parceiros, só sei que veio da
Cafelândia, da Cafelândia, num sei. Mas que etnia africana? Um parceiro meu
que se islamizou agora, irmão, servo de Alá, ele tá se transformando, tem a
mesma idade que eu e pô, africano que quando veio do interior de são Paulo
não sabe de nada e agora tá buscando suas origens. É loco. Então começamo
a traçar a nossa história do que é a periferia a partir dos quilombos. E é isso.
Eu tô toda hora pegando dos estudo, das coisas da rua, misturando as parada
que é..., eu sou da rua, nós somo da rua, hip-hop é da rua. E aí [vamos]
misturando essa parada da onde traçá, essa parada étnica do povo brasileiro.
Sempre traçando a história do povo. A mudança é aqui, né?, o rap é aqui. É
mundial, pro cara lá fora quando ouvir uma faixa do novo CD do grupo, “pô,
isso é feito no Brasil”, não é a reprodução de uma base norte-americana, tá
ligado?, que é o que a maioria faz. Não que isso seja ruim, mas primeiro a
gente tem que mostrar a nossa cara. Que eles sabem que aqui no Brasil (não
completa a frase). Aí cê ouve os caras lá pegando a nossa parada, vai lá e faz
do jeito deles, meu. Por que é que a gente não faz? Os caras sabe que aqui, o
celeiro musical nosso é nervoso, meu. E é isso assim... sempre tirando
conclusões daquilo que cê pesquiso, do que cê tá vendo, do que cê vive, e é
isso. Por exemplo, eu não fiquei satisfeito com o disco anterior, no disco novo
tem a música que fala que dos quilombos, porque os quilombos ainda existem
no Brasil, muitos não-titulados, outros ainda que não são reconhecidos e o
Brasil é um quilombo. Fora isso ainda tem o lance das tribos indígenas, que
hoje também é um grande problema de como se firmar dentro da sociedade,
porque a maioria são órgãos do governo que tão sempre interferindo, a maioria
deles quer a terra, os proprietário, sempre um cara vai lá e quer tirar a tribo
indígena e fazer como fez o... o... Dom Pedro I e seus amigos quando
171

descobriram (ri) é... a Bahia e fizeram um “resort” onde tinha uma tribo, tá
ligado? É isso que os caras querem fazer o tempo inteiro. E a gente vem
falando tipo... também da construção que não pára, entendeu, que aqui... já
ouviu falar dos bate-laje? É uma parada do sul da Itália, lá dos sicilianos, dos
calabreses, que é... minha família tem descendência lá daquela ponta da bota
da Itália e lá tinha os bate-laje que na Itália, nesse lado mais pobre da Itália, pra
fugir do imposto, então as pessoas, na Itália tinha uma lei que, não sei se
existe ainda, que você só termina a casa quando você põe o telhado. Então
eles nunca terminavam a casa, iam batendo laje, batendo laje, morava a
família, tinha três andar, e ele falava “não, a casa não acabou ainda”, era uma
das forma de não pagar imposto. Se você olhar agora na casa, a casa dos
meus pais, é a mesma coisa (pronuncia esta palavra rindo), então isso te dá
um pouco da origem, dessa trajetória e isso é uma viagem, tá ligado?, aqui a
gente tá em terra indígena, tá ligado? (rindo). É isso. E o hip-hop que deu essa
mente, tá ligado? Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró,
conheço bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do rap, fazendo uma coisa
norte-americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso
cantar um forrozinho. É loco. Fiz um retrocesso do processo, que é o
“reprocesso”, que é o novo disco do Zé de Riba.

Liliane: ah é?

Ilícito (rindo): é. (sopra a fumaça do cigarro). É loco. E aí tinha o lance do... de


fazer som universal, né?, nós faiz música, mano, e é universal. Faz (música)
num tambor, o que você me der a gente desempenha, chegô num nível musical
que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um tambor, uma
batida do nagô, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso que é você
chegar num nível musical num lance raiz e saber é... é... contar história, tipo o
lance do griot de reproduzir os antepassados, coisa que foi passada de pai pra
filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é sempre uma
nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro dessa nova
roupagem, por exemplo, bumba e caixa universal hoje que é essa parada do
hip-hop hoje é música eletrônica, os cara faiz rock no computador, tá ligado?,
tão tem que ao mesmo tempo se adequar a esse mercado, continuar a fazer
coisa boa mas não caí, né?, nessa indústria que exige, e ao mesmo tempo cê
tê seu espaço pra podê pira numa música de 15 minuto, tá ligado? (silêncio).
Mesmo que não vá vender. Então esse que é o grande lance de fazê arte de
fazê música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que
o hip-hop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-cultural-
educacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma.
Tem uns cara que precisa abri a mente, tá ligado?, “com altas parada” e tira as
dor do coração, o sofrimento é individual, me diz quem sofreu mais, e abri a
mente com a parada. Faz que nem o árabe, mano, tem um conhecimento de
tudo um pouco, tá ligado. Eu viajo com essas parada. Cê vê Cuba? Como é
socialista e é de primeiro mundo. Se tivesse o dinheiro que... que um país de
primeiro mundo tem, ninguém segurava, entendeu? Se tivesse a infra-estrutura
pelo menos, né? Aqueles moleques lá são aguçado... (silêncio)

Liliane: e você?
172

Ilícito: ãh? Por que eu? Tira essa primeira pessoa, mano. Eu não acredito
nessa parada primeira pessoa. Eu sô terceira pessoa. É nóis, mano. Sei lá...
acho bem loco assim, até escrevo umas letras na primeira pessoa, às vezes cê
fala um pouco da sua opinião, eu não sou esse rapper primeira pessoa que só
fala dele. Eu sempre jogo uma idéia pra gente questionar. E a gente... Cada um
vai tirando as suas conclusões. Mas eu não sou esse rapper primeira pessoa,
eu não sô... minha parada é coletiva, eu escrevo pensano... como se um loco
poderia pôr no meu lugar um personagem que entrar num personagem e viajar,
entendeu? Ser o personagem... a que opinião serve pra todos. Que vai bateno
em cada um de alguma forma. Quem tem meno (não termina). Quem tiver m...
quem não tiver dor no coração vai se diverti, tá ligado? Os rancoroso vão sofrer
um pouco, e as criança num pode ouvir, por exemplo. Tem coisas que as
crianças não pode ouvir. Mas as crianças crescem e elas vão se preparar pra
ouvir essa parada (ri). É isso. O lance de poder é... tá criando o tempo inteiro.
Lance que, a periferia, tem muita coisa pra mostrá porque é isso, sabe?,
demora tanto pra poder mostrar as parada, que eles vão criando, vão criando,
e depois vem a enxurrada... enxurrada (diz, sussurrando).

Liliane: e você na sua infância? Se preparou?

Ilícito: eu penso que... a minha infância assim, hammm... foi ligada... ao futebol,
assim. Eu jogava bola, ia pros clube, eu gostava de jogá bola, e como acabou o
futebol, acabou a infância e aí fui trabalhar e eu depois eu lembro disso como a
rua só, trabalho, rua... fui muito cedo pra rua trabalhar assim... e aí eu... como a
rua... a gente chega na rua tipo aí ó... eu curti a minha infância mas trampando,
fazendo uns corre, sempre fazendo uns corre, inventando coisa. Aí com uns
13, 14 já tava fazendo um..., já tinha uns grupo de rap assim já e já tava (não
termina), a mente já tava mudando já. Trampava de boy já. Eu lembro que com
uns 11, 12 já entregava lanche na Paulista. Entregava lanche na Paulista...
Trabalhava num baguio na... na Galeria 2001 que chamava “Porto Mamão”. Aí
a gente fazia os lanche e ia entregá os lanche de bandeja, tá ligado?, na
Paulista, nos escritório. (foi) o primeiro trampo meu. Depois fui trampá de boy...
Na Brigantonio Luiz Andero (sic), sabe? Ali na Avenida Brigantonio Luiz Andero
(ri). Trampei de boy, de boy, depois de auxiliar de escritório p´a caralho, depois
trabalhei numa fábrica de... (não completa), trabalhei na feira, fábrica de não
sei o quê, lance de vidraçaria, ajudar na oficina, não sei o quê, vários bagulho,
hmmm. Depois trabalhei uns anos de escravo dentro de um shopping, nu´as
lojas de estoque, até que um dia assisti o “spock”, aí deu um “se toque” e saí
de lá, foi quando a gente foi pra Itália, quando eu voltei da Itália se decidi que
não ia ser mais escravo, e... tô em 2006 tentando ainda ser liberto (longo
silêncio). É isso.

Liliane: com quantos anos você tá?

Ilícito: 28. (silêncio).

O irmão dele interrompe pra dizer que chegaram dois colegas à procura dele.

Liliane: a gente pára por aqui?


173

Ilícito: a semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu
(ri). Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que
no final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo
menos, concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um
tijolo de cada vez, entendeu? Semana que vem você vai vim falá comigo e eu
vo tá outra pessoa. Essa coisa, eu acho que, o lance mutante que (não
completa; busca o texto do Luiz Gama de novo e recita). É... “quem sou eu”,
Luiz Gama, mais conhecido como “Bodarrada” (gargalha). Loco, né?

Liliane: você pegou na Internet?

Ilícito: fácil, né? Mas se o cara não souber quem é ele, nunca vai chegar.

Liliane: tem até um glossário...

Ilícito: tem tudo. Conta a vida dele... fala um pouco do que é as palavras
difíceis.

(corto a gravação e retomo. Ele está rindo).

Ilícito: imagina os cara “olha o que esse cara tá falando, mano?”. Um texto de
1859, é da hora3...

Entrevista II
Terça-feira, 7 de novembro de 2006.

Na vez passada você tava falando dessa coisa da terceira pessoa4, do coletivo,
e da questão da sua vida ser em torno da sua obra. Não é isso?

Ilícito: ahã.

Liliane: então pra além da obra, tem alguma coisa que você entende que faz
parte dessa terceira pessoa, disso que é você na terceira pessoa?

Ilícito: que é eu o quê?

Liliane: você terceira pessoa, você e eles, plural?

Ilícito: assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe?
Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada,
entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no
ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é
coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que

3
O poema foi transcrito no fim do capítulo 7.
4
Ele havia chamado de “terceira pessoa” o que corresponde gramaticalmente à primeira pessoa do plural.
Usei o termo dele.
174

eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe?, e de
diversas formas. Pode passar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles,
tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo. E a
parada..., quando eu falo que gira em torno da obra, porque, por exemplo, eu
acho que foi no ano passado que comemorou 100 anos, ou foi nesse ano, de
Pixinguinha, então assim demorou muito pra o Brasil entender o que é
Pixinguinha, depois de 100 anos, sei lá, da existência dele, as pessoas
começam a entender um pouco essa parada. Então o lance de fazer arte é
bem loco, como um cara que faz um carro, projeta um prédio, que fica por
muito tempo, entendeu?, e é isso que eu quero fazer. Agora se eu acho que a
parada hoje [e muito... , gira em torno do material, do dinheiro, da vaidade e do
poder, tá ligado? E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu
vim, desde que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada
se faz sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego
num momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra
mostrar o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir
fazer isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu?
Acho que é uma coisa que ainda está em processo, tá em andamento. Muitas
coisas tão acontecendo e tá tudo em torno de um desdobramento. Vai ser
dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais
meu “eu”, eu acho. Agora, a parada não gira em torno de uma pessoa só,
sabe? São várias pessoas pra concluir uma parada que ainda é muito pouco do
tamanho que é isso aqui, entendeu?

L: agora, quando você vier a fazer o seu trabalho solo, pessoal, o que que você
acha que vai ter de diferente desse trabalho que é coletivo?

Ilícito: ah, totalmente diferente, porque o trabalho coletivo é o trabalho legal,


sabe?, é o trabalho social, é o que a gente busca dentro da sociedade, esse
lance de cidadania, de humanidade, de lidar com vários tipos de pessoas,
idosos, crianças, mais velhos... pessoas especiais, políticos, toda camada da
sociedade pra constituir uma parada sólida, uma base sólida, agora eu, tá
ligado?, sou o inverso disso, corro na ilegalidade. E isso é uma realidade, tá
ligado?, isso que é tipo... , pra mim é o controle da loucura, tá ligado?, até fui
fazer um trampo lá que eu já falei, né?, quem usa não abusa e quem não usa
não acusa que a gente, dentro do..., é o controle da loucura que eu falo que
tipo assim, pros caras não me prenderem num manicômio, num presídio, num
me por num estoque ou dentro dum escritório, tá ligado?, ou então fazer com
que eu não faça alguma besteira por dinheiro, tá ligado?, giro em torno disso, a
gente vai tentando buscar outros artifícios e outras imunidades pra não cair
nessa armadilha, entende?, é isso o que eu tô fazendo. Mas minha realidade
me puxa pra isso, porque quando um filho grita dentro de casa, tá ligado?, cê
tem que fazer um corre. E aí quando eu saio pra rua, gira em torno de muitas
coisas que perante a lei e a sociedade não é legal, entendeu? Eu já sou um
cara ilegal. No rap, eu assusto, tá ligado?, aí chego na elite, eu assusto, tá
ligado?, assusto meus parcero, sabe?, eu já sou um cara problemático por
natureza e hoje eu tenho que controlar a loucura sabe?, cada dia tentar ser um
cara melhor, sabe?, mas eu acho que a minha ilegalidade me leva a não entrar
nesse... eu não quero falar sistema, porque sistema não existe, mas nesse
esquema, tá ligado?, nessa coisinha podre que gira em torno da vaidade, do
175

dinheiro, da fama, sabe? Minha parada...,sei lá, o grupo legal, um grupo que eu
projetei, vejo como um grupo que é feito pra tomar dimensão a nível de Brasil,
se precisar ir lá beijar na boca da Hebe eu vou, já falei, tá ligado. Chego lá e
beijo na boca dela, porque o grupo é pro Brasil ouvir, que nem outros rappers
importantes precisam ser ouvidos, então a gente precisa saber quem são
esses caras, entendeu? E o grupo, dentro dessa legalidade, eu tô pro que der e
vier, tô preparado, tô pronto. Agora, pra não virar esse cocozinho que o Skank
virou, tá ligado?, eu vou fazer um bagulho ao contrário, tá ligado?, os caras
quer pop de quatro minutos, eu vou fazer uma depois de 15. Pra quem não tem
saco de ouvir música de quatro, música pop. Só não quero entrar no
esqueminha, de ser coadjuvante de outro artista, tá ligado? Eu faço uma
história, que gira em torno do hip-hop, do grupo, de todos os grupos que a
gente fez de base, de todas as entidades que a gente passou, aí depois vem o
time de futebol, seis anos da....(não completa). Todos os países que a gente foi
da Europa, o trabalho com outros grupos (ele fala dos grupos formados por
rapazes de classe média)... O trabalho que a gente desenvolveu dentro da
cultura hip-hop, entendeu? Então não é “pipoca”, não é um bando de moleque,
sabe?, e as pessoas na maioria das vezes, vê a gente sangue bom, não vê a
gente fazendo cara de mau, que nem os monstros do rap faz, e a gente sabe
que a gente é bom do coração, a gente às vezes perde muito com essas fitas,
tá ligado? Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém,
sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto,
tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de
frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita, e... sabe?, eu sou positivo,
não sou esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo
capitalista, me deixou um monstro, tá ligado? De chegar até a interferir dentro
da minha família. Então eu não deixo mais, cara, desencano, tá ligado? A
ilusão é uma ilusão. Só você ir pros bailes black à noite cê vê como que é a
ilusão. Que é a reprodução norte-americana. E po, cada um no seu skate. Às
vezes eu vou pro salão, lá, pra reprodução norte-americana, fumar maconha,
catar umas minas, beijar na boca, tá ligado... o lance que eu encaro hoje é isso
assim, fazer as paradas mais sérias, acumular as experiências que a gente
acumulou em diversas oportunidades que a gente teve na vida e tentar ser um
cara positivo a cada dia, agora... o meu trampo mesmo assim é pra pirar, é pra
deixar... que nem o Raul Seixas falava “eu vim pra pirar a mente de voces”, tá
ligado? Eu vejo muito os cara entrando no esqueminha, porque há necessidade
no nosso mundo, a gente nasceu pra ser pobre, pra mudar isso aí na vida é um
grande dilema. E muitos encaram isso como um trabalho, e é isso. E vai
embora, e vai indo. Cada um tem sua ética, faz o que acredita, eu caminho
pelo certo, já não sei mais o que é errado também, acho que sabe o que é
certo é quem tá passando pela dificuldade. É isso que eu falo, assim, pra mim,
as duas energias correm juntos memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a
legalidade e a ilegalidade... o brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é
contraditório e ilegal, é isso. Agora... num sou pop, sou popular. Sou do hip-
hop, eu não sou pop. O único pop que eu gosto é dos popping, quando tão
dançando depois dos locking... agora, o rap no Brasil caminha pro reggaton,
pop, tá ligado? Caminha pras parada “crunk”, pop, sem letra, e é disso que...
vixi... tô pra pirar a mente dos caras porque tô em outra pegada.

L: e o que que é ser do hip-hop?


176

Ilícito: ser do hip-hop é só ir na galeria e comprar o kit, tá ligado? Agora, “ser


hip-hop”, é você dormir e acordar fazendo essa parada, dentro de todo o
universo que ele proporciona, tá ligado? Ser do hip-hop é só ir na galeria e
comprar o kit, que é o que mais acontece. Mas penso que é positivo também,
sabe?, porque... a pessoa tem que começar de algum ponto, tá ligado?, é do
bumbo, ou é da caixa, ou é da bombeta, é do estilo... aí depois é todo um
processo de evolução que é natural. Pelo menos já pegou um ponto do... da
matrix. Porque... acordar da parada é um processo também. Num vejo... o que
a gente precisa pra fazer essa parada do hip-hop ligada à mente é fazer... é ter
uma evolução, que é o que os elementos do hip-hop proporcionam. Toda a
história, toda a atuação social, cultural, política, militância, é... educacional.
Tudo que o hip-hop proporciona pra se transformar nessa evolução musical, ou
da trança, ou da parada artística, pra você tomar um nível nacional, mundial,
porque é o que os caras fazem lá fora. Quebrar essa barreira de falar assim “eu
só sou do hip-hop”. Hip-hop é um mecanismo, é a cultura que te transforma,
pra você ser um artista de ponta como qualquer outro de outro estilo musical,
por exemplo. No mundo da dança e assim também no mundo das artes
plásticas, tá ligado.

L: e como é que é isso, o hip-hop te transforma?


