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ISSN 1981-8254 - Publicação impressa

Centro Universitário São Camilo Volume 1 Número 1 jan/jun 2007

BIOETHIKOS é uma publicação semestral


de divulgação científica do Centro Universitário
São Camilo voltada à veiculação de estudos e
pesquisas na área Bioética. Tem entre suas
finalidades possibilitar o exercício analítico e
crítico de questões,sobretudo as emergentes
que envolvem o ser humano na sua relação
consigo mesmo, com o outro e com a realidade
mais ampla. Sendo assim, apresenta-se como
espaço plural e transdisciplinar no que con-
cerne ao debate das questões ético-filosóficas
do ser humano.

MISSÃO: Disseminar o conhecimento cientí-


fico da bioética por meio de estudos e
pesquisas que contribuam para a expansão e
consolidação desta área no país e na América
Latina, ao mesmo tempo que estimular
reflexão por parte dos especialistas e profis-
sionais de diversas áreas do conhecimento que
interagem fundamentalmente com a bioética.
EDITORES-CHEFE
Leo Pessini
William Saad Hossne

ASSESSORIA EDITORIAL
Leda Virgínia Alves Moreno

ASSESSORIA TÉCNICA
Marcus Vinícius Rios de Macedo – Gerente de Biblioteca
Equipe de bibliotecários do Sistema Integrado de Bibliotecas
Pe. Inocente Radrizzani

TRADUÇÃO
Adail Sobral

ENVIO DE ARTIGOS
Centro Universitário São Camilo • Setor de Publicações
Avenida Nazaré, 1501
04263-200 • São Paulo • SP
Tel: (0**11) 6169-4045
web: http://www.scamilo.edu.br
e-mail: publica@scamilo.edu.br

PRODUÇÃO EDITORIAL E ARTE


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Tel: (0**11) 6422-6459
Rua Roberto Kriegel, 197 • Vila Itapegica • Guarulhos • SP
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Assinatura anual: R$ 45,00


Número avulso: R$ 25,00

Assinaturas e permutas
Av. Nazaré, 1501 • São Paulo • SP • 04263-200
Informações: 0800-178585

PERIODICIDADE
Semestral SOBRE A CAPA:
A Bioética, a rigor, é mais que uma disciplina, constitui-se em "uma
TIRAGEM ciência", em "uma nova ética" já que sua prática e discurso situam-se
1.000 exemplares na intersecção de vários campos do conhecimento:
a) medicina, ciências biológicas, com suas múltiplas ramificações;
b) ciências humanas (sociologia, psicologia, antropologia, entre outras;
Os artigos publicados na Revista Bioethikos são de e c) filosofia, ética, direito, teologia.
inteira responsabilidade dos autores. A complexidade da Bioética é, em certa medida, tríplice, uma vez
Proibida a reprodução, mesmo que parcial, sem a que: a) é resultante do diálogo com e entre vários campos do conhe-
devida autorização do Editor. cimento (visão inter e multidisciplinar); b) constitui-se em espaço de
encontro até mesmo conflitivo das questões relacionadas a ideologias,
Proibida a utilização para fins comerciais moral, religiões, filosofia, entre outras; e c) representa lugar de
de matéria publicada Copyright© - embates tendo em vista a diversificação de interesses, de "poderes"
Centro Universitário São Camilo. institucionalizados, dos segmentos profissional, industrial, médico,
associativo, entre outros.
A partir desses pressupostos é que foi criada a identidade visual de
Bioethikos. A representação gráfica da capa com círculos entreabertos
BIOETHIKOS sinaliza que por meio dos entrelaçamentos e movimentos das três
Centro Universitário São Camilo. instâncias acima mencionadas objetiva-se com a Bioética:
São Paulo, 2007. a) compreender "conflitos"; b) estabelecer "interações humanas" aber-
Semestral tas ao diálogo, buscar solucionar conflitos de interesses e de valores; e,
por fim, c) compreender os exercícios multi, inter e transdisciplinar e
ISSN - 1981-8254 da complexidade, presentes em sua dinamicidade.
ISSN 1981-8254 - Publicação impressa

Centro Universitário São Camilo Volume 1 Número 1 jan/jun 2007

Sumário • Contents • Sumario


EDITORIAL

Bioética: marco de uma nova época


Bioethics: the landmark of a new era
La Bioética: el marco de una nueva era
Leo Pessini, William Saad Hossne........................................................................................................................................................................ 09

ARTIGOS ORIGINAIS/ RESEARCH REPORTS/ ARTÍCULOS

As investigações científicas e a experimentação humana: aspectos bioéticos


Scientific research and human experimentation: bioethical aspects
Investigación científica y experimentación humana: aspectos bioéticos
Newton Aquiles Von Zuben.................................................................................................................................................................................. 12

Ética e inovação tecnológica em medicina


Ethics and technological innovation in medicine
Ética y innovación tecnológica em medicina
José Geraldo de Freitas Drumond .......................................................................................................................................................................... 24

A Formação em Cuidados Paliativos da equipe que atua em


Unidade de Terapia Intensiva: um olhar da Bioética
The training in palliative care for the intensive care unit´s team: A bioethical perspective
El entrenamiento en cuidados paliativos del equipo de la unidad de cuidados intensivos: Una perspectiva bioética
Karina Dias Guedes Machado, Leocir Pessini, William Saad Hossne............................................................................................................... 34

O cuidado espiritual ao paciente terminal no exercício da Enfermagem e a participação da Bioética


Spiritual care to the terminal patient in the practice of nursing and the participation of bioethics
El cuidado espiritual al paciente terminal en el ejercicio de la enfermería y la participación de la bioética
Lucilda Selli, Joseane de Souza Alves.................................................................................................................................................................... 43

A clínica como instrumento de fortalecimento do sujeito: um debate ético-filosófico


Medical Clinic as a tool for strengthening subjects: an ethical-philosophical debate
La clínica médica como herramienta para fortalecer el sujeto: una discusión ético-filosófica
Sabrina Helena Ferigato, Maria Luíza Gazabim Simões Ballarin..................................................................................................................... 53

Introdução às questões bioéticas suscitadas pela Nanotecnologia


Introduction to nanotechnology-provoked bioethical questions
Introducción a las cuestiones bioéticas suscitadas por la nanotecnología
João Carlos Silva de Lêdo, William Saad Hossne, Margareth Zabeu Pedroso................................................................................................... 61

ARTIGOS DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLES/ DISCUSIONES CRÍTICA

Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões


Bioethics and health professionals: Some reflections
Bioética y profesionales de salud: Algunas reflexiones
Angela Cristina Pontes, Joelma Ana Espíndula, Elizabeth R. Martins do Valle............................................................................................ 68
Ensino da Bioética nas Faculdades de Medicina do Brasil
Bioethics teaching in Brazil´s medical schools
Ensenãnza de la bioética en las escuelas médicas de Brasil
Homero Januário Caramico,Vera Lucia Zaher, Margaréte May B. Rosito........................................................................................................ 76

Movendo-se entre o desejo e a prática da beneficência


Moving from the desire to the practice of beneficence
Marcha desde el deseo a la práctica del la beneficencia
Heloisa Wey Berti, Eliana Mara Braga, Ilda de Godoy, Wilza Carla Spiri, Silvia Cristina M. Bocchi.........................................................91

Bioética - ponte para a liberdade


Bioethics - a bridge for freedom
Bioética - una puente para la liberdad
William Saad Hossne............................................................................................................................................................................................. 99

Bioética e espiritualidade
Bioethics and spirituality
Bioética y espiritualidad
Júlio Cesar Massonetto.......................................................................................................................................................................................... 105

COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

Que finalidade unifica a bioética?


What Purpose Unifies Bioethics?
¿Qué Propósito Unifica la Bioética?
Hubert Lepargneur.............................................................................................................................................................................................113

Cooperar para o bem comum: Responsabilidade social da enfermaria


Cooperate for the common good: social responsibility of nursing?
Cooperar para el bien común: ¿responsabilidad social de la enfermería?
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli.......................................................................................................................................................... 118

Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas


emergentes em Bioética
Evaluation of nursing undergraduate students about emergent subjects in bioethics
Evaluación del conocimiento de estudiantes de pregrado en enfermera sobre temas emergentes en la bioética
Pollyana Lira, Mauro Angelo Reppetto........................................................................................................................................................124

ESTUDO DE CASO/ CASE STUDY/ ESTUDIO DE CASO

Bioética - e agora, o que fazer?


Bioethics: what are we to do now?
Bioética: ¿ que hacer ahora?
William Saad Hossne (coordenador)
Colaboradores:
Gláucia Rita Tittanegro, Sueli Gandolfi Dallari, Ana Paula Pacheco Clemente, Renata Santinelli e Débora Pedrolo................................ 132

NOTÍCIAS DO PROGRAMA DE MESTRADO EM BIOÉTICA


A note about the master graduate program in bioethics
Informacíon acerca del programa de maestría en bioética
Dissertações defendidas: Programa de Mestrado stricto sensu em Bioética do Centro Universitário São Camilo.................................................................138

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES


Instructions for contributors........................................................................................................................................................................... 140
Conselho Editorial • Editorial Board

Leo Pessini (editor-chefe). Doutor em Teologia Moral/Bioética. Pós- Fermin Roland Schramm. Graduado em Letras. Pós-doutor em
graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics pelo St. Luke's Bioética pela Universidade do Chile, Santiago. Doutor em
Medical Center, Milwaukee, EUA. Docente do programa de mestrado em Ciências/Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
bioética do Centro Universitário São Camilo. Superintendente da União Pública/FIOCRUZ; professor de Semiótica pela Universidade de
Social Camiliana. Genebra; pesquisador titular de ética aplicada e bioética da Escola
Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ; consultor de Bioética do INCA.
William Saad Hossne (editor-chefe). Médico. Professor emérito
da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista, UNESP Fernando Lolas Stepke. Médico psiquiatra pela Universidade do
Botucatu, São Paulo. Membro do Comitê Internacional de Bioética da Chile. Professor titular na Faculdade de Medicina da Universidade do
UNESCO. Coordenador do programa de mestrado em bioética do Chile; diretor do programa de bioética da Organização Pan-americana
Centro Universitário São Camilo, São Paulo. de Saúde e do centro interdisciplinar de estudos em bioética da
Universidade do Chile.

Franklin Leopoldo e Silva. Filósofo pela Universidade de São


Ana Cristina de Sá. Enfermeira, psicóloga e pedagoga. Doutora me Paulo. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Livre
Enfermagem pela Universidade de São Paulo; professora do programa Docente pela Universidade de São Paulo; professor titular do departa-
de mestrado em bioética Centro Universitário São Camilo, São Paulo. mento de filosofia da Universidade de São Paulo; professor do progra-
ma de mestrado em bioética do Centro Universitário São Camilo.
Aziz Ab' Saber. Geógrafo e historiador. Professor aposentado da
Universidade de São Paulo; professor do programa de mestrado em Gabriel Wolf Oselka. Médico. Doutor pela Universidade de São
bioética, Centro Universitário São Camilo, São Paulo. Paulo; professor do programa de mestrado em bioética do Centro
Universitário São Camilo.
Bruno Adolfo Schletmper Junior. Professor de parasitologia na
Universidade Federal de Santa Catarina; assessor do conselho represen- Gláucia Rita Tittanegro. Filósofa. Doutora em filosofia pela
tativo de medicina de Santa Catarina; membro da Comissão Nacional Universidade Gragoriana, Roma; coordenadora do curso de filosofia do
de Ética em Pesquisa; ex-reitor da Universidade Federal de Santa Centro Universitário São Camilo.
Catarina.
Grazia Maria Guerra. Enfermeira. Doutora em Ciências pela
Carol Taylor. Diretora do Center for Clinical Bioethics, área Bioética Universidade de São Paulo; pesquisadora do laboratório de investi-
Clínica; professora assistente de Enfermagem da Georgetown University, gação clínica da unidade de hipertensão do Instituto do Coração; coor-
Washington, DC, EUA. denadora do curso de especialização de enfermagem em UTI do Centro
Universitário São Camilo.
Celso Lafer. Graduado em Direito. Doutor em Ciência Política; profes-
sor de direito internacional da Universidade de São Paulo; membro da Hugh Lacely. Pesquisador do Swartmore College, EUA.
academia brasileira de ciências.
James Drane. Diretor do Centro de Bioética Russel Roth da Edinboro
Christian de Paul de Barchifontaine. Enfermeiro. Mestre em University, Pensilvânia, EUA; assessor do programa de bioética da
Administração Hospitalar e da Saúde; professor no programa de mestra- Organização Pan-americana de Saúde.
do em bioética no Centro Universitário São Camilo-SP; membro da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa; pesquisador do núcleo de Joaquim Clotet. Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de
bioética e membro do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Barcelona; professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
Universitário São Camilo. do Sul.

Cláudio Cohen. Médico pela Universidade de São Paulo; professor do José Geraldo de Freitas Drumond. Presidente da Fundação de
programa de mestrado em bioética, Centro Universitário São Camilo, Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais-FADEMIG e da Sociedade
São Paulo. Ibero-americana de Direito Médico-SIDEME.

