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FAMÍLIA ESCRAVA: CASAMENTO E COMPADRIO NA VILA DE

SÃO RAIMUNDO NONATO-PIAUÍ (1871-1888)* 1

Déborah Gonsalves Silva**

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar as relações familiares e redes de compadrio
estabelecidas entre a população escrava da Vila de São Raimundo Nonato, Piauí, na segunda
metade do século XIX. Região do Sertão Piauiense caracterizada pela atividade econômica
baseada no desenvolvimento da pecuária e da agricultura de subsistência. A partir de uma
análise de 349 assentos de batismo e 266 registros de casamento envolvendo escravos
procuramos analisar as características demográficas e da economia da região, o grau de
ilegitimidade presente entre a população cativa e as estratégias utilizadas pelos escravos para
estabelecerem relações de parentesco e solidariedade dentro e fora da comunidade escrava.

Palavras-chave: Família; Casamento; Compadrio; Sertão do Piauí; Século XIX.

*Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em São Pedro/SP
– Brasil, de 24 a 28 de novembro de 2014.
** Endereço eletrônico: gmdeborah@gmail.com
FAMÍLIA ESCRAVA: CASAMENTO E COMPADRIO NA VILA DE
SÃO RAIMUNDO NONATO-PIAUÍ (1871-1888)* 2

Déborah Gonsalves Silva**

O objetivo deste artigo, que apresenta parte dos resultados obtidos durante o
desenvolvimento de uma pesquisa de Mestrado, é investigar através das uniões matrimoniais,
as possibilidades de formação e de ampliação das redes de relações envolvendo escravos,
livres e libertos. Procurando compreender de que maneira esses sujeitos teciam suas
estratégias de sobrevivência e de ampliação das redes sociais e qual o significado das mesmas
para a formação e manutenção da família escrava.
Tomamos como contexto espacial para esta investigação, a Vila de São Raimundo
Nonato, hoje Município de mesmo nome, localizado no Sudeste do Estado do Piauí. Durante
o século XIX, a região em estudo caracterizou-se por uma produção voltada, principalmente,
para o mercado interno, através da agricultura de subsistência e da pecuária. Além disso, é
necessário salientar que essas características tornaram o modelo de produção peculiar em
relação às regiões de grandes plantéis voltadas essencialmente para o mercado externo,
refletindo diretamente no regime escravista local, marcado por uma estrutura de posse escrava
com pequeno número de cativos por propriedade.
A estruturação do texto encontra-se dividida em três seções. Na primeira, faz-se uma
abordagem a respeito da população da Província do Piauí e da Vila de São Raimundo Nonato.
Na segunda seção, destacamos e procuramos analisar os dados obtidos a partir da
documentação sobre as preferências matrimoniais dos cativos, bem como o perfil das
testemunhas dos casamentos. E na terceira seção do texto, analisamos a relação entre o
casamento envolvendo escravos e o grau de ilegitimidade envolvendo os filhos dos mesmos.

SERTÃO DO PIAUÍ: ECONOMIA, POPULAÇÃO E POSSE DE CATIVOS

O processo de ocupação da região, onde, atualmente, delimita-se o Município de São


Raimundo Nonato, assim como em toda a região Sudeste do estado do Piauí, esteve

*Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa de Mestrado desenvolvida na Universidade Federal do
Maranhão (UFMA), no Programa de Pós-graduação em História Social.
**Endereço Eletrônico: gmdeborah@gmail.com
1
fortemente influenciado pela criação de gado, que impulsionou a instalação das primeiras
fazendas no sertão, fazendas estas, caracterizadas pelas grandes extensões de terras, sem
demarcações que estabelecessem os seus limite, onde em sua maioria criavam o gado solto
pela caatinga. (MOTT, 2010).
A Freguesia de São Raimundo Nonato foi criada, em 1832, por meio do Decreto
Regencial 8.832, na Região Confusões. O Distrito-Freguesia foi elevado à categoria de Vila
em 1850, mantendo a mesma denominação e localização anterior. A região marcada pela
escassez de chuvas desenvolveu um modelo de produção agrícola distinto das áreas litorâneas
sendo, portanto, essencialmente voltado para o abastecimento do mercado interno.
Em decorrência disso, até os anos 80, se sustentava a tese de que havia
incompatibilidade entre a escravidão e a atividade de pastoreio no sertão do Piauí. Somente a
partir da obra de Luiz Mott, Piauí Colonial (1985), que se passa a questionar a tese de que o
trabalho escravo no sertão pecuarista era escasso.
Os dados do primeiro censo setecentista elaborado por Pe. Miguel de Carvalho (apud
FALCI, 2000, p. 264), em Descrição do Sertão do Piauí, revelam que a população escrava do
Piauí correspondia a 64,51%, distribuída entre 74,28% de negros e 22,85% de índios. Porém,
a partir do ano de 1855, a Província do Piauí contava com um total de 13.966 cativos, que
constituíam aproximadamente 7% da população total. Em 1822, o número de escravos em
todo o Piauí era de 21.691, deste total, 1.247 encontrava-se em São Raimundo Nonato
(CHAVES, 1998, p. 194-195).
No Recenseamento Geral do Império (1872), a população escrava do Piauí
correspondia aproximadamente 23.795 habitantes, sendo que, em relação à população total, o
percentual era de 11,8%. O censo de 1872 revela uma população escrava em São Raimundo
Nonato com pouco mais de 500 cativos, de um total de 5.334 habitantes, ou seja, 88% da
população era livre, em sua maioria proprietários de terras. Na tabela 1 podemos observar o
número de escravos em relação à população livre de São Raimundo Nonato, a partir dos
dados do recenseamento geral de 1872:

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TABELA 1 – Quadro da População Livre e Escrava de São Raimundo Nonato por sexo
e cor, 1872
População Livre População Escrava
Cor Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
Brancos 657 34,1 619 21,5 1276 26,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Pardos 1016 52,8 1961 68,1 2977 62,0 132 57,9 105 34,7 237 44,6
Pretos 198 10,3 180 6,3 378 7,9 96 42,1 198 65,3 294 55,4
Caboclos 53 2,8 119 4,1 172 3,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Total 1924 100 2879 100 4803 100 228 100 303 100 531 100

Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.

