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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Hepatite alcoólica
Alcoholic hepatitis
Carlos Sandoval Gonçalves, Maria da Penha Zago Gomes,
Patrícia Lofêgo Gonçalves, Luciana Lofêgo Gonçalves, Fausto Edmundo Lima Pereira
Centro Biomédico. Universidade Federal do Espírito Santo e Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes, Vitória (ES)

INTRODUÇÃO é a infecção crônica pelo vírus C, o álcool tem também


importante papel na gênese da doença.
O alcoolismo é um importante problema de saúde
pública em todo o mundo, especialmente nos paises HEPATOPATIA ALCOÓLICA
ocidentais e industrializados, causando grande impac-
to social e elevados custos financeiros. Aproximada- Existem três formas principais de doença hepática al-
mente 7,5% da população dos Estados Unidos preen- coólica: esteatose, hepatite alcoólica e cirrose. Essa divi-
chem critérios de uso abusivo de álcool (11% em ho- são é esquemática, já que os limites entre as formas
mens e 4% em mulheres). Os custos de todos os even- anatomoclínicas não são bem definidos, e com freqüência
tos associados ao uso abusivo do álcool naquele país as três lesões coexistem no mesmo paciente. Mais que
foram estimados em 184 bilhões de dólares em 1998, entidades separadas, a esteatose, a hepatite alcoólica e a
dos quais 26 bilhões foram gastos diretamente com cirrose representam etapas evolutivas de um mesmo pro-
saúde. O problema é crescente em países em desen- cesso patológico. Na primeira etapa, o aspecto histológico
volvimento. No Brasil, um dos principais produtores característico é a esteatose, depois predominam a necrose
mundiais de destilados, a bebida mais produzida é a e inflamação, com surgimento de fibrose (hepatite alcoóli-
aguardente de cana, que tem alto teor alcoólico e bai- ca), que nas fases mais avançadas subvertem a arquitetu-
xo custo, podendo ser consumida em larga escala pela ra hepática, com formação de cirrose e desenvolvimento
população de baixa renda. de hipertensão portal e insuficiência hepática.
O alcoolismo deve ser visto como uma doença com- A hepatite alcoólica é a fase intermediária da doença
plexa, que pode acometer praticamente todos os órgãos, hepática alcoólica e considerada lesão pré-cirrótica. Atu-
e não como um comportamento irresponsável do indiví- almente se admite a possibilidade de evolução para cirro-
duo. Dentre as inúmeras doenças relacionadas ao alcoo- se sem passar obrigatoriamente pelo estádio de hepatite
lismo crônico, a hepatopatia alcoólica se destaca, pela alcoólica. Nesses casos, ainda na fase de esteatose,
sua freqüência e mortalidade.2 Basta citar que a cirrose haveria formação de fibrose perivenular, que poderia evo-
hepática de etiologia alcoólica é uma das principais cau- luir para fibrose septal e cirrose, na ausência de quadro
sas de morte em homens entre 25-64 anos de idade, nos histológico típico de hepatite alcoólica. O assunto é con-
grandes centros urbanos dos Estados Unidos, Canadá e trovertido, mas parece não haver dúvidas de que a pre-
México. No nosso meio, o alcoolismo é um dos fatores sença de fibrose perivenular, em fase de esteatose, sem
etiológicos mais comuns de hepatopatias crônicas. Na evidências nítidas de necrose e inflamação, pode indicar
casuística do Ambulatório de Hepatologia do Hospital Uni- tendência evolutiva para formas mais graves e fibrosantes
versitário Cassiano Antonio Moraes, da Universidade Fe- da doença.
deral do Espírito Santo, que tem um programa de atendi-
mento a alcoolistas crônicos e que é centro de referência CONCEITO E ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS DA
em hepatites virais no estado, o alcoolismo continua sen- HEPATITE ALCOÓLICA
do a causa mais comum de cirrose hepática: em mais de
mil casos de cirrose hepática, estudados prospectiva e A hepatite alcoólica é conceituada como uma altera-
consecutivamente no período de janeiro de 1993 a setem- ção degenerativa e inflamatória do fígado, causada por
bro de 2005, o álcool foi fator etiológico isolado em apro- uso abusivo e prolongado de etanol. Geralmente a ingestão
ximadamente 40% dos casos. Mesmo nas regiões do de álcool é superior a 160 gramas por dia, e por mais de
Brasil e do mundo em que a principal etiologia da cirrose dez anos. No entanto, a quantidade pode ser menor, en-

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tre 80 a 160 gramas, e por menor tempo. Apesar das Quadro 1