Dalmo de Abreu Dallari. Jurista. Doutor pela Universidade de São José Gregori. Secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo.
Paulo; professor do programa de mestrado em bioética do Centro Ex-Ministro da Justiça.
Universitário São Camilo, São Paulo.
José Eduardo de Siqueira. Médico cardiologista pela Universidade
Dalton Luiz de Paula Ramos. Cirurgião dentista pela Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Medicina (Clínica Médica) pela
de São Paulo. Professor doutor do departamento de odontologia social Universidade Estadual de Londrina, PR. Pós-doutor em Bioética pela
da faculdade de odontologia; membro da Pontifícia academia da vida, Universidade do Chile; professor associado da Universidade Estadual de
Vaticano, Itália. Londrina; presidente da Sociedade Brasileira de Bioética; membro da
rede Latino-ame-ricana de Bioética, UNESCO; membro da Associação
Daniel Romero Muñoz. Médico. Livre docente pela Universidade Internacional de Bioética.
de São Paulo; professor da Universidade de São Paulo; professor do
programa de mestrado em bioética, Centro Universitário São Camilo, Lawrence Librach. Diretor do The Temmy Latner Centre for Palliative
São Paulo. Care do Mount Sinai Hospital. Programa de cuidados paliativos do
Canadá; pesquisador sobre a gestão da dor em pacientes de câncer e
Darley Dalliagnol. Professor da faculdade de filosofia da educação; professor da cadeira W. Gifford-Jones de Controle da dor e
Universidade Federal de Santa Catarina. Cuidados Paliativos da University of Toronto; Professor do Departamento
de Família e Medicina Comunitária; presidente da Associação de
Eliane Elisa de Sousae Azevedo. Professora de bioética e genéti- Cuidados Paliativos de Ontário (Ontario Palliative Care Association) da
ca da Universidade de Feira de Santana; ex-reitora da Universidade Sociedade Canadense de Médicos Especialistas em Cuidados
Federal da Bahia. Paliatiavos - Canadian Society of Palliative Care Physicians.

Elma Lourdes Campos Zoboli. Enfermeira. Doutora em saúde Luciane Lucio Pereira. Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela
pública pela Universidade de São Paulo; professora do departamento de Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; presidente da
saúde coletiva da Universidade de São Paulo; vice-presidente da Sociedade Brasileira de Educação Continuada em Enfermagem; pró-
Sociedade Brasileira de Bioética; membro da Diretoria da Associação reitoria acadêmica e professora do programa de mestrado em bioética
Internacional de Bioética. do Centro Universitário São Camilo.
Conselho Editorial • Editorial Board

Manfredo Araújo de Oliveira. Filósofo. Doutor em Filosofia pela Paulo Antonio de Carvalho Fortes. Médico pediatra sa-nitarista.
Universitat München Ludwig Maximilian, Alemanha; professor titular do Livre Docente em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública.
Centro de humanidades, departamento de filosofia da Universidade Professor associado da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de
Federal do Ceará. São Paulo.

Marcelo Perine. Filósofo. Professor da Faculdade de Filosofia da Paulo Emílio Vanzolini. Médico PhD; professor aposentado do
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; membro da coordenação de Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo; professor do progra-
aperfeiçoamento de pessoal de nível superior-CAPES. ma de mestrado em bioética, Centro Universitário São Camilo, São
Paulo.
Márcio Fabri dos Anjos. Doutor em teologia. Professor da Academia
de teologia moral da Pontifícia Universidade Lateranense de Roma; Pedro Luiz Rosalen. Farmacêutico pela Universidade de São Paulo.
membro da Câmara técnica de bioética do Conselho regional de med- Doutor em Farmacologia pela UNICAMP; professor titular em Farmacologia
icina do estado de São Paulo; professor do programa de mestrado em da UNICAMP; consultor da Fapesp, CNPq e Capes.
bioética do Centro Universitário São Camilo, São Paulo.
Reinaldo Ayer de Oliveira. Médico. Doutor em Patologia pela
Marco Segre. Médico. Livre docente pela Universidade de São Paulo. UNESP; professor da Universidade de São Paulo; conse-lheiro e coorde-
Professor titular do departamento de medicina legal, ética médica e med- nador da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de
icina social e do trabalho; membro da comissão nacional de ética em Medicina do Estado de São Paulo.
pesquisa do Ministério da Saúde; professor do programa de mestrado em
bioética do Centro Universitário São Camilo, SP. Renato Janine Ribeiro. Filósofo. Livre-docente pela Universidade de
São Paulo; diretor de avaliação da coordenação de aperfeiçoamento de
Margareth Rose Priel. Médica. Pós-doutora pela Universidade pessoal de nível superior; membro de comissão do Ministério da
Federal de São Paulo. Doutora em Neurociências, Universidade Federal Ciência e Tecnologia; professor titular da Universidade de São Paulo.
de São Paulo; professora do programa de mestrado em bioética e dire-
tora de pesquisa e pós-graduação do Centro Universitário São Camilo. Ricardo Renzo Brentani. Doutor em Medicina pela Universidade de
São Paulo; professor titular da Universidade de São Paulo; pesquisador
Margareth Zabeu Pedroso. Biomédica. Doutora em Microbiologia do Instituto Ludwig sobre o câncer; presidente da Fundação Antônio
pela Universidade Federal de São Paulo; coordenadora do comitê de Prudente, SP; diretor de unidade da Fundação de Amparo à Pesquisa de
ética em pesquisa e professora do programa de mestrado em bioética São Paulo FAPESP.
do Centro Universitário São Camilo, São Paulo.
Roberto Luiz D'Avila. Médico. Primeiro vice-presidente do Conselho
Marcos de Almeida. Médico. Livre-docente pela Universidade de Federal de Medicina. Mestre em neurociências e comportamento.
São Paulo. Doutor em Medicina pela Universidade Federal São Paulo; Professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina.
professor de medicina legal, deontologia e bioética na Universidade
Federal São Paulo. Sonia Vieira. Livre-docente pela Universidade Estadual de
Campinas,UNICAMP. Pós-doutora pela Yale University; professora titular
Maria de Jesus Gonçalves. Fonoaudióloga. Doutora em psicologia da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual de Campinas;
experimental pela Universidade de São Paulo; coordenadora do curso professora titular do Centro de Pesquisas Odontológicas São Leopoldo
de fonoaudiologia e professora do programa de mestrado em bioética Mandic.
do Centro Universitário São Camilo, São Paulo.
Sueli Gandolfi Dallari. Professora titular da Faculdade de Saúde
Maria Auxiliadora Cursino Ferrari. Terapeuta ocupacional e ped- Pública em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo; professora
agoga. Doutora em Saúde pública pela Universidade de São Paulo; do programa de mestrado em bioética do Centro Universitário São
coordenadora do curso de terapia ocupacional e professora do progra- Camilo, São Paulo.
ma de mestrado em bioética do Centro Universitário São Camilo, São
Paulo. Vera Lúcia Zaher. Médica, psicóloga. Doutora pela Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo; médica do Hospital das
Maria Julia Paes da Silva. Enfermeira. Livre docente do Clínicas da Universidade de São Paulo; supervisora do Projeto Tutores
Departamento de Enfermagem Médico-cirúrgica da Escola de da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo;professora do
Enfermagem da Universidade de São Paulo. Instituto Sedes Sapientiae; coordenadora adjunta do programa de
mestrado em bioética do Centro Universitário São Camilo, São Paulo.
Marlene Boccatto. Doutora em Ciências Biológicas pela Universidade
de São Paulo; membro do Conselho Regional de Biologia; membro da Volnei Garrafa. Cirurgião dentista. Pós-doutor em Bioética pela
Sociedade de Bioética, São Paulo e da Sociedade Brasileira de Bioética; pro- Universidade de Roma. Doutor em Ciências pela UNESP; professor titu-
fessora do programa de mestrado em bioética do Centro Universitário São lar do programa de pós-graduação em Ciências da Saúde da
Camilo, São Paulo. Universidade de Brasília; coordenador da Cátedra UNESCO de Bioética
da Universidade de Brasília, UnB.
Nelson Rodrigues dos Santos. Doutor em Medicina pela
Universidade de São Paulo; professor da faculdade de ciências médicas, Walter Oswald. Ex-diretor do Instituto de bioética, Universidade
departamento de Medicina preventiva e social da Universidade Estadual Católica Portuguesa, Porto; ex-presidente da Associação Mundial de
de Campinas; secretário executivo nacional do Conselho Nacional de Médicos Católicos.
Saúde, Ministério da Saúde, Brasil.
William Breitbart. Médico.Chefe do departamento de psiquiatria de
Olinto Antonio Pegoraro. Doutor em Filosofia, Pós-doutor pela ciências comportamentais do Memorial Sloan, Keetering Câncer Center,
Universidade Católica de Louvain, Bélgica; professor do Centro de ciên- New York, EUA.
cias sociais, Instituto de filosofia e ciências humanas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro; membro do comitê de bioética da UERJ.

Oswaldo Baptista Duarte Filho. Doutor em Engenharia química


pela Universidade de São Paulo; professor do Centro de ciências exatas
e tecnologia, da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.
EDITORIAL

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):9-11

Bioética:
marco de uma nova época

Frente ao espetacular desenvolvimento da tec- disseminar o conhecimento científico da bioética


nociência e da comunicação, muitos pensadores por meio de estudos e pesquisas que contribuam
contemporâneos afirmam que vivemos de fato, mais para a expansão e consolidação desta área do
do que em uma época de mudanças, numa mudança conhecimento humano, no País e na América
de época. Latina. Além disso, quer estimular a reflexão por
Certas palavras-chave conseguem captar o espírito parte dos especialistas e profissionais das diversas
de uma época. Tudo o que se refere ao âmbito do áreas do conhecimento humano, especialmente no
"bios" (vida) tem hoje uma instigante novidade. âmbito das ciências da vida e da saúde que inte-
Assim, podemos falar de "biogenética" ("recriação ragem com a bioética.
da vida"), de "biotecnologia" (como motriz da Este periódico surge num momento de grande
"economia do século XXI), "bioterrorismo" efervescência de reflexão na esfera da ainda jovem
("armas biológicas destruindo a vida"), "biologia bioética brasileira. Faltam no Brasil veículos de pu-
molecular", entre outras. Em meio a esta explosão blicação que captem esta vitalidade criativa dos
de questões ligadas à vida, surge a "bioética" como pesquisadores na área. Dessa forma, Bioethikos cons-
marco crítico de reflexão de valores humanos diante
titui-se em uma possibilidade real de participação de
do que trouxe a revolução bio-técnico-científica.
inúmeros profissionais da área e ampliação do
Isto exige e provoca reflexão e posicionamento
debate ético.
ético, uma vez que o que está em jogo é a nossa vida
e o futuro da vida no planeta. Eis o motivo incisivo Concebida inicialmente para ser uma publicação
e fundamental que justifica o nascimento de semestral, Bioethikos conta com um corpo editorial
Bioethikos. de primeiríssima grandeza, com expressividade
Bioethikos é o mais novo periódico científico do nacional e internacional. A partir deste momento, a
Centro Universitário São Camilo, voltado à veicu- revista Cadernos - Centro Universitário São Camilo
lação de estudos, comunicações e pesquisas na área deixa de existir e Bioethikos se apresenta como o mais
da bioética. Tem entre suas finalidades possibilitar o novo veículo de publicação científica desta institui-
exercício analítico e crítico de questões, priorizando ção universitária, com identidade e características
as emergentes, que envolvem o ser humano na sua próprias, afinadas com os valores camilianos.
relação consigo mesmo, com o outro e a realidade
mais ampla. Objetiva, também, apresentar-se como
espaço plural e transdisciplinar no que concerne ao Leo Pessini*
debate das questões ético-filosóficas do ser humano. William Saad Hossne**
Nesta perspectiva, Bioethikos tem por missão Editores-chefe

* Doutor em Teologia/Bioética. Pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics, St Luke's Medical Center. Docente do programa de mestrado em bioéti-
ca do Centro Universitário São Camilo. Superintendente da União Social Camiliana.
** Médico e pesquisador. Professor emérito da Universidade Estadual Paulista, UNESP, campus Botucatu, faculdade de medicina. Membro da Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa - CONEP. Membro do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO. Coordenador do Programa de Mestrado em Bioética do Centro
Universitário São Camilo.

9
EDITORIAL

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):9-11

Bioethics:
the landmark of a new era

Given the spectacular development techno- From this perspective, Bioethikos has as its mis-
science and communication have been passing by, sion of disseminating scientific knowledge in the
many contemporary thinkers state that we live not bioethical field by means of studies and research
properly at an era of changes, but in fact in a change that contribute to the expansion and consolidation
of era. of this area of human knowledge, both in Brazil
Certain keywords are able to capture the spirit of an and Latin America. Moreover, it wants to encourage
era. Everything related to the domain of "bios" (life) reflection by specialists and professionals of the
has today an instigating freshness. Thus, we can different areas of human knowledge, especially in
speak of "biogenetics" ("recreation of life"), of the domain of life sciences and health that interact
"biotechnology" (as the moving force behind "the with Bioethics.
twenty-first century) economy," of bioterrorism Besides, this Journal comes to life at a moment
"("life-destroying biological weapons"),"molecular when reflection in the domain of the young
biology", among others. In the context of this Brazilian Bioethics is flourishing like never before.
explosion of questions linked to life, "Bioethics" There is in Brazil a lack of publications that capture
appears as a critical landmark for reflection on this creative vitality of the researchers in the area.
human values before things brought by the bio- Thus, Bioethikos creates a real possibility for the
technical-scientific revolution. This demands and participation of innumerable professionals of the
encourages reflections and the adoption of an ethi- area, besides making ethical debate broader yet.
cal attitude, since what is in play is our life and the Conceived from the beginning to be a semestral
future of life in the planet. Here lies the incisive, publication, Bioethikos has a highly qualified Editorial
fundamental reason that justifies the birth of Board, with national and international recognition.
Bioethikos. From now on, Cadernos Journal - Centro
Bioethikos is a new scientific journal from São Universitário São Camilo ceases to be published and
Camilo University Center thatr aims at the propaga- Bioethikos presents itself as the new scientific publi-
tion of studies, communications and research in the cation of this university institution, with its own
area of the BIOETHICS. It purposes to make pos- identity and characteristics, perfectly compatible
sible the analytical and critical exam of questions, with Camillian values.
mainly the emergent ones, that involve human
beings in their relation with themselves, with the
others and reality as a whole. It also aims at presen-
ting itself as a pluralistic and transdisciplinary space Leo Pessini*
as concerns the debate of ethical-philosophical William Saad Hossne**
questions related to human beings. Editors-in-chief

* Ph.D., Theology/Bioethics. He has done studies in Clinical Pastoral Education and Bioethics at St Luke's Medical Center. Professor of the Master course in
Bioethics of São Camilo University Center. Superintendent of União Social Camiliana.
** Physician and researcher. Emeritus professor of State University of São Paulo, UNESP, Botucatu campus, Medical School. Member of the National Commission
of Ethics in Research - CONEP. Member of the International Committee of Bioethics - UNESCO. Coordinator of the Master course in Bioethics of University
Center São Camilo.