Ilícito: a gente tava num ponto desse aí, tipo do cara que cê falou, quer ser do
hip-hop, o cara vai lá e compra o kit. É um cara tipo, ele quer ser do hip-hop,
ainda não é hip-hop. Então ele começou indo comprar um kit na galeria. Então
ele pára no estilo, e só fica a roupa né? Aí pelo menos foi um início. Daí ele
conhece o som. Depois ele quer entender do que aquele som tá falando, aí ele
ouve um rap brasileiro, aí ele vai numa palestra, aí ele acha que ele é boy, aí
depois ele fala “não, eu sou branco; não, sou preto”, aí começa todo um...
quando se vê, depois de uns cinco, dez anos, dependendo da evolução de
cada pessoa, ele não é mais um kit hip-hop, ele já tá vivendo aquilo. Aquilo tá
transformando ele pro mundo, pra ter uma visão universal da parada,
entendeu?. É isso que eu tô falando, que o hip-hop é o mecanismo, é o
trabalho cultural... Pegar das raízes africanas. O Ilê Ayê, la, que cê foi pra
Bahia, tem um trabalho de base até a 4ª série, dentro do Ilê Ayê, com ensino
da visão que eles têm, do sincretis... (não completa), da visão africana, partindo
das origens africanas que eles têm e da tradição que eles tem no Brasil e da
forma que eles imaginavam que deveria ser nas escolas públicas,
principalmente voltado a essa coisa da questão étnica. Pelo que eu entendi,
além do moleque estar ali no Ilê Ayê, ele tem a escola pública dele também. No
Ilê Ayê faz tambor, aprende a historia dos orixás, entendeu? Então, o hip-hop
acaba sendo essa escola, do cara que é universal hoje, não é tão fechado, por
grupos, como o Movimento Negro ou uma entidade africana, o candomblé ...
não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado? Mas passa por
esse processo, que vai desde o negro, do indígena, passa por todo esse
processo das situações do país, dos caras que tão morrendo na rua, fala sobre
o mundo da droga, sobre sexualidade, então é um, é uma parada infinita, sobre
o preconceito, sobre racismo, que na maioria das vezes a sociedade convive
com isso, o governo também tem que conviver com isso, mas na hora de
discutir os problemas, na base do problema, a sociedade torce o bico, e o hip-
hop tá sempre na militância, que é o lance desse hip-hop pop hoje, essa
177

música pop que é vendida, que a gente vê no Multishow, que a gente vê nas
TVs tal, mas o hip-hop de verdade, feito na militância, que é essa parada desde
a criação, de todos os seus quarteirões, sempre em algum lugar do mundo tem
alguém se organizando e isso não mostra, mas a gente sabe que tem. E é
nesse trabalho de base que vai aparecendo os artistas que a gente tem hoje de
qualidade entendeu?, se não existisse isso, se não existisse esse trabalho de
base, se não tivesse enraizado que nem, a visão que eles têm, dos norte-
americanos, é que não tem mais isso, como se o hip-hop não tivesse mais a
sua forma original, grafiteiro, tal, mas continua do mesmo jeito só que o que tá
sendo vendido pro mundo é essa parada “business”, imitadora, de grana.

Liliane: quer falar de dar aula?


Ilícito: pra mim tá seno... o lance mais gostoso da minha vida, sempre foi.
Sempre gostei de subir no palco, hoje pra mim é um desespero. Não sei
porque... gosto mais de dar aula. Pros moleques, fazer trabalho de base. Ser
mais livre nos pensamentos e ser ouvido também. Fazer uma troca sempre,
aprender com os moleque, montar grupo, fazer show com os moleque... acho
da hora esses baguio... por isso que eu não viajo muito nesses negócios de
sucesso, fama, porque eu, se depender de onde isso vai levar, eu vou fazer
sempre o meu bagulhozinho, tá ligado? Dá aula pros meus moleques... eu
acredito nisso, sabe? Na hora que a chapa esquentar, eu vou pruma cidade
que nem Embu das Artes, vou lá, pego a minha turminha... não tô muito nesse
fervor aí, nessa busca... a única coisa que eu acredito nessa parada toda é que
tipo... eu quero qualidade de vida, sabe? Só isso... qualidade de vida... pagar
suas contas, poder morar bem, sabe?, ter uma locomoção pros seus velhinhos,
a minha família é grande, eu tenho uma velhinha, uma avó, de 86, minha mãe,
meu pai... preocupação de família, assim. E a gente sempre morou em coletivo
aqui, sabe. Minha família sempre foi um quarteirão inteiro. Eu me preocupo só
nisso, qualidade de vida assim, sabe? (silêncio de uns segundos)

L: mas é a família da sua mãe, por parte de mãe? E por parte de pai?
Ilícito: também mora na região. Meu pai foi o primeiro e trouxe todos eles, né?

L: seu pai veio da onde?


Ilícito: do Ceará. Ele é do Rio Grande do Norte, depois morava no Ceará e
depois ele veio pra cá. Com 17, 18 anos. Aí depois ele veio trazendo toda a
família.

L: e você acha que o seu lado artista tem a ver com ele?
Ilícito: tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno
ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase
todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85,
meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do
Serra, o Serra é que deu pra ele.

L: nesse período aí?


Ilícito: é. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas paradas. Eu era
pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai. Só que jogava
bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma ilusão... aí comecei a
fazer, já escrevia umas letras... comecei a escrever com o meu primo que é
178

filho do meu padrinho. Aí ele não podia sair... meu padrinho é negro, minha
madrinha, meus primo, tudo... e a gente cresceu junto aqui né? Só que... Eu
vejo assim né (gagueja um pouco), não sei se eles gosta que eu falo isso, os
moleque, não deixava ir pra rua, eles tinham muita disciplina com os muleque ir
pro mundão, pra rua. Eu eu já era do mundão. E a gente fazia rap junto,
começou a escrever junto, aí como eu comecei a sair pra rua pra cantar, eles
não deixavam acho que ele sair assim pra cantar, pra fazer as doideira que
eu... e eu sempre fui da rua. E o moleque tinha mó talento. Se ele tivesse
corrido comigo até hoje, ele tava mil graus... só que, ele se adap... os
muleque... os muleque manja computação, faz site, esses bagulho. Os
muleque já entrou num outro universo e eu fui pra rua. Fiz o inverso. Minha
vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o contrapunto (sic) de tudo. Desdo
som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais pesado,
gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu invért..., eu inverto tudo. Né?,
essa idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia
duma cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas
idéia, tá ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente.

L: mesmice?
Ilícito: é...

L: esse lance da mesmice, como é isso na sua visão?


Ilícito: ah, a mesmice é tipo você vê um pensamento radical e não querer abrir
o leque, tá ligado? E ficar vivendo num universo fechado, numa mesmice, num
ego, tal, sendo que a parada não é desse jeito. Tem muita coisa lá
acontecendo e você tá fechado num canto achando que é o dono, que tem o
dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá ligado? É abrir o leque, sabe?,
assumir os erro, não te medo, não ter vergonha, medo de pedir perdão, nem
dó. Tem muita gente numa mesmice, fechado num leque... ainda mais de
possibilidade... e pra quem é pobre, precisa se levantar, tá ligado?, e aí na
maioria das vezes acaba seguindo a hierarquia, de criar monopólio, e vira... e
fica sempre em torno de uma parada só e os rico... se comunicam entre si e
ficam cada vez mais rico, e aí tem quem se segura dentro do universo que tem,
o outro fica mais pobre. O bagulho é esse inferno. Então, por isso que eu
penso que gira em torno da obra, tá ligado?, tem que fazer um bagulho bem
feito, que seja inquestionável dentro desse... desses universos de vaidade de
que se vale mais ou pesa menos, tá ligado?, que seja uma parada sólida, que
contribui na... no país e pro mundo, tá ligado? E isso aí leva tempo. Muitos tão
vivendo pro momento, pela moda, pela evolução tecnológica. Mas é... além das
coisas feitas há séculos e milhões de anos atrás, ainda permanece. Então eu
penso ainda dessa forma.

L: e pro futuro, como é o Ilícito que você vê?


Ilícito: meu futuro é só permanecer vivo... tá ligado... porque na rua tá foda.
(silêncio de alguns segundos). Eu penso isso... muita inveja, muito... muita...
energia sinistra. Eu to... quero ficar vivo... só isso tá bom. (silêncio)

L: envelhecer?
Ilícito: hum?
179

L: pensa em envelhecer?
Ilícito: só se for a carne só, que eu quero ficar vivo. (silêncio de alguns
segundos). Pra não ser um morto-vivo. Prefiro ser um vivo-morto. Não, um
morto-vivo... um Zumbi na verdade. Zumbi de todas as formas, entendeu?
(silêncio) Ah, acho que essa parada é atemporal também, toda essa parada,
tipo, cu’a, cu’a... a carne vai e o espírito tá aí meu. E o lance da arte tá ligado
nisso, tem coisa que você pode imortalizar, entendeu? Agora que existe um
outro plano, existe sim, né, meu? É que nem o moleque quando enfia o anel do
“Senhor dos Anel” (sic) que ele entra naquele baguio meio vultuoso assim,
acredito que tem um outro plano sim... com certeza... uma coisa que, sei lá...
não vou contrariar a vontade de Deus, mas eu não vim pra ficar muito tempo
nessa parada não... vim pra fazer uma parada bem loca e camba. Eu sinto
isso, no coração assim... mas se também ficar veinho, não vou reclama não...
(silêncio)

L: e essa história de etnia? Você se vê, de alguma forma, dentro disso?


Ilícito: com certeza. Tava falando pros caras lá, os caras “ah, que...”, os caras,
pra se auto-int... autis... buscar auto-identidade “eu sou negro, não sei o quê”,
eu falei pros caras, pra mim, o mais difícil, foi me assumir como branco, tá
ligado? (ri). Só isso eu tenho pra falar. O que cê tinha perguntado?

L: eu tinha perguntado....
Ilícito: sobre isso... pra mim, o processo mais difícil da coisa foi isso, me
assumir como branco.

L: e você é branco?
Ilícito: sou. Porque... o lance tá na ligação muito da pigmentação, né? Vai muito
mais além dos traços e... se falar “sou afrodescendente”, eu sou, entendeu?
Agora, é visível que eu sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil
de assumir. Até fiz um refrão esses dias que eu vou usar. É... que é bem isso,
pra mim foi um processo. Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do
branco que, que... que era esse lance de todos caras que... essa dominação,
toda essas... sistema hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de
hoje, entendeu? E ainda... o branco continua sendo superior em tudo, né? Até
tava na Ba... Tava na Bahia lá um cara veio discriminar assim, “ah, ceis...”, na
hora que eu falei assim que o Ecad5 era lavagem de dinheiro, a mulher
levantou! A mulher do Ecad, né?, Lógico, reacionária até umas hora, a mulher
levantou. Ela atravessou no meio da minha palestra, aí um muleque falou
assim “ah, ceis são branco, que se entendem!”, né? Aí eu falei pra ele “ó véio,
eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando não , véio”. tá
ligado? Aí depois ele falou assim “não tenha medo de dizer que t.. é.. não
tenha.. não precisa ter vergonha de dizer que tu é branco que eu não tenho
vergonha de dizer que eu sou negro, tá ligado?”, ele falou pra mim. Aí eu não
quis estender a história que não valia a pena. Mas ele discriminou. E é isso que
é um bagulho que é louco no Brasil, tipo, se o negro é discriminado, o racismo
tá implantado, e é institucional, que é verídico, isso acontece diariamente no

5
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - sociedade civil, de natureza privada, instituída pela
Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira – 9.610/98 para recolher
direitos autorais da execução de músicas em veículos de comunicação no Brasil . (Fonte:
www.ecad.org.br)
180

nosso país, do lado do negro, dentro da sociedade, desigualdade social,


favelado, nordestino, latino, no mundo, tá ligado?, é, é, o Brasil precisa
entender que nós somo latino e que se eu chegar lá nos Estados Unidos eu vo
ser discriminado, como eu fui na Inglaterra, na França, e como eu sou às vezes
quando vou num gueto, num bairro negro, tá ligado?, e, e os caras discriminam
também, tá ligado? E como no rap eles não queriam me aceitar porque eu sou
branco, entendeu?, e quando eu vou falar de negritude dentro dum movimento
negro isso choca, e quando eu chego na sociedade, um cara tatuado, branco,
falando do lado dos preto, os cara fala “ce é loco, cê podia tá aqui”, só que
naquele esquema eu não vou, tá ligado?, nessa parte eu não participo. E aí é
um grande conflito, entendeu? cê acaba sendo discriminado pra caralho
tamem, sabe? O... porque meu contingente, eu sou uma minora dentro do meu
contingente, entendeu? E cê acha que é fácil? cê acha que é fácil ser 1% de
branco, 10% de branco numa parada de maioria preta, tá ligado? Por isso que
eu falo assim, no lance do grupo, se os menino não levar mais a parada,
acabou. Entendeu? Porque eu não posso levar. Como que vai chegar uns
caras, em que o líder é um galego, de zóio azul, zóio verde? Posso ter todo o
conhecimento do mundo, experiência e o caralho, mas não tem quem guenta,
essa parada. Porque a... é muito forte sabe? Eu seguro a bronca, do que for
preciso. Mas é, é... É... contraditório demais. Então por isso que eu jogo muito
a parada hoje pros caras, tá ligado? Contribui e contribuo da forma que eu
puder enquanto precisa, agora eu não vou sofrer mais, tá ligado? Não vou virar
o monstro que eu tive que virar pra assumir várias broncas, tá ligado? Eu já...
eu não preciso mais disso...

L: que monstro é esse?


Ilícito: ah, assim, o mundão, as responsa, tá ligado? Festa, show, tá ligado? Os
baguio desestruturado, tá ligado?, o lance de você não ter uma empresa, um
selo, você não ter um investimento, uma grana que gira, isso aí tudo pesa.
Sabe? E você não ter uma equipe de trabalho bem elaborada, e às vezes cê
não tem força de, de... hoje o grupo é bem equilibrado nos corre... então o
lance dessa falta de estrutura né?, e isso cansa sabe? A, a... a viagem do, da
Europa foi bem desgastante, que é aí que você sente que você tem que pensar
grande mesmo e tomar dimensão... é isso, isso aí que cansa um pouco assim.
Então cheguei a me desgastar muito, tá ligado?, a me estressar muito por
várias fitas, é foda, cê num... além de cê ter que fazer todo o corre por trás, tá
ligado?, de estrutura, tem que subir no palco ainda, então tá dormindo mal, tá
ligado?, sabe?, monte de coisa assim... e... aí cê vai aprendendo com a vida
também. Hoje vejo que não precisa disso. Tem que ter prazer de subir no palco
e fazer o bagulho (pausa pra atender o telefone).

L: como é, ter prazer de subir no palco?


Ilícito: é, mais nesse naipe aí. Tem que ter prazer. Sofria muito pra fazer
(silêncio). Agora hoje tá muito mais bem equilibrado, dividido. Continua ainda
(pausa pra virar a fita)... o que vai me dar qualidade de vida é dinheiro, tá
ligado? É essas paradas material, tá ligado? Quero tirar logo minha família
daqui, a gente ir morar num sítio, todo mundo, com seus quarto, suas rede,
cada um faz o que quer da vida, e já é. Agora assim, os caras têm um jogo pra
ser jogado, eu ganho no jogo. (barulho de serra)
181

L: a sua família quer sair daqui?


Ilícito: com certeza. Com certeza.

L: a idéia do sítio, pra eles agrada também?


Ilícito: a idéia de sair, ir pra um outro lugar, já, já agrada.

L: faz quantos anos que vocês tão aqui?


Ilícito: eu nasci aqui, nessa casa assim, só que a gente saiu por um tempo, e
morou em vários lugares, por problemas daqui mesmo, e depois a gente voltou
e tá aí. O meu pai não gosta, eu não gosto, minha mãe também não. A idéia é
ir embora mesmo (fala abaixando o tom da voz). Eu sempre fui meio cigano,
nômade, assim. Nunca fiquei mesmo muito num canto e os cantos que a gente
sempre buscou foi mato memo, uma coisa hipponga mesmo. Minha mãe tem
esse espírito hipponga batalhadora, meu pai também. Os dois ... mato, nadar,
água. Não sei o que a gente tá fazendo nisso aqui. Eu já falei que aqui é
especulação imobiliária. Isso aqui já é tudo especulação imobiliária, os caras
quer fazer uma outra avenida, e aqui é uma das áreas onde mais cresce
também em São Paulo. Então a gente tem que sair daqui e transformar isso
aqui em uma parada... é... comercial, entendeu? Alugar as paradas e viver bem
com o aluguel das paradas. Porque meu pai tá aqui há uns qua... sei lá,
quarenta já, quarenta anos, então ele já mexeu aqui, já revirou essa casa, já
subiu tudo. Começou com uma casinha lá no fundo e veio, tomando nessa
direção. Quarenta anos de trabalho não é quarenta dias. Tem gente que tá há
cinco anos e já tem um barraquinho já. Pré-construído (silêncio).

L: e família sua? Da outra vez você falou alguma coisa sobre constituir família...
Ilícito: eu também que... sempre fui... sei lá, sabe? Mas a rua me deixou um
pouco meio sequelado, e agora eu tô mais nesse momento família mesmo. E
eu acho que na vida cê só é... (serra). Artista é o caralho, que faz filho. Esse é
um verdadeiro artista, tá ligado? Então, a vida só... só... só leva aquilo que cê
deixa aí, né? Várias sementes de Abrahão, de Adão (ri). Várias sementes que
vão ficando e... e... o lance de família que também é isso, sabe?, que chega
uma época da vida que você tá descobrindo umas parada, tem um monte de
gente ao seu redor, depois as coisas vão se subtraindo cada vez mais que a
sua vida se subtrai em sentidos principalmente materiais, porque o espiritual
não força, tá ligado?, e aí que cê vai ver que é a família mesmo que resta, tá
ligado?, isso é natural da montanha, cê só monta aonde cê tem que descer, é
natural... e a vida é assim mesmo, sabe? Ciclos e mudanças. Só que tem gente
que não vê isso, só quer ir por cima da montanha. E pra ir por cima da
montanha, cê tem que passar por cima daqueles que tavam... tá ligado? Essa é
a lei do egoísta materialista... passar por cima com um rolo compressor. É o
que os caras fazem... o que é muito mais é,... quando você passa por cima e
não pensa em nada disso, é muito mais fácil do que ficar pagando, pagando de
idéia, passar com o seu carrão, não sei o quê, mostra tudo o que cê ganhou
materialmente mas... espiritualmente é um bosta, sabe? Como pessoa, não
contribui em nada, né?, só que ostentar. Eu acho ridículo isso aí. Quero ter tipo
um barato pra ir pra cachuera, tá ligado?, pra mim acampar em Paranapiacaba,
tá ligado? Minha família nunca passou um final de ano na praia, sabe?, uns
baguio besta. E é um baguio que é mais... espiritual, sabe. A galera é muito...
eu conheço cara que compra até bolinha de beiseball, taco, tá ligado?, a luva...
182

(ri) é muito... sei lá... acho que é cada um no seu skate, entendeu?, mas tipo
enquanto os norte-americanos ficam mostrando lá os brilhantes, lá, tá ligado?,
os ouros, tal tipo... eu dou mais valor pro tiozinho que passa aí direto e entorta
os arames, que vende os bagulho artesanal, assim, acho da hora...

L: e desde quando você usa esses bagulho artesanal?


