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INTRODUÇÃO
de ouvir o educando, onde o mestre deve ser a ocasião para o educando encontrar a sua
verdade e nunca a verdade plena e totalizante. De maneira que a educação seria um ato de
desalienação e também superação do modelo atual, onde de um lado está o opressor (o
detentor da verdade) e de outro o oprimido (a quem é dirigida a verdade)? O presente
estudo tem por objetivo, investigar, refletir e discorrer sobre ética e educação no Brasil
como proposta de melhoramento do homem. Uma educação ético-existencial pautada no
entendimento de ética da alteridade com base nos escritos de Kierkegaard. Para tanto, far-
se-á, uma revisão bibliográfica, buscando recolher traços importantes para este estudo
espalhado em diferentes obras do autor.
O homem é espírito. Mas o que é espirito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O
eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa alheio a si, mas
consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele
consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não
é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento
que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de
infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e necessidade, é,
em suma, uma síntese. Uma síntese é uma relação de dois termos. Sob este
ponto de vista, o eu não existe ainda. Numa relação de dois termos, a
própria relação entra como um terceiro, como unidade negativa, e cada um
daqueles termos se relaciona com a relação, tendo cada um existência
separada no seu relacionar-se com a relação; assim acontece com respeito à
alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo
contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se
estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.6
O Conceito de Angústia, nos explica melhor a relação do eu com o tu, ao dizer: “O homem
é um indivíduo e, como tal, é ao mesmo tempo ele próprio e todo o gênero humano, de
sorte que o gênero participa todo inteiro do indivíduo, assim como o indivíduo participa
de todo o gênero humano. ”7 Kierkegaard exalta a importância do indivíduo assumir-se em
primeira pessoa, para tornar-se, melhorar-se, e essa tarefa cabe a cada um de forma
singular. Nesse sentido, o indivíduo tem a possibilidade de concretização de uma relação
ético-existencial por meio do exercício em que assume a responsabilidade de transformar-
se em um indivíduo melhor, capaz de se relacionar de forma digna com o outro. Esse
voltar-se para si, não significa fechamento em si, mas um constante melhorar-se,
conhecer-se, para assim, ser capaz de melhor relacionar-se com o outro; porém, consciente
de sua responsabilidade individual, (independente do lugar social que ocupa, crença,
gênero), precisa melhorar-se e possibilitar condições para o outro possa edificar-se, pois
querer impor aos outros sua própria medida seria dominação e não libertação.
Nesse sentido, a educação baseada nesse melhoramento de si e abertura para o
outro, não se limita apenas na recepção de conhecimentos objetivos e sim na possibilidade
de pensar e problematizar aquilo que se recebe, para, na depuração do todo recebido, ser
capaz de construir-se enquanto indivíduo singular, capaz de buscar através do domínio de
si e na relação com o outro o sentido do humano.
A educação como melhoramento do homem na esteira de Kierkegaard é uma
educação que tem como finalidade despertar a consciência individual e singular, tornando-
o capaz de arrogar para si a responsabilidade ética baseada na escolha, no interior da
decisão, pois a mesma possui um caráter personalíssimo, na medida em que um indivíduo
não pode fazer pelo outro aquilo que cabe somente a si. Desse modo, todos os humanos são
convocados a buscar uma educação com vista a um constante melhoramento de si próprio:
Ter caráter individual, é crer no caráter individual de cada um dos outros; pois o
caráter individual não é coisa minha, é dom pelo qual Deus me dá o ser, e ele o dá
aliás a todos, e a todos Ele dá o ser. Tal é a insondável fonte de bondade que jorra
da bondade de Deus, que Ele, o todo poderoso, dá de tal maneira que o que recebe,
recebe em seu caráter particular, que Ele que cria do nada, cria dando uma
característica particular, de modo que a criatura mesmo sendo tirada do nada e não
sendo nada, não paira diante Dele como nada, mas adquire seu caráter próprio.10
Assumir-se enquanto tarefa de torna-se não é algo fácil, visto que a educação é um
processo que possibilita a realização dessa tarefa de tornar-se. Diante disso, fala-sede uma
educação pautada na ética visando romper com as ideologias dominantes e hipocrisias do
contexto educacional brasileiro; uma educação que busque a prática da dignidade humana,
tendo como pressuposto a libertação do humano. Para tanto é preciso coragem e iniciativa.
Tornar-se é uma possibilidade, uma vez que o indivíduo pode escolher não tornar-se, pode
escolher ficar imerso na multidão. Para Kierkegaard:
A possibilidade é, como já foi dito, algo duplo, e justamente por isso ela é a
educação verdadeira; a possibilidade é tão rigorosa, ou pelo menos pode ser
tão rigorosa como pode ser benigna. A esperança não reside sem mais nem
menos na possibilidade, pois na possibilidade pode também encontrar-se o
temor. Mas há quem escolhe a esperança, a possibilidade, com a ajuda da
esperança, ensina a esperar. No entanto, a possibilidade do temor, o rigor
O homem é convocado a torna-se, por meio da possibilidade que ele tem, decorrente
da liberdade, devendo arriscar-se a sair da multidão para constituir-se como indivíduo
singular: no recolhimento de si, na busca do melhoramento de si, e no tornar-se
responsável por si, para então ter condições de ser responsável pelo outro. Nesse sentido,
ressalta-se a necessidade de se pensar e executar um modelo educacional libertador, capaz
de construir um humano responsável consigo próprio e com o outro, bem como com a
dignidade da pessoa humana. A proposta educacional, a partir das ideias então tratadas,
deve contemplar a busca da efetivação de direitos de dignidade e cidadania onde a ética
esteja sempre como guia desse processo, dando a direção na tomada de decisões de como
fazer, de como agir para transformar as estruturas educacionais naquilo que exclui o
indivíduo e massifica o mesmo.