10
EDITORIAL

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):9-11

La Bioética:
el marco de una nueva era

Frente al espectacular desarrollo de la tecnocien- bioético de promedio estudios y investigaciones que


cia y la comunicación, muchos pensadores contem- contribuyan a la extensión y a la consolidación de
poráneos dicen que vivimos no propiamente en una esta área del conocimiento humano, en el Brasil y la
era de cambios, pero de hecho en un cambio de era. América latina. Por otra parte, desea animar la
Hay palabras-llave capaces de capturar el espíritu de reflexión de los especialistas y de los profesionales
una era. Todo lo que se relaciona con el dominio de de las diversas áreas del conocimiento humano,
la "bios" (la vida) trae hoy una estimulante novedad. especialmente en el dominio de las ciencias de la
Así, se puede hablar de "biogenética" ("reconstruc-
vida y de la salud que obran junto a la Bioética.
ción de la vida"), de "biotecnología" (como la fuerza
Además, este periódico viene a la vida en un
motriz detrás "de la economía del siglo veintiuno"),
del bioterrorismo" ("armas destruidoras de la vida"), momento en el que la reflexión en el dominio del la
de "biología molecular ", entre otras. En el contexto joven Bioética brasileña está prosperando como
de esta explosión de cuestiones ligadas a la vida, la nunca antes. Hay en el Brasil una carencia de publi-
"Bioética" aparece como marco crítico para la refle- caciones que capturen esa vitalidad creativa de los
xión acerca de valores humanos antes de las cosas investigadores en el área. Así, Bioethikos crea una
que trae revolución bio-técnico-científica. Eso exige posibilidad verdadera de participación de los profe-
y anima reflexiones y la adopción de una actitud sionales innumerables del área, además de hacer la
ética, púes lo que está en juego es nuestra vida y discusión ético más amplio todavía.
el futuro de la vida en el planeta. Es esa la razón Concebida desde el principio como una publi-
incisiva y fundamental que justifica el nacimiento cación semestral, Bioethikos tiene un Comité
de Bioethikos. Editorial altamente cualificado, con miembros
Bioethikos es un periódico científico nuevo del Centro reconocidos nacional e internacionalmente. Desde
Universitario São Camilo, dirigido a la propagación ahora, el periódico Cadernos - Centro Universitario
de estudios, comunicaciones y investigaciones en el São Camilo deja de ser publicado y Bioethikos se pre-
área de la Bioética. Su propósito es hacer posible
senta como la nueva publicación científica de esta
el examen analítico y crítico de las cuestiones,
principalmente emergentes, que acercan los seres institución universitaria, con identidad y caracte-
humanos en su relación con sí mismos, con los otros rísticas propias, perfectamente compatibles con los
y realidad en su totalidad. También tiene como obje- valores camilianos.
tivo el presentarse como espacio pluralista y
trasdisciplinario para la discusión de las cuestiones
ético-filosóficas relacionadas con los seres humanos. Leo Pessini*
De esta perspectiva, Bioethikos tiene la misión de William Saad Hossne**
diseminar el conocimiento científico en el campo Editores-jefes

* Doctor en Teología/Bioética. Ha hecho estudios en Educación Pastoral Clínica y Bioética en el Centro Médico St Luke's Medical Center. Profesor del curso de
Maestría en Bioética del Centro Universitario São Camilo. Superintendente de União Social Camiliana.
** Médico e investigador. Profesor honorario de la Universidad Estadual de São Paulo, UNESP, Botucatu, Escuela de Medicina. Miembro de la Comisión Nacional
de Ética de la Investigación - CONEP. Miembro del Comité Internacional de Bioética - UNESCO. Coordinador del curso de Maestría en Bioética del Centro
Universitario São Camilo.

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ARTIGO ORIGINAL/ ORIGINAL REPORT/ ARTÍCULO

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):12-23

As investigações científicas e a
experimentação humana: aspectos bioéticos
Scientific research and human experimentation: bioethical aspects
Investigación científica y experimentación humana: aspectos bioéticos

Newton Aquiles von Zuben*

RESUMO: A pesquisa científica é uma atividade incoativa, não reconhece uma norma precisa a priori; no entanto, esforça-se por não cair na
cilada oposta da arbitrariedade. No desenvolvimento próprio cria suas normas. As pesquisas visam, ao mesmo tempo, a construção de um saber, a
apuração constante de uma metodologia e a instauração de uma norma. Uma análise epistemológica tenta compreender não meramente a ciência
constituída e seus métodos, mas, sobretudo a gênese dos procedimentos, suas condições de possibilidade, as intuições, seus métodos e critérios de
autocrítica. Quanto às investigações que tomam por objeto o ser humano, qual deve ser a posição a ser tomada? Sob que condições é plausível
defender-se a direito e a liberdade de investigação respeitando-se a dignidade da pessoa humana? A Bioética tem entre outros objetivos o de ana-
lisar e avaliar as investigações com seres humanos nas áreas biomédicas. Está em foco a "experimentação humana", a pesquisa envolvendo seres
humanos, seja com objetivo de adquirir novos conhecimentos, seja com objetivo terapêutico. O presente trabalho visa analisar, de modo sucin-
to, essa questão no cenário de documentos oficiais na área de Bioética como: O Código de Nuremberg, A Declaração de Helsinki-Edimburg (2000) da
Associação Média Mundial (AMM); A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem da Unesco (1997); o Relatório Belmont.
PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa biotecnológica. Experimentação humana. Bioética.

ABSTRACT: Scientific research is an inchoative activity, not recognizing an a priori necessary norm; however, it makes efforts not to fall in the
opposing ambush which is arbitrariness. In its own development it creates its norms. Research aims at the same time both at the construction of
knowledge and the constant verification of a methodology and the instauration of a norm. An epistemological analysis tries to only to understand
established science and its methods, but mainly the genesis of the procedures, their conditions of possibility, intuitions, its methods and criteria for
an self-critique. Regarding researches that have human beings as subjects, which position must be taken? Under what conditions is it reasonable to
defend the right and the freedom of research respecting human dignity? Bioethics has among other objectives to analyze and evaluate research with
human beings in the biomedical areas. Its focus is "human experimentation", research involving human beings, both to acquire new knowledge or
with therapeutic ends. The present work aims to briefly analyze this question in official bioethical documents: The Nuremberg Code, the
Declaration of Helsinki-Edimburg (2000) of the World Medical Association (WMA); the Universal Declaration on the Human Genome and the
Rights of Man by UNESCO (1997); and the Belmont Report.
KEYWORDS: Biotechnological research. Human experimentation. Bioethics.

RESUMEN: La investigación científica es una actividad incoativa, no reconociendo una norma necesaria a priori; sin embargo, hace esfuerzos de no
ceder oposición que es carácter arbitrario. En su propio desarrollo, ella crea sus normas. La investigación tiene como objetivo al mismo tiempo la
construcción del conocimiento y la verificación constante de una metodología y la instauración de una norma. Un análisis epistemológico intenta
no solamente comprender la ciencia establecida y sus métodos, pero principalmente la génesis de los procedimientos, sus condiciones de posibili-
dad, intuiciones, sus métodos y los criterios para una autocrítica. ¿Mirando investigaciones que tienen seres humanos como sujetos, que posición
se debe tomar? ¿Bajo qué condiciones es razonable defender el derecho y la libertad de investigación respetando la dignidad humana? La bioética
tiene entre otros objetivos analizar y evaluar la investigación con seres humanos en las áreas biomédicas. Su foco es la "experimentación humana",
investigaciones con seres humanos, tanto para adquirir nuevo conocimiento o con metas terapéuticas. Este trabajo intenta analizar brevemente esta
cuestión en documentos bioéticos oficiales: El Código de Nuremberg, la Declaración de Helsinki-Edimburgo (2000) de la Asociación Médica
Mundial (AMM); la Declaración Universal sobre el Genoma Humano y los Derechos del Hombre de la UNESCO (1997); y el Informe de Belmont.
PALABRAS LLAVE: Investigación Biotecnológica. Experimentación humana. Bioética.

* Doutor e Mestre em Filosofia pela Universite Catholique de Louzain, Bélgica. Membro Titular do Comitê de Ética em Pesquisa. Professor Titular da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas. Email: nzuben@terra.com.br

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INTRODUÇÃO Daí o avanço considerável que conhecemos hoje no


campo da Bioética cuja emergência se deu justamente em
A principal descoberta deste século de pesquisa e de um cenário de mal-estar causado por investigações cien-
ciência é, provavelmente, a profundidade de nossa ignorân- tíficas na área das ciências biomédicas e de suas apli-
cia da natureza. Essa idéia de François Jacob, Prêmio Nobel cações clínicas e terapêuticas. Acentuou-se, à época do
de Fisiologia e Medicina, ano de 1965, conclui sua interes- surgimento desse fenômeno cultural na década de 1970,
sante e agradavelmente provocadora obra O rato, a mosca a discussão sobre os limites e potencialidades das inves-
e o homem(1). O contexto no qual se inserem as reflexões tigações científicas envolvendo seres humanos.
de Jacob é o das ciências biológicas e a genética. Indiscutivelmente o "homo sapiens" fazia jus, mais uma
Emblematicamente coloca no título da obra, o homem em vez, do presente recebido de Prometeu, inaugurando
último lugar. uma era de inovações inauditas e, entretanto revelando
Nessa obra o eminente cientista trata da pesquisa, de peculiar característica, a ambivalência.
sua importância, de seus limites e desafios, rupturas e A tribo "homo sapiens sapiens" conheceria desde o últi-
desconforto, do caráter essencial da imprevisibilidade nas mo século a nova versão do antigo e sinistro destino ao
investigações científicas dignas desse nome, dos diversos transcender outros e mais misteriosos limites: convi-ver
tanto com as inovações na engenharia genética e com a
patamares da investigação; da distinção e correlação entre
farmacologia que lhe renderiam eventualmente benefí-
pesquisa básica e pesquisa aplicada, de como nessa sabe-
cios e riscos, quanto o assombroso evento de Hiroshima,
mos o que procuramos enquanto que naquela ignoramos
Nagazaki, e Tchernobil. Desenvolvo essas considerações
completamente.
no meu trabalho publicado recentemente(3).
Em sua conclusão nos alerta: o grande perigo para a
Assim, duas importantes frentes deveriam ser
humanidade não é desenvolver o conhecimento. É a
preservadas: o reconhecimento do direito de pesquisa
ignorância.
livre e responsável e, no mesmo patamar de valoração, o
As ciências, as tecnociências em suma, o saber e a práti-
respeito da pessoa humana e seus direitos, ambos volta-
ca científicos realmente nos fazem pensar. Apresentam-se, dos para a instituição de uma sociedade justa. O ponto
insistentemente, com questões como: que dilemas estão axial dessa relação dialética tem sido o conceito da
presentes nas investigações científicas, hoje? Que relações "responsabilidade da ciência"(4).
as mais adequadas instituir entre ciência e a sociedade? Nesse cenário particularmente crisogênico, surgiu
Como entender e avaliar, no horizonte humano, a crescente novo campo problemático, não só no plano científico,
dependência da civilização ao domínio das tecnociências? mas no campo moral e axiológico. E a Bioética, como
A racionalidade científica está no epicentro de um um espaço paradigmático multidisciplinar, enfrenta-se
intenso debate e de processos de crítica severa. Inúmeras com diversas questões relacionadas com as pesquisas
obras são dedicadas aos "valores e limites da ciência". tecnocientíficas tais como: a procriática e a tanatologia; a
A confiança sem limites, movida por um otimismo sem nova genética e as conseqüências para o ser humano; a
freios nos poderes e nas potencialidades das ciências cede terapia gênica; as manipulações do comportamento; a
o lugar, com impressionante rapidez, para uma crescente alocação de recursos diante do crescente fosso entre
fragilização da crença nesses poderes, cristalizada numa ati- países desenvolvidos e os excluídos da humanidade.
tude de recusa, de medo, justificado ou não, mas real, das Tudo isso girando em torno das investigações cientí-
ciências. Toma corpo, em todas as partes do mundo, a pre- ficas. As reflexões bioéticas têm como intenção a busca
ocupação com a dimensão ética das pesquisas científicas de articulações entre o saber científico e os valores
que estabelecem, para atingir seu objetivo, estratégias humanos.
experimentais envolvendo seres humanos. Pretende-se
resolutamente assegurar o direito de se realizar pesquisas; AS INVESTIGAÇÕES CIENTÍFICAS
tal pretensão, no entanto, deve se articular com tenacidade
à salvaguarda do respeito da pessoa humana contra as for- Para ilustrar esse estado de coisas, retomo a obser-
mas invasivas da curiosidade científica na expressão de vação sibilina de Henri Atlan(5) eminente biólogo francês,
Anne Fagot(2). inscrita em sua obra " Entre o cristal e a fumaça". A com-