alterações histológicas terem sido descritas por Mallory Aspectos epidemiológicos da hepatite alcoólica em 271 casos em
em 1911, a expressão hepatite alcoólica foi empregada 1.000 alcoolistas atendidos e biopsiados no
Serviço de Gastroenterologia do Hospital Universitário
pela primeira vez por Beckett e colaboradores em 1961,
Cassiano A Morais, em Vitória ES (1967-1999)
em relato de alguns poucos casos. A partir daí, a entida-
· Número ................................ 271 (27,1%)
de passou a receber atenções crescentes na literatura
médica. · Sexo ..................................... M= 237; F= 34; M/F: 7:1
Como a maior parte dos casos é assintomática ou · Idade .................................... Média: 39,9 anos; Mediana: 40 anos
oligossintomática, a real incidência da hepatite alcoólica · Sem cirrose ......................... 168 (62%)
é desconhecida. Na literatura há dados sobre freqüência
· Com cirrose ......................... 103 (38%)
da doença em grupos heterogêneos de alcoolistas sub-
metidos à biópsia hepática, geralmente internados em
hospitais gerais, muitos já com sinais de hepatopatia avan- quena parcela dos indivíduos que usam abusivamente o
çada. Nos Estados Unidos, estudo cooperativo incluindo etanol. A ação de fatores ambientais é facilitada porque
vários hospitais de veteranos identificou hepatite alcoóli- a ingestão crônica do etanol torna o hepatócito mais
ca em 33,8% de 995 alcoolistas biopsiados.4 No nosso susceptível à lesão induzida por outros agentes. Os fa-
meio, em mil alcoolistas submetidos à biópsia hepática tores genéticos interferem com as enzimas que partici-
no Serviço de Gastroenterologia do Hospital Universitário pam do metabolismo do etanol e/ou com a criação de
Cassiano Antônio Moraes, no Espírito Santo, diagnosti- condições que produzam alterações metabólicas, que
camos hepatite alcoólica em 27,1% dos casos. Por ou- somadas às induzidas pelo etanol, podem produzir ou
tro lado, quando investigamos apenas os alcoolistas sem agravar lesões.
sinais ou sintomas de hepatopatia avançada, observa- A ação lesiva do etanol pode estar relacionada à ação
mos ocorrência de hepatite alcoólica em 7%.5 Certamen- direta de seus metabólitos ou à absorção de endotoxinas
te a doença é muito mais comum do que se diagnostica, do intestino, decorrente da redução da barreira intestinal
ficando a maior parte dos casos sem identificação. induzida pelo etanol. Na Figura 1 estão resumidos os
Em 271 casos de hepatite alcoólica estudados até possíveis mecanismos através dos quais o uso abusivo
1997 em nosso serviço, a relação masculino/feminino foi do etanol produz as lesões mais características da hepa-
de 7:1. No entanto, as mulheres são mais susceptíveis tite alcoólica.
que os homens à ação tóxica do etanol, desenvolvendo Oxidado no citosol ou no retículo endoplasmático, o
lesões mais graves, em menor tempo e com menor etanol produz grande quantidade de acetaldeído e de ra-
ingestão de álcool. As razões da maior susceptibilidade dicais livres derivados do álcool (radicais hidroxi-etil) e do
das mulheres são várias e discutíveis: menor concentra- oxigênio, com aumento do estresse oxidativo na célula.
ção de álcool-desidrogenase gástrica, diminuindo o me- Os radicais livres produzem peroxidação lipídica e de pro-
tabolismo gástrico do etanol; menor volume de distribui- teínas, com formação de produtos como malondialdeido
ção do álcool nas mulheres, devido ao maior teor de gor- e 4-hidroxinonenal, que juntamente com o acetaldeído e
dura e menor percentual de água corporal, o que resulta com os radicais hidroxi-etil, interagem com várias proteí-
em uma maior alcoolemia; e fatores hormonais, influenci- nas do hepatócito, induzindo alterações funcionais e for-
ando os mecanismos imunitários e metabólicos.3 A mé- mação de novos antígenos. As alterações em membra-
dia de idade dos nossos pacientes foi de 40 anos, com nas de organelas, especialmente de mitocôndrias e de
mediana de 45 anos, sem diferença significativa entre ho- retículo endoplásmico, produzidas pela peroxidação
mens e mulheres. Quando o diagnóstico foi estabeleci- lipídica, são responsáveis pela degeneração hidrópica
do, 38% casos já tinham cirrose, indicando que o diag- (acúmulo de água e eletrólitos), lesão freqüentemente en-
nóstico é feito em fase avançada da doença em quase 2/ contrada na hepatopatia alcoólica, e que confere aos
3 dos pacientes. Alguns aspectos epidemiológicos dos hepatócitos aspecto de célula vegetal.
casos diagnosticados em Vitória estão no Quadro 1. Além da agressão direta causada pelo estresse
oxidativo, todos os metabólitos gerados pelo oxidação
PATOGÊNESE do etanol podem interagir com aminoácidos, provocando
uma série de alterações funcionais e morfológicas. Por
As principais lesões da hepatite alcoólica – esteatose, exemplo, as alterações em tubulina prejudicam o trans-
corpos hialinos, inflamação e fibrose – não dependem porte citoplasmático, com acúmulo de triglicerídios e pro-
exclusivamente do metabolismo do etanol, mas também teínas no hepatócito. Já as modificações nas proteínas
de fatores genéticos e ambientais, o que em parte justifi- do citoesqueleto, como citoqueratinas, resultam em de-
ca o desenvolvimento da doença somente em uma pe- pósito hialinos no citosol (corpos de Mallory). O surgi-