Ilícito: desde sempre, né? Vem do reggae, porque o nosso rap do grupo é um
rap jamaicano, não é o rap gangsta norte-americano, esse é o nosso diferencial
de fazer rap. A gente sempre teve a ligação jamaicana. Fruta, legume, tá
ligado? Esses bagulho jamaicano, cor da África, sempre foi o inverso... tá
ligado? (silêncio de alguns segundos). Eu acho da hora, tipo o rap mesmo,
original, é jamaicano. Os norte-americano como são bons nessa parte de
vender as coisas, aí eles venderam, né? O rap... esse rap, né?, deles. Que eu
acho da hora também. Eu acho da hora. Eu gosto assim. Só que tem um lance
da, da indústria que é bem loco. Se você for nos bailes cê vê muito isso, sabe?,
tipo, nos baile black, quando cê vai curtir os bailes tal, muito norte-americana a
parada sabe?, o rap tá acontecendo em vários lugares do mundo, até rap
chinês eu já ouvi, tá ligado? Principalmente esse rap latino-americano, que é
bem loco né?, feito da América do Norte pra baixo, nem pro nosso rap também
os cara na balada dá o valor do baguio. É muito norte-americano, é
muito...Muito “Beyoncé” (referindo-se à cantora de rap afro-norte-americana
que faz o estilo “mulher objeto”) demais sabe. E é loco também, aquela coisa
que a gente já deve ter falado, que é essa coisa de transformar o black, né?, a
indústria vem, que nem fez com o “breaking dance”, aí vem a indústria black.
que a música “black music”, que já é um bagulho loco, aí vem a música negra,
black, que o muleque não sabe o que é... e tem uma dancinha de lagartixa que
até homem dança junto né?, é muito estranho... eu acho da hora, mas é...
casco o bico. Aí às vezes vô na balada assim, vou dançar com as gatinhas,
elas vêm com essa dancinha, eu cato na cintura, já dou logo um... tá ligado?
Eu não sei dançar essas dancinhas que o cara quebra o ombro, dancinha black
aí... mas sei que tipo a galera tipo dança R&B, crunk, grime (gêneros musicais
surgidos nos Estados Unidos e na Europa a partir da diáspora africana), vai
tocando, e ninguém diferencia, é tudo black. Então, tipo, não viajo nisso. Viajo
nessa parada... é que, a gente foi fazer lá uma parada na praça Luiz Gonzaga
os muleque falou “ó gostei da idéia que você falou do universal, batida
universal”, que é o canto falado universal e da batida universal, que tipo, é o
universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra mim falar
os ritmos que é muito difícil, entendeu?. Que que cê quer cantar? Pra mim vai
do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? Então pra mim é o universo
do canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem
modalidade. Tá ligado? Tem um disco do Teo Azevedo aqui ó que ele fala
isso. Aí cê vai falar “ah, tamo falando das batidas lá de fora”. Então vamos falar
das batidas que vem de fora. E das batidas regional? Então vamos falar das
batidas regional. Então se for ver, o universo da batida quebrada, que vai do
tambor ao bumbo-e-caixa. E é o universo do canto falado, que é várias formas
de, de, de versar, várias formas de cantar. É infinito, sabe? Que é o lance de
um rapper que fala “faço música” e minha música eu faço dentro desse
universo, tá ligado? Agora tipo eu não sou... meu universo é o do canto falado.
Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro rap-hip-hop no samba, tá
ligado? Tipo eu tenho uma linha, uma linha de raciocínio, não é um bagulho
183

que eu..., tipo agora é o momento é tecno com b... com batida de rap, aí os
caras vai fazer um tecno com b... (não completa) tá ligado? “faz um pancadão
rimado” (como quem pede), aí os caras fazem um pancadão rimado. Não, não
é assim, peraí... é todum... sabe...é... tem uma linha de como se fazer um
tamborzão, um voltmix, os caras do Rio (de Janeiro). Tem uma linha de como
você fazer uma embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem
que ser respeitada essa linha, não é sair...(não completa). Tá ligado?

L: e voltmix é o quê?
Ilícito: é um ritmo do Rio, que nem aqueles tamborzão, pancadão voltmix. É...
tem vários nomes. (vai procurar pelo cd e não encontra). Acho que emprestei
esse CD... Acho que tá lá em cima, o do Teo Azevedo, que eu tava
pesquisando outro dia, que ele fala de diversas paradas.

L: ele é mineiro?
Ilícito: boa pergunta... Ele é do Nordeste, não sei bem de que cidade. Mas só
que ele é um grande produtor, né? E também cordelista. Já produziu muita
gente desse..., da música nordestina, da cantoria, do repente, da embolada, e
tem bastante projetos também é, em São Paulo, assim. Tem história, assim,
tem historia, ele vive em São Paulo. Ele é bem conhecido. Há uma ligação
entre hip-hop e o rap com a embolada e o repente, né?, o cordel, todo esse
universo, porque eu faço o que o meu pai fazia antes, só que agora com a
tecnologia, mas é o mesmo canto-falado, é isso que eu tô fazendo. Se o cara
tocar um pandeiro, eu faço uma embolada em forma de rap, se tocar a
sanfona, eu canto e se o DJ do grupo soltar uma batida de bumbo-e-caixa eu
rimo, se o cara soltar um drum’n’bass eu rimo, se o cara tocar um grime eu
rimo, se vim um tambor, eu faço um som, tá ligado. Fui no Maranhão, fiz um
som ao vivo com os cara, fui em Teresina, também fiz, então... na Bahia, dá
pra fazer com o Olodum. Viajei muito já acompanhando cortejo afro e rimando,
nas batida do Quilombo Vivo6. Então é infinito, é um universo... O MC é uma
evolução do canto falado, por isso que o rapper é o erudito, como que é o
repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele cara que estudou pra
produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra, videoclip, é o rapper.
Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se aprofundou nas
técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas orações, nos
motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu sextilha,
decassílabo, é... sabe?, passou por vários universos. Eu tô falando da coisa
regional. Tipo, vai lá fora, por exemplo, eu gosto muito de ragga-core, grime
muito me agrada, sabe?, que é essa batida feita pelos ingleses, o “dub step” eu
tô ouvindo, o crunck que é a batida do Lil John que eu sempre falo, o próprio
reggaton, que cê trouxe aqui, e esse rap feito na América Latina, a própria
batida dos franceis, por exemplo, é outro tempo. Então são vários ritmos, meu,
tá ligado? que se for pegar um lundu, jongo, é, o coco, é... sei lá, o maracatu, a
própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for pegar só os toques de
capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento pequeno, angola, não sei o
que, cavalaria, é uma infinidade, entendeu?, de ritmos. Tem cara que ainda
não consegue respirar esse universo. Então é ainda um, um, é um garimpo
muito grande. É um espaço numa área muito ampla que você tem que tá

6
Grupo de rap de Salvador (BA).
184

explorando o tempo inteiro, entendeu? Sabe? E tem cara que tá muito fechado.
E o papel do MC, hoje, no mundo, não é só pro tiozinho da antiga reproduzir
coisa nova, que o hip-hop é tão loco que eles pega uma sanfona e reproduz
uma parada antiga, mas é pra abrir o leque, memo. O cara poder viajar o
mundo, fazer conexão com outros caras, de chegar em qualquer ritmo regional
e mostrar que isso tá coligado porque é canto falado, entendeu? E cê chegar
no ragga, cê chega num jungle, consegue rimar, é loco, entendeu? Então é
infinito, é nisso que eu viajo. Eu rimo em tecno, tá ligado? Em house, em trance
[estilos musicais estrangeiros], tá ligado? Tem uma parada que é, que é, que
eu faço com as minhas músicas, que eu dobro e desdobro todas elas, se a
batida é dobrada, eu desdobro o verso. Se a batida é desdobrada, eu dobro o
meu verso. Então eu me adequo pra qualquer batida, não é aquele músico que
fica pedindo o tom, “ah, que tom?”. Não, eu que dou o tom, de acordo com o
tom que me deram, tá ligado? E você adapta qualquer coisa. Fora isso, se der
algum problema que não der pra adaptar, sai fazendo um free-style, que é
improvisando, tá ligado? Embolano... vai fazendo o que a alma manda, que é
outro processo, tá ligado? O baguio é loco... eu viajo mesmo... e o foda que
isso, pro hip-hop, pro MC, é natural, entendeu? Tem um moleque de 22 anos,
ele é uma das promessas do rap brasileiro assim, muito bom na embolada e no
emproviso, a gente conversa bastante. E é um moleque, não usa nada,
moleque careta, novo, com uma puta base que trampa com um rapper de fora
de São Paulo. E eu falei pra ele [o rapper com quem o MC citado trabalha]
assim “vou levar o moleque pra São Paulo”. Aí ele falou “tu é doido, de levar o
meu moleque pra São Paulo, ele vai voltar que nem você, mano”. Eu falei “é,
pode crê, cê acha que eu vou deixar o seu moleque sequelado, mano? Já
basta eu já. Se eu tivesse uma base sua, eu não taria assim, tá ligado?”. Ele
dava risada. Porque... eu fiquei sequelado, tive que ir pro mundão. Isso que eu
falo pra ele, não precisa ir pro mundão, ficar sequelado. Aqui cê tem toda base,
é só você trabalhar e esperar a sua cota, entendeu?

L: fala mais disso, desse negócio de ficar sequelado.


Ilícito: ah, ficar sequelado porque eu já entrei em tudo que é buraco, mano. tá
ligado? Tudo que é favela, tudo que é viela, tá ligado?, os lugares mais podre
que cê possa imaginar eu já fui, mano, tanto aqui em São Paulo, tem
criminoso, lugar de arma, fuzil, morro, tá ligado?, até nas festas lá fora, na
Inglaterra, os caras só cheira anfetamina, nos scotch party, no... nas festas dos
junky... tudo que cê possa imaginar eu já passei um pouco, tá ligado? cê acha
que cê num fica sequelado?

L: o sequelado tem uso direto com o uso de química?


Ilícito: não uso de química, com experiências do mundão, tá ligado? Por
exemplo, eu nunca usei química, a química que eu experimentei é êxtase.
Nunca cheirei uma cocaína, nunca... e ácido, que eu odeio. tá ligado? Já tive
experiência com ácido e eu odeio. Eu não tenho problema com isso, sabe. Sou
a favor da regulamentação de todas as drogas e da legalização, tá ligado?, não
da liberação e... e não tenho problema com isso. Agora, gosto muito de planta
de poder, sabe?, e infelizmente a gente já não tem quase planta de poder
porque até a maconha os cara mata antes tudo, ainda deixa ela carregada com
um monte de coisa negativa (silêncio). Mas é, e... passei por todos esses
universo aí, sabe?, então cê fica sequelado um pouco, tanto mental, corporal,
185

eu acho que já, o ar da Inglaterra já fode com a pessoa (ri), só de cê pisar


naquele aeroporto. Então assim, ir em muita balada, dormir mal, ce... é,.... por
exemplo, eu num... sabe... tem dez anos que eu num namoro, assim, sabe. Só
ficar no mundão, com várias experiências, vários bagulhos que não me
agradam assim, sabe? Vários bagulhos que te... já não consigo mais, sabe...
que é esse mundo artístico, sei lá. As coisas que veio assim tão vultuosamente
também pra gente aprender, tal (silêncio).

L: e a história do mutante? Na outra entrevista você falou disso.


Ilícito: ah, tipo... porque eu até falei pra você, na hora que tava saindo, tipo, tá
diferente, sabe? Tô diferente. Essa coisa de n... mudar todo dia, assim. Toda
hora tá se alterando, sabe. Aí eu risco o meu corpo, já... sempre alguma.... O
cabelo cresceu mais um pouco, ou... sei lá. Eu acho q... sempre se alterando,
sabe. Uma idéia, uma coisa nova, um princípio novo, é sempre tá mudando
(silêncio de alguns segundos).

L: essa idéia do mutante que tem numa música do grupo. É essa mesma idéia?
É o mutante...?
Ilícito: é o mutante também, sabe?, só que tem umas pessoas que tem uma
mutação de construção e outros é uma mutação de destruição, entendeu? E...
isso é constante também. Tipo um filhinho de papai burguês não é preso
porque tem dez pra ir no lugar dele, entendeu? Então é, é... aí ele cresce
mutante. Aí ele cai na cadeia, aí ele vira aquele monstro, sempre naquele
universo, sei lá, simpatiza, e... tá ligado? Não conseguiram me transformar
nisso, que não me conseguiram me transformar nisso (sic), ó o que eu tô
v..virando. e isso, fiz isso, tô fazendo isso, até uma hora que a parada já tá por
igual, entendeu? que nem o chamado “crime organizado” tá por igual hoje.
Entendeu? São várias mutações... e o hip-hop é mutante. Por isso que não dá
pra falar só de um elemento. Então o conhecimento agrega todos os elementos
e todos que tão por vir, tá ligado. Outro dia eu trombei uns moleque dançando
esse “streat dance”, que é essas danças do Shaft (o filme), esses filmes novos
que saiu da nova dança desses pop... cê num conhece, mas nos baile black
hoje..., principalmente esses pancadão da quebrada, que agrega o funk com os
telão, com esses ãaa...é... esses novos pops desses dançarinos de hip-hop,
essas coisas pop que tem na mídia, então hoje tem vários grupos que dança
igual Beyoncé, então isso é uma cultura, tamém. Os b-boys da original dança
de rua é uma outra forma, porque era as lagartixas antigamente, mas também
não pode .... lagartixa, os cara tirava os pé de barro, mas os pé de barro era os
cara que não tinha..., que dançavam muito na..., os b-boys no chão, mas não
tinha o estilo porque não tinha o dinheiro pra comprar uma roupa, uma calça,
porque b-boy tinha, usava adidas, os baguio da hora, tá ligado. Então era os
chamado pé de barro, mas era os cara que dançavam mais. Então sempre teve
lagartixa, sempre teve vários...

L: lagartixa é o quê?
Ilícito: lagartixa é os cara que dançava os passinho, da época dos passinho,
depois que evoluiu. Antes quando chegou era balanço, né?, depois foi virando
rap... e todo mundo dançava o balanço, que era uns passinho. E isso era
lagartixa, porque já tava chegando os b-boys, com a dança de rua original,
então aqueles caras eram os lagartixas, entendeu? E sempre foi assim...
186

L: entendi. Lembrei da minha adolescência agora.

Ilícito: e sempre foi assim. E aí os moleque vem falar com você, cê vai o que,
pa, entendeu? É uma cultura, porque as vezes tô chegando num, nuns baile
desse tá tocando o seu som, tá ligado. É loco mano. cê vai critica, cê vai...
entao cê tem que saber lidar com cada universo, cada..., cada lugar, cada lugar
tem um jeito, sabe? Muito loco. E se você faz um som pra ser bairrista, então
faz, agora o meu som é pra todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto,
branco, girl... , tá ligado? E é isso que é loco.

L: cê falou dessa história de riscar o corpo. Tava se referindo às tatuagens é


isso?
Ilícito: eu sigo a tradição tailandesa mesmo. sabe?, de, dos orientais. que é
isso. Cada vitória, e cada feito importante é... é,... colocar no corpo, entendeu?
E aí... ao longo do que você vai vivendo, se mantendo vivo, cada risco do seu
corpo mostra um ciclo da sua vida e uma vitória. E são essas vitórias, que tá
tatuada no seu corpo, que vai mostrar que você é um líder. que você é um
griot, que é um cara que realmente tem importância, dentro do convívio, do
espaço que você vive, entendeu? Isso aí vai mostrar... e eu acredito muito
nessa parada de ligação, tatuado de vitórias. Cada vitória eu tatuo no meu
corpo.

L: e começou quando?
Ilícito: ah, iss’aí começou quando eu tinha tinha 24 anos, meu. Tá ligado? Eu
tava num momento de ligação espiritual muito forte e depois de lá eu não parei
mais. A primeira que eu risquei foi... na Ilha do Mel. Risquei com uns caras
“metal”. Na praia. Depois não parei mais.

L: e quantas você tem mais ou menos?


Ilícito: não sei, acho que é... uma, duas, três, quatro, cinco... é cinco.

L: e sobre a questão negra? você começa a entender mais sobre isso quando?
Ilícito: não, eu já tinha ligação, porque desde que eu comecei no hip-hop, não
tem como, você não bater com a questão negra. Desde quando eu comecei
fazer hip-hop eu entendo essa questão negra porque o hip-hop quem cai de
cabeça na raiz, sabe?, que também tem um ligação das músicas, né?, que som
que não é negro? Entendeu? Que cachaça que não é negra? Assim, né?, do
negro, cachaça do Brasil, aqui é a comida, aí o samba, tudo, tudo tem uma
ligação com... isso, sabe? E acho que também foi uma das formas que eu pude
também expressar e ser diferente dentro do hip-hop que eu vejo, sabe? De eu
ter assumido fortemente a questão da africanidade, enquanto muitos outros
ficavam vivendo muito do submundo, aí, da rua, depois dentro da africanidade
eu trouxe a questão indígena e a questão do branco também, né? Que a coisa
que Cuba assume muito facilmente essa parada do branco europeu. Ele era...
É loco, né?, tá ligado?, até imagino que é um problema pra afirmar isso.

L: como é isso, de falar que é um problema?


Ilícito: ah, tipo assim, o cara fala muito do negro e do indígena, ainda muito
pouco, mas não fala do branco, como tendo feito parte do processo, tipo o
187

branco. Como se o, o branco no processo só veio pra atrapalhar hoje. E no, em


Cuba os caras falam isso numa unanimidade, sabe? E hoje a gente, além disso
tudo, a gente tem que lidar com as diferenças, sabe? Hoje tem playboy fazendo
rap, a elite ouve rap, e dança funk, tá ligado?, toda lady deseja um quilombola
na cama, é..., os pr..., sempre teve essa ligação da elite com o pobre, sempre
teve essa coisa do cara querer fazer o que a gente faz. No final, querer ir pro
reino dos pau grande, tá ligado?, sempre foi assim, é um lance hereditário que
a gente tem que aprender a lidar com as diferenças. E o hip-hop não pode ser
contraditório nessas horas. Único movimento no mundo que... e também, além
do hip-hop, o cara que evolui espiritualmente ele não vai ficar se apegando a
certos detalhes. (silêncio, fica mexendo com a cadeira). Cê entendeu o que eu
tô falando?

L: entendi.
Ilícito: a partir do momento que não interfere a mim, que não a..., que não
atinge a mim, tá suave, mano. O convívio é natural. Só não atravessa. Só não
testa.

L: e o que que precisa pra atingir você?


Ilícito: sacar a energia do guerreiro, saber os momentos, de saber da sua
origem, da onde cê veio, de saber a hora de pisar no... terreiro, entendeu? Não
saber sacar isso, tem gente que não tem essa sensibilidade.

L: pisar no terreiro quer dizer o quê?