Os dados da tabela apresentam um maior número de escravas em relação aos escravos


do sexo masculino. De fato, nota-se que 57% dos escravos da região eram do sexo feminino.
Na matrícula de 1873, dos 25.533 escravos registrados na Província, 50,7% destes eram do
sexo feminino. É importante destacarmos a disparidade existente entre os dados dos diferentes
levantamentos populacionais da época, porém essa maioria feminina ocorre em diferentes
regiões da Província. Esse percentual de mulheres, assim como a diminuição do número de
escravos, pode ser explicado a partir de razões como o fim do tráfico atlântico de escravos
que, segundo Chaves, “estancou o comércio” internacional de escravos, fazendo com que
muitos agenciadores comprassem escravos no Piauí por preços vantajosos (CHAVES, 1998,
p. 195).
Em relação a estrutura de posse escrava para São Raimundo Nonato, registra-se um
predomínio dos pequenos plantéis (1 a 5 escravos), ao passo que, o maior número de escravos
encontrava-se nos plantéis considerados médios (6 a 10 escravos). Apesar do número de
cativos considerado pequeno3, é possível perceber a sua importância nas atividades de
pastoreio, bem como identificar através da documentação em análise, o estabelecimento de
relações familiares e de parentesco entre escravos, livres e libertos. Questões que serão
destacadas nas próximas seções do texto.

1 Os dados analisados nos inventários post-mortem de São Raimundo Nonato, entre os anos 1840 a 1886,
demonstram que o maior número de escravos encontrava-se sob posse de um menor número de proprietários,
apresentando uma média de 8,53 escravos por propriedades que possuíam entre seis e dez escravos. Por outro
lado, verifica-se um número maior de proprietários que possuíam entre um e cinco escravos (SILVA, 2013, p.
44).

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RELAÇÕES FAMILIARES ENVOLVENDO ESCRAVOS

Nesta seção pretendemos analisar as estratégias de proteção e solidariedade tecidas


através do casamento envolvendo escravos, livres e libertos na Vila de São Raimundo Nonato
na segunda metade do século XIX. Os estudos a respeito da família escrava avançaram nas
últimas décadas, destacando a possiblidade do estabelecimento de relações familiares
envolvendo escravos, bem como as estratégias de sobrevivência e de resistência adotadas
pelos mesmos no contexto escravista. Robert Slenes (1999) analisa, em sua obra Na senzala,
uma flor, a formação da família, das redes de parentesco e os significados que essas relações
possuíam para os cativos. Para ele, estas eram uma estratégia de “resistência cultural” dos
escravos em relação ao domínio do senhor. Apesar de não considerar a pacificação no
cativeiro como razão primeira dessas relações, o autor aponta as relações familiares entre
escravos como forma de sobrevivência e de resistência ao sistema escravista.
Nessa perspectiva, inúmeros trabalhos sobre escravidão passam a destacar as
experiências cotidianas desses cativos, bem como as possibilidades de organização familiar e
de parentesco e os significados dessas relações em suas vidas, deixando de lado a ideia do
escravo como “peça” no sistema escravista.
Sobre a importância da família nessa teia de relações, Sheila de Castro Faria (1998),
considera que a família além de exercer influência na classificação social, proporciona
movimentação e estabilidade aos escravos e, portanto, que as relações de parentesco
(consanguíneo e espiritual) apesar das condições impostas pelos senhores, também se
estabeleciam através das escolhas dos escravos. A autora demonstra que, através do
compadrio, os pais da criança batizada priorizavam nas suas escolhas os padrinhos livres,
libertos e escravos de senhores diferentes, o que, para ela, sugere um grau de sociabilidade
entre esses diferentes segmentos da sociedade.
Apesar do significativo número de estudos em torno da vida familiar escrava no
Brasil, a maior parte dos pesquisadores que se debruçaram sobre esse tema, privilegiam
estados da região do Sudeste, caracterizadas pelos grandes plantéis e por possuírem um
grande número de escravos. No Piauí, por exemplo, os estudos sobre as relações familiares e
de compadrio entre escravos são muito tímidos.
A historiografia piauiense, não obstante, apresenta alguns trabalhos sobre escravidão,
porém ainda existem – como é compreensível em qualquer trabalho com a história – diversas
lacunas acerca da formação e manutenção da família escrava no Piauí. Autores como Miridan