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HEPATITE ALCOÓLICA

diretamente pelo acetaldeido e radicais li-


vres explica porque, mesmo na ausência
de inflamação, pode ocorrer a fibrose peri-
sinusoidal, característica da hepatopatia
alcoólica crônica.
Além dos efeitos diretos sobre os hepa-
tócitos, capazes de produzir degeneração
e necrose e gerar inflamação, o metabo-
lismo do etanol torna o hepatócito mais
susceptível a sofrer necrose e apoptose
por ação de outras agressões, especial-
mente porque torna a célula mais sensí-
vel aos efeitos lesivos mediados pelo TNF
e outros agonistas indutores de apoptose.
Há evidências de relação direta entre ní-
veis mais elevados de TNF (no fígado e ou
na circulação) e gravidade da lesão hepá-
tica, em alcoolistas e em modelos experi-
mentais de intoxicação etílica. Essa sen-
sibilização ao TNF se deve à criação de
Fig. 1. Esquema mostrando os diferentes mecanismos patogenéticos envolvidos na um ambiente redutor dentro dos hepa-
hepatite alcoólica. REL:retículo endoplasmático liso; ADH e AlDH: álcool e acetaldeído
tócitos, criado pelos radicais livres gera-
desidrogenases; Ac: anticorpos; LT:linfócitos T; TNFa: fator de necrose tumoral alfa; IL-1:
interleucina 1; TGFb: fator de crescimento transformador beta. dos pelo etanol no REL, o que pode, atra-
vés da tioredoxina, alterar algumas vias
mento de novos epítopos induzem o sistema imune a de ativação do TNF. Há facilitação das rotas que induzem
produzir anticorpos, células T auxiliares e citotóxicas, apoptose e ou necrose, e inibição das chamadas rotas
capazes de agredir hepatócitos, contribuindo para necrose de ativação da sobrevivência, que induzem mecanismos
e inflamação. anti-apoptóticos e tornam a célula mais resistente ao
Por outro lado, o etanol favorece a absorção de endo- estresse. Além disso, há também aumento da síntese de
toxinas e outros produtos da flora intestinal, que agem receptores Fas, que na presença do agonista (ligante do
sobre as células de Kupffer promovendo produção de Fas, Fas-L) induz apoptose.
citocinas (especialmente TNF alfa, mas também IL-1, IL- Dos fatores ambientais, o ferro parece mais importan-
6 e IL-8), favorecendo a inflamação, a agressão hepato- te: o aumento de sua concentração nos hepatócitos favo-
citária e a estimulação das células estreladas, com indu- rece a geração de radicais livres, agravando assim os
ção de fibrose. mecanismos de agressão hepatocitária. Pacientes com
O infiltrado de neutrófilos na hepatite alcoólica deve- aumento de absorção de ferro que são alcoolistas crôni-
se à produção de grande quantidade da quimiocina CxCL cos tendem a desenvolver lesão hepática progressiva com
8 (IL-8) por parte das células de Kupffer, ativadas não só maior freqüência. Há também relação bastante estreita
pelos metabólitos do etanol (acetaldeido e radicais livres), entre os níveis de ferro nos hepatócitos e a progressão
como pelos produtos bacterianos absorvidos do intesti- da hepatopatia alcoólica.
no. Também os hepatócitos em estresse oxidativo produ- Os fatores genéticos são importantes porque podem
zem e liberam citocinas (IL-1 e TNF) e quimiocinas (IL-8), alterar a expressão de diferentes isoformas de desidro-
que favorecem a migração dos neutrófilos. genases alcoólica e do acetaldeido, CYP2E e de recep-
A fibogênese é aspecto importante na hepatite alcoó- tores do TNF, criando condições para geração de maior
lica. A fibrose progressiva se deve à ativação de todas as quantidade de metabólitos tóxicos do etanol, ou para tor-
células produtoras de matriz extracelular no fígado: as nar o hepatócito mais susceptível aos seus efeitos.
células estreladas e os fibroblastos e miofibroblastos dos Esses conhecimentos sobre a patogênese da hepati-
espaços porta. Essa ativação, principalmente das células te alcoólica, obtidos de dados experimentais ou de estu-
estreladas, se faz por ação de citocinas (TNF alfa, IL-1) dos de células humanas “in vitro”, tem sido confirmados
produzidas pelas células de Kupffer e pelos fagócitos dos em observações clínicas, que já demonstraram altos ní-
focos inflamatórios, e também por ação direta do acetal- veis plasmáticos de IL-1, TNFa, e especialmente de IL-6
deido, dos radicais livres e aldeídos gerados por pero- em pacientes com hepatite alcoólica, com correlação po-
xidação lipídica. Essa ativação das células estreladas sitiva com a gravidade da lesão. Tem sido demonstrado