Ilícito: ah, vice-versa, sabe? Na hora que eu tô do lado de lá, num outro campo
minado, por exemplo, eu sei onde eu piso. E vice-versa. E... tem muito
“joselito”7 sem noção no mundão. E isso aí que rola umas intrigas. (silêncio)
Que mesmo que hoje a coisa tá globalizada, aí, do jeito que falam, os caras
cada um tem sua tribo. Independente do... de eu ser radical da minha tribo, que
eu não esteja totalmente fechado pra ser universal, entendeu? Só que a minha
riqueza tribal e riqueza cultural e tudo que eu ca..., e tudo que eu acumulei ao
longo da minha vida e d.. e das experiência, que me vai preparar pra ir pro
mundão, entendeu? Tano no mundão, não me impede ser universal de poder
viver com todas as diferenças, mas cada um no seu limite. Então se o cara
sabe da origem dele, se ele tem uma raiz e tem uma riqueza cultural, ele sabe
o limite, agora o “joselito” sem noção, no mundão, tem uns que não sabe. Aí
que rola as intriga e os conflito. (silêncio de alguns segundos) E até nós
mesmo, que m... que fica meio “joselito” sem noção.

L: como é isso?
Ilícito: só ficar, viver a Babilônia de São Paulo direto assim, não precisa um
ano, mas três meses de babilônia de São Paulo direto, já te consome e você
fica joselito sem noção sabe?

L: o que que você chama de Babilônia, São Paulo?


Ilícito: ah, a fumaça da cidade queima mais neurônio, por exemplo, do que
fumar um baseado.

7
Gíria para “otário”
188

L: hmmm, entendi.
Ilícito: basta a Babilônia, já te deixa... Por isso que precisa às vezes ir prum
fundo do salão assim, acender uma... ver umas fumaças, ouvir um som
pesado, sabe?, fazer uns hip-hop, sabe?, mexer os quadris, sabe?, essa
parada? Por isso que as vezes tem que ter uns m..., umas paradas que tire a
gente dessa babilônia. Por isso que é necessário um mar, é necessário ir pra
cachoeira, mata, ir pro fundo do salão, dançar com uma africana, massagem
tailandesa (ri). Alguma coisa que te leva, que te eleva pruma parada além do
que a babilonia te corrói, te consome, tá ligado? Que em São Paulo é a
babilônia. São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estrupando (sic)
a Amazônia tá ligado? E o ilícito é preso por causa da maconha sem amônia
(fala em voz baixa). (ri)

L: esse verso é seu?


Ilícito: é. Do Ilícito.

L: esse trabalho seu?


Ilícito: é. Musicologia não autorizada.

L: Musicologia...
Ilícito: hã?

L: Musicologia.
Ilícito: é. E é... Uso muito dialeto nesse trampo, tá ligado? Muita coisa que
muita gente não vai entender nada. É.
(ele rapeia os versos: “da sete galo não restou nem o cabrito / na neurose do
camelo, o zóio de lula ficou esquisito, obsessivo / na piolhagem rateando o
mundão / mas se trombá a cobra criada, não foge não/ seu tromba de elefante /
tamanduá bandeira / puga de gigante / vira lata de feira / salamandra de
malandro / pombo correio / burro de carga / tartaruga que arrasta / urubu que
gosta de carcaça / príncipe que virou sapo / vive de lagoa em lagoa / ave de
rapina, rei do quinto dia útil pra fazer a boa/ fita dada é bodarrada / “cocoricó,
cocoricó”, fui roubada / a sirene toca / a selva se agita / agiota, rato cinza de
laboratório que é isca / a procura do lagarto que arrasta / na lei da fauna, um
salve / a selva mata / rasta num arrasta / é lagarto que arrasta / um salve da
fauna a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata / rasta não
arrasta / é lagarto que arrasta / rasta não arrasta, é lagarto que arrasta / um
salve da fauna, a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata /
rasta não arrasta, é lagarto que arrasta”).

Ilícito: entendeu?

L: acho que sim... os animais todos também são do dialeto então? Salamandra
é o quê?
Ilícito: tudo é a linguagem de rua. Só que... é, é, é usando a fauna.

L: a salamandra tá na linguagem de rua também?


Ilícito: também.

L: e quem é a salamandra na linguagem de rua?


189

Ilícito: salamandra de malandro?

L: salamandra de malandro, né? É a expressão...


Ilícito: ah, então, tipo, não preciso nem falar né?, e aquele cara que fica no
corre e... o que o malandro quiser, ele tem cem pernas, tá ligado?, pra fazer o
corre com o malandro, né?, aquele baba-ovo memo, salamandra de malandro.
Entendeu? Salamandra não tem várias pernas?

L: então esse som, do Ilícito, como chama?


Ilícito: A Fauna. Mais “hippie” do que pra “hop”.

L: tá...
Ilícito: é porque hip-hop é essa coisa muito norte-americana, né?, então a coisa
mais ligada à mata, Jamaica, hippie, essa coisa..., mais, tá ligado?, mas o outro
universo, que é essa coisa rasta, então eu tô mais hippie do que pra hop,
entendeu? Mas na verdade é hip-hop, mano. Né?, essa é a parada, sou hip-
hop mesmo. Não tô muito pra esse universo do gangsta, 50 Cent... mais pro..
tô mais pra... pra... pro outro universo. Clapton, Sisla, Damian Marley que eu
gosto demais.

L: ele é filho do Bob Marley? E ele faz rap?


Ilícito: faz ragga. Ragga e reggae. Faz música né? Os caras tão num outro
nível. Outro patamar.

L: em relação a quem?
Ilícito: ninguém não. A nível mundial. Fazem música pro mundo, né? O lance
que... , a Jamaica pra cima lá, os caras não faiz música pro bairro dele. Música
pra vender mil CDs, tá ligado? Os cara faiz música pro mundo. É outra visão. O
mundo inteiro consome o som dos cara. Isso que é loco. Mesmo do mais pop
ao undergrund, os cara já tem essa visão. Falo muito pela experiência com o
selo francês que é parceiro nosso, os cara tem uma conexão mundial nervosa.
Nova Iorque, Brasil, com a Europa, África, muito loco. (silêncio longo). Uma
hora a gente tem que aprender, né?, com esses caras. Acho que já tá no meio
do processo do aprendizado, sabe? E ... também da evolução musical, sabe?
tá vindo um agora, ess... uma... uma nova geração bem pop memo, reprodução
norte-americana, mas que vai ajudar a impulsionar o rap, entendeu? Vai ajudar
pra caramba.

L: quem tá nessa geração?


Ilícito: ah, num sei. Num sei não. Não falo esses bagulho não porque... sempre
causa...

L: você quer o anonimato na pesquisa?


Ilícito: é, coloca... Ilícito. Tá bom.

L: usar o vulgo?
Ilícito: é, Ilícito. (silêncio) É, porque aí... num causa problema. Mas é... se todo
o problema fosse... o ilícito, tava bão, tá ligado? que pelo menos o ilícito tá
tentando ser um cara legal. (ri)
190

L: como é isso? O ilícito tentando...


Ilícito: se o problema no país fosse o ilícito, entendeu, tava bom. Tá ligado?
Pelo menos o Ilícito tá tentando ser um cara legal.

L: Legal em que sentido? De lei?


Ilícito: ah, geral. Ilícito o que que é? Não é o ilegal?

L: é.
Ilícito: então. Pelo menos ele tá tentando ser um cara legal. (pausa).Agora tem
outros ilícitos que... (ri) já perdeu as esperança...

L: então espera aí, cê tá se referindo ao ilícito você?


Ilícito: não! Tô me referindo ao ilícito geral. O ilícito é um personagem que vai
servir pra muita gente. O Brasil é ilegal. O mundo é ilegal. A legalidade e a
ilegalidade corre junto, tá ligado? Hoje, quantos, quantos num vivem
refugiados, o problema dos refugiados no mundo, imagina, os caras que tão
tentando se firmar num, nos países, por exemplo, os conhecidos na França
vivem isso, um deles é do Congo e não pode voltar pro Congo, que eles tão em
guerra civil há muito tempo, tá ligado?, os caras tão tentando regulamentar as
documentação. Até os próprios brasileiros que vai pra fora, tá ligado?, um
parceiro meu, pagou 2 mil pounds pra casar com uma... uma mina da
Alemanha pra ter dupla nacionalidade, tá ligado?, européia, pra poder tá indo e
vindo entendeu. É varias tretas. Até mesmo um árabe pra entrar hoje, ou que
tenha um nome islão, ou que tenha um nome mulçumano, pra entrar nos
Estados Unidos, tá ligado?, a fronteira lá, do México lá, muita treta mano. Aí,
é... 50% da corporação policial é ilegal. 50% dos políticos do País é ilegal. Tá
ligado? Qual a empresa no país hoje que tá totalmente legal? É... os nossos
recursos naturais tá ilegal, tá ligado. Então, tem isso, começa o Brasil é ilegal.
A dívida é eterna, até pouco tempo nós era Estados Unidos do Brasil. tá
ligado? Agora nóis já é dos Estados Unidos (ri) tá ligado? (pausa) O Paulo
Francis é ilegal.

L: queria que você falasse da história de como é ou como que se deu o seu
contato com o candomblé .
Ilícito: ah, eu acho que foi de pequeno. Quando a gente ia nas festas de São
Cosme e Damião na casa da... do meu tio... tio Nelson, ele era casado com a
tia Creuzinha e tal, e lá eles tinham um candomblé . Eu acho que foi lá. E a
gente ia tudo lá na festa de São Cosme e Damião desde criança e eles tinham
um terreiro lá. Hoje eles num tem mais o terreiro, morreu vários primos meus,
eles tiveram vários problemas, hoje eles tão acho que até crente (ensaia uma
risada). Loco isso. E... E acabou o terreiro, mas é a... a primeira referência que
eu tenho que eu lembro é isso. Desde criança, festa de São Cosme e Damião
todo ano a gente ......, ia comer bolo, doce, e acabava pegando todo o rito, né?
Da festa... por ser Cosme e Damião, ele colocava as crianças como linha de
frente no terreiro, as crianças da festa, aí eu fui ficando ali. E adorava. Acho
que é isso.

L: e era a tua tia que era a mãe-de-santo?


Ilícito: na.... é, da família da minha tia, não do meu tio, né? Que é irmão da
minha mãe. Da família deles.
191

L: e o seu padrinho, que você se referiu a ele, ele não é parente, não é seu tio?
Ilícito: não, ele é amigo do meu pai, desde que... eles mudaram juntos pra cá,
cresceu junto e meio... acho que é Joinville, Santa Catarina, né?, Santa
Catarina?

L: e aí tinham as festas de Cosme e Damião na infância, aí você começou a


fazer rap, jogar futebol, já adolescente, 13 anos e tal. Aí você não ia mais no
Cosme e Damião?
Ilícito: aí eu morava numa rua lá no Clementino que tinha um terreiro lá de
esquina. E a gente sempre tava ligado tamém, os caras faziam uns trabalhos, e
aí depois eu tive oportunidade de ir em outros terreiros. Tinha um pai de um
amigo meu que jogava uns búzios pra mim.

L: ah, você jogou búzio? E você sabe o seu orixá?


Ilícito: ah, ele falou pra mim que era Iansã e Oxóssi. Né? Eu preciso jogar de
novo pra ter melhor definição, mas eu acho que é isso. Mas eu gosto muito de
Xangô, Oxum, adoro.

L: mas você acha que você tem características que possam realmente se
identificar com esses orixás, Iansã e Oxóssi?
Ilícito: ah, acho que sim, tem essa ligação dos astros, Iansã, né?

L: como é isso, ligação dos astros?


Ilícito: ligação com... essa coisa dos, dos astros, né? Essa coisa encantado, tal.
Não quer (ou no que é) mais ligação artística, espiritual, sabe? E Oxóssi é a
mata, né? Acho que tem sim. que mais cê sabe de Iansã?

L: ela que leva os Eguns por Orum, os espíritos pro mundo dos mortos.
Ilícito: E Olorum é Deus né?

L: Olorum é Deus, mas Orum é o plano do desconhecido. E o ayê, da rede ayê


de hip-hop lá de Salvador, é aqui ,né?, é o nosso mundo. E que ela é mãe das
nove divisões do Orum, desse espaço do desconhecido, por isso que o nome
dela é Iansã, que quer dizer isso, mãe das nove divisões do Orum. O outro
nome dela é Oyá, né? Uma das esposas de Xangô (ele fala junto,
demonstrando que já sabia). Ela é a rainha das tempestades, ela é
intempestiva, né?, tem uma certa agressividade, no sentido de,... ela é
guerreira, da guerra. E tem a coisa da sexualidade bem ativa, né?, no sentido
de se relacionar afetivamente e sexualmente com as pessoas, de encarar isso.
Namorou com todos os orixás, com a Oxum também. cê sabia disso?
Ilícito: não, não sabia não. Nisso eu acho que eu tenho a ligação sim.

L: (ri) e o Oxóssi é rei, né? Assim como Xangô também.


Ilícito: e tem essa coisa da mata, eu tenho uma ligação muito forte com ela.

L: é caçador. Desbrava, é irmão de Ogum. Os dois são Odés. Os filhos de


Oxóssi podem sair do nada e construir um castelo, fazer a sua grande obra. E
com Xangô e Oxum, você se identifica? Ou gosta?
192

Ilícito: acho que é gostar. E tem essa ligação das mulheres, memo, que Xangô
exerceu um poder, tal.

L: um poder sobre as mulheres?


Ilícito: é, sobre as rainhas.

L: Ahã. É, mas Iansã tem isso também. É que deve ser curioso se o seu
primeiro orixá for uma orixá feminina, né?
Ilícito: (mostrando a tatuagem do oxé, o machado de Xangô, no antebraço). É,
e quando eu fiz isso aqui, Xangô, né?, com esses raios assim, né?, o cara veio,
e eu “queria o machado, a pedra, e tal, tal tal”. Depois eu tava com um amigo e
ele falou “nossa, cê fez a Oxum no meio do machado?”. Eu falei: como assim?
É... É... Oxum não aquela do, dos rios. Então, é... ele falou “cê fez os rios,
cara”. Eu falei “puta, que loco, é mesmo”.

L: e o piso que tem aqui nesse cômodo, você já reparou?


Ilícito: não.

L: não reparou o que tem aqui nesse piso?


Ilícito: uns raios...

L: eu vi uma pedreira quando entrei aqui.


Ilícito: uma pedreira.

L: é. Uma pedreira.
Ilícito: uma pedreira tem ali ó, embaixo disso (e aponta pra trás). Minha casa é
feita em cima de uma pedra. E ela mina água aqui, isso é uma pedreira. Deu
muito trabalho pra quebrar. A casa é feita em cima de uma pedra. que vai até o
outro quarteirão lá de cima.

L: é, tem um Xangozão aqui então.


Ilícito: tem, né?

L: e os preto-velhos que tão ali?


Ilícito: isso daí são umas imagens que eu guardo, os negócios pra mim que é
importante. As pedras de energia, ponho aí nos cantinho aí. Meu pé de canhão
ressecado. Aí sempre tem uma... acendo uma velinha, agradeceno. Não sou
muito de cultuar imagem não, mas preto velho eu gosto.

L: você já passou com algum, pra ser consultado, pra trocar idéia?
Ilícito: ah, acho que já uma vez. Acho que foi na casa de um amigo. Mas eu
precisava passar mais. tô com um contato de um menino lá... um grafiteiro lá
da Bahia, que ele é de uma... uma linhagem do candomblé do Recôncavo
Baiano bem importante lá na Bahia e eu tô loco pra ir pra lá, tô trabalhando pra
ir pra lá, vou la ficar uns dias com ele, participar de alguns rituais... também vai
ter um essa semana, que, de... Que dia é hoje? Terça?

L: terça, 7.
Ilícito: hoje mesmo tem um ritual do... do santo daime. Precisava ligar lá pra
mim saber se vai ter... à noite.
193

L: você costuma ir? Vai de vez em quando?


Ilícito: eu vou lá fechar um ciclo do daime. Queria ir antes desse ano, pras
coisa fluírem mais (abaixa o tom da voz). (silêncio)

L: e você vê uma identificação no daime e no candomblé , e nas religiões de


matriz africana?
Ilícito: o daime, pelo que eu tô entendendo ultimamente, né?, é... por isso que
tem esse lance da nova era, né?, a ligação do daime com a nova era, esse
povo da nova era, de... usar artifício de planta de poder pra abrir a consciência,
e o daime como que é uma parada que vem dos indígenas, passou pro negrão,
que é o Raimundo Irineu, depois do negrão foi pruns brancos e hoje tá na mão
da elite, não generalizando, porque varias tribos indígenas tem seu ritual do
daime, que às vezes usam outro nomes, tal, e que... dentro de varias matrizes
do daime hoje é..., se trabalha toda a divindade, todas as entidades passam
por lá. Tem... vários ritos, por exemplo, essa aqui é mais ligada com o
candomblé, entendeu? mas eu já vi outras com ligação com a umbanda, outros
que passam o Anjo Gabriel, passam várias entidades, então o daime é uma, é
uma, um ritual de limpeza tanto corporal através da bebida enquanto espiritual
e essa parada do..., das entidades ,né? Essa coisa religiosa mesmo. Então é
uma limpeza geral, a bebida ela limpa o corpo e altera a consciência pra limpar
o espírito. Então dentro do daime passa todos esses universos. Depende de
como eles trabalham cada linhagem, cada momento, de como trabalhar um tipo
de energia. E de como eles vivem também, uma coisa mais de cada região tá
aberta mais uma ligação que, de forças que chegam, entendeu? cê tem um
grande contingente de povo negro que é ligado no candomblé , e pensa a
ancestralidade, porque não trabalhar dentro desse rito? E assim
sucessivamente com a questão indígena e outras, entendeu? Tem outra mais
católica, passam... né? Não é tão fechado assim.

L: e essa sua ligação com o daime começou quando?


Ilícito: ah, eu tinha contato com um amigo meu, o adriano, bruxo, eu fiz uma
música pra ele, eu terminei onte. Chama Bruxo. E... aí é um bruxo, sabe... meio
bruxo, assim. Ele gostava dessas parada, já abriu muita mente nesse sentido.
Ele já faleceu já. E era paraplégico, e faleceu no final do ano de 2004 assim,
pra 2005; eu aprendi a tomar planta de poder com ele. Quando ele foi
enternado ele já tava com meio litro a mais de ayuasca na veia. Ele tava
tentando se internar e não conseguia e pra sarar a dor ele ia tomando umas
plantinha de poder. Foi difícil pra ele. Agora ele deve estar descansando.

L: e você vai gravar a música?


Ilícito: ah, não sei. Não sei... tem mais cara de Ilícito...é que... é... tem cara...
tem cara pra cada projeto, assim, né? O grupo tem uma cara... cada projeto
tem uma cara. É todo um processo. A música, eu fico olhando pra ela. Mudo
mais um pouco, aí vai entrando a melodia, é todo um processo. Olhando, fico
olhando pra cara dela. Ela diz alguma coisa pra mim, às vezes eu respondo de
novo, aí eu mudo um “o”, uma vírgula....um “a”, um centésimo de milésimo de
uma métrica que não ficou boa, até chegar num... num... (não completa e
“rapeia” versos de sua autoria). Na maioria das vezes, [as rimas dos rappers]
acho que... caminha pro, pro banal, entendeu? Sabe? muitos caras
194

reproduzem a miséria. Muitos, muitos. A miséria não tem que ser reproduzida,
ela tem que ser banida. Os cara depende da miséria pra fazer as parada.
(silêncio longo)

L: quer parar?
Ilícito: eu? “Quer parar, se quer” (cantando). Cê que sabe?, mano, eu falo pra
caramba. (silêncio). (Me oferece algo pra comer).