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paração não deixa de ser extremamente sagaz e ilustrati- própria gênese da atividade científica estão no centro das
va. Afirma ele: atenções das reflexões epistemológicas da atualidade.
“Que a pesquisa científica e o método experimental Tais preocupações com o "fazer-ciência" são múlti-
não impeçam que se ouçam outras maneiras de pensar, plas e diferem segundo a perspectiva a partir da qual
provenientes da filosofia e das mais antigas tradições. pensamos esse "fazer-ciência". Aí intervém igualmente o
Mesmo com o risco de serem chamados de místicos, interesse que preside o enfoque escolhido: seja o da pro-
enquanto que, para outros, ao contrário, mais em busca de dução da ciência, seja a divulgação de sua dinâmica assim
profecia que de teoria, tratar-se-ia, principalmente, de não como dos seus produtos (os constructos das tecnociên-
ficarem prisioneiros de uma golilha obsoleta e mortífera, cias), ou seja, o consumo dessas inovações. Nesse
fadada a se romper neste fim de século, que é ao mesmo cenário é igualmente relevante, o impacto das aplicações
tempo fim de milênio e de civilização! É verdade que, não dessas investigações na vida social. Por essa razão, no
nos querendo encerrados, às vezes beiramos os dois abis- próprio meio científico, a bioética, alicerçada por estímu-
mos da facilidade e do repouso que são a ciência univer- los críticos da filosofia e das ciências humanas, da teolo-
sitária, douta, conformista e institucionalizada, e os gia e do direito, emerge na década de 1970 e se institu-
delírios-delícias da contracultura, da anticiência e da arte cionaliza como uma prática de linguagem, de cunho
profética. Daí, talvez, a importância desses contatos - secular como um "locus" multidisciplinar de debates
desses distanciamentos entre parentes que assim se recon- democráticos com a intenção de analisar, discutir e
hecem como semelhantes. Esses debates, cujo desafio oferecer pareceres sobre questões cruciais no campo das
consiste em não cair em nenhum desses abismos - cristal ciências biomédicas tanto no plano da pesquisas como
e fumaça -, só hão de parecer supérfluos àqueles que no plano prático ou terapêutico.
tiverem definitivamente escolhidos uma das bordas”(5). O estudo visando redimensionar o binômio Ciência-
Na realidade, nota esse cientista, as organizações Sociedade tem como tarefa a instituição de novas políti-
vivas são fluidas e móveis; qualquer organização celular cas públicas visando, entre outros pontos, aprofundar,
é dinâmica e de estrutura lábil como a chama de uma no âmbito de debates democráticos, a regulamentação
vela produzindo o tênue fio de fumaça. Assim, tornam- social das inovações tecnocientíficas. É o que se ensaia
se difíceis de se fixar. Ao contrário da ordenação do com o projeto de avaliação tecnológica (technological asses-
cristal. ment dos anglo-saxãos) que se pauta, no caso de experimen-
E nesse cenário, penso eu, é possível tentar analisar tação humana, na estrita correlação entre a avaliação de
a partir da perspectiva bioética, a situação colocada pelas riscos e no respeito à autonomia da pessoa e de seu
inovações inauditas das tecnociências da área biomédica. necessário consentimento livre.
Nesse horizonte situam-se, na verdade, no "interva- Daí surgem novas questões sobre a auto-regulamen-
lo" entre o cristal e a fumaça, as investigações "bio-cen- tação ou a hetero-regulamentação das atividades de
tradas" e as reflexões "bio-intencionadas". investigação nas biociências.
As primeiras se ocuparão necessariamente em De início, nota-se uma crise de consciência por parte
manipular e experimentar a vida em todas as suas dos próprios cientistas e pensadores no que diz respeito
dimensões; as segundas, em buscar o sentido da vida ao fundamento epistemológico de suas atividades;
e do viver a fim de resguardar seu valor assim como o em seguida, um profundo senso crítico com relação
respeito pela pessoa humana, sujeito das experimen- à questão da pretendida, e por muitos sustentada,
tações e dos cuidados terapêuticos e clínicos. hierarquização dos domínios do saber e das disciplinas
Nesse quadro geral, impõe-se, no meu entender com que são suas respectivas expressões e, finalmente, um
premência crescente, observar as preocupações com o questionamento rigoroso dos métodos empregados à
"fazer-ciência" articulado com o pensar sobre esse fazer luz de novos meios de que dispõem as ciências graças ao
ciência, vale dizer, com os limites e condições de reflexão mais recente desenvolvimento da técnica e da importân-
crítica sobre as ciências em geral e sobre as tecnociên- cia crescente que adquire a tecnologia para a aplicação
cias de modo especial. Não só os efeitos, ou os produ- dos princípios científicos. Donde o caráter supostamente
tos da atividade científica e tecnológica, mas o processo dominante das denominadas ciências exatas, com o peri-
da construção, a dinâmica dos procedimentos e a go que tal pretendida hegemonia representa para a liber-

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dade da ciência, liberdade que não pode se desvincular pesquisas nessas áreas tem provocado inquietação e
dos "direitos de pensamento", ou "direitos de pensar", cuidado especiais. É o que pretendo analisar a seguir
expressão eminente da consciência humana. limitando-me a breves considerações tendo como
O equilíbrio instável a ser estabelecido em breve cenário os documentos acima citados.
dependerá da gestão das conquistas científicas assim
obtidas, segundo novo modelo que responderá, do A EXPERIMENTAÇÃO HUMANA E A PROTEÇÃO DO
modo mais adequado possível, ao princípio já há HUMANO NAS DECLARAÇÕES
muito conhecido da interdisciplinaridade e da com-
plexidade, da religação dos saberes, na expressão de A estratégia e o que sustenta, por assim dizer, as
Morin. investigações científicas com seres humanos é a experi-
Nesse horizonte adquire relevância especial a mentação. Isso representa uma radical modificação da
problematização das investigações dos fenômenos medicina como arte de curar, sua característica primor-
sociais, mas, sobretudo as questões levantadas pelas dial e prioritária. Há algumas décadas vem se impondo a
pesquisas no campo das ciências biomédicas. convicção de que a arte do cuidado e a busca da cura de
Quanto as primeiras a questão que se apresenta é: doenças que acometem a humanidade estão numa
qual a estrutura de significação própria ao conheci- relação crescente de interdependência com a aquisição e
mento científico quando está em jogo uma realidade aprofundamento de novos conhecimentos científicos
na qual o homem está presente como sujeito da ação? adquiridos por meio de estratégias experimentais.
Ao se admitir a entrada em cena da "ação humana", de O campo de atividade passa a ser o cuidado, a terapia
pronto surge o complexo universo das motivações, e a investigação científica.
dos valores, dos interesses e desejos, em suma, o vasto São conhecidas atualmente diversas modalidades de
e ambíguo mundo do sentido (Sinnwelt) e da condição pesquisas experimentais com seres humanos. Em sentido
humana (Lebenswelt). lato experimentar significa submeter ao teste da experiên-
Na esteira disso impõe-se a indagação: que abor- cia. Em toda investigação o objetivo é adquirir novos
dagem a ser escolhida quando o que está no foco da conhecimentos, empregando para tanto a estratégia da
investigação é uma realidade humana, (em que pese a experimentação. E experimentação humana é aquela que
extrema ambigüidade de tal expressão) realidade utiliza estratégias que envolvem testes com seres
estética, psíquica, social, política, econômica e, sobre- humanos. Muitos autores distinguem a experimentação
tudo, ética. E mais, quando estamos no âmbito de uma com objetivos cognitivos, vale dizer, que supostamente
investigação para a qual não é permitido evadir-se da contribui para a aquisição de novos conhecimentos; e
linguagem do sentido, o universo da dimensão sim- aquela com fins terapêuticos, aquela que submete o ser
bólica, pedra angular no empreendimento inaugural do humano a um teste de tratamento, de diagnóstico de pre-
ser humano ao transcender a animalidade em busca da venção e que visam beneficiar o paciente.
racionalidade. Tais processos investigativos, não tanto pelos aspec-
Permito-me supor que na realidade histórica de tos técnicos, mas pelas inquietações morais que as
seu "fazer-se", os processos científicos ou as práticas envolvem, tem sido objeto de intensos debates. Aliás,
científicas estão animados por uma intencionalidade estão mesmo na gênese do projeto bioético.
constituinte que, passo a passo, confirma-se a si A experimentação humana põe à luz questões
mesma na própria dinâmica dos procedimentos que cruciais que estiveram na agenda de debates em inúmeras
traz à luz, ao mesmo tempo em que institui suas Comissões de bioética, nacionais e internacionais,
potencialidades e virtualidades. Comitês de Ética e Congressos científicos. Dentre as
No entanto, embora o cenário desenhado pelas questões pode-se notar em particular a incerteza relati-
investigações na área das ciências sociais represente va aos riscos prováveis e, sobretudo a delicada questão
valiosa contribuição para a bioética, atualmente a do "consentimento livre e informado" cujo conceito
atenção é dedicada mais especificamente com as inves- ainda permanece ambíguo e de contornos semânticos
tigações que são feitas com seres humanos nas áreas flácidos. Para a proteção da pessoa humana contra as
biomédicas. Há mais de meio século práticas de formas invasivas da curiosidade científica, confiou-se

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durante longo tempo na consciência moral dos mente, de todas as declarações, convenções, pareceres e
pesquisadores e nas tradições da ética profissional documentos posteriores da bioética. A profissão mé-
(p. 97)(2). dica foi a primeira a incluir explicitamente esses princí-
É importante observar a grande diversidade de pios nos fundamentos de sua deontologia sob a forma
instâncias, governamentais, intergovernamentais, não- de declarações da AMM Associação Médica Mundial
governamentais e de textos nacionais e internacionais (p. 99)(2). Tal consentimento representava a manifestação
que foram dedicados a essa questão, depois da 2a Guerra clara em favor do respeito e da dignidade da pessoa
Mundial, relativos à ética médica e a bioética. humana. Percebe-se que o Código deixa transparecer um
Tais textos, todos seguindo o modelo primordial da entendimento moderno da medicina, considerada uma
filosofia dos Direitos Humanos presente na Declaração ciência experimental com estreita ligação com a biologia
Universal dos Direitos Humanos, embora não tenham para a qual a pessoa humana não é o centro das preo-
força de lei, inspiram os códigos de deontologia e diver- cupações. E justamente para a pessoa humana que se
sas legislações nacionais. dirige o foco de atenção do Código ao limitar ou regular
Deve-se estar atento, no entanto, da possível distân- as pesquisas, pelas quais devem ser responsáveis cientistas
cia entre os princípios e as práticas. A esse respeito afir- qualificados, a pessoas adultas, informadas, responsáveis
ma Anne Fagot: e voluntárias.
A declaração internacional proclama uma doutrina O Código indica uma perspectiva de experimentação
esclarecida, fiel à tradição filosófica provinda do não necessariamente terapêutica ou com seres humanos
Iluminismo à qual as democracias modernas apreciam doentes que pudessem eventualmente se beneficiar com
referir-se. Elas permanecem, no entanto, em grande os resultados. São pesquisas com indivíduos humanos
parte, desejos piedosos ou alibis encobrindo práticas niti- visando o bem estar de todos. Nesse Código já estão pre-
damente em retrocesso em relação ao que proclamam sentes alguns princípios que nortearão as pesquisas.
(p. 102)(2). Em primeiro lugar, o consentimento esclarecido,
De fato, é razoável supor-se que sobre a questão da como já dito, manifestação principal do princípio da
experimentação humana paira, em algumas circunstân- autonomia de um paciente ou de um sujeito de pesquisa,
cias, o complexo jogo da aceitação por princípio e revelando a liberdade inalienável do sujeito durante todo
rejeição de fato, ponto culminante da clivagem entre a o seu transcurso; tal princípio exige que sejam apresen-
audácia destemida e a moderação prudente. tadas ao sujeito as informações mais completas possíveis
(item 1 do Código).
A - O Código de Nuremberg Em seguida, o princípio da cientificidade, segundo o
qual a responsabilidade pela condução da experimentação
Na verdade, o texto fundador e referência constante deve ser atribuída a um especialista qualificado.
das Declarações nacionais e internacionais de ética As experiências não devem ser praticadas senão por
médica é o Código de Nuremberg de 1946-1947. pessoas cientificamente qualificadas. São exigidas, durante
O estupor mundial provocado pelas bárbaras expe- todo o transcorrer da experiência, a maior aptidão e
riências realizadas por médicos nazistas induziu a esse extrema atenção de todos os que a dirigem e dela partici-
Código que em seus dez pontos define clara e objetiva- pam (item 8). A esse item acrescentem-se os (itens 2 e 3).
mente as condições de experimentação com seres A seguir, o princípio da beneficência segundo o qual
humanos. a pesquisa deve visar o bem do paciente e do sujeito da
O consentimento voluntário do sujeito humano é pesquisa e de todos os membros da sociedade.
absolutamente essencial, lê-se já no seu primeiro artigo. A experiência deve apresentar resultados práticos
Ele supõe que a pessoa entenda a natureza da experimen- para o bem da sociedade, impossíveis de serem obtidos
tação, seus objetivos e os riscos eventuais e que tenha a por outro meio de pesquisa; ela não deve ser praticada
capacidade de decidir livremente sobre sua participação. ao acaso e sem necessidade(item 2). Finalmente, a
(Artigo 9) Desde então, tornou-se ponto axial de reversibilidade para evitar danos: A experiência não deve
primeira relevância a questão do consentimento esclare- ser ensaiada quando houver, a priori, uma razão de se crer
cido, componente obrigatório explícita ou implicita- que provocará a morte ou a invalidez do sujeito.