Partindo desse pressuposto, o educador, enquanto figura que está à frente,
conduzindo o processo de educação formal por meio da escola, como formador de opinião,
tem um papel importante nesse processo. Afirma-se, que o testemunho do mesmo faz toda
diferença, na medida em que deve haver um liame lógico e coerência entre o dito e o
praticado. Este não pode ensinar sobre “a virtude ética” e ao mesmo tempo ser
“desvirtuoso”;não pode ensinar sobre ética e ao mesmo tempo excluir o seu aluno,
humilhá-lo, maltratá-lo, desprezá-lo, coisificá-lo perante os outros.
Kierkegaard daria ao liame entre o dito e o praticado o nome de “reduplicação”.
Quando o ato prático corresponde a teoria ensinada, ocorre a reduplicação entre o valor e a
ação. Tal testemunho pode ser chamado de responsabilidade, que me impele a agir
eticamente, no sentido de melhorar-me e ao mesmo tempo me convida a agir eticamente
com o outro. Não se trata de um isolamento em si, mas é uma responsabilidade consigo e
para com o outro. É sabido, no contexto brasileiro, que a educação é desvalorizada e os
educadores estão sempre a lutar por direitos, melhores salários, melhores condições de
trabalho e valorização social da profissão. Sendo aos mesmos garantido, por lei, o direito a
reivindicar tais condições. No entanto, os educadores não podem utilizar as más condições
de trabalho como legitimadoras da sua falta de compromisso e responsabilidade com o
dever de educador.
Nesse sentido, o educador sério, aquele que tem consciência do seu papel ético, deve
assumir sua responsabilidade como tarefa e desafio. Para ele não cabe reproduzir como
justificativa do não comprometimento as ruins condições de trabalho. Educar é mais do
que transmitir conhecimentos com finalidade de preparar técnica e instrumentalmente,
educar é também humanizar, possibilitar a tomada de consciência, dar testemunho ético,
se colocar no lugar do educando. No livro as Migalhas Filosóficas, Kierkegaard nos dá o
sentido do que pode ser, se colocar no lugar do educando: [...] “O discípulo é a ocasião
para que o mestre se compreenda a si mesmo, o mestre a ocasião para que o discípulo
compreenda a si mesmo” [...].12 A relação entre mestre e discípulo, segundo a citada obra,
constitui-se em uma relação dialética, pautada na ética – existencial. Nas Obras do Amor,
Kierkegaard discorre sobre essa questão, vejamos:
[...] ser mestre não é cortar o direito a força de afirmações, nem dar lições
para apreender. Ser mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino
começa quando tu, o mestre, aprendes com o teu discípulo, quando te
colocas naquilo que ele compreendeu, na maneira como o compreendeu,
ou, se ignoravas tudo isso, quando simula prestares-te exame, deixando o
teu interlocutor convencer-se de que sabes a lição: tal é a introdução, e pode
então abordar-se um outro assunto13.
12Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. Trad. Ernani Reichmann e Álvaro
Valls. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.p.45
13 KIERKEGAARD, S. As obras do Amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos. Trad. de
KIERKEGAARD E A EDUCAÇÃO
14Ponto de Vista Explicativo de minha obra de escritor. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986, pág. 113.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ética que não se subsumi apenas ao discurso ético, mas uma ética que verdadeiramente
contempla o outro, baseada no diálogo, na práxis e mostra a necessidade de pensar um
modelo pedagógico que possa concretizar o processo de educação ético e não apenas falar
sobre a ética na educação. Trata-se de um modelo de educação de transformação radical,
que implica coragem do educador enquanto agente do processo bem como de todos
aqueles que estão envolvidos direta e indiretamente no sentido de romper com o atual
modelo que se preocupa apenas com a lógica da massificação e com isso coisifica o
processo educacional, transformando-o em uma mercadoria.
O presente artigo buscou oferecer ao leitor, uma reflexão sobre a educação no
contexto brasileiro e sobre a ética ligada ao processo educacional, com base em
Kierkegaard que é um filósofo que em suas inúmeras obras escreveu sobre categorias como
subjetividade, existência, diálogo, responsabilidade, reduplicação, singularidade.
Categorias que se bem entendidas, chamam a atenção dos indivíduos para a necessidade e
possibilidade de conhecer-se e melhorar-se ao mesmo tempo em que promove uma
abertura para com o outro. Buscou-se nesse trabalho fornecer uma interpretação dessas
categorias no contexto de uma existência educacional e ética. Uma existência que não se
limita a discursos meramente teóricos e sem aplicação no plano prático, mas que, ao
contrário, possa tornar a prática da ética, em seus diversos contextos, não apenas algo
desejável, mas possível.
REFERÊNCIAS