Entrevista III
Sexta-feira, 22 de junho de 2007.
Ilícito completou 29 anos.

L: eu queria perguntar sobre algumas coisas colocadas nas entrevistas


anteriores, principalmente da questão espiritual...

I: eu me tornei um cara complicado e... seqüelado assim. Hoje tamém com um


momento espiritual importante, me cuidando também pra não ficar monstro no
parque dos monstros, entendeu? Porque o parque dos monstros tava me
deixando muito monstro. Monstro além da monstruosidade. E aí agora tem que
trabalhar esse lado “paz”. Tá sendo um processo de transição, né?, eu quero
fazer música e música como arte, rap por revolução, e... e terminar no baião.
Passar pelo reggae... Fazer o caminho inverso. Depois que, que tiver, sei lá, na
Norte América, tô na Jamaica, terminar lááá no Nordeste... Essa é a idéia e aí
eu acho que pra mim tá faltando mais mesmo é estudar, aula de canto, porque
música, letra, obra, tem. Por isso que todos esses nomes, todos os projetos.
E... E assim, é... tentar construir uma coisa de cada vez assim, pra não
construir com um e derrubar com a outra. Mas é taí pronto, né?, conforme
Deus, conforme Jah manda eu vou organizando a parada, assim, e aí quando
vim. É, por exemplo, o estúdio aqui que eu tô tentando fazer aí eu vô, vô pondo
os bumbo-e-caixa, os samplers, não sei, eu chamo o meu parceiro que toca, aí
ele chama aquele músico... hoje tá legal assim porque não precisa esse lance
de grana assim, a história que cê construiu com a sua mensagem e com os
moleques, na prática, entendeu?, por exemplo, os moleques estão lá
trabalhando na coletânea... então eu acho que é isso, Jah colocou uma parada,
que eu acho que... vamo fazer coletânea um, dois e três e só nessa primeira
vai ter uns 30 grupo, tá ligado?, dividido nas músicas, lógico. Tipo 3 grupos
numa música. Pra, pra... Pra quebrar um pouco desse mau-agouro de... cê
pode ter um PCzinho veio, o cara vem e cresce os zóio, entendeu? Enquanto
você não souber dividir, tá ligado?, e essa coisa de eu não querer aparecer
mais assim é por causa disso assim, quando eu comecei a fazer o rap eu era
moleque eloqüente e aguçado assim, tá ligado?, aí metia a cara pálida em
tudo, aí foi muita ....... nas paradas. Depois comecei a ter muitos problema,
entendeu?, quando eu achava que era solução começou a ter inveja, problema,
a gente não concordar com “n” coisas que vai desda forma que cê pensa até a
sua cor da pele, por exemplo, entendeu?, então aí eu ia muito em palestra,
debate, fiz muito isso. E aí comecei a tomar umas cabeçada e falei “mano, não
precisa disso”. Muita teoria, entendeu?, vou pra prática. Aí foi [retomado] o
projeto que a gente já tinha começado em 2001, fazendo essa parada e eu falei
195

“vou agarrar nas minhas oficina, e vou plantar os meu moleque, entendeu, e
abrir a mente deles e já é, é isso que eu tô fazendo na praça Luiz Gonzaga lá,
que é isso assim, só tem o espaço lá, não tem grana, não tem nada. Então a
gente junta os moleque, e tá fazendo. E se não fizer isso vai vim uma geração
funk, entendeu? Que eu gosto pra caramba também, sou um eterno defensor
do funk carioca, por exemplo, e lá é oficina de MC, tem cara que canta funk,
tem cara que faz embolada, e eu mostro pros moleque que é uma árvore onde
a gente tem que explorar esses universo tudo e fazer música. Agora, cada um
no seu skate, né? Cê tá fazendo rap, cê tem que saber dosar o bumbo-e-caixa,
entendeu? Tamém se você for lá pro Nordeste, cê já foi pro Recife, chega lá
falando “hip-hop”, “MC” (fazendo pronúncia estadunidense), cê tá numa terra
dos embolador, do coco, entendeu, então se tem que... é isso que a gente
viaja, entendeu?, de saber que a nossa riqueza cultural ela veio do mundo, a
gente veio do mundo, todos os ritmos que vieram de fora a gente conhece até
mais que os ritmos regionais.

L: fala pra mim do bumbo-e-caixa.


I: então, bumbo-e-caixa. Bumbo-e-caixa pra mim é isso assim, é isso, o lance
de você poder pegar qualquer, só o rap consegue fazer isso e o hip-hop, pegar
qualquer ritmo do mundo e resgatar e dar uma nova roupagem. E essa nova
roupagem geralmente é o bumbo-e-caixa, você pega uma música do Waldick
Soriano, da década de 60 lá, e pega um pedaço do sampler dele, a voz dele no
refrão e refaz a música, entendeu?, só pegando um pedaço de um trecho da
harmonia da música, o sampler, e o refrão do cara, e dali põe bumbo-e-caixa e
dali vai evoluindo a música, e usa até o refrão do cara e resgata ele, entendeu?

L: (após interrupção da conversa). você estava falando do bumbo-e-caixa...


I: então é isso, com o rap você consegue resgatar músicas dos anos 60, 70, e
dar uma nova roupagem. Tanto usando a voz do cara, se você quiser... dá pra
você pegar uma música do Riachão e subir no palco com nóis, ele vai lá faiz a
graça dele e nós manda vê, então o rap consegue fazer isso, que é uma... essa
parada atemporal, assim, só vc... ó meu pai, eu vou ser um dia sanfoneiro véio
que nem ele, por exemplo. Se eu não rimar com embolador, e ele não souber
que isso aí também faz parte da linhagem do canto falado, então é isso que o
pessoal acha meio loco assim, eu falo “eu faço canto falado, com bumbo-e-
caixa universal, batida quebrada.

L: da onde vem esse bumbo-e-caixa?


I: vem do James Brown, é o “The one” do James Brown. “Tempo um”, né?
Porque, por exemplo, o grupo da África que eu to ouvindo, as músicas deles é
bem interessante, porque eles, eles vão da base da... do tambor, africano, que
não é 4 por 4 simplesmente, né?, o tempo universal, que é essa criação do
“The one”, é, o James Brown universalizou o BPM e o compasso, o compasso
universal, que é o tempo forte, o “um”, né?, por isso que ele batia o pé aqui (faz
o gesto e conta “um, dois, três, quatro”, marcando mais forte o tempo “um”) .
Então o funk foi a revolução da música mundial, o jazz, o blues são músicas,
harmonias, né?, que exigem do ciclo musical inteiro, não fica num looping,
agora o funk não é “ta-tá-tãtãtãtã-tá” (e continua). Aí entra o ximbau, mas é
esse ciclo musical de “um dois três quatro”. Então o que é que é o ciclo musical
é quatro vezes “um dois três quatro”. Entendeu? E o James Brown deu esse
196

tempo forte no “um”, que é o “The one”, que ele chama de “The one”. Falando
do “The one” e do lance dos BPM, que... que os tambores africanos eles
variam muito, eles não ficam “um dois três quatro”, tambor afric..., o samba é
“um dois, um dois, um dois” então os BPM´s, assim como na música jazz, no
tambor africano, ele varia muito, né?, então, é... às vezes a gente tá no “um
dois três quatro, um dois três quatro, um dois, um dois três, um”, sabe?, a
variação de BPM, de compasso, que ele não fica no compasso 4 por 4, o
tambor africano varia muito. Então cê tá ouvindo o som de bumbo-e-caixa do
Faso e quebra umas hora e cê fala “pô, mas que tempo é esse?” é porque eles
colocam, pegam o tambor africano, do..., que é tocado o coro na mão, e põe o
bumbo-e-caixa, no compasso que é a música deles, que é isso que é trabalhar
o cérebro muito mais entendeu, que o rap, a música rap dentro do compasso
“um dois três quatro” ...... , entendeu. Tem uns caras do rap que usam muito
variações de jazz eu lembro do Buckshot le Funk, que é como se fosse é... é....
um decassílabo do rep...do repente, da embolada. Do repente. E ele, aquela
música “Music, evolution and change”, cê já ouviu falar?

L: não.
I: e “Music Evolution” o nome da música. Buckshot le funk. E a música é “Music
Evolution Change” (cantarola). Então em vez de ser... ele repete no refrão oito
quatro por quatro, mas é cinco. Cinco que somando mais cinco vira dez. então
é como se fosse dois compassos a mais, mas dentro, como o compasso da
embolada que é uma coisa que eu não sei explicar mais sei cantar, né?, que dá
trabalho, tipo “de repente veio visão, energia iluminante, pra estremecer o
chão, iludir a multidão, combater o feudal, o terror do capital, combater a
doença, com amor e consciência, na luta contra o mal”. Aí cê vê que é cinco e
vira dez. Se fosse só cinco seria quebrado, mas como é soma os dois, é par, aí
completa. Então são variações que tem tanto na métrica, na oração que é o
tema, principalmente na métrica, e no compasso, que variam, né? Então a
música ela é infinita, né? Por isso o lance de você aprender a música... nós do
rap tá no quatro por quatro ainda, a gente precisa escutar mais blues, jazz
principalmente, tambor africano, pra começar a entender, sair desse “um dois
um dois” e “um dois três quatro” também trabalhar outras formas de, de
compasso né?

L: que é o que você pratica qdo você faz rap com outras bases, com música
eletrônica.
I: justamente. Por exemplo, na música eletrônica eu descobri um..., uma forma
de eu cantar minhas letras de rap... o que q muda pro... pro .... perguntei pro
moleque onde nasceu o funk, ele falou que no Rio de Janeiro. Aí eu falei o que
diferenciava o rap do funk, né?, aí os moleque falou, “ah, a letra”. Aí falaram
tanta coisa. Mas a única coisa que diferencia o funk carioca do rap é o BPM,
entendeu? O Funk é acima de 120 BPM, batidas por minuto, e o rap ele pode
ser rápido e a batida muda um pouco mas se você for ver, tem rap que também
fala merda pra caramba, entendeu? Tem letra de rap “bunda”, já tem dança da
garrafa no rap, entendeu? Já tem essa cultura blin blin [voltada para o dinheiro
e a ostentação]. É a música. O rap o que diferencia é isso, é o BPM, pq o resto
é igual. O funk tem letras fudidas no rap também, como tem letra que fala só de
menininhas, como que a gente vê por aí...Que fala só... de uma coisa bem
machista, sexista, contra os boys, contra as minas. Tem uns boy que é
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guetofóbico e canta rap, então é um bagulho..., cada um faz hoje a parada que
quiser, entendeu?, o problema é você ter legitimidade, que é... quem dá isso é
o público, entendeu?, e ter história e bastante conteúdo pra respeitar a origem
de cada coisa, entendeu?, tô falando de música eletrônica, hoje os elitizados, a
elite, por exemplo, os caras pegaram tiraram do gueto o jungle, o drum´n´bass,
e levaram pras festas fechadas deles e viraram grana, hoje tem um... cê vê lá
no prêmio Multishow tem até a categoria Música Eletrônica, porque os caras
queriam uma nova música, entendeu?, mundial, mas a origem é do gueto. Aí
cê chega na periferia, os caras têm um preconceito porque acha que a música
é dos boys, que é do playboy, da elite, e é uma música que veio da nossa
origem, os caras pegaram, viram que tinha futuro, aplicaram grana e fizeram
pra eles, entendeu? E é o seguinte, faço música eletrônica porque eu sou
chato, tá ligado? Paro, DJ de música eletrônica brasileiro pra dizer “enquanto
cê não tiver dez minutos pra me ouvir, cara, eu vou ficar aqui veio, no Brasil
tem MC, tá ligado?, não é só gringo nessa porra, tá ligado?, tem um disco de
música eletrônica, e tem MC que rima pra caralho. Conheço os caras, os MC´s
com quem você faz coisa, tá ligado?, e é o seguinte, véio, tem que reconhecer
os caras daqui. Já ia ver o Julião em 92 lá na Zona Leste, a gente cresceu com
o breakbeat, porque os b.boys não conseguiu acompanhar, é a mesma batida
dos b.boys, a gente não conseguiu acompanhar mas a gente não tá de chapéu
não, véio. Então... é... o que eu acho é que o lance é cada vez mais que cê não
tem conteúdo e se limita a modinha do mundão, você fecha as porteira pras
coisas que tá aí, entendeu?, por exemplo, ce... eu tô ouvindo grime e crunck, a
galera não sabe o que é isso, entendeu? Então assim existem vários beats
sendo criados e eu criei o crônico, tá ligado?, tenho um disco que chama “Ilícito
Crônico”, é, nessa idéia dos beats que eu quero chegar dentro dessa forma da
música eletrônica, que aí eu ia pra festa de música eletrônica, a gente sempre
vai, eu faço MC [pra quem faz música eletrônica], o beat é dobrado, e como eu
canto rap no grupo com os beats desdobrados aí eu ficava me matando pra
cantar minhas letras na batida acelerada, entendeu? Aí tipo, letra que não
casava, mas aí eu saquei um jeito. Se eu canto numa batida desdobrada, né?,
é... Se eu canto numa batida desdobrada, geralmente o meu verso é dobrado,
o meu canto é dobrado, entendeu? Tipo... é, se é um batidão de funk, né (ele
faz a batida com a boca), como é uma levada rápida, fica muito foda, aí eu
desdobro o verso, coloco mais melodia na levada, tipo (canta) “é guerra
declarada”, entendeu?, no beat desdobrado, que é rápido, aí eu desdobro o
verso. Aí quando a batida é lenta, eu dobro o verso, entendeu? Aí, por
exemplo, entra um beat (faz com a boca) “os palhaços dos bandeirantes
saíram a caça dos .... marginais desencadeando vários processos criminais”. Aí
eu comecei a fazer isso com as letras, por exemplo, a letra do Dexter,
“acharam que eu estava derrotado...”, eu canto ela “acharam... que... eu...
estava... derrotado” (com espaço entre as palavras) ou “acharam que eu estava
derrotado” (comendo o espaço entre as palavras), depende da situação, eu
dobro e desdobro o verso, entende?, dependendo do beat, com toda letra dá
pra fazer isso. Se o beat é acelerado cê desdobra o verso, entendeu, e aí se a
batida é lenta cê dobra o verso. Isso é automático. Aí eu fiz com todas as letras
minhas pra tudo quanto é base. Então cê chega num barato de freestyle,
música eletrônica, ou fazer uma jam, o que seja, não importa o beat, é o jeito
que você interpreta. Essa forma, música de rapper que eu acho bem loco que
músico tem que parar e ensaiar e tirar o tom, o rap não. “Toca aí mano, que a
198

gente vê o que faz”. Então isso é que é legal, então não tem... Essa coisa de o
rapper poder adaptar a letra pra qualquer coisa, entendeu?, eu posso cantar a
letra num samba rápido, num samba devagar... Ou sei lá, se pega uma métrica
de ragga com baião, sei lá, depende da situação, entendeu? Isso é que é a
forma de não só pensar em rap ou ser hip-hop ou ser só forró, é pensar na
música no todo e usar o universo do canto falado. Eu vou ficar falando isso um
bom tempo, que é o universo do canto falado. O cara que ouve, por exemplo o
cara que faz sucesso com o grime, que é a batida do rap feita em Londres, tá
ligado?, os caras pegam o drum´n´bass, que foram os jamaicanos que foram
morar em Brixton, entendeu, e é batida eletrônica quebrada mas é o rap deles,
entendeu?, daquele jeito londrino, entendeu?, a mesma coisa é o crunk, que é
a mesma coisa da concepção que é o Lil John, que é o rap nosso, mas com
músico eletrônico, entendeu?, anfetaminado e muito eletrônico, então é aquela
coisa intensa, sabe? Então é... pra quem não entende o universo da batida
quebrada e das formas de canto, que eu falo, tudo é “black” (ri). Tudo é black,
né? (rindo) Agora, saber diferenciar cada ritmo no black é que é... E é isso que
é minha viagem, estudar os ritmos, entendeu?, se o James Brown criou o funk
e o Luiz Gonzaga criou o baião, entendeu?, eu posso criar um crônico (ri). O
Crônico por exemplo é isso, né?, o refrão é dobrado, o beat do refrão é
dobrado e o canto é desdobrado e o verso que rima é na batida desdobrada
com o verso dobrado. Esse é Crônico. E é... é artefato bélicos e barulho de
caos, entendeu? Então o ximbau é uma metralhadora, triiiiiiiiiii, tá ligado?, o
bumbo é uma explosão. É Crônico, entendeu? Aí eu chamo de Crônico. Aí eu
fico dobrando e desdobrando, a música tem a batida dobrada. Depois eu te
mostro ali, já tenho uma música gravada. Essa é a idéia, de criar alguma coisa,
entendeu? Que é isso que eu acho bem loco, tem ragga-core que eu gosto,
tem o uglyfunk, que é o ritmo eletrônico feito em Brixton, tem muito coisa
assim... Tem... é dubstep, uma parada... é, um dub eletrônico, mas com batida
é, breakbeat... Tem muita variação de beat assim. Toda hora aparece uma
parada assim. E é isso que é gostoso, tá ligado? Então acho que, os moleque,
tão muito limitado, nesse sentido de ficar só num mundo, só... Então... minha
viagem é essa assim de... e trabalhar a poesia também, né? A poesia mesmo...
que não adianta ce... a poesia também pro baguio ficar... o rap ainda tá pobre
de poesia. cê vai depois pesquisar esse negócio que eu falei cê vai curtir
bastante depois. Só esse lance dos beats, rapidinho, na net se acha. No
youtube. Coloca lá “grime” já aparece uns caras. Eu tava vendo uma dança
jamaicana chamada “hot wuk”. As minas dançam individual, era pra ser “hot
fuck”. Mas é “hot wuk”. É... os dancehall jamaicano. E as minas fica “ai ai” (e
faz o gesto da dança). Já viu essa dança? Depois eu te mostro. Então tem
várias coisas pipocando que a gente tem que tá ligeiro assim. Lógico que pra....
pra mim por exemplo tive a oportunidade de ir pra lá, aí tá de perto dos bagulho
e pã, então eu não perdi, não fiquei panguando, entendeu?

L: eu quero te perguntar sobre uma outra questão que tem a ver com as letras.
Pelo que eu prestei atenção, nas suas letras tem uma referência maior a um
orixá que é Xangô. Mas também aparece referência a Ogum e também
aparece referência a Zambi. Queria que você falasse um pouco disso.