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Como reza o (item 5) combinado com (item 10) onde humanos. Propõe pela primeira vez a distinção entre
se lê: O cientista responsável pela experiência deve estar pesquisa com intenção terapêutica ou clínica benefician-
pronto a interromper a qualquer momento, se houver do pacientes, também denominada pesquisa médica
alguma razão de crer que sua continuação puder acarretar associada a cuidados médicos, e a pesquisa biomédica
danos, invalidez ou a morte para o sujeito. não terapêutica implicando sujeitos humanos, ou
pesquisa biomédica não clínica. Embora contestada
B - A Declaração de Helsinque posteriormente tal distinção não deixa de apresentar um
valor. Em pesquisa terapêutica o objetivo principal é a
Em 1964 a Associação Médica Mundial, em sua melhora do estado do paciente. Que se experimente no
XVIII Assembléia geral realizada em Helsinque aprovou paciente um novo tratamento ou que se pretenda
a desde então denominada Declaração de Helsinque que adquirir por seu caso individual um conhecimento de
foi reeditada com acréscimos por ocasião da Assembléia maior alcance, há que se justificar a intervenção por
de Tókio em 1975. O texto que, de certo modo, congre- algum benefício potencial para o sujeito (princípio de
ga o Código de Nuremberg e Helsinque I (1964) recebeu beneficência). No caso de uma experimentação não
o nome de Helsinque II que por sua vez sofreu emendas terapêutica a finalidade é a aquisição de um novo
em Veneza em 1983, Hong Kong em 1989 e 1996 na conhecimento ou a validação de uma hipótese.
África do Sul. A última edição data de 2000, aprovada na A pesquisa não visa um benefício direto para o
52ª. Assembléia geral da AMM (Associação Médica sujeito. Ela não deve, no entanto, causar-lhe mal (princí-
Mundial) em Edimburgo(6,7). pio da não-maleficência).
Essa Declaração de Helsinque-Tokio congrega basi- Outro ponto interessante refere-se à avaliação da
camente recomendações aos médicos pesquisadores correlação risco-benefício, reflexo do princípio de
envolvidos no projeto de pesquisa das tecnociências bio- beneficência (item 5, citado acima) combinado com item
médicas. Permanece presente o espírito de Nuremberg. II, 3: o médico deverá avaliar os benefícios, os riscos e
Já na sua introdução fica evidente a preocupação com a inconvenientes potenciais de um novo método em
cientificidade da investigação aliada à "missão do médi- relação aos melhores métodos diagnósticos e terapêu-
co" que é a de velar pela saúde do homem. ticos em uso(8).
O objeto de pesquisa biomédica sobre sujeitos Na Assembléia da AMM, em Tókio (1975), foi acres-
humanos deve ser a melhoria dos métodos diagnósticos, centado um item que tem norteado a avaliação dos pro-
terapêuticos e profiláticos e a compreensão da etiologia tocolos de pesquisa, iniciativa que se tornou, desde então,
e da patogênese. Na prática médica corrente todo méto- um dos critérios básicos da eticidade de um projeto de
do diagnóstico, terapêutico ou profilático comporta pesquisa e está incluído como cláusula necessária em
riscos; e isso se aplica de modo especial à pesquisa bio- todos os Códigos que regem os Comitês de Ética em
médica. O progresso da medicina é baseado na pesquisa Pesquisa de todos os países signatários da Declaração.
que, em última análise, deve apoiar-se sobre a experimen- Tal item é a avaliação coletiva por um comitê inde-
tação envolvendo sujeitos humanos. (Declaração de pendente. Assim, qualquer protocolo de pesquisa envol-
Helsinque II - introdução)(8). vendo sujeitos humanos em seus diversos aspectos,
Destacam-se, nessa Declaração, alguns pontos: a) o como a cientificidade, a ponderação risco-benefício,
cuidado com a liberdade e o bem-estar do sujeito de exigências éticas como declaração do consentimento
pesquisa: Antes de empreender uma experiência deve-se informado e esclarecido, será submetido a um Comitê.
avaliar comparativamente com cuidado os riscos e os Nos princípios básicos da Declaração pode-se ler:
benefícios previsíveis para o sujeito ou para outros indi- O projeto e a execução de cada fase da experimen-
víduos. Item 5 de Helsinque I ao qual foi acrescentado tação envolvendo o ser humano devem ser claramente
posteriormente: Os interesses dos indivíduos devem definidos em um protocolo experimental que deve ser
sempre se sobrepor aos da ciência ou da sociedade. b) o submetido para exame, comentário e parecer a um
valor das investigações, inovações e progressos das tec- comitê designado especialmente para esse fim, indepen-
nociências. Esse ponto já está na introdução que aponta dente do pesquisador e do patrocinador(8).
para o valor e a necessidade de pesquisas com seres A Associação Médica Mundial, reunida para a

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Assembléia geral de Lisboa, em 1981, aprova uma sua diversidade. Em um sentido simbólico, ele é o
Declaração sobre os Direitos dos doentes. patrimônio da humanidade. (artigo 1). A dignidade se
Gilbert Hottois aponta um fato relevante na história declara mais expressamente no artigo 2. Nos artigos 5 a
recente da medicina, Afirma ele: 10 concentram-se as orientações sobre os direitos das
Essa (Declaração) revela explicitamente que a pers- pessoas vinculados à questão do genoma.
pectiva da ética médica evoluiu em algumas décadas no Retoma recomendações de outros textos bioéticos
sentido de um abandono do "medicocentrismo" pater- no que concerne o caráter relevante, diria quase obri-
nalista que caracteriza a deontologia tradicional. Releva- gatório, do consentimento esclarecido dos sujeitos da
se o direito do enfermo de escolher livremente um médi- pesquisa; a avaliação coletiva prévia do protocolo e o
co livre; o direito de recusar um tratamento; o direito direito à proteção da confidencialidade de dados genéti-
a confidencialidade; o direito de morrer na dignidade cos da pessoa humana. Destacam-se a importância e a
e de receber ou recusar um auxílio espiritual, moral necessidade reconhecidas das investigações científicas no
ou religioso(8). campo da genética e da biomedicina, o que constitui um
Ainda convém registrar, como fato significativo avanço considerável. Nos seus artigos 13 a 16 estão arro-
apontando, na expressão de Hottois, uma abertura cres- ladas as condições das atividades científicas:
cente da ética médica a questões de bioética e às questões As responsabilidades inerentes às atividades dos
de auto-regulamentação da profissão médica implicada pesquisadores, em especial o rigor, a prudência, a
de modo cada vez mais complexo, variado e problemáti- honestidade intelectual e a integridade, na condução a de
co na sociedade(8). Trata-se da Assembléia geral da AMM suas pesquisas como na apresentação e utilização de seus
em Madri realizada no ano de 1987. Nessa ocasião foram resultados deveriam ser objeto de atenção particular no
aprovadas diversas resoluções denominadas Resoluções âmbito das pesquisas sobre o genoma humano, em vista
de Madri: "Declaração sobre fecundação in vitro e trans- de suas implicações éticas e sociais. As pessoas, públicas
ferência de embriões"; "Declaração sobre transplante de e privadas, que tomam decisões em matéria de políticas
órgãos humanos"; "Declaração sobre eutanásia"; científicas têm igualmente responsabilidades quanto a
"Declaração sobre a orientação genética e as manipu- isso(8).
lações genéticas"(8). Nota-se claramente, no meu entendimento, a decisão
Ao lado da Declaração de Helsinque-Edimburgo que se institucionaliza de modo firme na bioética em
(2000) da Associação Médica Mundial, os outros textos reconhecer para si o caráter de independência assim
significativos da bioética internacional são a Declaração como a nitidez e a força de seu compromisso com os
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do direitos do homem, de sua dignidade e de sua liberdade.
Homem da Comissão Internacional de bioética, da A liberdade de investigar é defendida incessante-
UNESCO, de 1997 e a Convenção sobre os Direitos do mente sob a condição de respeitar a pessoa humana.
homem e a Biomedicina do Conselho da Europa tam- Lê-se no artigo 25:
bém de 1997. Nenhuma disposição da presente Declaração pode
ser interpretada como podendo ser invocada de qualquer
C - A Declaração Universal sobre o Genoma modo por algum Estado, um grupo ou indivíduo com o
Humano e os Direitos do Homem intuito de se dedicar a uma atividade ou realizar um
ato com objetivos contrários aos direitos do homem e
A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e às liberdades fundamentais, inclusive aos princípios
os Direitos do Homem é um texto denso na concei- enunciados na presente Declaração.
tuação e claro nas recomendações. Em seus 25 artigos
reitera basicamente princípios que vem se consolidando D - O Relatório Belmont
como pilares no domínio da bioética. Já em seu primeiro
artigo toma partido claro da dignidade do humano. Em 1974 foi promulgado o National Research Act
O genoma humano subentende a unidade funda- (USA) e se tornou lei pela qual foi criada a Comissão
mental de todos os membros da família humana, assim Nacional para a Proteção dos sujeitos humanos de
como o reconhecimento de sua dignidade intrínseca e de pesquisa biomédica e behaviorista.

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Essa comissão foi encarregada de elaborar um docu- Engelhardt(10), emprega o que se pode entender
mento com os princípios éticos fundamentais que como uma das manifestações da autonomia ou a
deviam sustentar as pesquisas biomédicas e dar as dire- manifestação do respeito da pessoa que é o conceito
trizes para a solução de problemas e dilemas éticos de consentimento. Leo Pessini e Barchifontaine(11),
provenientes de pesquisas envolvendo sujeitos humanos. seguem o Informe Belmont e empregam o conceito
Em 1976 como resultado de trabalhos em uma de respeito pela pessoa. Na realidade não há divergências
reunião de quatro dias intensivos no Instituto entre as leituras diversas do Informe, uma vez que,
Smithsonian foi apresentado o denominado Relatório de fato, a expressão respeito pelas pessoas implica,
Belmont. Belmont era a designação do Centro de segundo o Informe, duas exigências básicas: a primeira,
Conferências daquele Instituto. Os trabalhos da respeitar a livre escolha dos agentes morais, ou, em
Comissão estavam sob a presidência de Kenneth J. outros termos, que as pessoas sejam tratadas como
Ryan e de Robert Cooke. Na bioética o nome oficial agentes autônomos; a segunda, proteger as pessoas com
passou a ser: Relatório Belmont: Princípios éticos e dire- a autonomia reduzida.
trizes para pesquisas envolvendo sujeitos humanos. E uma pessoa é autônoma na medida em que se
Foi solicitado da Comissão que esclarecesse determi- mostra capacitada de deliberar sobre objetivos pessoais e
nados conceitos. A Comissão esclareceu: a) os limites agir no sentido dessa deliberação. Assim, o respeito pela
entre a pesquisa biomédica e a prática médica. pessoa implica reconhecê-la como agente autônomo, e,
Abandonou uma definição anteriormente admitida entre por conseguinte, dar crédito às suas opiniões e suas
pesquisa terapêutica e pesquisa não-terapêutica. b) o escolhas refletidas, o que implica, ao contrário, não
papel da avaliação dos critérios de risco/benefícios. exercer a força para impedir suas ações decorrentes dessa
Apresentou uma definição clara do conceito de risco. deliberação refletida, salvo se essas ações representam
c) estabeleceu diretrizes para a escolha dos sujeitos; d) qualquer dano à outra pessoa. Assim, numa pesquisa
definiu de modo claro a questão do consentimento científica o respeito se manifesta como a exigência de que
esclarecido informado e livre e como se distinguem o o sujeito possa dar o seu consentimento.
consentimento e a obtenção do consentimento por parte E para que esse seja aceito como válido, indispensá-
do sujeito. vel para se estabelecer a eticidade da pesquisa, é necessário
No entanto, a principal contribuição dessa Comissão que o sujeito tenha a capacidade legal para consentir,
foi, sem dúvida, a de explicitar de modo claro e sucinto que receba informações sobre os procedimentos de
os princípios fundamentais de ética que serviriam de base pesquisa em todas as suas etapas, que compreenda essas
para as recomendações e orientações de conduta nas informações, e não sofra qualquer coerção para consentir.
pesquisas. Esses princípios se tornaram, desde então, a A esse princípio de respeito pela pessoa humana
principal fonte de orientação para as avaliações críticas da segue, como que por conseqüência, o princípio de
pesquisa científica envolvendo sujeitos humanos. beneficência. Pela perspectiva ética a pessoa é respeitada
Lemos no texto do Relatório: se suas decisões são aceitas e protegidas contra qualquer
"Esses princípios não podem sempre ser aplicados dano e se há o cuidado de lhe oferecer o maior bem estar.
de modo incontestável para resolver problemas particu- Muitos autores sugerem, então, seguindo a máxima
lares de ética. O objetivo visa fornecer uma estrutura de Hipócrates, a expressão negativa do princípio
analítica tendo como finalidade orientar a resolução de "não fazer o mal".
problemas de ética resultantes de pesquisas que As tecnociências são assinaladas com o índice da
envolvem sujeitos humanos". ambivalência, o que significa resultados benéficos ou
O Relatório aponta três princípios fundamentais: o resultados danosos à pessoa humana. Isso impõe a con-
respeito à pessoa, a beneficência e a justiça. Por princípios sideração da existência de riscos que envolvem as
fundamentais entendem-se os juízos de ordem geral que pesquisas com seres humanos. Por essa razão a exigência
subsidiam a justificação de prescrições de ordem moral e de se apresentar, antes do início da pesquisa, as infor-
as avaliações das ações do homem. Para se referir ao mações as mais amplas e mais adequadas possíveis ao
primeiro princípio citado, autores como Beauchamp sujeito da pesquisa para que esse possa em conhecimento
e Childress(9), usam o conceito de autonomia. de causa consentir em participar da pesquisa.