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que mutações gênicas (polimorfismos), ligadas ao con- nutricional foi considerado regular ou bom no momento
trole da resposta imunitária inata e adaptativa, se relacio- do diagnóstico.
nam com a maior ou menor gravidade da hepatite alcoó- Laboratorialmente são importantes a presença de ane-
lica, em diferentes indivíduos. mia macrocítica, leucocitose, hiperbilirrubinemia variável,
transaminases caracteristicamente pouco elevadas e com
ASPECTOS CLÍNICOS predomínio da AST sobre a ALT. A anemia macrocítica,
observada freqüentemente no alcoolista crônico, pode ser
Como ocorre com a hepatite viral e com a hepatite devida a deficiência de folato e/ou a ação direta do etanol
medicamentosa, a hepatite alcoólica tem amplo espec- no desenvolvimento dos eritrócitos. Leucocitose modera-
tro clínico, variando de formas totalmente assintomáticas da esteve presente em 50% dos casos. A leucocitose é
a quadros fulminantes. Os casos assintomáticos e as maior nos casos mais graves, e a literatura registra ca-
formas brandas são muito mais freqüentes que os casos sos de até 130 mil leucócitos. Já observamos paciente
graves. Não há dúvida de que a hepatite alcoólica pode com 64 mil leucócitos. A hiperbilirrubinemia geralmente
evoluir de forma assintomática, ou com poucos sintomas, não é acentuada, e na nossa casuística esteve presente
por muito tempo, insidiosamente, até a cirrose hepática, em 2/3 dos casos, com valor médio de 5 mg%. Tipica-
sendo o quadro histológico muito mais comum que a mente o aumento das transaminases é pequeno ou mo-
expressão clínica da doença. derado, raramente ultrapassando 400 unidades, com re-
A existência de casos subclínicos, com potencial lação de AST/ALT acima de 2, ao contrário do observado
evolutivo para formas fibrogênicas avançadas, enfatiza a nas hepatites virais. A deficiência de piridoxina, observa-
necessidade da investigação precoce do alcoolista crôni- da em alcoolistas, é a explicação para a elevação menor
co, antes do aparecimento de sinais evidentes de lesão da ALT na hepatite alcoólica. A AST média em nossos
hepática importante. Por outro lado, as formas graves, casos foi de 200 U, e quando raramente o limite de 400 U
menos comuns, podem ser dramáticas, com evolução é ultrapassado, vale a pena pensar em outras etiologias,
para insuficiência hepática e óbito em poucos dias ou como toxicidade por drogas ou hepatite viral.17 Amino-
semanas. Embora possam ocorrer em fígado até então transferases normais não excluem o diagnóstico de he-
apenas com esteatose, os quadros fulminantes geralmen- patite alcoólica, ocorrendo em 10% dos casos. A fosfatase
te são devidos a surtos de hepatite alcoólica em fígado já alcalina está um pouco alterada, e a gama GT invariavel-
cirrótico. mente elevada. A atividade de protrombina, embora não
O quadro clínico típico da hepatite alcoólica é o de um sendo teste diagnóstico, é o exame isolado que melhor
alcoolista crônico, com aumento recente de ingestão de avalia o prognóstico imediato da hepatite alcoólica.
álcool, que passa a apresentar dor no hipocôndrio direito, Hiperbilirrubinemia acentuada é outro indicador de mau
febre, icterícia e hepatomegalia dolorosa, podendo ou não prognóstico. A hipoalbuminemia é comum. Na prática, as
ter outros sinais de insuficiência hepática e/ou hiperten- três alterações mais indicativas de etiologia alcoólica são
são portal (esplenomegalia, ascite, aranhas vasculares, AST/ALT maior que 2, macrocitose e elevação de Gama
eritema palmar, etc.). Esse quadro, apesar de muito su- GT, com sensibilidade de 35%-73% e especificidade de
gestivo de hepatite alcoólica, é pouco freqüente, e não se 75%-86% .
deve esperar por manifestações tão evidentes para se As alterações clínicas e laboratoriais mais indicativas
pensar no diagnóstico, sob pena de só se fazer diagnós- de hepatite alcoólica estão resumidas no quadro 2 .
tico em uma minoria de casos mais avançados. O início
da sintomatologia é geralmente insidioso, com manifes- DIAGNÓSTICO. ALTERAÇÕES HISTOLÓGICAS
tações inespecíficas, como anorexia, adinamia, náuseas
e vômitos. A hepatomegalia, muitas vezes dolorosa, é o Como as manifestações clínicas e laboratoriais da
sinal clínico mais encontrado, e estava presente em 92% hepatite alcoólica são inespecíficas, o diagnóstico da
de 271 casos diagnosticados em Vitória; já a espleno-
megalia só foi identificada em 20%. Observamos icterícia
em 60% dos casos, mas vale lembrar que os casos le- Quadro 2
ves, oligossintomáticos, sem icterícia, com freqüência não Hepatite alcoólica: suspeição clínica e laboratorial
são diagnosticados. Ascite, dor abdominal e febre foram • Ingestão abusiva de etanol • Macrocitose
registrados aproximadamente em um terço dos pacien- • Aumento recente de ingestão • Leucicitose
tes. Infecção, hemorragia digestiva e encefalopatia foram • Hepatomegalia dolorosa • Gama GT elevada
observados respectivamente em 12%, 16% e 12% dos
• Febre • AST > ALT (geralmente > 2)
casos. Embora a desnutrição seja muito comum neste
• Sinais de hepatopatia crônica
tipo de paciente, em um quarto dos casos o estado

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doença deve ser estabelecido em bases histológicas. A predomínio centrolobular. Este tipo de fibrose é muito su-
histologia permite não só o diagnóstico da hepatite alco- gestiva de doença hepática alcoólica, ou de esteato-he-
ólica, mas também pode identificar outras lesões que patite não alcoólica (que tem quadro histológico
podem ocorrer no alcoolista crônico. Em futuro próximo, indistinguível da hepatite alcoólica), e raramente observa-
é provável que marcadores sorológicos de fibrogênese, da em outras hepatopatias crônicas. À medida que a
isoladamente ou em conjunto de testes (como por exem- doença progride, a fibrose se estende, aproxima estrutu-
plo o fibroscore e outros), possam substituir a biópsia ras vasculares, insula hepatócitos, subvertendo a arqui-
hepática na avaliação da fibrose na hepatopatia alcoóli- tetura hepática.
ca. No momento, na prática clínica, a biópsia hepática A transição entre hepatite alcoólica e cirrose é lenta e
permanece ainda como o padrão ouro no diagnóstico e gradual, e durante muito tempo as duas lesões co-exis-
estadiamento da doença. Quando a biópsia é contra- tem. Em aproximadamente 40% de nossos casos, já
indicada, geralmente por distúrbios de coagulação, o di- havia cirrose quando o diagnóstico de hepatite alcoólica
agnóstico será presuntivo, baseado em dados epide- foi feito, o que indica diagnóstico tardio em proporção
miológicos, clínicos e laboratoriais. significativa de casos. Os aspectos histológicos mais
À semelhança do que ocorre com o quadro clinico, indicativos de progressão para cirrose são a extensão da
existe um amplo espectro de manifestações histológicas, necrose e da fibrose.
variando de processo inflamatório intenso, no qual o ter- Na figura 2 estão alguns dos aspectos clássicos da
mo hepatite é bem aplicado, a quadros com lesão hepato- hepatite alcoólica. No Quadro 3 estão listadas as altera-
celular e infiltrado inflamatório de menor intensidade. A ções consideradas indispensáveis ao diagnóstico, e aque-
distribuição zonal das lesões é uma das características las que, embora freqüentemente encontradas, não são
da hepatite alcoólica, sendo a região centrolobular (zona obrigatórias para a caracterização da doença.
3 do ácino hepático) a mais intensamente acometida,
por várias razões: recebe oxigênio sob menor tensão; a TRATAMENTO
hipóxia relativa é exacerbada pela anemia e pelo estado
hipermetabólico, comuns nos alcoolistas crônicos; mai- O tratamento da hepatite alcoólica é suportivo e sinto-
or concentração de citocromo P450, com maior produ- mático, e a única medida específica é a abstinência de
ção de acetaldeído e de radicais livres. O corpúsculo álcool. O paciente deve ser internado, mesmo nos casos
hialino de Mallory, material eosinofílico de localização com poucos sintomas, para que a retirada do etanol pos-
perinuclear, é muito sugestivo de hepatite alcoólica, so- sa ser assegurada, e para proporcionar ao paciente uma
bretudo quando localizado na região centrolobular, mas
não é nem necessário para o diagnóstico, nem
patognomônico da doença. O infiltrado infla-
matório, com predomínio de neutrófilos, está
mais relacionado às áreas de necrose e à pre-
sença dos corpos de Mallory. Às vezes, exis-
te grande discrepância entre a intensidade da
necrose e do infiltrado inflamatório: casos de
necrose submaçica com escasso infiltrado in-
flamatório, e casos com grande exsudação
neutrofílica com pouca lesão hepatocelular. A
intensidade da inflamação guarda também re-
lação temporal com o uso do etanol: se a
biópsia for feita imediatamente após a
internação, a inflamação pode ser menos in-
tensa do que o observado com biópsia reali-
zada uma ou duas semanas após a parada
do uso de etanol. Isso pode ser devido à ação
inibitória do etanol sobre a migração de
leucócitos, à depressão medular causada pelo
álcool, ou por redução da adesividade dos Fig. 2 – Aspectos histológicos da hepatite alcoólica. A- Múltiplos focos de necrose
leucócitos. A necrose e inflamação são estí- com infiltrado de neutrófilos. Presença de esteatose e de corpos de Mallory. B-
mulos importantes à formação da fibrose, que Aspecto típico de um corpúsculo hialino de Mallory. C- Fibrose pericelular e infiltrado
inicialmente é pericelular, subsinusoidal, com de neutrófilos. D- Hepatite alcoólica em fase cirrótica.