I: uma que acho que é o seguinte assim... os orixás na minha vida, acho que
vem de pequeno mesmo. Nas festas de São Cosme e Damião, eu não perdia
199

uma. Porque tinha um terreiro aqui e hoje eles são da igreja dessas aí dos
crente aí. É loco, né?, como as coisas acontecem. Aqui tinha dois times, um
deles tinha o terreiro, e os caras morreu tudo né?, que é uma luta difícil aqui, e
morreu muitos caras. E a festa de São Cosme e Damião era todo ano, né?,
então essa foi a que eu acho que eu mais lembro assim, a referência de tá
participando bastante das festas que tinham lá. E aí depois quando eu conheci
a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95, a gente fundou o grupo,
né?, eu e o Zulu, que era um cara que era DJ da Chic Show, né?, ele tocou em
vários..., e aí ele que mostrou esse caminho. E aí que chego em Xangô, e
chego em Ogum e Oxóssi. E... Aí vem falando, em Zambi, que é pra se
entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu tive que
entender os Orixás, porque era regido pelos Orixás, entendeu? Então é.... é... a
primeira rainha era feiticeira da mata, provavelmente Oxóssi, que é Acotirene,
entendeu? Então assim ela era uma feiticeira da mata, que é uma história que
tem, né?, e aí Xangô declarou Gangazumba, que foi o segundo rei, entendeu?,
e aí tinha todo um cerimonial de troca de reis do Conselho Negro Ultramarino lá
em Palmares e dentro dessa transição quem avisava era os Orixás. Então
Xangô declarou Gangazumba e aí depois que Zumbi nasceu na terra dos
Palmares, toda aquela história do padre, que ele virou coroinha e depois fugiu
e voltou pra terra dos Palmares, por isso que é Zumbi dos Palmares, que ele
nasceu na terra dos Palmares, ele voltou pra tribo com aquela fome de buscar
as suas origens, de, de resgatar e criar seu quilombo e ser um líder,
entendeu?, então Zumbi já veio com esse poder de ter nascido na terra dos
Palmares, ter aprendido a falar em latim e tal, aprender a falar bem o
português, ler a bíblia, conhecer várias guerras que teve, então Zumbi tinha
essa consciência estratégica de conhecimento do mundo, porque ele leu
muitos livros com o padre e aí quando ele chegou lá, pra ser um guerreiro dono
de um quilombo cê tem que fazer um quilombo, entendeu, então Zumbi fez o
quilombo de Zumbi, entendeu?, ele fez o quilombo dele e aos poucos ele foi se
tornando um grande líder, foi quando ele bateu de frente com ganga zumba
quando foi dividir a terra do Cucaú, que era uma terra improdutiva que o
governo queria a terra dos Palmares, queria tirar os caras de lá, né?, e
Gangazumba já tava negociando com os portugueses, então Gangazumba foi
junto com Gangazona que era irmão dele, que era chefe da guarda na época
de Gangazumba, foram negociar e fizeram um acordo com os portugueses que
ele tinha que trazer o povo palmarino pra, pro Vale do Cucaú. Só que o Vale do
Cucaú era próximo da capitania de Pernambuco e também era uma terra
improdutiva, entendeu? E mesmo que eles quisessem ter paz lá sempre ia ter
guardas ao redor e eles não iam conseguir fazer o esquema de defesa e não ia
ter paz mesmo e teve um outro problema também que os pessoais... que... os
que viviam nas ruas do centro das capitanias foi tudo pra Palmares, entendeu?,
os mendigo, os que eram livres e conseguiam comprar sua..., e viviam na rua,
né?, todos foram pra lá, os índios... fugia um pouco do controle, mas nessa
treta metade ficou com Zumbi em Palmares, que ele, com o padrinho dele que
era Gangazumba, e a outra metade foi pro Vale do Cucaú. Aí quando eles
descobriram que aquilo era uma grande jogada do governo de Portugal, né?,
que era... os caras que mandavam na época, e aí os caras envenenaram
Gangazumba e o povo voltou correndo de volta pra Palmares, que tinha
abraçado a idéia de Gangazumba. E essa é a história. E aí foi a época que
200

Zumbi se fortificou. Quando era Gangazumba, aí foi a transição de passar de


um rei pra outro. Aí Ogum declarou Zumbi dos Palmares. Entendeu?

L: e essa história você leu?


I: ah, isso é resquício, eu vivo de resquícios, né? É resquícios, né? Entender a
história são resquícios. Aí eu fico... Tem uma vida pra ir degustando. Aí eu
tenho uns negócio aqui que é pra todo mundo, né?, quem quiser um livro, vem
e pega, anota num livrinho. Mas aí eu tenho muita coisa. Aí conforme as coisas
vão aparecendo, eu vou indo degustando, entendeu? Ainda com a “infernet”. Aí
são resquícios. Saber por exemplo a história de Palmares certinho, a gente não
tem documentos. Então são resquícios, você vai juntando, juntando, juntando
as versões e dentro dessa parada que eu vou criando as minhas, entendeu?
E... É... que é essa luta atemporal e essa coisa de se você perceber nas
músicas do grupo, é atemporal. Tô em Palmares. Hoje. Entendeu? Sabe? É, eu
escrevo nos dois mundo, entendeu?, como se eu tivesse em Palmares há 308
anos atrás, 310...É 2007... 307 anos da morte de Zumbi. 310. 310 anos depois,
né? Zumbi + 10 já tem 12, eu fui pra Brasília... Tem 312 anos. É como se fosse
na época, eu escrevo nos dois mundo, entendeu? É atemporal, porque a
situação no Brasil não muda, entendeu?, o que muda é a tecnologia das
coisas. Então, por exemplo, tem uma hora em uma música que eu falo assim....
é .... é... “favela a selva de pedra, o forte o quilombo... invencível... maloca das
florestas cidade mocambo, periferia é o amor, quebrada imortal, construção
imbatível, invencível, negrígena Jerusalém, quilombo invencível”. Que é isso,
“filhos da terra, molduras de barro a aço, hino da favela, cultura dos bairros,
canto falado, hip-hop, fortificado, alto falante no alto da torre”, Palmares, né?,
porque aço fortificado é a Serra da Barriga, né?, então é “presídios não, prezo
por educação”. É a mesma coisa de hoje, entendeu? “A multidão dispara,
abatedores...”. Os abatedores, na época que abriam os caminhos na mata,
Palmares tinha um caminho que ninguém descobria, entendeu?, eles abriam o
caminho e vinham batendo pra fechar o caminho e não deixar trilha, entendeu?
Então eram só os caras que realmente conheciam a mata que sabiam o
caminho do Palmares porque nem os portugueses sabiam, entendeu? Quem
construiu depois o último muro de Palmares e a torre, eles tinham, do alto da
Serra da Barriga eles tinham uma visão, sei lá, de 10 km, não sei bem, tinham
uma visão..., depois que veio esse cara, o “batedouro”, ele construiu que dava
pra você ver sei lá 10 vezes mais, uma torre de visão de Palmares, entendeu?
E esse livro é louco, porque esse mouro que já tem registro na história de
Palmares, entendeu?, que tinha um mouro que tinha ajudado a Zumbi na
fortificação de Palmares, porque qual que era a tática de Zumbi se preparar pra
guerra? Não tinha como ele comprar arma, negro não comprava arma, então
ele tinha que se preparar ao máximo, não tinha como chegar lá nos
portugueses pra recarregar os canhão, então tudo pra ele era informação,
colocar mais mulher nos quilombos, que tinham poucas, e arma, entendeu? E
com a base de subsistência da alimentação que Palmares tinha, eles
conseguiam viver bem, entendeu? E aí depois invadindo os casarão era pra
saquear arma e catar a primeira mulher, entendeu? Então tinha cara que trazia
a senhora feudal, entendeu? Trazia a filha... E era isso que ia aguçando a
guerra contra Palmares porque os... era muitos senhores ajudando o rei de
Portugal a fazer a guerra contra Palmares, porque os caras cada um tinha o
seu motivo, um era pra buscar a mulher, e muitos caras iam lá pra negociar e
201

trazer a mulher de volta e depois de um tempo a mulher não queria mais ir pro
casarão, queria ficar em Palmares. E aí também começou os lances da
miscigenação dentro de Palmares, né?, a maioria, lógico, 80% negros, uns
10% de indígena, e essa minoria de brancos que foram pra lá. E começou
primeiro com as putas, tem até na história de Palmares a Ana de Ferro, que é
feita pela, pela aquela mulher lá,... a Vera Fisher, tal, no filme de Cacá Diegues
tal, então começou com isso, com as mulheres indo pra lá e depois... Tem até
uma parte no filme que eram os brancos que é que nem eu assim, que não
aceita a lei, não pagava imposto, e nem pagava dízimo pra igreja católica,
então essas pessoas, que não seguiam as regras da sociedade eram os
marginais de hoje, né?, e não importa se é branco, se é índio ou é preto, tinha
que servir ao rei e se dobrar ao catolicismo, porque quem não pagava os
dízimos, e o rei de Portugal, os caras tirava tudo, não ficava no centro. Então
assim começou a periferia, de muitos caras... é lógico que o que eles queriam
eram os quilombos, que era a única forma de se organizar, do lado das tribos
indígenas, aqui é tudo terra indígena. Eu lembro que os caras tomavam banho
nesse rio (apontando pra uma direção próxima à casa dele). Aqui é terra
indígena. E... E os quilombolas conviviam com os indígenas. Depois, Palmares,
quando começou a guerra, vieram lá do Cariri, do, do, acho que Rio Grande do
Norte, os canindés ajudar Palmares na renovação contra os reis de Portugal,
os Canindés que ajudou Palmares, por exemplo, que eu falo na letra. Então na
mata tinha essa segregação de guerreiro e os brancos que não pagavam esses
impostos eram excluídos e à margem da sociedade então era comum cê
passar no meio de um... uma mata e ver uma casinha lá sozinha, um cara
branco com a sua indígena, um monte de filho, entendeu?, e esses caras, todo
vez que os policiais, capitão do mato ou um rei de Portugal descobria, esse
cara que não pagava os impostos, ia lá, queimava a casa, zoava ele, e aí ele
tinha que ir mais longe, entendeu? Aí um dia ele cansou de correr, cansou de
correr, ele foi “sabe o que eu vou fazer? Vou pedir ajuda a Zumbi”, tá ligado?
“Chega, não vou ficar fugindo a vida inteira”. É o caso de um branco, que
vivia... nordestino, sei lá. Vivia fugindo porque não pagava as leis, não pagava
imposto. Porque Brasil é ilegal. 50% da frota que anda na rua é ilegal. O
brasileiro é ilegal. O Brasil é contraditório. Tem uma música em que eu falo que
o Brasil é contraditório. O Brasil foi feito na ilegalidade. Os piores europeus eles
mandaram pra cá, os piores portugueses, os bandidos, as puta, a... tudo que
tinha em Portugal eles mandaram pra cá, no “Povo Brasileiro”, do Darcy
Ribeiro, ele fala que a partir de 1200 que eles fizeram a primeira faculdade da
língua portuguesa, eles adotaram o catolicismo, que adotaram a igreja católica,
a... O capitalismo e as técnica..., como em Portugal era forte a navegação,
entendeu?, aí eles adotaram isso como estratégia do País de 1200 pra cá, eles
pegaram ditos 40% puros de portuguêis, tá ligado?, e juntaram aos outros 60%
do País que eram ditos, que tinha muita é..., presença africana, principalmente
mulçumana, mais pra esse lado do povo mouro mesmo, tinha muita presença...
por exemplo, Portugal herdou a aritmética, a matemática, é... muita coisa o... a
influência moura, que tinha de fora, do norte da África, muito mulçumano que
tinha. Então, os caras que vieram de outros países os cara limpou, mandou
embora até os descendentes, limpou, e ficou esses dito 40% puro de
português, que adotaram o catolicismo e a igreja católica, as técnicas de
navegação e vieram navegando.
202

L: isso lá em Portugal e ...


I: lá em Portugal. E é isso. E é muito loco, porque, entende?, é... é isso, é muito
loco, deixou a gente confuso, né? Deixou a gente confuso... e Palmares é..., foi
um quilombo de resistência por tudo isso, Zumbi cuidou muito deles. E ele
realmente armou essa guerra, o mouro de Palmares era foda, esse mouro teve
uma contribuição muito forte. Por exemplo, esse mouro ele que curou a
epidemia que era um mal-de-bicho, que era o preconceito, que umas frases
que tem até os dias de hoje, na época era varíola, entendeu? Porque até 1900
e pouco a capitania de Pernambuco era sujo, entendeu?, não tinha
saneamento básico. Então os caras cagava no meio, junto dos animais, não
tinha saneamento básico. Então quando...., no livro, o capitão mouro fala, né?,
chegou eéééé..., a cidade tava com essa epidemia de varíola, né? Só pra você
ter uma idéia que nessa época que surgiu o merdeiro, cê já ouviu falar do
merdeiro?

L: eu consigo pensar o que é, mas não tenho certeza.


I: então, o que que cê pensa que é?
L: é o que recolhe merda.
I: é, o merdeiro é, tinha um padre que, tinha um padre que tava com varíola,
né?, varíola dá diarréia, desinteria, no corpo, se colocar um cara meio-dia
embaixo do sol ele morre na hora e depois de dez minutos ele tá morto com
varíola, então eles davam o nome de “mal-do-bicho”, eles falavam que essa
doença veio do negro, entendeu?, só que quando esse mouro chegou na
cidade, a cidade suja, não tinha saneamento básico, entendeu?, ele que curou
a varíola, e assim, falando do merdeiro, sempre, já tinha um escravo com a
bacia esperando, a hora que ele dava um peido que dá diarréia, disenteria,
né?, aí ele dava um peido, havia um escravo só pra recolher quando ele cagar,
aí surgiu o merdeiro. Então esse mouro, o que ele fez foi construir um hospital
no lugar onde era menos sujo então ele colocou carne em vários pontos altos
da cidade, onde a carne apodreceu por último ele fez o hospital. E assim ele
veio limpando, falou com o governador de Pernambuco na época e vieram
limpando a cidade. É isso que é louco, depois quando ele chegou em Palmares
e conheceu o Zumbi, ele ficou louco porque eles deram o nome de “mal-do-
bicho”, né?, mas era varíola, e em Palmares não tinha um caso de varíola, era
só em Pernambuco, porque era uma cidade limpíssima. Isso que é louco em
Palmares, e é isso que foi a.... a..... a grande influência, porque o cara chegou,
diferente dos portuguêis, né? Tinha um judeu que tava viajando lá, acho que
pra América, algum lugar, e viu um navio pirata e afundou o navio deles e ele
ficou navegando, acho que uns dois, três dias em alto mar, aí passou, esse
mouro, aí passou um judeu, aí passou um judeu e trouxe ele pro Brasil,
entendeu? Aí quando ele chegou já caiu em Pernambuco ali no meio daquela
treta. Aí depois ele soube que tinha um quilombo organizado, aí ele conheceu
Zumbi e foi parar lá, entendeu? E foi esse cara que deu a nova roupagem de
Palmares, foi quando os caras decidiram juntar todos os quilombos que eram
espalhados, entendeu?, tudo na Serra da Barriga e fazer um quilombo só, com
uma base de defesa, entendeu? E ele que fez os fossos que os caras caíam na
frente assim, e... É muito louco assim, por exemplo, tem uma história que é
muito louca assim, que é um.... um quilombola mais velho, que foi um... que
conhecia técnicas de guerrilha, então os caras precisavam descobrir o caminho
da trilha pra chegar em Palmares. Aí os cara mandou esses dez caras na
203

frente pra retardar a tropa, entendeu? Eu sei que os caras retardou os caras
uns 15 dias na mata, entendeu? Só com, com,... técnicas de guerrilha assim,
por exemplo... esse ju... como é... tô querendo lembrar o nome dele. E, e... ele
falou assim “ó, tá vendo que eles tão vindo, eles não.... a... a tropa de Portugal,
eles tinham que vim todo mundo emparelhado um atrás do outro, né?, então
qual que era a técnica dos caras, “vamo matar sempre o linha de frente,
entendeu? Então, pô, o linha de frente, numa guarda, é o cara de respeito,
então os caras na árvore, no meio da mata, pegavam uma flecha e matava o
primeiro, pááá. Entendeu? Aí, tipo, matou o primeiro linha de frente. Aí o, a
loucura, conseguiram mais um linha de frente, aí o segundo já tava ligeiro. Aí
isso aí foi retardando o pessoal, até procurar na mata aquela trilha, ia
retardando. Eu sei que depois lá pro décimo, ninguém mais queria ser linha de
frente, entendeu? Isso na mata, ó, dias... pra retardar pra chegar lá. Aí foi
quando, os caras via qualquer barulho, já todo mundo ia pro chão assim, já
tava em choque, imagina, né?, aí depois, o chefe lá da..., o cara que tava
comandando o exército falou assim, “pô, chega disso, vai se fudê, vai morrendo
todo mundo”, aí ele falou “vamo abrir e avançar aberto”, aí que morreu mais da
metade, porque era tudo fosso, tudo buraco aberto no meio das mata, aí
quando os caras avançaram e que morreu mais da metade, aí eles ficaram
fraco, aí Palmares veio e caiu de cima aí... Então era umas coisas assim muito
foda que eu acho que perdeu, sabe? Essas riquezas que eu acho que tinha
que chegar e não chega, aí a minha viagem, eu pego esses resquícios e conto
a história, monto as histórias, entendeu?, nas letras, no texto no “O tesouro”,
né?, aí eu fico fazendo esse imaginário popular com a realidade que a gente
vive, né? Pra não ficar só falando de tiro e arma, entendeu?

L: entendi.
I: e é isso, cê olha pro lado, e só fala disso. Mas entender Palmares é muito
complicado, que é... Mas eu acho que é preciso, meu... porque não foi
simplesmente um quilombo, né?, que tava lá, os cara realmente causaro...

L: mas você falou que então você também esse contato com as histórias dos
orixás pra entender Palmares, mas e pessoalmente, pra você?