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ARTIGO ORIGINAL/ ORIGINAL REPORT/ ARTÍCULO

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Agora surge a indagação, tendo em vista a ambivalên- tidas nesses documentos e declarações de princípios,
cia dos resultados e das aplicações, que se lê expressa no mas, infelizmente, movidas por certa desconfiança
Relatório Belmont: Quem deve colher as vantagens da em relação às preocupações éticas provocadas por muitas
pesquisa e quem deve arcar com os riscos? Entra em cena, pesquisas que contrasta como o dinamismo de sua
de fato, o princípio de justiça. audácia científica.
E o Informe refere-se ao conceito de justiça como Na realidade ocupa lugar relevante na agenda
distribuição eqüitativa. Segundo esse princípio os benefí- da bioética a questão da regulamentação ou da auto-regu-
cios ou vantagens e desvantagens ou inconvenientes lamentação no campo das pesquisas com seres humanos,
devem ser distribuídos eqüitativamente. sobretudo no âmbito das ciências biomédicas. Nós
Deve-se entender que essa Comissão Nacional foi estamos todos prontos em propor que se deva limitar
criada como um organismo essencialmente consultivo e a liberdade de outros e lentos em admitir como bem
não com função legislativa. Levine observa apropriada- fundadas as restrições impostas às nossas próprias
mente: A Comissão pôde atingir os objetivos que havia liberdades. (p. 106)(2).
proposto, isto é, a elaboração de recomendações Infelizmente constata-se, muitas vezes, que projetos
racionais tendo em vista uma política apresentando de pesquisa são submetidos aos Comitês, não por
declarações oficiais sobre os princípios éticos fundamen- convicção sobre a relevância em se assegurar a eticidade
tais que serviriam de base a essas recomendações(12). necessária para o bom desenvolvimento dessa experi-
Como suas recomendações não tinham força de lei, mentação com seres humanos, mas simplesmente
aliás, como todas as recomendações, pareceres e delibe- para assegurar créditos indispensáveis à publicação dos
rações da bioética, resta saber a posição que tomaram resultados. Muitos pesquisadores dessas áreas há bem
os organismos administrativos e legislativos de posse pouco tempo se opunham a essa preocupação com a
dessas recomendações. eticidade da pesquisa alegando defenderem a autonomia
De qualquer modo, creio que se pode hoje, decorri- de pensamento.
dos trinta anos desse Informe, na maior parte dos No âmbito de sua deontologia tais pesquisadores
países foram aprovadas legislações específicas sobre a permaneciam antes na defensiva. Percebe-se mesmo uma
questão, Comitês de Ética em Pesquisa foram instituídos resistência de muitos pesquisadores dessa área em
garantindo que os esforços de instituições públicas ou explicar detalhes de seu projeto de investigação que,
privadas de pesquisa tivessem êxito na proteção dos seguindo eles, deveriam permanecer incógnitos.
sujeitos humanos envolvidos nas pesquisas. Nas palavras de Anne Fagot: Os profissionais
Quanto, a saber, observa Lebacqz,"[...]se a Comissão protestaram, sobretudo que as restrições impostas atra-
encontrou o justo equilíbrio na interpretação e na apli- vancariam a liberdade de pesquisa, comprometeria sua
cação dos princípios, a questão pode ainda ser discutida". fecundidade, prejudicaria a objetividade do trabalho
É próprio de problemas difíceis de ética não oferecer científico (p. 115)(2). Disso se pode concluir a relevância a
soluções fáceis(13). o sentido da tarefa dos Comitês de Ética em esquisa com
Seguindo as recomendações do Comitê Interna- seres humanos na atualidade.
cional de bioética (CIB) aqui em nosso país o Ministério Uma de suas principais conquistas na maior parte
da Saúde criou o CONEP (Comitê Nacional de Ética em dos países é o sentido de sua liberdade. O elemento axial
Pesquisa) que em 1996 aprovou Resolução para servir de de sustentação de um Comitê de Ética é sua autonomia
fundamento e orientação às avaliações do caráter ético e independência.
dos protocolos das investigações envolvendo sujeitos Não é aceitável qualquer tipo de constrangimento
humanos. no desenvolvimento de suas atividades e nas deliberações
Essa iniciativa já está consolidada dado o número de de seus membros; seja algum constrangimento institu-
Comitês de Ética que se institucionalizaram nos anos cional, por exemplo, no caso de uma Universidade,
recentes. É um avanço apreciável e relevante. seja constrangimento no que se relaciona a prazos e exigên-
No entanto, ainda permanece muito a ser feito, pois as cias externas por parte de interessados nos diversos
resistências são ainda fortíssimas não só lastreadas em protocolos a serem avaliados.
certo desconhecimento do significado das exigências con- A prática nos Comitês de Ética em Pesquisa mostra,

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senão abertamente pelo menos de modo velado, essa dos e critérios de autocrítica. Nessas condições poderá
posição de resistência de muitos pesquisadores. Apela-se fazer frente aos abalos provocados pelos efeitos de suas
ao direito de autonomia de investigação. Pode-se indagar próprias transformações, e os impactos oriundos de suas
se as inovações espantosas das tecnociências concedem inovações fantásticas.
ao pesquisador um poder desmesurado e imune a qual- Como considerações finais tenho a impressão de ter
quer limitação? Afinal, a sociedade deveria permanecer percebido não respostas a questões, mas perplexidades.
numa posição de pura passividade em relação a essas Incertezas se revelam a montante e a jusante. Muitos
investigações que, afinal, lhe dizem respeito? Que limites atalhos, só percebidos durante a caminhada, exigem
deveriam ser esperados para esse poder? Em que atenção redobrada da reflexão crítica. Novas questões
condições pode transcender o âmbito tecnocientífico, foram descobertas. Estéril qualquer tentativa de listagem
fazendo do pesquisador um ente isento de qualquer exaustiva. O volume imenso de estudos científicos e
relação com os condicionamentos sociais, normas e filosóficos, sob os auspícios da bioética, sobre os "princí-
valores éticos? A solução seria uma auto-regulamen- pios" que orientam as ações nesse domínio, permite
tação? As Declarações e os documentos até hoje instituí- antever como é complexo e longo o caminho para a
dos em concerto representam uma solução válida. compreensão visada. Conhecer perfeitamente os
Não têm, no entanto, a força constrangedora de uma códigos de trânsito não garante a ninguém o aprendiza-
lei. Por qual razão um pesquisador atenderia o recomen- do de como dirigir adequadamente. Do mesmo modo,
dado por um "princípio"? "Inútil insistir sobre a fragili- nesse domínio impõe-se uma nova articulação entre o
dade de uma moral sem obrigações nem sanções" plano teórico reflexivo ou especulativo e a plano prático
(p. 108)(2). concreto. Nos primórdios desse novo paradigma, em um
Apesar de todas as dificuldades percebe-se um dos textos fundadores da bioética, Dr. Potter já pre-
avanço considerável no sentido de se tentar encaminhar conizava um projeto inovador quando sugeriu uma
soluções com traços de prudência e sabedoria. aliança renovada entre a Biologia e a Sabedoria em
Os próprios Comitês se sentam incentivados pela ação(14).
crescente conscientização da própria sociedade civil E mais, entendo que além dos princípios já consagra-
atenta às questões cruciais que se colocam nesse campo. dos de respeito à pessoa humana (autonomia), beneficên-
Anne Fagot em tom otimista afirma: cia e justiça, acrescentam-se os de dignidade da ciência,
"O que se pode esperar é que após um período de especialmente no domínio da investigação biomédica, e o
entusiasmo regulamentador para alguns, de desconfiança de utilidade para a sociedade cuja idéia básica é a da ma-
paranóide para outros, as reações emocionais se ximização do bem estar de todos.
acalmem, que as normas já instituídas de interiorizem e Outra questão que exige todo o cuidado reflexivo da
que as normas a serem criadas sejam discutidas entre as bioética é a do consentimento livre e esclarecido.
partes num espírito de livre crítica e de responsabilidade" Devem-se reconhecer nos inúmeros estudos críticos
(p. 117-118)(2). e aprofundados que têm sido apresentados o sinal
da relevância dessa questão. Ela é o eixo axial de uma
CONCLUSÃO nova visão das investigações com seres humanos.
De certo modo, indica a necessidade de se repensar o
O caminho é feito ao se caminhar. Nem sempre o efetivo sentido da medicalidade da situação. Penso
destino é conhecido ou mesmo cognoscível. prudente pensar sobre ao alargamento do cenário que
As pesquisas visam, ao mesmo tempo, a construção doravante inclui outros agentes além do especialista
de um saber, a apuração constante de uma metodologia e médio, seja em situação de pesquisa como em situação
a instauração de uma norma. de cuidado clínico.
Uma análise crítica levada a efeito pela epistemologia Creio que a indagação básica que continua presente
tenta compreender não meramente a ciência constituída para a sociedade atual diz respeito ao significado e
e a miríade de seus métodos, mas, sobretudo orientar seu alcance das investigações biomédicas e a experimentação
foco de análise à gênese dos procedimentos, suas humana.
condições de possibilidade, às intuições, aos seus méto- O tema é complexo e ambíguo na medida em que

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extrapola o plano tecnocientífico e atinge a própria Atingimos um nível de compreensão a respeito


situação existencial do ser humano em todas as suas da avaliação de cunho epistemológico sobre as condições
dimensões. Mesmo como investigação científica, modelo de possibilidade das investigações científicas da experi-
eminente de saber rigoroso e especializado, não se limi- mentação humana seja com o objetivo de adquirir
ta a um certo número de indivíduos na sociedade. conhecimento geral a partir de um caso particular, seja
Reconhece-se com fundada razão que a medicina, com o objetivo terapêutico. Essa avaliação epistemológi-
como investigação visando novos conhecimentos e ca só será eficaz se aliada à rigorosa avaliação de ordem
prática terapêutica, desde tempos imemoriais, está pro- ética, o que segundo as conquistas da bioética é realizado
fundamente vinculada à condição humana na sua fini- como tarefa essencial e institucional pelos Comitês de
tude e fragilidade, na dialética da saúde-doença. Ética em Pesquisa. A convicção da relevância dessa
A fragilidade e o sofrimento do enfermo devem avaliação postula, e isso é um significativo avanço no
receber o cuidado especial e a eventual cura. Mais recen- campo das pesquisas biotecnológicas, que a eticidade seja
temente a medicina, as ciências biomédicas para atingir elemento fundante, necessário e indispensável para o
seus objetivos valeram-se da estratégia da experimen- caráter científico de uma pesquisa envolvendo o ser
tação com seres humanos. Decisão eminentemente humano em todas as suas dimensões.
valiosa como conquista na busca do bem-estar da Na realidade, ocupa lugar proeminente na agenda de
humanidade. Esse empreendimento não se faz sem debates da bioética a questão densamente complexa do
conflitos e dilemas. Diversos fatores intervêm na dinâmi- conflito entre a "proteção do ser humano" ou o respeito
ca das decisões e dos procedimentos quando as duas da pessoa humana, os princípios de beneficência e justiça
principais facetas se entrecruzam: a pesquisa e a terapêu- e o dever de experimentar, de investigar. Ainda se nota
tica. Para o encaminhamento das questões, diante de no homem como ser cultural o "desejo de conhecer" de
reveses e desvios condenáveis no passado recente da que falava Aristóteles na sua Metafísica.
humanidade, ampliou-se o cenário do diálogo. Esse tem O esforço manifesto nas diversas Declarações
sido, apesar do seu caráter indeterminado e evolutivo, proclamadas sob os auspícios da Unesco resulta
a expressiva conquista da bioética como uma nova inegavelmente em transformações significativas no
manifestação de atitude ética. cenário das investigações tecnocientíficas.
A bioética, como prática discursiva tem instituído A exigência da bioética atual se volta agora, penso eu,
com sucesso, para além do imperativo de normas e para a busca de regulamentações mais precisas seguidas
regras com pretensão de universalidade, orientações e de leis mais inteligentes promulgadas pelo poder compe-
balizas que têm norteado as ações, as deliberações e os tente.
processos de decisórios relacionados a esse campo O argumento que se pode reclamar se baseia no
dilemático das pesquisas biotecnológicas envolvendo caráter ainda ambíguo das declarações de princípio.
seres humanos. Ilustra esses avanços o alto nível de Nas palavras de Anne Fagot: "[...]Elas indicam muito
abrangência, de pertinência conceitual e ética e de bem o que não se deve fazer, mas não mostram tão bem
aceitabilidade dos recentes documentos da Bioética em nome de que se deve escolher o que se deve fazer"
proclamados sob os auspícios da UNESCO. (p. 108)(2). Mas aí está uma nova questão a ser debatida.

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REFERÊNCIAS

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4. Agazzi E. El bien, el mal y la ciencia: las dimensiones éticas da le empresa científico-tecnológica. Madrid: Technos; 1996.
5. Atlan H. Entre o cristal e a fumaça. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1992
6. Associação Médica Mundial. Declaration d´Helsinki. Edimburg; 2000.
7. Associação Médica Mundial. Código de Nuremberg:1946-1947. Edimburg; 2000.
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10. Engelhardt HT. Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola; 1998.
11. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de bioética. 7ª ed. rev ampl. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Loyola; 2005.
12. Levine RJ. Clarifier les concepts de l´éthique de la recherche. Québec: Université de Laval;1982. (Cahiers de Bioéthique,4
Médicine et expérimentaiton).
13. Lebacqz K.Profil et analyse critique des recommendations de la Comission Nationale. Québec: Université de Laval; 1982.
(Cahiers de Bioéthique,4 Médicine et expérimentaiton).
14. Potter VR. Bioethics, the science of survival. Biol med 1970;14(1):127-153.