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e que podem ser adotadas na prática clínica, e outras


Quadro 3 ainda em fase experimental.13,14,27,28,30
Diagnóstico histológico da hepatite alcoólica

a) Corticosteróides.
Lesões consideradas Lesões freqüentes, não
indispensáveis indispensáveis
O uso de corticosteróides é a medida especial mais
estudada e empregada nas formas graves de hepatite al-
• Necrose focal • Esteatose
coólica. A despeito de treze estudos controlados e de
• Degeneração hidrópica • Corpúsculos de Mallory seis metanálises, existem ainda controvérsias a respeito
• Infiltrado neutrofílico • Necrose em ponte do emprego da medicação. Teoricamente a droga é útil,
pois inibe a produção de citocinas; diminui a ativação de
• Fibrose pericelular • Apoptose
células estreladas e aumenta a produção de colagenase;
• Distribuição centrolobular • Proliferação ductular reduz a quimiotaxia de leucócitos ; e aumenta a ingestão
das lesões • Megamitocôndrias calórica e a síntese de albumina. No entanto, não modifi-
ca substancialmente as alterações histológicas, não di-
• Hepatócitos induzidos
minui o tempo de cura, não impede a evolução para cirro-
• Colestase se. Além disto, pode aumentar a susceptibilidade a infec-
• Fibrose invasiva ções. Nos casos de menor gravidade, que são a imensa
maioria, há um consenso de que a medicação não deve
ser utilizada.
completa investigação diagnóstica, além de adequadas Nos casos graves, de pior prognóstico imediato, com
medidas terapêuticas. Na fase inicial do tratamento, é hiperbilirrubinemia acentuada e com atividade de
fundamental que o paciente, freqüentemente com protrombina abaixo de 40%, ou nos pacientes com fun-
ingestão calórica insuficiente (por anorexia, náuseas e ção discriminatória de Madrey (escore em que a
vômitos), possa ingerir uma dieta adequada, com 30 ca- bilirrubinemia e o tempo de protrombina são avaliados)
lorias e 1g de proteína por kg de peso. É necessário acima de 32 e/ou encefalopatia, a maioria dos trabalhos
complementação vitamínica e mineral, especialmente de sugere que a mortalidade imediata é diminuída em um
elementos freqüentemente depletados no alcoolista, como subgrupo de pacientes: com encefalopatia, mas sem in-
tiamina, ácido fólico, piridoxina, magnésio, potássio. fecção, insuficiência renal ou hemorragia digestiva. A
O paciente com hepatite alcoólica está sujeito a uma American Society of Gastroenterology recomenda, a par-
série de complicações, relacionados ao uso do etanol tir de 1998, o uso da droga nos casos graves.
ou à própria lesão hepática, que devem ser identificadas O objetivo principal com o uso de corticosteróides é a
precocemente e tratadas de modo adequado. A síndrome redução da mortalidade imediata. Quando usado por via
de abstinência é frequente, não devendo ser confundida oral, a dose geralmente é de 40 mg de prednisona por
com encefalopatia hepática. Recomenda-se dose baixa quatro semanas, com redução gradual em mais quatro
de benzodiazepínicos nos pacientes já com certo grau semanas. Segundo Mathurin (2005), é possível identifi-
de insuficiência hepática, além de reposição de tiamina car precocemente o paciente não respondedor ao
e magnésio. As infecções devem ser procuradas ativa- corticóide, pela diferença entre bilirrubinemia no primeiro
mente e, quando identificadas, tratadas de imediato. e sétimo dia de tratamento. Recente estudo multicêntrico,
Atenção especial merece a peritonite bacteriana espon- com inclusão de casos com função discriminatória de
tânea: a punção e o exame do líquido ascítico devem Madrey >32, conclui que: a) após 28 dias, a sobrevida foi
ser realizados sistematicamente nos pacientes com significativamente maior no grupo tratado; b) tratamento
ascite. Em caso de peritonite bacteriana espontânea, com corticosteróide, idade e creatinina foram indicado-
estar atento à possibilidade de evolução para insuficiên- res independentes de sobrevida em 28 dias; c) a melhora
cia renal e, além de esquema adequado de antibióticos com a medicação é rápida e se inicia após o sétimo dia
não nefrotóxicos, deve-se expandir volume plamático com de tratamento. A ação dos corticosteróides é mais evi-
infusão de albumina humana. O uso de diuréticos deve dente nos pacientes com presença maior de neutrófilos
ser sempre cauteloso. Monitorizar o desenvolvimento de no sangue e no tecido hepático, já que nestes casos há
insuficiência renal e hipercalemia. A encefalopatia deve maior produção de citocinas, antagonizadas pela medi-
ser prevenida nos pacientes com insuficiência hepática, cação. Outros argumentos a favor da droga são o baixo
e tratada com restrição protéica, neomicina metronidazol custo, a falta de efeitos colaterais graves a curto prazo e,
e lactulose. sobretudo, a melhora na sobrevida imediata.
Nos casos mais graves, várias medidas terapêuticas Em resumo: é provável que o uso de corticosteróides
especiais tem sido propostas, algumas bem estudadas possa beneficiar pacientes com hepatite alcoólica grave;