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Brito Falci (2005), Tanya Brandão (1999), Solimar Oliveira Lima (2009) e Luiz Mott (2010),
debruçaram-se na documentação piauiense sobre escravidão dedicando seus estudos a
questões demográficas, sociais e econômicas dessa temática. Nesse sentido, ressalte-se que,
apesar desses autores mencionarem a vida cotidiana dos escravos e suas intensas experiências
vividas no sertão piauiense, os aspectos relacionados à formação familiar e aos seus
mecanismos de manutenção, ao compadrio, à reprodução natural, estabilidade, autonomia,
entre outros, ainda carecem de mais pesquisas.
Em seu livro Escravos do Sertão (1995), Miridam Falci pretendia, através do seu
estudo, “determinar que o escravo no Piauí fora resultado de um modelo demográfico que
refletia a vida econômica e social da província verificando seus ritmos vitais, suas atividades e
suas relações sociais” (FALCI, 1995, p. 19-20). Com um trabalho pioneiro acerca da região, a
autora faz uma análise na Província do Piauí entre os séculos XVII e XIX, a partir dos dados
demográficos das cinco principais freguesias existentes na Província. Nessa investigação,
além de discutir questões em torno da população, economia e força de trabalho da época,
Miridan analisa os vínculos familiares existentes entre escravos, livres e libertos a partir dos
índices sobre matrimônios, batismos e legitimidade envolvendo cativos.
Vale ressaltar que os autores anteriormente citados não descartam que esses sujeitos
escravizados possuíam vontades e interesses, e que o sistema escravista não era unilateral,
pelo contrário. De fato, os estudos recentes em torno dessa temática apontam para a existência
de um complexo jogo de interesses e de relações recíprocas estabelecidas entre senhores e
escravos. A presença de famílias escravas no Piauí já no século XVIII e, ainda, o interesse
dessas famílias em efetivar o batizado de seus filhos, seja pela preocupação em cumprir os
princípios cristãos, fenômeno destacado por Tanya Brandão (1999), seja pelo interesse em
estabelecer laços de proteção e solidariedade através do compadrio, evidenciam a existência
dessas expectativas.

CASAMENTO DE ESCRAVOS, LIVRES E LIBERTOS: REDES DE PROTEÇÃO E


SOLIDARIEDADE

As alianças matrimoniais podem ser utilizadas pelos diferentes grupos sociais, como
estratégia de ampliação das redes de relações sociais, bem como um arranjo de sobrevivência.
Para Daniel Barroso (2012, p.66), “casar-se poderia ser, concomitantemente, um mecanismo
de inserção social e uma estratégia de sobrevivência, sem que ambas estas facetas fossem,
todavia, antagônicas entre si”.

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Estudar o casamento de escravos torna-se um grande desafio quando se considera a
limitação das fontes históricas, pois o registro de casamento só ocorria quando este era
oficializado pela igreja. Nesse caso, as uniões consensuais entre cativos não eram
reconhecidas e consequentemente, não havia registro documental das mesmas.
A documentação utilizada para esta análise compreende os livros de registros de
casamento da Paróquia de São Raimundo Nonato, datados de 1837 a 1884. Faz saber que os
registros das uniões tanto de livres como de escravos eram realizados no mesmo livro, não
havendo, por exemplo, a separação de livros como ocorria para os batismos. Para este estudo,
foram filtrados os registros em que, pelo menos, um dos noivos é de condição escrava e/ou
liberta, totalizando 175 matrimônios.
A partir da leitura dos registros, identificamos que, em muitos casos, algumas
informações foram negligenciadas pelos párocos, principalmente, o nome dos pais, a cor e a
idade dos nubentes. Sheila Faria (1998, p.308), em estudo sobre os casamentos realizados pela
igreja católica no período colonial, observa a ausência de referência aos pais dos escravos nos
registros de casamento analisados. A autora explica que o nome dos pais não era exigido para
africanos, isto é, a ausência dessa informação não se constituía como um problema para a
realização do matrimônio destes, e, segundo ela, “com certeza os párocos estenderam
preguiçosamente o costume a todos os escravos, mesmo com pais conhecidos”.
De acordo com Antonia Mota (2012, p. 75), “os senhores faziam vista grossa para a
formação das famílias entre seus cativos, evitando formalizar os casamentos”. Segundo a
autora, os senhores de escravos viam a oficialização dos laços conjugais como um problema,
visto que a separação das famílias unidas pela igreja não seria moralmente bem aceita. Além
disso, esse desinteresse dos senhores em permitir os casamentos aumenta a partir da
existência das leis elaboradas pela igreja que impediam a separação dos casais e de seus filhos
(FARIA, 1998, p. 339).
Sobre o número de casamentos envolvendo escravos em São Raimundo Nonato,
verificamos, para o recorte temporal estabelecido, que o índice de escravos casados
apresentava-se superior em relação aos dados do censo de 1872. Segundo o levantamento
realizado pelo Censo, o percentual de homens solteiros chegou 96,1% e de homens casados a
1,8%. Para as mulheres, apenas 1% delas eram casadas, enquanto 98,3% eram solteiras. É
certo que as relações extraoficiais não aparecem nesses dados, porém o levantamento de
casamentos envolvendo escravos nos registros de casamentos revelou um número de uniões
matrimoniais maior.

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Do total de 75 uniões, o período de 1870 a 1884 apresentou 29 casamentos entre
escravos que foram oficializados pela igreja (TABELA 2). Vale ressaltar que, apesar de o
número de uniões oficializadas apresentar-se muito baixo em relação às uniões que envolvem
pessoas livres, não se pode desconsiderar que as uniões consensuais também representam a
busca por formação familiar e estabelecimento de relações de solidariedade e reciprocidade
entre escravos.
TABELA 2 - Frequência de Casamentos Envolvendo Escravos – 1837-1884
Ano Nº casamentos Porcentagem (%)
1837 – 1847 19 25,33
1848 – 1858 15 20,00
1859 – 1869 12 16,00
1870 – 1884 29 38,67
Total 75 100,00
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato – Livro de Registro de Casamentos (1837-1884).