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Ética e inovação tecnológica em medicina


Ethics and technological innovation in medicine
Ética y innovación tecnológica en medicina

José Geraldo de Freitas Drumond*

RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão sobre as repercussões provocadas pelas inovações tecnológicas na prática assistencial médica, partindo
de uma introdução histórica da Medicina como ciência, seguida de uma análise da economia da tecnologia em relação ao setor saúde. Considera as
extraordinárias aplicações das inovações em Medicina face ao que denomina de perplexidade científica e ética, questionando se os avanços da
ciência e da tecnologia não estariam induzindo uma mudança da missão do médico de promotor da saúde em direção à manipulação da vida humana.
PALAVRAS-CHAVE: Ética. Tecnologia-inovação. Medicina.

ABSTRACT: This paper aims at drawing the attention to the impacts caused by the technological innovations to the medical welfare practice. It starts
from a historical perspective of the Medicine as a science, followed by an analysis of the economical aspects of the technology in relation to the
health sector. The author considers the extraordinary applications of innovations in Medicine named scientific and ethical perplexity, questioning
whether the advances in science and technology are not inducing a shift of the role played by the doctor as a promoter of health in the direction
of manipulating human life.
KEYWORDS: Ethics. Technological-innovations. Medicine.

RESUMEN: Este artículo propone una reflexión sobre las repercusiones provocadas por las innovaciones tecnológicas en la práctica asistencial médi-
ca, partiendo de una introducción histórica de la Medicina como ciencia, seguida de un análisis de la economía de la tecnología con relación al
sector salud. Considera las extraordinarias aplicaciones de las innovaciones en Medicina cara al que denomina de perplejidad científica y ética, cues-
tionando si los avances de la ciencia y de la tecnología no estuviesen induciendo un cambio de la misión del médico de promotor de la salud en
dirección a la manipulación de la vida humana.
PALABRAS LLAVE: Ética. Tecnologia-innovación. Medicina.

* Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG e da Sociedade Ibero-americana de Direito Médico -SIDEME.

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Ética e inovação tecnológica em medicina

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INTRODUÇÃO Daí porque os conhecimentos têm por finalidade a


promoção e o progresso da espécie humana e da
O setor saúde compreende atividades de atenção humanidade, através da pesquisa científica e do desen-
médico-hospitalar e ambulatorial, que possuem uma volvimento tecnológico.
forte interação com a ciência e a tecnologia, razão pela Pesquisa se refere ao processo social que produz
qual requer uma análise de um modo sistêmico, con- conhecimento de forma válida e generalizável e propor-
forme exige a sua complexidade. A infra-estrutura cientí- ciona a renovação das bases disciplinares intelectuais e
fica deste setor é "origem de um fluxo de informações profissionais.
que apóia o surgimento de inovações que afetam a Lolas(2), assevera que a pesquisa envolve três proces-
prática médica e a saúde", como afirma Albuquerque(1). sos sociais. A invenção, que é a criação de novos con-
Atualmente existe um contínuo desfilar de novidades ceitos que estruturam a percepção da realidade, do qual é
tecnológicas, decorrentes dos avanços conquistados o produto da percepção, não a causa e daí porque tradi-
pelas ciências médico-biológicas, surgidas principalmente cionalmente a pesquisa resultante da invenção ou
desde a metade do século XX, inovações essas materia- baseada nela é denominada de pesquisa básica ou pura.
lizadas sob a forma de novos equipamentos, novos pro- O termo inovação se refere à produção de novos
processos dentro dos já existentes "que ampliam o
cedimentos clínicos e novas medidas profiláticas que,
escopo e o nível das aplicações de conceitos e
enfim, compõem um acervo de novas informações que
constructos". A inovação tecnológica se depreende da
conferem ao setor da saúde ser um dos setores da econo-
apropriação pela sociedade de novos conhecimentos e a
mia mundial que mais tem crescido nos últimos tempos.
utilização das descobertas da ciência e da tecnologia nos
Esta realidade promove, a um só tempo, duas
diferentes setores da sociedade como a indústria, a
constatações. A primeira, de caráter otimista, em razão
educação e a saúde. Finalmente, a transformação de
dos inúmeros benefícios que as inovações tecnológicas
pessoas e instituições, essencial para as ciências humanas
vêm propiciando em relação à saúde e ao bem-estar das
e sociais, e derivada de cada disciplina que afeta as pes-
pessoas; a segunda, no entanto, tem suscitado discussões soas e a sociedade.
polêmicas a cerca da relação entre custos e benefícios No setor saúde, a inovação deve ter por finalidade a
auferidos pela sociedade em geral levando-se em conta o melhoria da qualidade de vida das pessoas, mediante a
crescente ônus financeiro assumido pelos sistemas utilização de produtos e procedimentos com vistas a
nacionais de saúde para incorporar as ditas inovações, evitar o aparecimento de enfermidades ou erradicá-las.
além dos procedimentos eticamente questionáveis que
tais inovações têm suscitado. Aspectos históricos da ciência médica
Em suma, o setor saúde tem características peculiares
que, de um lado o vincula intimamente ao desenvolvi- O nascimento da medicina ocidental como ciência
mento científico-tecnológico, gerando impactos na remonta à Antiga Grécia e ao aparecimento da "tekné"
economia e na sociedade em geral e, de outro, promove helênica. O seu desenvolvimento, no entanto, se deu de
conseqüências diretas sobre a saúde individual e na modo gradual e por vezes paradoxal, através de avanços
qualidade de vida das populações. e recuos que, segundo Potter(3), refletiu as metamorfoses
de um empreendimento científico ao longo dos tempos.
Conceitos de ciência, tecnologia e inovação Importa destacar alguns desses avanços históricos,
devido a sua contribuição para a constituição deste fabu-
Entende-se por ciência toda atividade humana desen- loso patrimônio cultural da humanidade que representa a
volvida de modo sistemático e que tem por finalidade medicina contemporânea.
ampliar a base do conhecimento do homem, no que se Tomaremos como marco inicial do desenvolvimento
refere à natureza, à sociedade e ao próprio homem. científico das ciências médicas o Renascimento, por ter
O conhecimento se conceitua como uma informação sido essa a época que propiciou a aceleração das manifes-
organizada que produz efeitos sociais e individuais para tações intelectuais em praticamente todos os campos da
aqueles que dela fazem uso. criatividade e intelectualidade humanas e, mormente, na

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arte hipocrática, pois o esplendor nas artes e na literatura mental, cientista que consagrou o aparecimento de um
foi acompanhado, em determinado momento pelos triunvirato que seria a base das ciências médicas atuais:
avanços do conhecimento médico-biológico. a fisiologia, a patologia e a farmacologia. Claude Bernard
O século XVI ficou consagrado como o século do dizia que "o princípio da moralidade médica e cirúrgica
nascimento da anatomia humana como uma disciplina, consiste em nunca executar no homem uma experiência
graças ao belga Andreas Vesalius que realizou as que possa produzir nele malefício de qualquer espécie,
primeiras dissecações em cadáver humano e propôs mesmo que esse resultado seja altamente vantajoso para
a sua configuração anatômica em seu famoso De Humani a ciência, isto é, para a saúde dos outros. O médico não
Corporis Fabrica, ficando consagrado como o Pai da é o médico dos seres vivos em geral, nem mesmo o
moderna anatomia. médico do gênero humano, mas o médico do indivíduo
O século XVII tornou-se o berço da fisiologia, que humano".
trouxe um real avanço no conhecimento médico a partir No entanto, foi a Alemanha que consignou o século
da descrição da circulação sangüínea por meio do inglês XIX como o mais reluzente para o desenvolvimento de
William Harvey e complementada pelo italiano Marcelo uma medicina com bases científicas, simultaneamente
Malpighi, também conhecido como pai da histologia. com os avanços nas áreas a química, física e biologia.
No século XVIII a Europa presenciou o nascimento Ressalta-se, nesta época, a figura de Rudolf Virchow,
da anatomia patológica pelas mãos de um médico de eminente médico alemão de personalidade multifacética,
Pádua, denominado Giovanni Battista Morgagni que, aos cuja inquietude intelectual ultrapassou o conhecimento
79 anos de idade, publicou o seu célebre. médico propriamente dito, transbordando-se para a
De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis que, antropologia, a arqueologia e a economia. Interessando-
de fato significou uma mudança paradigmática do se pelos problemas sociais de sua pátria, alçou o patamar
conhecimento médico de então, ao substituir toda a da política nacional, vindo a ocupar uma cadeira no
especulação teórica e fantasiosa sobre a natureza do parlamento germânico por mais de 30 anos.
processo mórbido pela correlação anatômica entre os Virchow é considerado fundador da moderna
sintomas apresentados pelos pacientes com os achados patologia por ter sido o primeiro a utilizar o microscópio
post mortem, nas necropsias que realizo. com a finalidade precípua de diagnosticar uma doença
No século XIX, a ciência médica se dicotomiza, pelo exame de células e tecidos lesados.
levando-se em conta os rumos que tomaram as medici- Outro destacado cientista alemão foi Robert Koch,
nas francesa e alemã. Na França, e em conseqüência da impulsionador de rumos novos para a bacteriologia,
Revolução liberal, os hospitais se viram libertados do dividindo com Pasteur o título de fundador da moderna
domínio eclesiástico, foram tornados públicos e transfor- bacteriologia. A revolução da bacteriologia ocasionou
mados em centros de investigação científica para as uma mudança de paradigma na ciência médica desde o
enfermidades, além de ensino para os estudantes de aparecimento da arte hipocrática como um "saber
medicina(3). autônomo", na Grécia do séculoV antes de Cristo.
Neste período inicial de desenvolvimento científico Esta revolução foi tão importante que mereceu de
da medicina francesa destacaram-se, dentre outros, o Rosemberg (1976), historiador da tecnologia, a afirmação
histologista Marie-François Xavier Bichat, grande de que "o progresso na medicina teve de aguardar o
histologista e cultor da anatomia patológica e René- desenvolvimento da ciência da bacteriologia".
Théophile-Hyacinthe Laennec, inventor do estetoscópio, Não obstante, Rosemberg(4), considera que "o pro-
instrumento este que, curiosa e extraordinariamente, vem gresso médico não foi responsável por qualquer redução
resistindo à natural obsolescência que o tempo impõe às significativa da mortalidade humana antes do século
novidades, continuando a ser um instrumento indispen- XX". Igualmente, esta assertiva é admitida pelo Banco
sável da prática médica até os dias atuais, rivalizando-se Mundial, só que a situando nos anos 1930 do século
com os mais modernos equipamentos sensoriais. pretérito(5).
Notoriedade deve ser conferida, também, ao fisiolo- Indiscutivelmente, os mais espetaculares feitos do
gista francês Claude Bernard, descobridor da função desenvolvimento científico em geral ocorreram durante
glicogênica do fígado e precursor da medicina experi- o transcorrer do século XX, daí sua denominação de

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Ética e inovação tecnológica em medicina

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século da tecnologia, já que foi durante esta última cen- desenvolvimento de kits diagnósticos para a detecção
túria que o homem e a humanidade experimentaram um de vírus e agentes patogênicos diversos, em sangue e
caudal de conhecimentos jamais observado em toda a derivados, garantindo-se maior segurança do tratamen-
sua história. to hemoterápico.
Foi no século XX que a ciência se ampliou com a Por seu turno, o setor da economia tem colhido
inauguração de outras áreas do saber como a biotecnolo- generosos frutos da aplicação do conhecimento em
gia, que contribuiu para que a partir da metade do biotecnologia, como se constata pelo desenvolvimento
século passado, a matriz do conhecimento humano do agronegócio, quer pela descoberta de plantas
viesse a ser completamente reformulada a cada período resistentes a pragas e com maior valor nutricional, o
de cinco anos, fazendo com que tanto neste como em que levou a uma conseqüente redução do emprego de
outros ramos da ciência, a ficção pudesse, finalmente, pesticidas químicos que tantos malefícios já provocou
ser confundida com a realidade. ao meio ambiente; quer pela melhoria genética dos
Um marco considerado decisivo para o nascimento diferentes rebanhos, por meio da inseminação artificial,
da biotecnologia moderna foi a descoberta da com mudanças no teor nutritivo das carnes e do leite,
estrutura duplamente helicoidal do ADN - Ácido retirando-lhes as gorduras nocivas à saúde humana.
Desoxirribonucléico - realizada por James Watson e Uma outra área da aplicação dos conhecimentos da
Francis Crick, em 1953, a partir dos estudos de difração biotecnologia desenvolveu a utilização de microrganis-
de raios X desenvolvidos por Wilkins e Franklin. mos para limpeza de resíduos e o desenvolvimento de
Este fato acelerou de modo irreversível o desenvolvi- processos menos poluentes para indústrias têxtil,
mento da genômica - área especializada na decifração do química industrial e a produção de papel, alimentos etc.
código genético dos seres vivos - determinando definiti- Nos Estados Unidos da América existem, atual-
vamente sua inserção entre as maiores descobertas de mente, milhares de empresas de biotecnologia, um
todos os tempos. terço das quais com ações negociadas nas bolsas de
Em razão do progresso científico provocado pelo valores e transações financeiras estimadas em mais de
desenvolvimento da genômica, acontece, ano de 1987, o 300 bilhões de dólares. Avalia-se que este setor de
primeiro teste em campo de uma planta geneticamente indústria e negócios seja responsável por um movimen-
modificada, uma espécie de tomate resistente a vírus. to financeiro da ordem de 30 bilhões de dólares anuais.
A partir desta data, tem início a disseminação destes Esta extraordinária revolução "tecnocientífica", recém
experimentos na agronomia, até que no ano de 2003 já completou meio século de desenvolvimento, mas a sua
era possível contabilizar a existência de 167,2 milhões de capacidade de transformação da natureza e intervenção
acres de plantas geneticamente modificadas, alcançando no homem vem causando, a um só tempo, perplexi-
em um total de 18 países, em todo o planeta. dades científicas e éticas.
Desde então os avanços da biotecnologia têm sido A perplexidade científica decorre da constatação de
tão espetaculares quanto os desafios colocados pelo uma abrupta redução no interstício da renovação da
próprio ser humano para desenvolver técnicas no senti- matriz do conhecimento humano, no início do século
do de mitigar as suas necessidades básicas de nutrição, passado em torno de cinqüenta anos, e nestes alvores
saúde e desenvolvimento social. do século XXI, abreviada para cerca de uma década.
Atualmente, o setor saúde é responsável por cerca O século XX ficou, então, conhecido como o
de 85% de todos os recursos investidos em biotecnolo- século da tecnologia, pois imprimiu uma velocidade tão
gia. Cerca de quatro centenas de drogas e vacinas de grande na aplicação do conhecimento humano, o
origem biotecnológica acham-se em estudo clínico para suficiente para revolucionar os hábitos das pessoas em
sua aplicação em humanos, com a finalidade de vencer praticamente todos os quadrantes do planeta.
os desafios atuais da Medicina, representados por enfer- Nunca o homem foi tão longe em conquistas, tanto
midades como câncer, doença de Alzheimer, diabetes, no macro quanto no microcosmo, seja pela produção
cardiopatias, esclerose múltipla e AIDS, dentre outras. de novas formas de vida, seja pelo desenvolvimento de
Um bom exemplo das benéficas aplicações dos técnicas para a destruição das diferentes formas de vida.
resultados da pesquisa biotecnológica atual foi o Quando se focaliza as inúmeras inovações tecno-