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mesmo assim a mortalidade ainda é alta, e um expressi- to, talvez relacionado a níveis elevados de fator de necrose
vo número de casos apresentam contra-indicações ao tumoral, presente na hepatite alcoólica;
uso da medicação. c) o prognóstico da doença é pior nos pacientes com
desnutrição mais intensa;
b) Substâncias inibidoras de citocinas. d) a suplementação nutricional (oral, enteral ou
Com base no importante papel patogênico desempe- parenteral) melhora o estado nutricional, não causando
nhado por citocinas pró-inflamatórias na hepatite alcoóli- nem agravando encefalopatia.
ca, substâncias com ação anticitocinas têm sido utiliza- Apesar destas evidências, estudo controlado multi-
das no tratamento da doença. A primeira, e a mais estu- cêntrico, com suplementação parenteral de aminoácidos
dada até hoje, foi a pentoxifilina, que é inibidor seletivo da por trinta dias em pacientes com hepatite alcoólica gra-
fosfodiesterase. No estudo pioneiro de Akriviadis, em 2000, ve, não diminuiu significativamente a mortalidade, embo-
a droga foi usada em 101 pacientes com hepatite alcoó- ra tenha melhorado parâmetros bioquímicos e nutri-
lica grave (função discriminante de Madrey >32), na dose cionais.36 Estudos recentes sugerem que associação de
de 400 mg três vezes ao dia por quatro semanas, com nutrição enteral total e predinisolona pode representar uma
redução de 40% na mortalidade imediata. A redução sig- boa estratégia de tratamento nas formas graves de hepa-
nificativa na mortalidade em relação aos controles foi ob- tite alcoólica, merecendo estudos controlados.
tida por diminuição na mortalidade por síndrome hepato- Do ponto de vista prático, há indicação de suple-
renal, sugerindo ação específica nesta grave complica- mentação nutricional quando o alcoolista não conseguir
ção, geralmente fatal. A droga é bem tolerada e tem bai- ingerir a dieta adequada. Os preparados convencionais
xo custo. Mas são necessários outros estudos antes que de aminoácidos, bem tolerados, e mais econômicos,
a pentoxifilina seja utilizada de rotina. No Brasil, já existe devem ser usados como primeira escolha, ficando o uso
alguma experiência com a medicação, e um grupo de de aminoácidos ramificados reservados aos pacientes
Brasília (Ferreira et al, Semana do Aparelho Digestivo, com encefalopatia.
Recife 2004) em casuística ainda pequena (12 casos) Em relação a suplementação dietética especial, as
observou tendência a redução de mortalidade. substâncias S-adenosilmetionina (SAM) e fosfatidilcolina
Outras drogas que têm sido experimentadas são o têm sido muito estudadas nos últimos anos. O uso da S-
infliximabe, que é um anticorpo monoclonal contra TNF adenosilmetionina (forma ativada da metionina) tem como
que bloqueia a atividade biológica da citocinas (usado finalidade restaurar níveis depletados de metionina e de
isolado ou associado a corticóide), e o etanercept, subs- glutation, freqüentemente observados no alcoolista e re-
tância que neutraliza o TNF solúvel. A experiência com lacionados com a susceptibilidade do fígado à ação da
estas substâncias ainda é pequena e já foram detecta- endotoxemia e de citocinas. Além disto, a deficiência de
dos problemas com a utilização delas, como risco au- SAM pode causar, por redução das reações de metilação,
mentado de infecção e possível inibição de regeneração lesão de membrana celular. Experimentalmente, em ma-
hepática. São necessários estudos controlados para ava- cacos babuínos submetidos ao etanol, o uso de SAM
liar as duas drogas. melhorou níveis de metionina e glutation. No entanto a
substância não parece ter efeito no metabolismo do
c) Suplementação Nutricional. colágeno. A fosfatidilcolina, princípio ativo da lecitina
A presença de má nutrição calórica e protéica é mui- polinsaturada, está também depletada em alcoolistas
to comum no alcoolista crônico, especialmente nos pa- crônicos, e a sua administração tem importante ação na
cientes com hepatopatia, sendo importante co-fator fibrogênese, diminuindo a ativação de células estreladas
etiológico na patogênese da doença hepática alcoólica. e ativando a produção de colagenase. Experimentalmen-
Os pacientes com freqüência têm deficiências em folato, te, em macacos babuinos submetidos ao etanol, a
tiamina, piridoxina e vitamina A. A principal causa de fosfatidilcolina impediu evolução para cirrose.
desnutrição no alcoolista é a diminuição da ingestão Também foi descrita em macacos a diminuindo do
alimentar, mas também contribuem os distúrbios de estresse oxidativo, com redução de 4-hidroxinonenal e
absorção, além de perdas excessivas e aumento nas F2-isoprostano. Estes resultados em animais despertou
necessidades de nutrientes. As calorias fornecidas pelo grande interesse e esperança com o uso da substância.
etanol são destituídas de valor biológico, sendo consi- No entanto, em estudo recente, multicêntrico, com gran-
deradas “calorias vazias”. de número de pacientes alcoolistas que apresentavam
São várias as razões que justificam a suplementação fibrose ou cirrose inicial, e que mantinham ingestão mo-
nutricional na hepatite alcoólica: derada de etanol, o uso da droga não demonstrou benefí-
a) presença freqüente de desnutrição; cios em termos de prognóstico ou regressão da fibrose.
b) anorexia intensa nos primeiros dias de tratamen- Enquanto os estudos em animais avaliaram a substância