A respeito da menor quantidade de uniões matrimoniais para o período em estudo, a


documentação sugere que as dificuldades em sacramentar as uniões podem estar relacionadas
à posse escrava nos pequenos plantéis, isto é, como a média de posse escrava era pequena
entre as propriedades as possibilidades de oficializar as uniões diminuíam. Além disso, a
desproporcionalidade entre número de homens e de mulheres pode ter sido também um fator
que dificultava o estabelecimento desses laços.
Ao analisar o número de uniões matrimoniais, podemos considerar que a formação
familiar escrava foi também para o cativo de São Raimundo Nonato uma estratégia de
sobrevivência e de resistência. As uniões envolvendo escravos apresentaram um aumento
considerável a partir de 1870, atingindo pouco mais de 38% do total de casamentos analisados
no escopo documental. Em 1869, o decreto nacional no 1.695, proibia a separação de casais
por venda, não obstante, como destaca Slenes (1999, p. 96), a separação entre escravos ainda
podia ocorrer. Porém, apesar desse risco, consideramos que casar oficialmente representava
para o cativo uma estabilidade familiar, sobretudo, porque, em virtude da lei, estes eram
impedidos de serem separados e, provavelmente, esse fator tornou-se mais um aspecto que
fortalecia a importância da oficialização do matrimônio.
Para Florentino e Goés (1997, p.177), o casamento foi uma maneira utilizada pelos
cativos para evitar a separação destes, bem como de seus filhos. Sheila Faria (1998, p. 304),
também considera que: “Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e um respeito
social, [...] estratégico, no caso de escravos, forros e mestiços”.

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Ao analisar a estrutura de posse de cativos e o estado conjugal destes nas Listas de
Classificação de 1874 a 1877, na Província do Piauí, Carla Aparecida Silva (2003, p. 58)
chama a atenção para a concentração de escravos solteiros em todas as faixas de plantéis
sendo que, em plantéis menores, essa concentração era maior. “Mas, conforme vai
aumentando os tamanhos dos plantéis se nota uma diminuição dessa participação e
conseqüente aumento dos pais casados e viúvos e dos filhos, ou seja, as famílias estão mais
representadas em plantéis maiores”.
Dos matrimônios oficializados pela igreja, localizamos, na documentação, a
predominância de algumas propriedades, onde foram realizados os rituais que sacralizaram os
casamentos. Muitos casamentos foram realizados em atos de desobriga nas capelas das
propriedades, sendo que a maioria dos casamentos envolvia escravos da mesma fazenda, o
que caracteriza a chamada endogamia de plantel. No que concerne ao total de matrimônios
levantados na documentação, 33 envolviam escravos de mesmo proprietário e apenas 09
casamentos entre escravos de diferentes proprietários. Destacamos um total de 08 uniões
mistas, ou seja, um dos noivos era escravo, enquanto o outro era liberto.
TABELA 2 – Frequência de casamento escravo por propriedades em São Raimundo
Nonato
Propriedade Nº Casamentos Porc. %
São Raimundo Nonato 32 42,67
Fazenda Umbuzeiro 6 8,00
Fazenda Sete Lagoas 4 5,33
Fazenda Pé do Morro 4 5,33
Fazenda Curral Novo 2 2,67
Fazenda Massapê 2 2,67
Fazenda Riacho Seco 2 2,67
Fazenda Tanque Novo 2 2,67
As demais 21 propriedades 1 28,00
TOTAL 75 100,00
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).

Quanto às testemunhas dos casamentos, consideramos que a escolha destas estava


vinculada a uma estratégia de aliança e de ampliação da rede de relações sociais do casal de
cativos. Para todos os matrimônios analisados, as testemunhas eram sempre homens, não se
identificou nenhuma testemunha do sexo feminino, tanto para uniões de escravos como de
livres. Ao que parece essa característica era comum nesse período, pois alguns autores
identificam esse padrão nos matrimônios, além disso, Sheila Faria (1998) chama a atenção
para a pouca importância que as testemunhas dos casamentos tinham em relação aos
padrinhos de batismo.
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No caso das uniões envolvendo escravos em São Raimundo Nonato, a maioria das
testemunhas era constituída por homens livres, em grande parte proprietários de escravos. Do
total de casamentos realizados entre 1837 e 1884 (mostra parcial) envolvendo escravos,
97,3% das testemunhas eram livres. Considerando que os escravos participavam da escolha
dessas testemunhas, os dados revelam que havia uma importância dada a condição social
daqueles que, além de estarem presentes na cerimônia, confirmavam essa aliança de
parentesco através de suas assinaturas.
De acordo com Caetano De’Carli (2007, p. 97):
Os motivos que levaram os cativos a essa aliança podem ser compreendidos
a partir de dois pontos de vista: eles procuravam obter, dos homens livres (e
mais precisamente dos membros da família senhorial), alguma espécie de
benefício para suas vidas públicas ou privadas; ou procuravam, no caso dos
homens livres pobres, solidificar um laço de solidariedade existente entre
eles e demais membros da comunidade sertaneja.

Para São Raimundo Nonato, outro indício diz respeito à frequência das testemunhas, é
o tipo de aliança envolvendo pessoas livres, no entanto, diferente do que ocorre com os
cativos do Sertão de Pernambuco, nenhum dos senhores serviu como testemunha em
casamentos que envolviam seus próprios escravos.
São poucos os casos em que outros escravos serviram como testemunhas de casamento
de escravos, apenas seis cativos serviram como tal. Um caso interessante é o de Zacarias e
Maria, ambos eram escravos do Padre Sebastião Ribeiro Lima e oficializaram o matrimônio
em 30/05/1858 tendo como testemunhas os escravos Apagidio e Ludugero, pertencentes a
Jerônimo Sousa Nunes Boson. A partir dessas informações, acredita-se na importância dada
pelos escravos às testemunhas dos casamentos. Certamente, Zacarias e Maria, quando
escolheram as suas testemunhas, buscaram tecer redes de proteção ou até mesmo fortalecer os
laços de solidariedade, provavelmente, já existentes entre eles. O contato entre escravos de
diferentes senhores sugere a existência de certo grau de mobilidade espacial atribuído aos
escravos, pois se entende que a “[...] circulação com ’autonomia’ dos escravos não era
exclusivamente do mundo das cidades coloniais e imperiais”, ocorrendo também no meio
rural (LIMA e MELO, 2004, p. 130).
A respeito da circulação dos escravos pelo território das fazendas, verifica-se, nas
fontes acessadas para esta pesquisa, que, pelo menos, nove uniões matrimoniais ocorreram
entre o período de 1837 e 1884 envolvendo escravos de diferentes propriedades. Sabe-se que
a proibição do casamento entre escravos pertencentes a diferentes senhores constituía-se em
um dos principais empecilhos para a união matrimonial dos cativos. Segundo Schwartz