I: então, aí foi transformando a minha vida, né? E... que, que é um lance que foi
transformando a minha vida. E que, por exemplo, minha religião é o Corinthians
e Deus é Fiel, entendeu? Mas assim, eu não tenho religião e eu sou a minha
religião, eu sou o meu templo. Eu sou religioso, entende? Então eu gosto de
todas as religiões, eu gosto. Agora, eu não tenho essa coisa de ser doutrinado
e não aceito alguém ficar me falando as coisas, entendeu?, falando que eu
tenho que fazer isso e aquilo, aí quando entra o lance do dízimo e da grana,
essa coisa que as igrejas pegam, eu já não gosto, e aí depois que eu comecei
a... eu fui batizado, fiz catolicism... é... catecismo, essas parada, igreja católica,
que vem de família, o Brasil é católico e tal, mas depois que... eu comecei a
estudar... a escravidão no Brasil, não tem como gostar da igreja católica (ri). Aí
vem esse papa alemão, não porque ele seja alemão, né?, não tem nada a ver
porque... porque ele é alemão, mas vem com essa hierarquia que, que, que
não dá, meu. E aí, pô, não gosto da igreja católica. Então eu não tenho saco.
Na missa de sétimo dia do meu tio, aí eu e meu pai lá na igreja católica, o
padre, tinha umas crianças brincando, o padre parou a missa, falou pras mães
204

pegar as crianças, que não podia ficar correndo na igreja. Se a criança não
pode correr na casa do pai, brincar, vai brincar aonde? Eu olhei pro meu pai e
fomo embora. Eu não voltei mais. E... e é isso assim, é... minha bíblia, minha
bíblia é os... os álbuns do Corinthians, tá ligado?, e aí eu acendo a minha vela
pra Preto Véio e Exu ali, e... agradeço aos Orixás, porque são energias da
terra, é tudo energia, entendeu? São energias da natureza e.... E essa coisa de
materializar mesmo né?, e de te elevar prum plano espiritual, de saber que aqui
é uma das passagens e é isso que eu gosto do candomblé , do lance dos
orixás, que aqui é só uma passagem, que existe sim uma outra vida e que
também a gente tem que aprender a lidar com as forças da natureza e os
orixás são simplesmente isso. É, lá, Zambi com Olorum deu um poder pra cada
um, tá ligado?, e cada um tem um poder que esses irmãos juntos ninguém
segura, isso é os orixás, entendeu? São vários irmãos, cada um o pai deu um
poder e eles junto é uma família que... invencível. E esse lance também que a
igreja católica e as igrejas convencionais, não todas, as igrejas modernas,
separam o bem e o mal, o céu e a terra, tá ligado?, e... os orixás é tudo isso e
mais um pouco, entendeu?, os caras tão separando e o bem e o mal, né?, são
duas forças, são duas energias que tem que saber lidar. No, no candomblé
ninguém separa o bem e o mal, são duas energias que tem que saber lidar e
que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil que... como que era a frase do, de Exu...
É... É... Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também não sou o mal, não
sou o diabo, eu sou Exu, tá ligado? Cê já viu essa parada lá?

L: do Mario Cravo neto...


I: é, muito foda. Eu queria até saber, lembrar a frase, “eu sou exu, abro os
caminhos. Tiver na minha frente, bem e o mal, eu...”, entendeu? E... então
essa... Os orixás me encanta. Com Xangô que eu não sei explicar, entende?
Porque eu gosto muito assim, eu não sei explicar o lance com Xangô. Eu acho
que ele rege sobre mim sim. E... Assim, quando eu fui jogar os búzios com o
pai de um amigo meu há muito tempo, ele falava que eu sou Iansã e Oxóssi,
que é a mata. E Iansã, e tal. Mas eu tenho uma ligação muito forte com Xangô.
Eu gosto de todos os orixás, mas pra mim, comecei a entender a partir de
gostar memo, né?. Eu não entendo muito bem, tô começando. E como é
resquícios, aos poucos vai, né?, eu vou me reeducando porque isso aí eu já sei
tudo, só preciso, né?, vim trazendo, as lembranças tal. Então assim, pô, eu já
conheço uns três orixás assim que eu conheço bem assim, mas ainda pra
linhage falta muito. Mas de todo o entendimento da coisa eu ainda tô no
processo, entendeu? E assim, e aí chegam em mim e falam que eu tenho que
ser do candomblé pra mim poder, ou da umbanda, pra mim poder cultivar os
orixás, sabe? Eu, eu não tenho religião, eu sou rasta como estilo de vida,
entendeu?, pra amenizar as carne, comer mais fruta, e... e... o cabelo, como
forma de resistência, eu sou um homem livre, que é essa coisa do rastafári,
né?, cê é um homem livre, nada te atinge, cê anda no ônibus, dane-se o povo
olhar pro seu cabelo, se você é tatuado, se eu sou preto, se eu sou branco, tô
ali, eu tô imune a qualquer coisa nada me atinge, andar na babilônia de São
Paulo sem deixar as coisas atingirem você, entendeu?, não que você está
sendo..., cê aceita as coisa errada da Babilônia, não, você combate também,
entendeu?, e isso é uma forma de combater a Babilônia, é de não deixar que a
Babilônia te atinge, entendeu?
205

L: eu queria que você falasse melhor sobre essa frase, é... Você disse assim,
sobre os orixás, que você já sabe?, você só precisa se lembrar... Como é isso?
I: é isso assim, já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito,
já tá no meu...

L: perispírito?
I: é, tá no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito,
entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu?, agora só precisa trazer
as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu
nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da
tradição oral, você vem trazendo mas isso aí já tá em mim8. A não ser que eu
não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu?, me preocupe mais com
o MP3. Aí eu não vou trazer isso. Agora se você naturalmente deixar o seu
corpo fluir, as coisas vêm, entendeu? E pra mim foi assim, entendeu? É
justamente, eu não gosto de ser doutrinado numa religião, num papel que tá
escrito e você tem que fazer aquilo se não cê não serve, que nem os maçon,
sabe? Você é do mundo dele, tá lá na moeda dele ou se você não tá na moeda
dele, cê não ta. Ou é matemática ou... não é nada, entendeu? Então e... e o
rasta é isso, não é religião, rastafarismo. É estilo de vida, é uma forma de ser,
entendeu? E... que nem, os caras lêem o Antigo Testamente, lêem a Bíblia
Sagrada, lêem o.... o... o... Islão, né?, é, então tem entendimento geral dessa
linhagem, né?, de Içá, de Noé a Issá, entendeu?

L: Issá?
I: é, Issá é Jesus que eu acho que é em árabe ou é em... em hebraico, não sei.
Eu tenho uma linhagem ali escrito, até... Maomé, entendeu? Que aí que é esse
lance, Içá a Maomé, né?, que aí o Islão parou ali, no profeta Messias no, no
Mohamed, né?, no Maomé. E o... a igreja católica, o resto do mundo, parou em
Içá, né?, em Jesus. E o rastafári não. Mil anos da linhagem salomânica de Davi
vieram... era pra ter 300 imperadores, entendeu? E o último foi Hali Salissié
Rás Tafari Makonen, entendeu? E essa linhagem é que vem esse lance do
tronco familiar, entendeu? Que começou lá filho de Davi, Salomão, Rei de
Jerusalém, teve um caso com a etíope rainha de Sabá, aí nasceu Menelek,
Menelek I, e ... entendeu?

L: entendi. Então eu vou te fazer a última pergunta. Teve um momento que


você disse assim, aliás, você falou mais de uma vez sobre os resquícios. A
história tem resquícios dela. Você se lembra como foi, em que momento da sua
vida você se deu conta disso? De que a história que era contada, nos livros ou
na escola, essa história não é uma história única? Teve um momento em que
você falou “quero saber o outro lado da história”?

I: é isso que é o rap, entendeu?, que eu falo pros moleque. O rap não é uma
musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. rap é revolução, é
transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha
concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi

8
Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa, ele
chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar isso
com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos
filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
206

oprimido. Só os... Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa
indignação e transformá-la. Só quem... eu costumo falar assim “mano, cê não
sofreu, não tem como você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado?
Mesmo que o reggae seja uma música de resistência, entendeu? Só que o
reggae teve uma característica que dentro dessa música de resistência eles
plantaram o amor, e hoje o reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado
como uma música marginalizada, e pesada que bate contra as regras
universais em termos de sociedade no mundo, então o rap é a quebra da
sociedade, entendeu? Então quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu,
que já foi preso, pobres, então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse
processo de transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se
não eu teria cantado o forró do meu pai, entendeu? Mesmo que as letras de
forró tem muitas letras de conteúdo, entendeu? Mas o rap foi o que abriu o
portal, entendeu? Foi quando eu entendi toda a manipulação governamental, a
história que não era contada, os heróis que não eram nossos, entendeu? Então
o rap vem fazendo a... tem até uma música, um filme, que eu falo pros moleque
“você tem que assistir”, que eu sei que no Brasil eles chama “Esquadrão da
mente”, não sei se ele é do Spike Lee, mas é, tem um nome, é... “Não sei o
quê” mas “Esquadrão da mente”. Que é um... Esse filme mudou a minha vida,
que eles são uns “Black Panthers”, que, que, que pega os caras que são
negros e brancos que trabalham pra indústria, né?, para essa grande
“business”, no caso do filme, essas indústrias de propagandas que eram ne....,
eles contrataram brancos, contrataram negros pra fazer propaganda de
produtos pra negros, entendeu? Então ele... aí tipo os caras faziam perfume
pra negros, que é de baixa qualidade e não sei o que, e os caras tinham que
criar a propaganda pra alcançar essa.... essa... esse povo negro. Então na
visão do branco, o próprio branco fazendo um fast-food bem tosco pro negro e
pegando os negros pra saber como eles pensam pra vender esses produtos
feitos pra negro. Esse filme, esse pessoal que é o “Esquadrão da Mente”, né?,
que é tipo “Black Panther”, os caras ficam num QG no fundo do porão só
estudando história da África, história do povo afro-brasileiro, e o lance da
escravidão e pegava esses brancos vendidos que trabalhava na, lá na na... na
propaganda lá pra fazer..., na agência de propaganda e davam uma lavagem
cerebral neles, entendeu? Pra ver se eles pegavam do povo dele e não fazia
isso, então cada propaganda que saía, os cara seqüestrava, deixava o cara
acordado três dias lendo Malcom X, “sabe quem foi Mandela?”, aí quando o
cara não consegue mais dá um murro na cara e joga água, “acorda, agora eu
vou falar pra você quem...”, aí eles revezavam, entendeu? E o cara ficava lá
dois, três dias aí jogava o cara na rua, aí depois em cima do cara pra ver como
que ele tava, se ele tava mudando, se ele ia ajudar o povo dele, entendeu? E...
a trilha do filme é foda também, não sei se é do Spike Lee esse filme9.
Doente tem em todo lugar, independente da etnia e da raça, né? E infelizmente
nascem pessoas livres... Tem três tipos de pessoas no mundo: o livre, o
inconsciente e o doente, entendeu? O livre é o homem livre que é aquele que
eu falei, o rasta que... que nada atinge ele. E o papel desse rasta é não se
acomodar, pra combater a doença. E... o... inconsciente é aquele cara que é
doente e não sabe?, porque ele segue simplesmente a hierarquia, as regras da

9
O filme é produzido por Spike Lee, que também atua na película. Em pesquisa na internet foi
encontrado que o diretor é D Clark Johnson e o título do filme é “Drop Squad – O Esquadrão da
Reforma” (fonte: http://www.vervideo.com.br/filme.cfm?cod=5558, acesso em 29 de junho de 2007).
207

sociedade e infelizmente o racismo no Brasil é institucional, se você seguir


direitinho as regras você se torna um racista em potencial, entendeu? E... E eu
posso te dar um exemplo simples disso, que cê pode se aprofundar, que é isso,
né?, o que é do homem, o bicho não come. Fizeram a feijoada. (pausa)
Entendeu? ´Tão, tem várias frases de efeito que cê sabe que tá no popular
brasileiro e... E esse inconsciente às vezes fala “chuta que é macumba”, tá
ligado?, que é uma fra..., e ele não sabe o que ele tá falando, entendeu?, ele tá
falando merda, ele tá equivocado, entendeu? Então várias... Então esse é o
inconsciente, ele é racista e não sabe?, entendeu? E tem o doente. O doente é
esse memo que cê tem que tratar ele, se não tratar é... ele vai ficar doente. E...
e o papel do homem livre é combater a doença, entendeu? E... tem a música
do GOG com o Natiruts que é “crianças não nascem más, crianças não
nascem racistas, crianças não nascem más, aprendem o que a gente ensina”.
Então todo mundo nasce livre, aí uns ficam inconsciente, outros ficam... E
outros que se cuidaram e assumiram a vida como uma luta e não deixou ficar
doente, que é o meu caso. Pra mim tudo é uma luta. E não existe vitória sem
luta, paz sem distúrbio, não há descanso sem tensão, não há vitórias sem luta,
não há viver sem ter razão. Entendeu? Então eu acho que é isso assim.
Agora... Hoje, por exemplo, eu falo que no grupo não é “business”, eu odeio
isso, entendeu? Foda-se, o dinheiro pra mim ele tem que ser a última coisa,
entendeu? Morrer de fome eu não vou mais, se fosse pra morrer, eu já tinha
morrido, entendeu? E... isso me incomoda demais que hoje tudo é a grana que
vem primeiro, e eu tô preocupado com isso por último, depois que eu fazer o
trabalho e chegar em casa eu quero ver se tem alguma grana, entendeu? Pra
mim é a obra, gira em torno da obra, e... muito dos problemas do grupo por
exemplo não ser um grupo de ponta e não ter chegado onde era pra ter
chegado é por causa disso, entendeu? Que... é... às vezes a gente tem que se
preocupar mais entre nós, acreditar mais na obra, acreditar naquilo que a gente
é, até mesmo acreditar mais nas coisas que a gente fala, entendeu? As coisas
seriam muito diferente. Mas a merda dessa porra do dinheiro é que fode tudo
entendeu? Eu não vou deixar mudar a minha música por causa disso.
Combater a babilônia é isso é a babil..., as coisas materialistas atingir o lance
que é totalmente espiritual, entendeu? E a única coisa material é o CD que cê
vai ouvir em casa (ri). Vai pôr pra ouvir. É... Cê tem que andar, meu, tá ligado?
“na sombra da noite, acontecem coisas, coisas que acontecem. Na sombra da
noite, acontecem coisas, só quem madruga é quem pode ver, quem perambula
é quem pode ver” (cantando). Sabe? Tem muito cara que fica trancado, hoje cê
desafia o mundo sem sair de casa, por causa de internet, esses baguio, né?,
mas tem hora que cê precisa sair. Ontem eu precisava ir até um lugar em outro
bairro, eu fui andando, eu precisava andar! Entendeu? Eu precisava andar.
Entendeu? Então é... é... eu vejo dessa forma assim (pausa). O que que eu
tava falando? Nem lembro mais. Eu falei tanta coisa... Mas é bem isso assim, é
você se adaptar ao mundo assim. Aqui no Brasil é difícil... Na França, cê vê um
cara africano, ele fala “eu vim lá do Quênia”, “eu vim lá do Senegal”. Agora e
aqui? O cara não sabe nem da terra indígena que o cara é, mano! Porque os
cara era daqui, entendeu? Eu sei que minha família é descendente de italiano
porque os italianos, os europeus vieram com uma condição melhor. E além..., e
dentro desse processo de embranqueamento, que veio esses padrões que a
gente tem, entendeu? Na televisão, por exemplo. Né? Que é, é tudo padrão
europeu, né? E norte-americanizado. E... E é isso. E eu acho que o rap que
208

abre sua mente pra essas parada, você... E as influências com o sagrado, né?,
com o encantado. E é isso. E eu falo assim, os caras vão demorar pra entender
a minha mente, entendeu? Talvez eu morra e não vão entender as parada que
eu tô fazendo, tá ligado? Às vezes o que eu queria era que tivesse mais
confiança, sabe? Que as pessoas acreditassem mais naquilo que a gente tá
fazendo, entende? E... Hoje eu chego no auge da minha vida que... Agora os
meus projetos, os baguio, tá cada vez mais difícil e... E o bagulho girou tudo
em grana, grana, a gente tá vivo até hoje porque a gente batalhou mesmo, o
grupo já era pra ter acabado, o integrante que saiu, quase que a gente não faz
o disco novo, quase que num... Se não fosse o grupo da Europa, pra dar essa
revitalizada (com o CD gravado enquanto o grupo esteve lá, em 2005), com o
lance da França, só eu sei o que eu passei na Europa, só eu sei. Perder trem,
sabe?, segurar todas as pontas, tudo, tudo, tudo. Só eu... Fiquei doente,
cheguei de Londres doente, com dor no peito, um caroço no peito, se eu
ficasse lá mais uns quinze dias, eu morria. Só eu sei o que eu passei, assim.
E... hoje em dia eu quero ficar na paz, com a família, sem arrumar problema,
porque... a rua tava me deixando monstro demais, meu, e... fazer rap não é
fácil, mano, acontece mil fitas, num show, os irmãos que chega, os alma-
escura, os energia pura... É... tem que ter um equilíbrio fudido, sabe? E... hoje
eu não consigo mais sair pro mundo se a gente não tiver formado assim, todo
mundo irmão, sabendo que todo mundo tá ali e vai morrer por você e que a
causa que a gente tá fazendo é um baguio muito cabuloso. Fora isso fica difícil,
entendeu?, porque cada lugar que cê vai é um tipo de situação. Num show de
rap, um cara duma facção falou assim “os moleque tirou os ladrão, nóis vai
matar eles, e como cê é linha de frente no baguio, nóis veio avisar você. E nóis
pilota a quebrada e os moleque vai morrer”. Eu falei “cê tá vendo o que cê tá
falando, irmão? Quem sou eu pra falar alguma coisa? Se você chegou até mim,
a única coisa que eu posso te falar é que... as mesmas palavras que você me
falou, que são moleques e se são vocês que pilota a quebrada, é moleque,
chega no moleque e fala, meu. Eu já sei como saber chegar, porque tô fazendo
isso há dez anos. “Os cara é moleque, cê vai ver a idade dele lá, os caras não
tem nem 17 anos, véio. Moleque véio. Às vezes ele fez uma letra e cê
entendeu errado, entendeu? Se você pilota cê não vai matar o cara, chega e
conversa, cara. Entendeu?” Agora quem é eu pra falar pros cara isso,
entendeu? Cinco cara, e eu descendo do palco, nem limpei o rosto, tirando a
camiseta, assim, baguio loco. Então acontece de tudo, entende?, então cê tem
que ter um puta de um equilíbrio, tem que nascer, meu, pra parada mesmo, e...
E hoje tem ainda uns parceiro que fecha com nóis, uns meninos que realmente
tão por amor, mas eu tô o tempo inteiro policiando nesse sentido assim de “não
cresce os olho no baguio”, entendeu?, “aqui é sincero, velho, o que eu tenho
que te falar, eu vou te falar, não guarda rancor”. No projeto que a gente toca na
quebrada, todo mundo apresenta. Os cara acham que eu tô lá e quero... Então
tem que equilibrar tudo, véio. Sabe? Ó, cê não pode dar tudo, mas tem que dar
um pouquinho, sabe? De trampo, a base: “ó, eu tenho dez base, eu vou te dar
uma só. Cê canta nessa base aí”. Porque, senão, aí fica pior, entendeu? E... e
é isso assim, eu acredito ainda assim. Eu tô fazendo essas coletânea, aí,
porque Jah falou pra mim fazer, porque tudo, eu tenho uma obra, e eu acho
que tudo gira em torno da obra, e aí depois que essa obra começar a tomar
forma, que eu acho que vai abrir as porteira pra gente ser reconhecido a nível
mundial, tá ligado?, e ser reconhecido memo, pra poder viver do barato,
209