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na prevenção da doença alcoólica (com benefícios), em saria maior consumo de oxigênio e hipóxia na região
humanos o que se objetivava era a reversão de altera- centrolobular. A droga diminuiria o estado hipermetabólico,
ções já constituídas, como fibrose e cirrose (sem benefí- reduzindo o consumo de oxigênio e a vulnerabilidade da
cio aparente). região central à hipóxia. A dose proposta foi de 300 mg
Em resumo, a suplementação dietética com S- por dia. No entanto, os bons resultados obtidos pelo gru-
adenosil metionina e fosfatidilcolina é terapia ainda expe- po que idealizou o tratamento, a curto e a longo prazo,
rimental, com alguns aspectos promissores, e outros não foram confirmados por outros estudos. Mais recente-
decepcionantes. mente, não se demonstrou ação do propiltiouracil na
hemodinâmica esplâncnica e sistêmica e na concentra-
d) Transplante hepático. ção de oxigênio em pacientes alcoolistas, cirróticos e
O transplante hepático é uma alternativa viável para o com hepatite alcoólica. Também meta-análise recente não
alcoolista cirrótico descompensado, apresentando resul- revelou nenhum efeito significativo da droga na mortalida-
tados semelhantes a transplantes por outra etiologia. de e em complicações da hepatopatia alcoólica. Com
Como a maioria dos grupos de transplantes exige uma justificadas razões a droga não tem sido usada rotineira-
período mínimo de seis meses de abstinência alcoólica, mente no tratamento da hepatite alcoólica.
isto dificulta muito o transplante de pacientes com hepa- O uso de anabolizantes já foi utilizado, na década de
tite alcoólica grave ou cirróticos com surto de agudização, 60, com a finalidade de estimular a regeneração hepáti-
geralmente em fase ativa de ingestão de etanol. Mas exis- ca, em alcoolistas com esteatose. Estudos controlados
tem relatos de hepatite alcoólica transplantados com su- não mostraram vantagem com o uso da droga, que foi
cesso, e o assunto tem merecido maior atenção. Após o abandonada. Nas décadas de 80 e 90, a utilização de
transplante, não é raro o retorno ao alcoolismo, podendo oxandrolona, na dose de 80 mg por dia, por trinta dias, se
o paciente evoluir rapidamente para formas graves da mostrou útil na hepatite alcoólica, com aumento de
hepatopatia alcoólica. sobrevida em pacientes com doença moderada (mas não
nos casos graves). Apesar disto, a droga acabou não tendo
e) MARS (molecular adsorvents recycling grande aceitação, e meta-análise recente não demons-
system) trou benefícios com o uso de anabolizantes.
É um sistema de suporte da função hepática, à es- Baseados em estudo experimentais, infusão de insu-
pera de recuperação clínica do paciente ou realização lina e glucagon foi utilizada com o objetivo de estimular
de transplante de fígado. O princípio é uma diálise do regeneração hepática, com doses de 24 unidades de in-
sangue em solução de albumina, com o intuito de remo- sulina e 2,4 mg de glucagon em soro glicosado de 12x12
ver metabólitos tóxicos que se ligam à albumina, como horas, durante 3-6 semanas. Na maioria dos estudos, a
bilirrubina e sais biliares. Estudos preliminares mostra- mortalidade foi maior no grupo com a medicação, e em
ram melhora de função renal, hepática e hemodinâmica, todos houve relato de hipoglicemia, com um óbito. Este
e é possível que o método possa aumentar a sobrevida tipo de tratamento, além de experimental, é potencial-
de pacientes em lista de espera de transplante hepáti- mente perigoso, não devendo ser usado na prática clíni-
co. É um método muito caro e que necessita ser melhor ca. Tratamento seguro para estimular regeneração hepá-
avaliado. tica infelizmente ainda não está disponível.
A colchicina foi usada a longo prazo no tratamento da
f) Vasoconstrictores e Albumina cirrose hepática, sendo observada redução de mortalida-
Uma das principais causas de óbito na hepatite al- de por um grupo mexicano. Usado a curto prazo na hepa-
coólica é o desenvolvimento de síndrome hepato-renal. tite alcoólica, não reduziu mortalidade. Seu valor a longo
Estudos recentes mostram que, em pacientes cirróticos, prazo, com a finalidade de prevenir cirrose, ainda não foi
a infusão de substâncias vasosconstrictoras e albumina demonstrado. Metanálise recente não mostrou benefíci-
melhora a sobrevida dos pacientes com síndrome hepato- os da droga na cirrose alcoólica.
renal. É possível que esta associação de drogas possa A ingestão crônica de etanol e seu metabolismo pro-
também melhorar o prognóstico dos pacientes com he- duz geração de radicais livres e reduz as defesas
patite alcoólica com insuficiência renal funcional, mas antioxidantes do organismos, com diminuição de tocoferol,
isto ainda não foi demonstrado. selenium e glutation. Baseados nestes fatos, que têm
comprovação experimental, diversas substâncias supos-
g) Outras medidas tamente com potencial antioxidante têm sido usadas no
O uso de propiltiouracil no tratamento da hepatite al- tratamento da doença hepática alcoólica, como a vitami-
coólica foi baseado na teoria da existência de um estado na E, selênio, ácido tiótico e silimarina. Nenhuma delas
hipermetabólico produzido pelo uso do etanol, que cau- mostrou ação convincente, e altas doses de antioxidantes