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(1988), os senhores procuravam restringir o máximo possível o universo social do cativo.
Porém, as evidências encontradas nas fontes analisadas são de que, apesar das restrições
impostas pelos senhores, os escravos procuravam tecer estratégias de união e fortalecimento
do seu meio familiar e social para além das propriedades em que viviam. Vale ressaltar que o
estabelecimento desses laços de parentesco, através do matrimônio, partia de uma vontade de
ambos os noivos, isto é, a necessidade de constituir uma família em busca de proteção, de
sobrevivência e sociabilidade era mútua.

O CASAMENTO E A QUESTÃO DA ILEGITIMIDADE

A partir do levantamento de informações a respeito dos batismos de filhos de escravos


entre o período de 1871 e 1888, identificamos altas taxas de “ilegitimidade” de escravos. Essa
questão da ilegitimidade está relacionada a não oficialização dos casamentos segundo os
princípios da igreja católica. Nesse caso, a mesma não reconhece as relações consensuais de
escravos e, por esta razão, o nome do pai do rebento a ser batizado só aparece no assento de
batismo se a união entre os pais da criança for legitimada pela igreja. Na grande maioria dos
casos, a criança é considerada filho natural, ou seja, quando apenas a mãe é reconhecida no
ato do batismo. Esse “silenciamento” na documentação a respeito do pai da criança torna
ainda mais complexa à busca pelo entendimento dos arranjos familiares envolvendo escravo,
pois “[...] o cálculo das taxas de ilegitimidade das crianças escravas baseado nos assentos de
batismos nos diz muito pouco acerca da realidade vivida pelas famílias. Tais índices
revelariam uma ilegitimidade formal, ou seja, do ponto de vista legal, que poderia estar muito
distante da prática” (ROCHA, 1999, p. 101).
Ao analisarmos a tabela que segue (TABELA 3), notamos que a ilegitimidade entre os
nascimentos de filhos de escravas em São Raimundo Nonato era expressiva. Pouco mais de
90% dos rebentos foram considerados filhos naturais, mas até que ponto o alto índice de
filhos naturais pode revelar a realidade das uniões entre escravos? Miridan Falci (1995, p. 77),
ao analisar as taxas de natalidade para o século XIX, no Piauí, identificou que, praticamente,
100% dos escravos eram ilegítimos, concluindo que essa alta taxa não se fazia por “casamento
legítimo”, porém a autora não descarta a possibilidade de permanência das uniões consensuais
envolvendo escravos.

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TABELA 3 - Filiação legítima ou natural dos batizados. Paróquia de São Raimundo
Nonato, 1871-1884
FILIAÇÃO NÚMEROS PORCENTAGEM (%)
ABSOLUTOS
Legítima 23 6,6
Natural 326 93,4
Total 349 100
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registro de Batismo de filhos de
escravos (1871-1884).

Para a cidade de Salvador, Kátia Matoso (1988, p. 45) constatou que do total de 85
batismos de escravos realizados entre 1870 e 1874, 100% deles correspondiam a crianças
ilegítimas. No entanto, a autora faz uma ressalva ao destacar que as altas taxas de
ilegitimidade não correspondiam apenas à população escrava, segundo Matoso, 62% da
população livre de Salvador também era ilegítima. Para São Raimundo Nonato, se as taxas de
ilegitimidade entre escravos eram elevadas, para a população livre ocorre o contrário, os
números de filhos naturais eram modestos.
Sheila de Castro Faria (1998, p. 325) procura identificar os “lugares de ilegitimidade”
de escravos em freguesias do Rio de Janeiro durante os séculos XVII e XIX, e aponta um
índice de mais de 40% de filhos legítimos, sendo que, para algumas freguesias, mais de 83%
dos batizados eram de filhos de escravos casados oficialmente.
Devemos considerar que essa questão da ilegitimidade é algo que deve ser
relativizada, principalmente se analisarmos algumas situações que giram em torno do
cotidiano desses sujeitos escravizados. Em primeiro lugar, podemos supor que, em alguns
casos, o rebento era filho de pais pertencentes a diferentes senhores, residindo em fazendas
diferentes, o que nos leva a “imaginar as dificuldades que podiam surgir quando este tipo de
união ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre tratamento humano e
direitos de propriedade” (SCHWARTZ, 1988, p. 313). Nesse caso, inúmeras questões
poderiam atuar como empecilho para a presença do pai do rebento no ato de batismo do seu
filho.
Em se tratando do número de filhos de escravas considerados naturais pela igreja no
ato do batismo, devemos atentar para a diversidade das relações envolvendo esses sujeitos. A
saber, das mães escravas que levaram seus filhos a pia batismal, certamente, boa parte delas
possuía um parceiro e mantinha relações consensuais, porém a igreja Católica não reconhecia
esse tipo de relação por não ser oficializada segundo seus dogmas. Dentro dessa teia de
relações, podia haver também mães cativas que assumiam sozinhas a responsabilidade pelos