entendeu?, e ter mais tranqüilidade pra criar outros monstros que nem nóis,
entendeu? Que, tipo... Racionais... Tem vinte anos de Racionais, depois de 10
anos veio o nosso grupo, agora vai vim outro só daqui mais vinte. Tá ligado? E
isso é real, porque cada vez que eu dou mais volta, a gente volta pro início,
entendeu? E eu nunca vi agora essa peneira maior no rap que nem teve. Lá
nos Estados Unidos tem uma música do NAS, que ele fala “Rap is dead”, né?,
“o rap tá morto”. E é verdade, um amigo meu até fala, “morreu o ano passado”.
E, e, e, e... Muitos caras pararam, muuuiiitos caras pararam. Vô falar pra você,
muitos... E nóis taí porque é Deus. Dentro dessa, do rap em São Paulo ter
passado por essa dificuldade e muitos grupos ter parado, muitos grupos não
sabiam que tinham que registrar o nome, tinha que registrar o logo, editar as
músicas, e hoje, tem cara com selo aí sobrevivendo em cima desde grupo dos
primeiro, que gravou em 84, os cara relança e lança, tem coletânea aí de, de
rádio, que vende do um ao vigésimo, e continua vendendo, e vendendo e o
grupo parou, não editou os baguio, e a rádio editou e continua vendendo. Então
isso aí é triste, por quê?, nos Estados Unidos o cara tira 5% de todo o dinheiro
que foi do hip-hop, 5% vai pro hip-hop, entendeu?, vai pras rádios, é, é, aqui,
não tem nada que reverta pra gente, entendeu? E a única coisa que eu posso
falar pros moleque é isso, “cê quer ver o contrato?”, eu faço o meu contrato.
Comecei a ter o meu selo, é um selo editora, eu faço os meus contratos e
mando pro Ecad, sabe?, tem que fazer carteirinha de músico, tem que fazer
isso, mas isso ninguém ensinou, foi a experiência, não foi ninguém que chegou
e falou “ó”, entendeu? Então eu passo, eu passo, tem cara que não passa, por
quê?, porque o moleque tem potencial e pode quebrar eu, então em tudo tem
monopólio, no rap não é diferente, então se aquele moleque crescer, ele vai
tomar a minha ponta, entendeu? E aí os caras não..., “se vira”, e se quebra,
entendeu? Comigo que eu digo “cê quer saber? É isso. Vai lá e faz, véio”. Tá
ligado? O que eu puder te ajudar, só não tenho dinheiro. E... Porque... Nada vai
ficar... Se a gente tivesse cada um ajudando o outro, as coisas seriam bem
diferente, tava que nem o funk, tá ligado?, que é uma batida que veio de fora,
mas canta na língua deles. O único que canta funk em inglês é a MIA. O resto
é tudo funk na nossa língua. Agora cê vai num baile de rap, num baile black, só
toca gringo, véio. O cara entra perdido e sai sem entender nada. O que mais
tem em São Paulo é matinê em Nova York. Entendeu? O cara tá.... (ri), sai na
Henrique Schaumman, entra numa matinê, tá em Nova York. Tá ligado? E eu
não vou ficar reproduzindo a porra duma cultura norte-americana. Por quê? O
rap foi o que revolucionou o mundo. Ó o que eles viraram. Se o rap não fez
nada por nóis, que virou aquela cultura blin blin, entendeu?, quem que vai fazer
mais? Como que aqui é a terra do canto falado, Jackson do Pandeiro já era o
rei do ritmo, na década de 50, entendeu?, então eu não vou falar..., ficar num
mundinho só.Vários universos, entendeu? E... e é isso que os caras [do hip-
hop daqui] têm que entender. O cara vai ficar limitado, vai ficar ali, ó. Conheço
grupo que tem 12 ano de carreira e é doze anos que ele não canta na batida,
porque ele não parou pra estudar o “The One” do James Brown, entendeu?
Então, fica ali, tá ligado. Fica aí. Entendeu? Agora quem é nóis... pô, eu gosto
de todos os grupos, porque cada um tem sua história, tá ligado? Quem sou eu
pra falar, eu tenho a minha história, entendeu?, não tenho que falar mal de
grupo, eu já falei, ontem até um moleque comentou “cê falou um bagulho”, eu
falei “mano, a gente muda, eu errei, me perdoa, já pedi perdão pros cara, não
faço mais isso, cara. E essa música que cê cantou aí eu gosto hoje, eu vi o
210

show, e é bem loco”. Então porque é foda, muito loco meu. E hoje o que eu
tenho mais é... lance de palestra, debate, se quiser, eu vou recitar uma poesia
e faço um workshop, tá ligado. Agora, ficar na teoria, eu não vou não. E aqui eu
tô falando pra você porque acredito em você, entendeu? Que até jornalista eu
já desencantei. Tá ligado? Perueiro, polícia e jornalista, esses perueiro de
lotação assassino, que te traz lá do Largo da Batata até aqui à noite, confia
nessa raça não. Polícia, mesma coisa, e jornalista, entendeu? Que é um povo
estranho, muda de uma hora pra outra, entendeu? Cê sabe do que eu tô
falando, né? Então é..., eu tomo cuidado com esses barato aí, e outra, falo com
muito conteúdo memo, pra deixar a cabeça dele confusa, tá entendendo, pra
ele não vim sacanear comigo, entendeu? Que nem, uma matéria de um
jornalista que viu uns embolador no busão, aí tentando achar os embolador, ele
acha na internet, mas não acha os caras, entendeu?, os cara toca com todo
mundo na rua, mas pra achar o número deles, os caras tão na rua. Aí ele me
ligou aqui, “eu tô precisando achar fulano e sicrano”. Aí eu falei “véio, vai ter
que ir pra rua, eles tão lá na Praça da Sé e no Largo da Batata”. Ele falou “não,
eu precisava do telefone deles, cê conhece esses caras”. Eu falei “me liga
daqui a trinta minutos que é nóis”. Aí eu achei os telefones dos embolador tudo,
ele ficou dois dias andando na cidade com os caras e fez uma matéria. E... E...
Eu falei com ele “ó, não coloca meu nome no baguio”, eu falei “não precisa,
véio, fala o nome do grupo e já é. Então a próxima vez, eu não..., já não vai tê
idéia, entendeu?, porque fui legal com ele e ele não foi legal comigo, ele quis...
pensou que ia me agradar mas me deixou puto, tá ligado?, porque eu falei pra
ele “véio, tô te falando tudo isso, vai lá, fala com fulano, beltrano, sicrano, tem a
UCRAN, tem os moleque que canta rap, falei, tudo. Ele fez uma puta matéria,
mas ele... Então é isso assim, eu acho que, por isso que eu gosto dos
Racionais, eles seguiram uma linha e vão até o final, entendeu?, e o [Mano]
Brown tá certo, tem que falar com esses caras não, meu, tá ligado?, tem que
dar boi pra esses cara não, esses cara é tudo estranho, esses cara... O
bagulho é muito sinistro assim, que rola, entendeu?, então eu já fiquei muito
monstro, seqüelado, e agora eu tô tentando fazer a coisa direito pra ver se a
coisa vem direito, entendeu? Minha família nunca... Minha família vive bem,
assim, mas nunca teve um “boom”, sabe? A gente só tem aquilo que Deus deu,
entendeu. Agora a gente precisa ter um “boom”. Precisa ter um bagulho que
possa favorecer muito mais gente. Jah sabe?, que se chegar pra nóis dessa
vez, que se chegar pra mim, não vai ficar na individualidade, como alguns,
entendeu?, que... Tem cara que consegue comprar até bolinha de beisebol e o
taquinho, tá ligado?, mas não consegue vim aqui no projeto fazer um beatbox
(ri). Tá ligado? Eu fico viajando nuns baguio que é loco, então assim, eu não
quero nada não, não quero nada, não quero que cê me dê carro, me dê
carona, não quero nada, quero que cê faça o bagulho como tem que ser feito,
né? E... é muito difícil. Muito, muito, muito... Então a rua te deixa monstro. Te
deixa mooooooooonstroooooooo. E aí eu quase que virei um monstro... Quase
que fiquei anjo caído.

L: como é isso, anjo caído?


I: anjo caído? Aqueles anjo que não tem volta, né?, tipo Lúcifer. Hã... E no
mundão se você não se cuidar, fica anjo caído, entendeu? Vira Lucifer
(mudando a sílaba tônica pra última) memo. E... Até tem um som que chama
“energia pura versus alma escura”. (Ri). É, é... (tentando se lembrar). “Usina
211

malfeitora do mal, quem será que pensa que controla sua loucura, sagaz
energia pura versus a saga da alma escura versus... Pra não ser capturado
pelo malfeitor, versus...”. É... (rapeando) “Será que pensa que controla sua
loucura, sagaz energia pura versus... o verdadeiro vencedor versus o guerreiro
sofredor, versos pra não ser capturado pelo malfeitor. Proteja sua alma, a
escuridão, versus libertário contra a escravidão. Energia, Deus é pai, a fé não
costuma faiá, e .... O bem nasceu pra brilhar, é a paz no ar, veio pra encantar,
luta contra a dor, e livre pra voar, energia pura, chama com o poder do amor”.
Aí, o mal é... “O mal cresceu pra matar, só pra aterrorizar, não quer perdoar,
convive com o terror, não consegue escapar, arma é pra eliminar, alma escura,
escravo do malfeitor”. Entendeu? É a energia pura versus a alma escura, que é
a energia pura tenta tirar a alma escura das garras do malfeitor, entendeu?

L: entendi. E tá no Crônico?
I: não. É, eu tô fazendo dois discos, tá ligado? Mas é isso assim, e... Eu quero
aos poucos ir fazendo assim... Que eu não sei fazer 300 coisas ao mesmo
tempo, né? Eu estipulo metas pra cada coisa. Minha meta e minha parada é o
grupo, entendeu? (pausa). Enquanto os caras tiverem nessa entendeu? Porque
no dia em que eles não tiver, eu não vou levar essa parada, entendeu? Sabe...
Já falei. Enquanto os caras tiver a fim, é nóis que tá. E enquanto isso, eu não
vou ficar em contato só com uma parada, porque eu não sou limitado, e tenho
que ir pensando outras coisas. E o Ilícito foi por uma necessidade, não foi
porque “eu vou fazer minha produção”. Porque o grupo hoje tem um “know
how” dentro da parada que não dá pra chegar tocando de qualquer jeito,
entendeu? E com o Ilícito eu toco de qualquer jeito (rindo). Tem uma festa ali
que o cachê nosso é tanto, aí os caras oferecem 300 real. “Ô, traz o grupo aí?”.
“Ô não dá, pô, cê tá ligado, né, mano? Tem estrutura? Eu vou!”. Entendeu? (ri).
É ilegal memo... Agora, não dá pra tocar em todo lugar. Ou seja, o Ilícito é
pro... Pra ilegalidade, pro mundo proibido, é pra ilegalidade, o grupo é pro
Brasil, é pra todos. É um bagulho que tem respeito com a palavra, com o que
eu escrevo, de como falar com a mulher, de como falar com a tiazinha,
entendeu?, agora o Ilícito não, é o inverso, é o contraponto, contramão disso
tudo, e é o momento que eu vivo, eu tô ilegal total. E toda vez que eu saio eu
faço a oração do invisível, entendeu?, que é a... o... a oração que abre o Ilícito.
E o Ilícito é isso: ilícito, proibido pela lei, musicologia não autorizada, contra-
indicado para as crianças. Entendeu? E se esse disco der alguma coisa, eu
vencer, ganhar grana, comprar um computador que seja, eu vou fazer o “legal”,
autorizado pela lei (ri). “Agora venci, não tenho mais que ficar reclamando dos
problemas que eu reclamei”. Agora... Tem uma música que é “um problema,
imposto pago não, inativo, dois problemas, nome limpo e o CPF ativo ....O
telefone, o DJ, eu fui contar quantos problemas, já são seis, sete dias por
semana, querem pôr algema, pela relatividade... Sem problema, matemática de
somar, eliminar subtração, todo problema tem uma solução, de ler mais, de lei
mais, DJ mais, sem problema. Se veio ao mundo, é pra criar frutos, dilema,
sem problemas financeiros, falha no sistema, de zero a cem inteiro, sem
problema, sem esquema, e por dinheiro viro as costas, não tem acordo e com
família sem negócios, mil fitas pra resolver, pode crer, esse é o dilema, gráfico
sobre controle, muita calma, cem problemas”. Que é... cem problemas pra
solucionar, certo. Cem problemas. Eu acordo só com problemas. E é isso. E o
Ilícito tá aí. Depois se o disco for legal, o “Lícito”, aí eu vou, é, é “sem
212

problemas, imposto pago (ri)”. Aí eu mudo a mesma letra, mudo a capa e falo
“Lícito”. Entendeu?

L: entendi.
I: mas eu também só falo o que é lícito. Nem tudo pode ser falado. Já falei,
“ilícito”... “Ilícito”. “Ilícito, proibido pela lei ou excluído, só diz o que é lícito”, né?,
“... vício, tem poder aquisitivo, pra que bater, mesmo sendo ilícito, pra que
prender”, né?, porque eu falo da erva. “Com a herança do rei burguês
escravista, polícia, está sedento por injustiça, ousaram matar os indígenas,
capitalizaram, pela igreja catequizados. Chegam os capitalistas, escravatura,
Casa Grande & Senzala, cana-de-açúcar. Djamba sem..., maconha sem
amônia, Santa Maria pura, por que não?, quando ainda se extraía pau-brasil, já
existia mensalão, e no passado era num navio abarrotado e o presente num
camburão sendo esculachado, toma porrada, interrogado, pela lei ser fichado,
ilícito é a prova, não assina nem perante advogado, senhor juiz, sociedade é
pra domesticar selvagem, me lembra a... uma anedota do Bocage, Babilônia.
São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estuprando (sic) a
Amazônia, e o Ilícito é preso por causa da maconha sem amônia”. Aí eu falo
“ilícito, proibido pela lei ou excluído”. Só diz o que é lícito. No mundo do vício
sem poder aquisitivo, pra que batê, mesmo sendo ilícito, por que prendê?
Entendeu?, porque é isso que eu falo, da planta, a gente poderia pelo menos
ter o pé em casa, porque não tinha esse tráfico, a gente não teria que fumar
planta com amônia, morta, porque é planta de poder, sai lá dos pés ilegais,
passa num caminhão prensado, por dez blitz policial, aí os cara quebra, divide
os quilos nas favela, pra depois o cara cortar, pôr numa buchinha, pra ir ligeiro
com tudo pra passar pro consumidor, a planta chega morta. É uma planta de
poder, gente, tem que saber lidar com planta de poder. E nessa música eu falo
justamente isso, “tem .....sal milagroso, imagens de santa, e o ilícito é preso por
causa da maconha sem amônia, porque se tivesse amônia, eles controlavam,
as que têm amônia, eles controlam, agora apareceu uma pura, que era aquela
da lata que apareceu no porto de Santos, há muitos anos atrás, que pegaram o
DNA dela e fizeram uma nova semente, uma nova planta pura, sem amônia, aí
os polícia vêm em cima do ilícito, entendeu?, querendo prendê ele. “Quem é
esse ilícito que apareceu com a planta sem amônia?”. Muita doideira. (ri). Mas
é isso aí. A oração do invisível é uma oração que eu fiz, porque ilícito é o nome
do meu carro, porque ele tá todo ilegal, ele tem os documentos há dois ano
atrasado, todo ilegal, e toda vez que eu saio com o carro ilegal eu faço a
oração do invisível, né?, “proteja, deus pai...”, “salve deus pai me proteja do
perigo, me leve são e salvo e me traga invisível, pra que os bons fluídos
possam enfim chegar e que você proteja os caminhos por onde eu passar,
abençoe, abençoe deus pai a nossa longa caminhada”, aí eu vou falando. Que
é... Que eu faço a oração pra mim não tomar enquadro. E... que eu vá e volte
invisível, por isso que é a oração do invisível, que é esse cara que rege por
nós, que a gente sabe que ele tá mas ninguém vê.

L: entendi. E o seu carro tá sem documento, você tá sem habilitação?


I: tem multa, IPVA, tá zuado o freio, tá batido, lanterna quebrada, retrovisor (ri).
Ilegal total. Se eu tomar enquadro é pro pátio, meu. Então eu vou ter que
passar na... Eu não posso tomar blitze, persiste...
213

Essa grana vai pra cá, tem outra que vai pra cá, e a gente só vai pegar a
subsistência. Cada um pegou sua grana e fez sua parada, ninguém plantou. Aí
quando eu acordei no meio do caminho que eu tinha que investir. Tô até
trampando numa música nova que chama “Perdas e Ganhos”. Que é...
investimento. Tudo na vida é investimento. Entendeu? E... É... eu falo é “é
preciso perder pra aprender a vencer e contabilizar os ganhos”, entendeu? E
ainda o tempo... Que senão não tinha nem isso que cê tá vendo. E pra mim
chegar nesse nível, aí eu tive que... Por exemplo, pra mim ter o escritoriozinho,
abrir o selo, comprar as master, que tá na mão. Igual por exemplo o primeiro
disco que a gente lançou aqui é nosso, tá remasterizado, tamo relançando,
remasterizado, com nova capa, tudo. Editado por nós mesmo, entendeu?
Reeditei o álbum, também. Então foram conquistas assim, se não tivesse feito
esse corre, eu, eu falo eu principalmente, né?, não tinha rolado não, porque os
cara não tinha se preocupado com isso. E... E... de ter armado essa viagem pra
Europa também, várias vezes. Então assim... Agora eu sei que tudo é
investimento, tudo é a grana que, por exemplo, o CD novo, ninguém põe a
mão. A grana de CD, só pego o direito autoral porque eu que escrevi a obra,
entendeu? E... dinheiro de show. Dinheiro do disco eu nem ponho a mão. Eu
não quero. Vai pra... Faz vinil. Entendeu? Faz não sei o quê. Vamos fazê um
lambe-lambe? Eu não quero. Só por causa da forma que não foi respeitada a
história dele, entendeu? Não foi respeitado, não foi respeitado o processo,
entendeu? Do disco. Foi feito... Daquele jeito, entendeu? Isso aí foi difícil
assim. Agora taí, graças a Deus, o mais difícil, tá aí, o ano passado e entrou
esse ano tentando pôr os baguio na rua, agora tá aí, tamo relançando o
bagulho, taí, nessas perdas e ganhos a única coisa que eu posso dizer é que
eu acertei, tá ligado?, por isso que eu acertei. A gente já nasce morrendo e
errando, né? Mas quem não vai atrás, não acerta. E.... É isso, eu não fico
parado não. Fiz mesmo a parada. Tem cara que fica, tem cara que não..., tem
caracol que não sai da casca, entendeu?, só vive de ibope, tá ligado? Certo, e
se não tem dinheiro, não tem conversa, então eu acho que nem tudo isso, nem
é tudo isso na vida, eu acho que na rua tá o sustento, tem que sair da casca,
caracol memo, e ir, tem até a música fala, né? Por isso tem que organizar essa
situação, se o marisco não sai da casca. Se não sair da casca, o lucro não vem
na mão, né? Então tem que sair da casca, caracol, e ir... E hoje, rap no Brasil,
não tem como chegar num estado do Nordeste só pra... vestido nos pano, e
fazer show, os caras vão falar “esse artista aí...”. Não vai lá falar, não vai lá,
fazê um workshop, encontrá a galera, faz uma interação, vai no bairro onde
tem que ir, não faz essa interação não pucê ver se os moleque não te quebra
no show, eu já vi, cara. Entendeu? Tem cara aí que é pop aí ó, esses “qualé
neguinho” aí, ó, que morre em Teresina. Entendeu?

[Pausa. Finalizo a entrevista]

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