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não reduzem mortalidade de pacientes graves. A uso da biópsia hepática na investigação da hepatopatia
fosfatidilcolina e a S-adenosilmetionina, que podem ser alcoólica. Pensamos que a realização de biópsia hepáti-
consideradas antioxidantes, pois previnem peroxidação ca não é só aceitável, é indispensável para o diagnóstico
lipídica, já foram discutidas. e estadiamento da doença hepática alcoólica. É a única
maneira de se identificar a fibrose perivenular, indicador
PROGNÓSTICO histológico de tendência a progressão para doença avan-
çada, possibilitando um acompanhamento mais cuida-
O prognóstico da hepatite alcoólica é muito variável: a doso naquele paciente com risco maior de desenvolver
mortalidade imediata pode variar de zero, em casos cirrose. Além disto, é capaz de diagnosticar ou sugerir
assintomáticos ou com sintomas leves, a mais de 80%, outra condições comuns a alcoolistas, como hepatite
quando apenas casos graves são incluídos no estudo. crônica viral, doença granulomatosa, depósito excessivo
Levantamento de literatura mostrou que quando apenas de ferro, entre outras. A idéia de que o alcoolista só deve
casos com diagnóstico histológico são incluídos, ou seja, ser biopsiado quando apresenta sinais ou sintomas de
sem alterações de coagulação importante, a mortalidade hepatopatia avançada é um contra-senso. Paciente
foi de aproximadamente 7%. Os dados clínicos e labo- ictérico, com aranhas vasculares, com ascite, com fíga-
ratoriais indicativos de mau prognóstico imediato são a do grosseiramente alterado no exame ultra-sonográfico,
hemorragia digestiva, encefalopatia, insuficiência renal, com varizes esofageanas – este paciente não precisa de
icterícia e leucocitose intensa, hipoalbuminemia e ativi- biópsia, aliás, com freqüência nem pode ser biopsiado!
dade de protrombina baixa. A presença de ascite e de Este é um alcoolista que deveria ter sido biopsiado (e
cirrose também são indicativas de mau prognóstico. De tratado) meses ou anos antes desta fase. A biópsia he-
todos, o que isoladamente mais se correlaciona com o pática percutânea é procedimento seguro, bem tolerado
prognóstico imediato é a atividade de protrombina. A Fun- e de baixo custo – capaz de fazer o diagnóstico e estadia-
ção Discriminatória de Madrey é um bom indicador prog- mento da doença. Além do diagnóstico precoce, é fun-
nóstico [4,6 x (TP em segundos – TP controle) + bilirrubina damental o tratamento do paciente, que é um hepatopata,
em mg], e nos casos com valor superior a 32 a mortalida- mas que antes de tudo é um alcoolista. Tratar a ascite,
de imediata passa de 50%. a hemorragia e as várias manifestações clínicas, dar
A longo prazo, o prognóstico é pior nos pacientes que alta ao paciente e encaminhá-lo ao ambulatório comum,
permanecem com o uso abusivo de álcool, e nos que já sem a preocupação básica de tratar a dependência ao
têm cirrose e ascite. álcool, é um erro cometido com freqüência nos melho-
res hospitais, por excelentes gastroenterologistas e
DIAGNÓSTICO PRECOCE E PREVENÇÃO hepatologistas.
É preciso que o médico identifique o alcoolismo como
Em fases avançadas, a doença hepática alcoólica é doença primária do paciente. Que se relacione com o
de difícil tratamento e de mau prognóstico, mas alcoolista de modo sereno, sem preconceito, esclarecendo
diagnosticada precocemente a doença pode ser reversí- a natureza da doença (enfatizando que o paciente tem
vel, total ou parcialmente, se o alcoolista parar de beber realmente uma doença), e deixando bem claro que o su-
ou reduzir significativamente o uso de etanol. Embora cesso do tratamento passa necessariamente pela para-
mecanismos de fibrogênese já tenham sido ativados, e a da do uso de álcool.
progressão para a cirrose possa ocorrer mesmo em paci- O tratamento do alcoolista deve ser feito por equipe
entes que param de beber, a hepatite alcoólica é condi- multidisciplinar, formada por profissionais com experiên-
ção potencialmente reversível, e a abstinência alcoólica cia em tratamento de alcoolista. Este atendimento deve
produz melhora dramática no quadro clínico, modificando ser realizado concomitantemente ao tratamento da do-
de modo substancial a história natural da doença. Por- ença hepática alcoólica e/ou de outras complicações do
tanto, é perfeitamente compreensível que diagnóstico alcoolismo. Quando não se dispõe de uma estrutura que
precoce e abstinência sejam palavras fundamentais na permita este tipo de assistência, não deve o médico as-
abordagem do paciente com doença hepática alcoólica. sistente relutar em encaminhar o paciente aos Alcoóli-
É necessário identificar os alcoolistas com hepatopatia cos Anônimos, que com métodos simples de valorização
em fase precoce. Como as alterações laboratoriais são de auto-estima têm prestado, há décadas, um inestimá-
inespecíficas, como não existem ainda disponíveis na vel serviço aos pacientes alcoolistas. De qualquer forma,
prática clínica marcadores laboratoriais de fibrogênese, o mesmo sem uma equipe especializada em tratamento
diagnóstico deve ser estabelecido histologicamente, até de dependência, uma orientação segura por parte do
que marcadores de fibrogênese confiáveis sejam introdu- médico assistente pode representar uma importante aju-
zidos na prática clínica. Existem controvérsias sobre o da no tratamento do paciente.

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Há mais de 15 anos, no Hospital Universitário Cassiano


Antonio de Moraes, funciona um Programa Especial de
Atendimento ao Alcoolista, ligado ao Serviço de Gastro-
enterologia, com atendimento ambulatório diário. Os re-
sultados obtidos têm sido gratificantes.

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Endereço para correspondência


Dr. Carlos Sandoval Gonçalves
Rua Eurico Aguiar 1096 – Bairro Santa Lucia
29055-280 – Vitória-ES

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