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filhos e, finalmente, a possibilidade de que muitos casais oficializaram a união dentro das
exigências religiosas algum tempo depois do batizado de seus filhos.
Do total de 349 registros de batismos realizados entre 1871 e 1888, 93% apresentam
apenas o nome da mãe, sendo considerados filhos ilegítimos ou naturais4. Contudo, não
podemos interpretar esse percentual como sendo resultado de uma população escrava
promíscua e sem interesses em estabelecer relações familiares, pelo contrário, acreditamos
que, para o cativo sertanejo, estabelecer laços de parentesco era fundamental para a sua
sobrevivência no mundo da escravidão e “[...] de nenhuma forma, os baixos índices de uniões
legítimas entre a população negra, desqualifica a sua experiência de vida familiar” (REIS,
2010, p. 118).
É certo que não podemos deixar de considerar a existência de outras questões que
envolvem o cotidiano do cativo sertanejo, como é o caso das particularidades do modelo
econômico da região que pode ter influenciado sobre as diferentes organizações familiares. Os
registros de batismo analisados revelam um total de 17 uniões formais, isto é, a mãe e o pai do
rebento são mencionados no assento de batismo, com destaque para uniões matrimoniais
envolvendo casais escravos pertencentes ao mesmo proprietário.
Esse tipo de matrimônio repetiu-se por 12 vezes, o que nos faz considerar que, apesar
das possibilidades para formação de casais serem menores nos pequenos plantéis (devido a
pequena posse escrava e ao mesmo tempo a maioria de mulheres em relação a homens), os
escravos do sertão piauiense possuíram maiores possibilidades de sacramentar as uniões entre
aqueles de mesmo proprietário. Devemos lembrar ainda que a maior convivência entre os
cativos e também a preferência dos proprietários por casamentos envolvendo seus próprios
escravos podem ter sido fatores que tornaram as uniões mais viáveis.
Por outro lado, a hipótese defendida por Sheila Faria (1998, p. 310) de que as
determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia sobre os casamentos de
escravos, “[...] induziram proprietários a impedir o casamento de seus escravos com os de
outros donos”, pode ser confirmada também para a região do sertão do Piauí. Nos registros de
batismo analisados, localizamos a ocorrência de apenas um matrimônio entre escravos de
diferentes propriedades, o que nos faz imaginar que os senhores, além de não incentivarem,
também proibiam esse tipo de união.

4
No entanto, é necessário esclarecer que o fato de ter filhos considerados ilegítimos ou naturais, por não haver
uma união entre o casal segundo os moldes da Igreja Católica, não significa desconsiderar a existência e
estabilidade de uma família.
12
A despeito do pequeno número de registros de uniões formais localizado na
documentação pesquisada, alguns casos chamam a atenção por algumas especificidades
envolvendo as relações entre cativos, livres e libertos no sertão piauiense. Em alguns desses
casos, ocorre o registro de uniões envolvendo casais de diferentes propriedades e até mesmo
de condição jurídica distinta, um exemplo disso são as relações consideradas mistas, ou seja,
casamentos envolvendo cônjuges de condição jurídica diferente, sendo identificadas uniões
entre livre e liberto, escravo e liberto, livre e escravo. É o caso do casal Jerônimo Alves de
França, de condição livre, e Luiza, escrava de Luís Correia Lima Júnior. Pais de Jerônimo,
mulato, nascido em 20/06/1872, levaram o rebento a pia batismal em 25/11/1872, formando
compadrio com Antônio, escravo de João Macedo Peixoto e Ana Clara de Farias Pindaíba5.
O casal oficializou a união em 12/08/1872, porém tudo indica que já mantinham
relação estável anterior ao matrimônio6. Provavelmente, o casamento oficial ocorreu pela
necessidade de batizar o filho com o reconhecimento da paternidade, visto que a igreja
Católica não reconheceria o rebento como filho legítimo já que era fruto de uma relação
consensual. Esse tipo de relação em que um dos cônjuges era livre e o outro escravo podia ser
utilizado como um meio de viabilizar a conquista da liberdade do cônjuge cativo, pois, com
um dos cônjuges sendo livre, havia maior possibilidade de conseguir recursos para a compra
da alforria do outro.
Certamente, essa estratégia efetivou-se para este casal, pois, em seis de julho de 1884,
Luiza e seu marido Jerônimo Alves de França apadrinharam Antonio, filho de Roberto e
Marta, então escravos de Virgilina Constantina Boson e Lima7. No assento de batismo do
rebento Antonio, Luiza, agora, era indicada como liberta e com o sobrenome Alves de França.
Infelizmente, não foi possível localizar a carta de alforria da escrava Luiza, pois, através
desta, poderíamos, então, inferir a respeito da compra de sua liberdade pelo seu marido,
porém acreditamos que a mesma possa ter alcançado a liberdade nessa situação e que
possivelmente ocorreu muito tempo antes do ato de batismo de seu afilhado Antonio.
Obviamente que devemos considerar os possíveis significados que esse tipo de união
podia ter tanto para livres e libertos como para cativos, mais do que uma busca pela liberdade,
os arranjos familiares seriam também uma necessidade de garantir proteção e solidariedade no
mundo da escravidão. Isabel Cristina dos Reis (2007, p. 84) lembra que: “[...]
Independentemente do estatuto jurídico dos indivíduos, se a união matrimonial era consensual

5
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.
6
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1864-1875.
7
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.
13
ou legitimada, fazer parte de uma família fazia muita diferença, pois podia ser garantia de
amparo nos momentos de necessidade”. Em muitos casos, essa necessidade de garantir
proteção e ajuda também pode ser considerada como uma expectativa nutrida pelos casais de
escravos.
Seria por exemplo a trajetória do casal de cativos João (24 anos) e Margarida (26
anos), pertencentes a João José da Silva, proprietário da fazenda Oiteiro. Os escravos
oficializaram a união no dia 18 de julho de 1871,8 e seis anos depois (05/08/1877), num ato de
desobriga, na mesma fazenda, batizaram o rebento de nome Tertuliano, que teve como
padrinhos Espiridião José Rodrigues, livre, e Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta.
Livres também eram as testemunhas do casamento e diferentemente dos padrinhos de
Tertuliano, estes, possivelmente, eram parentes próximos ao proprietário, pois possuíam
mesmo sobrenome. O que dificulta o cruzamento das informações, nesse caso, é a ausência do
nome das mães dos nubentes no registro de casamento, no entanto, essa situação permite
entrever que esses cativos utilizavam o casamento e o batismo como um meio de ampliar os
espaços de sociabilidade, optando por uma verticalização do parentesco ritual.
Em sete de junho de 1871, Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta, 32 anos, havia
oficializado a união com Tibério, 30 anos, escravo de José Raimundo da Silva, na Fazenda Pé
do Morro. 9 Serviram como testemunhas o proprietário de Tibério e José Malaquias da Silva,
que também era livre. Provavelmente, Boaventura ajudou seu marido Tibério a conquistar a
liberdade. As trajetórias dos casais Jerônimo Alves de França e Luiza, João e Margarida,
Boaventura e Tibério, são alguns exemplos de que, apesar das adversidades existentes no
mundo escravista, a união entre casais, seja de diferentes propriedades ou até mesmo de
condições jurídicas distintas, era possível de ser conquistada.
Apesar de as informações contidas no recenseamento geral do império revelarem que
mais de 90% dos escravos em São Raimundo Nonato eram solteiros em 1872, devemos
considerar que, embora seja um dos levantamentos populacionais mais completos para o
período e forneça informações sobre a população escrava, os dados apresentam
incompatibilidade com os dados levantados de outras fontes. Na tabela 5 (cinco) apresentada
no item anterior deste capítulo, que trata da frequência de casamentos envolvendo escravos a
partir dos registros de casamento, o número de escravos que oficializaram a união através do
matrimônio é superior ao número apresentado pelo censo. Porém, como para os dois
levantamentos, o número de casamentos de escravos é modesto se comparado a outras regiões
8
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875.
9
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875.
14
do Brasil, algumas questões podem ser levantadas a respeito dos significados do matrimônio e
da ilegitimidade.
TABELA 4 – Distribuição da População Escrava por estado civil em São Raimundo
Nonato, 1872
Freguesia de São Raimundo Nonato-PI
Homens Mulheres Total
Estado Civil
Abs. % Abs. % Abs. %
Casado/a 4 1,8 3 1,0 7 1,3
Solteiro/a 219 96,1 298 98,3 517 97,4
Viúvo/a 5 2,2 2 0,7 7 1,3
Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.

Se o número de matrimônios envolvendo homens e mulheres de condição escrava


atingiu pouco mais de 3%, poderíamos, logo, inferir que o casamento entre escravos não
estava entre as estratégias de ampliação das redes sociais. No entanto, imaginamos três
situações que poderiam explicar esse abismo existente entre os índices anteriores.
Em primeiro lugar, as uniões consensuais certamente não estão incluídas nesses
números, sabemos que a igreja Católica não reconhecia os amancebamentos como relações
legítimas, além disso, existiam inúmeros entraves burocráticos para a oficialização do
casamento. Dentre as exigências para a oficialização do matrimônio, estavam a comprovação
por parte do casal do batizado e o processo de denunciações que era realizado durante três
domingos seguidos na freguesia onde seria realizado o casamento, bem como na localidade
onde o casal teria residido após os 14 anos, para os homens, e 12 anos, para as mulheres, com
o objetivo de evitar a bigamia (SILVA, 1998, p. 191).
Outra questão que poderia ser um agravante para as uniões entre escravos diz respeito
às leis que, a partir do século XIX, impediam a separação de casais escravos e de seus filhos.
Sheila de Castro Faria10 observa que essas leis teriam desestimulado por parte dos senhores a
permissão de tais uniões, principalmente se fosse uma união entre escravos de diferentes
propriedades. A documentação analisada assinala um aumento significativo de uniões entre
escravos legitimadas pela igreja Católica a partir de 1871. Nesse caso, como discutiremos
mais adiante, consideramos a possibilidade de que muitas dessas uniões entre escravos, livres
e libertos, que foram oficializadas a partir desse período, já existiam, porém em caráter
consensual.

10
FARIA, Sheila de Castro. Op. cit. 1998. Ver especificamente o capítulo 2.
15
E, por último, com base nos dados já mencionados anteriormente (TABELA 1), a
desproporcionalidade entre o número de homens e de mulheres pode ter dificultado para que
as uniões entre escravos ocorressem. Porém, como narra Schwartz (1988, p. 311), devemos
considerar que “[...] a escassez de casamentos na igreja não são de modo algum, uma medida
da realidade escrava e da capacidade dos cativos de criar e manter laços de afeição,
associação e sangue que tivessem um significado real e permanente em suas vidas”. É
possível que as relações consensuais envolvendo escravos fazia-se presente em grande
número no sertão do Piauí, portanto, “dizer que um casal não era casado e que seus filhos
eram ilegítimos, não significava que eles não formavam uma unidade familiar, ainda que
legalmente pudessem ser incapacitados por certos aspectos” (SCHWARTZ, 1988, p. 310).
Além de uniões formais, isto é, oficializadas pela igreja e que evidenciam a formação de
família nuclear envolvendo escravos, nos assentos de batismo analisados, salta aos olhos a
presença de famílias matrifocais, ou seja, formadas pela mãe e seus filhos sem a presença da
paternidade. Porém, devemos considerar que apesar da documentação silenciar o nome do pai
do rebento pelo fato de não haver uma união legitimada pela igreja entre o casal,
possivelmente, em muitos casos, havia a permanência de uniões consensuais.
O cruzamento de informações contidas em diferentes fontes (inventário post-mortem,
assentos de batismo e registro de casamento) torna possível a identificação de alguns casos
que revelam a existência dessas famílias compostas apenas pela mãe e pelos filhos e que,
apesar de não indicarem o estado civil da mãe, fazem crer na possibilidade de união
consensual. Vejamos alguns exemplos de cativas que viviam nas mesmas propriedades que
outros escravos, tiveram pelo menos quatro filhos num espaço de tempo considerável e, em
razão disso, possivelmente mantiveram algum tipo de relação com outro escravo. Damiana,
escrava de Maria Honorata dos Anjos, vivia na Fazenda Curral Novo, onde, provavelmente,
deu à luz a cinco rebentos: João, nascido em oito de abril de 1872; Vitória nasceu em agosto
de 1873; Maria, em julho de 1874; Sebastião, em fevereiro de 1878 e, em setembro de 1879,
nasceu mais uma menina que também recebeu o nome de Maria. 11 Dos cinco filhos, apenas
Maria, nascida em 1874, teve como padrinhos um casal de escravos, Anastácio pertencia a
Isidoro Pereira do Rego, proprietário de parte das terras na Fazenda Curral Novo, e Sabina,
era escrava de Maria da Conceição, proprietária de terras na Fazenda Sete Lagoas. As demais
crianças foram apadrinhadas por pessoas livres, dentre elas, Josefa Benta dos Anjos, irmã de
Maria Honorata dos Anjos.

11
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.
16
Localizamos a escrava Damiana entre os “bens” arrolados no inventário de sua
proprietária12. Havia, em seu domínio, oito escravos, sendo dois do sexo masculino,
Francisco, crioulo de 20 anos, e Adeodato, africano, 40 anos; e seis do sexo feminino, a saber:
Benedicta, 11 anos, Ludugera, 16 anos, Cosma, cinco anos de idade, duas escravas de nome
Maria e Damiana. As informações contidas nesse inventário a respeito dos escravos são muito
poucas, nesse caso, apenas a idade, cor/origem e a avaliação foi registrada para praticamente
todos os escravos, a exceção ocorre com a escrava Damiana, pois as únicas informações
fornecidas sobre a mesma são a cor, a condição de saúde e avaliação. Damiana, cabra, foi
avaliada em 100$000, valor considerado baixo se comparado ao de outras escravas da mesma
propriedade.
Contudo, a avaliação pode estar relacionada à idade (que não é mencionada no
documento), mas, especialmente, a condição de saúde de Damiana, ela era “aleijada de uma
mão”, e certamente apresentava dificuldades para desenvolver determinadas atividades no
dia-a-dia. As escravas de nome Maria, de 20 “pouco mais ou menos” e de 13 anos, foram
avaliadas em 450$00 e 500$000, respectivamente13. Seriam estas as filhas da escrava
Damiana? O inventário não demonstra a existência de vínculo familiar entre Damiana e as
escravas de nome Maria, porém é possível que se trate de mãe e filhas.
A presença do pai também não é discriminada no inventário, fato comum já que a
situação jurídica do filho estaria vinculada a da mãe. A ausência da paternidade nos registros
de batismo e também no inventário não significa que as crianças não conheciam ou até
mesmo conviviam com seu pai, nem tampouco podemos descartar a existência de uma união
consensual duradoura entre Damiana e o pai das crianças. O entrecruzamento de um conjunto
de fontes14 permite identificar a presença em solo piauiense de famílias nucleares estáveis,
como também de unidades familiares matrifocais que, apesar da não oficialização da união
entre mães e pais escravos segundo a legislação da igreja, se faziam presentes no convívio
familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, procuramos examinar aspectos da vida cotidiana no sertão
piauiense na segunda metade do século XIX, com o objetivo central de analisar as maneiras
como os escravos, livres e libertos da região teciam suas estratégias de sobrevivência,

12
Fórum de São Raimundo Nonato-PI. Inventários Post-Mortem de 1869-1890. Documentação não catalogada.
13
Ibidem.
14
Para este caso, utilizamos os assentos de batismo, registros de casamento e inventários post-mortem.
17
especialmente através da constituição da família. Para isso, os registros paroquiais, os
inventários post-mortem foram preciosas fontes de investigação.
No tocante as uniões matrimoniais percebemos que, apesar do casamento formal pela
igreja não ter predominado entre os cativos dessa região, pelo menos no período em estudo, a
cada busca por informações sobre a trajetória destes sujeitos, uma “peça” encaixava-se no
grande quebra-cabeça. Muitas famílias constituíram-se nucleares, o casal e seus filhos
mantiveram estabilidade familiar por gerações. Outros casais preferiram a união consensual,
mas não deixaram de manter os laços familiares e de buscar meios para garantir a sua
sobrevivência. A formação dos núcleos familiares no sertão piauiense ocorreu de forma
diversificada, aconteceram uniões entre escravos e libertos, livres e escravos e,
principalmente, casamentos envolvendo cativos de diferentes propriedades.

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