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lógicas na área de saúde, mormente a médica, com reper- melhores". E conclui: "(...) Na década de 1970 a expecta-
cussões imediatas sobre a vida e a saúde do cidadão, tiva de vida nas duas regiões ultrapassou 60 anos, con-
percebe-se a amplitude dos novos conhecimentos seguindo em quatro décadas o que na Europa, começan-
trazidos pela genômica e pela imunologia que, somados à do em 1800, demorou um século e meio".
inovação na área da química fina, determinaram o aparec- Ao correlacionar custos e benefícios, no entanto,
imento de antibióticos mais potentes, o desenvolvimento emergem as divergências entre aqueles que consideram as
de novas técnicas cirúrgicas (principalmente no campo inovações tecnológicas as únicas responsáveis pelo
dos transplantes), a reprodução assistida e a terapia encarecimento da prática médica(9), e os que as consi-
genética. deram, ao mesmo tempo, parte do problema ou da
Também são considerados recentes o uso de novos solução, ou ambos(10).
materiais e medicamentos nas áreas de estética e sexolo- Weisbrod(9), compara os custos de vacinas e trans-
gia, além do desenvolvimento de incríveis-máquinas plantes, por exemplo, com as suas repercussões na saúde
de diagnóstico que esquadrinham toda a intimidade da população e as demandas por inovações. Em seu estu-
biológica do corpo humano. do utilizou os critérios do biólogo Lewis Thomas que
estabelece três estágios do desenvolvimento tecnológico
Pesquisa, tecnologia e inovação em saúde na medicina, a saber: 1 - estágio da "não-tecnologia"
("nontechnology"), em que o paciente e doença apresentam
O impacto dos investimentos em pesquisas no setor vínculos pouco compreendidos e pouco pode ser feito
saúde em relação à melhoria da qualidade de vida das em relação ao paciente, além de hospitalização e cuidados
populações tem sido avaliado por vários estudos, dos de enfermagem, resultando em baixa recuperação.
quais dois são freqüentemente referenciados. Cita como exemplos desse estágio câncer não
O primeiro se refere ao estudo estatístico de Vehorn tratável, artrite reumatóide severa, esclerose múltipla e
e colaboradores(6), que consistiu em avaliar a contribuição cirrose hepática avançada. 2 - estágio das "tecnologias
da pesquisa biomédica em relação à "produção da saúde", intermediárias" ("halfway technology"), onde se encontram
no período compreendido entre 1900 a 1978, concluindo os procedimentos relativos aos cuidados com doenças e
que o crescimento de 1% no esforço de pesquisa nesta seus efeitos incapacitantes, depois de estabelecidas, nas
área determinava uma queda de 0,10% na taxa de mortal- quais as tecnologias teriam por finalidade ajustar o
idade e que variava entre 23% a 48% a magnitude da paciente à doença como medida para adiar a sua morte.
contribuição dessas pesquisas para a redução da taxa É o caso dos transplantes, do tratamento de câncer
de mortalidade. através de cirurgias, radiação e quimioterapia. 3 - estágio
O segundo estudo foi realizado por Lichtenberg(7), e denominado de "alta tecnologia" materializado pela imu-
tratou de avaliar o impacto dos gastos com pesquisa e nização, uso de antibióticos e prevenção de desordens
desenvolvimento (P&D) na indústria farmacêutica, no nutricionais, ou seja, situações ou enfermidadescujos
período compreendido entre 1970 e 1990, com relação à mecanismos fisiopatológicos são conhecidos e cuja pre-
redução da taxa de mortalidade, concluindo-se que havia venção e tratamento são possíveis.
uma relação evidente entre o aumento da expectativa de Com base nesse esquema, Weisbrod(9), propõe,
vida em relação á introdução de novas drogas habilitadas então, um esquema sob a forma de U invertido, no qual
pela agência americana Food and Drugs Administration a situação descrita como não-tecnologia - onde haveria
(FDA), cujas drogas ampliaram a expectativa de vida pouco ou nada a ser feito - implicaria em gastos baixos,
entre 0,75% a 1% ao ano. enquanto na situação das "tecnologias intermediárias"
O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano - estariam os maiores custos financeiros, retornando-se ao
UNDP(8), que estabelece a relação entre desenvolvimen- patamar de gastos (baixos) na terceira situação, denomina-
to tecnológico e desenvolvimento humano afirma que da de "alta tecnologia". O exemplo escolhido para
"avanços médicos como imunizações e antibióticos resul- demonstrar a lógica do esquema é o da evolução da
taram no século 20 em ganhos mais rápidos na América poliomielite: inicialmente a paralisia determinava
Latina e Ásia Oriental do que os alcançados na Europa rapidamente a morte dos pacientes afetados; depois viria
durante o século 19 através da nutrição e de saneamento a fase da "tecnologia intermediária" com o aparecimento

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do pulmão artificial, que conseguia prolongar a vida das apenas uma das terapias. Este fato, por si mesmo, já
vítimas da pólio a custos elevados e, finalmente, com o determina a quebra de uma das regras de mercado para a
desenvolvimento das vacinas Sabin e Salk chega-se à fase alocação recursos adequados, que é a simetria de infor-
da "alta tecnologia", reduzindo-se acentuadamente os mações. 2 - não há na assistência médica, como ocorre
custos da pólio. em outros setores econômicos, "limites para racionalizar
Tal esquema, no entanto, é questionado porque seria a produção". Como exemplo o fato de que qualquer
válido apenas para o caso das doenças transmissíveis e serviço de emergência está obrigado a dispor de determi-
para doenças crônicas que atingem pessoas abaixo dos 65 nados especialistas (como o neurocirurgião), mesmo
anos de idade, pois na medida em que se amplia a expec- que estatisticamente sejam pouco freqüentes os traumas
tativa de vida, haveria uma tendência ascendente de que exijam sua intervenção, pois não se pode admitir
custos para cada ano novo acrescido. negar tal atendimento em decorrência de estatísticas.
Dosi(11), por sua vez, descreve o que chamou de Outra situação semelhante ocorre com a necessidade
"trajetórias tecnológicas" a serem identificadas em de prover de soros antiofídicos nas unidades de saúde
Medicina, como caminhos que se abrem em direção para um eventual atendimento de um paciente mordido
à redução de custos com a assistência médica, a saber: por serpente, tendo que assumir o ônus da manutenção
1 - técnicas de tratamento e diagnóstico menos invasivas rigorosa da qualidade e validade do produto.
(como a endoscopia, o ultra-som e imageologia cardíaca); 3 - À diferença do que ocorre nos processos indus-
2 - desenvolvimento de medicamentos mais eficazes que triais, que se encontram em geral padronizados, resultan-
substituiriam cirurgias e internações prolongadas; do em relativa monotonia da produção, no setor saúde,
3 - desenvolvimento de vacinas em conseqüência do nem insumos nem processos são padronizáveis: é fato
maior conhecimento sobre a natureza humana; 4 - a que pacientes atendidos por diferentes agentes de saúde
mudança de hábitos e condições de vida propiciados pela ou mesmo em diferentes equipes médicas, podem ter
educação, principalmente através dos meios de comuni- abordagem diferente.
cação (redução de gastos, por exemplo, pela diminuição O exemplo vai desde o tratamento de uma simples
do número de fumantes e de alcoólicos); 5 - tendência verminose, que pode ser feita com um anti-helmíntico de
à miniaturização de equipamentos hospitalares, o que amplo espectro, sem prévios exames até submeter o
determina a ampliação de sua capacidade ao mesmo paciente a uma bateria de exames, para a mesma terapêu-
tempo em que se tornam mais baratos, à semelhança tica. Isto decorre do predomínio da subjetividade no
do que ocorreu na indústria de computadores e teleco- processo de trabalho em saúde, que é basicamente
municações. artesanal, não obstante serem objetivas muitas das
Ao fim e ao cabo, é importante salientar que em informações obtidas.
sendo a Medicina uma prática tão complexa e depen- Estas e outras constatações permitem confirmar a
dente de interações da ciência e suas limitações, as teorias singularidade da assistência médica, ao ser comparada
propostas, embora tenham o mérito de apontar para como uma categoria econômica(12).
algumas direções no exercício de equacionar o problema, Os estudiosos da economia da inovação têm aponta-
ainda são limitadas. A verdade é que o caráter sui generis do para uma relação estreita entre ciência e tecnologia no
da prestação de serviços através da assistência médica, setor saúde(13), cujo desenvolvimento tem propiciado
diferencia esta prática das demais atividades econômicas melhoria tanto na quantidade quanto na qualidade de
mais convencionais. tratamentos e nos métodos de diagnóstico, embora esta
Campos e Albuquerque(12), reforçam esta assertiva relação seja, concomitantemente, responsável pela
explicitando três situações: 1 - a inexistência, no setor elevação dos custos da assistência médica.
saúde, da capacidade do consumidor em decidir que A explicação para este fato - inovação tecnológica e
produtos deve adquirir, pois não detém a informação aumento de gastos - se dá em razão da especificidade do
necessária para tomar uma decisão. setor saúde, pois, diferentemente dos demais setores de
Não haveria possibilidade do paciente vir a decidir, produção, onde a introdução de uma nova tecnologia
por exemplo, entre uma radioterapia e uma quimio- acarreta a substituição das antigas, no setor da saúde o
terapia, no caso em que seus recursos poderem custear fenômeno é cumulativo. Toma-se por empréstimo o

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exemplo da evolução da propedêutica cardiovascular os 90% da carga mundial da doença, apelidando o fato de
métodos propedêuticos propiciados pela tecnologia do "hiato 10/90".
eletrocardiograma, pela ecografia e pelo Doppler, que Albuquerque et al(18), analisam a temática da ino-
não lograram substituir a clássica ausculta cardíaca e nem vação em saúde sobre o prisma da economia da tecnolo-
sequer se substituem entre si. gia e sugerem que esta discussão ocorra em duas
vertentes: em uma delas, a necessidade de a saúde ser
Desafios éticos da tecnologia médica compreendida como um fenômeno mundial, daí a
importância de iniciativas de cooperativas internacionais
Já é conhecida a grande disparidade entre a carga de com vistas a esforços de pesquisa e apoio à constituição
doença e os investimentos em pesquisa no cenário de sistemas de saúde que garantam a efetiva difusão de
mundial, como foi descrito pela Organização Mundial conquistas científicas e tecnológicas mundiais.
de Saúde-OMS (WHO, 1999)(14), em um cenário de A outra vertente se refere à importância do esforço
distribuição desigual, em especial à "carga da doença científico interno de países em desenvolvimento, ressal-
evitável". Para a OMS (WHO, 1996)(15) os países de baixa vando que nenhum país do mundo pode deixar de
e média renda são responsáveis apenas por 2,2% dos participar das redes internacionais de pesquisa e difusão
fundos globais destinados à pesquisa em saúde e este fato das inovações.
é devido em boa parte à ausência de sistemas de inovação
completo em tais países. Os desafios éticos da inovação em medicina
Há no setor saúde "uma desconexão monumental"
entre a carga da doença e os gastos em pesquisa e desen- Os avanços científico-tecnológicos na Medicina são
volvimento: pneumonia e diarréias que são, por responsáveis pelo florescimento de três grandes utopias
exemplo, responsáveis por 15,4% da carga da doença e, humanas, que são a utopia da eternidade (pelo aumento
também, as duas maiores causas de morte em todo o da longevidade), a utopia da beleza (pelas mudanças de
mundo, recebem somente 0,2% dos recursos de P&D. padrões cosméticos) e a utopia do prazer (pelo apareci-
Comissão da OMS (WHO, 2001)(16) propôs, então, a mento de novas drogas que suprimem a dor e promovem
divisão de doenças em relação a recursos de P&D em o prazer físico e psíquico). Como acentua Lucian Sfez
três grupos: 1 - doenças tipo I, que são encontradas, a um (19), a nova obsessão humana é a utopia da saúde e do
só tempo, em países ricos e pobres, onde existem expres- corpo perfeitos.
sivas populações vulneráveis a elas, como a hepatite B e A perplexidade ética provocada pela "tecnociência"
gripe ou, então, doenças não transmissíveis como dia- contemporânea é conseqüente ao fato de que o mundo,
betes e doenças cardiovasculares; 2 - doenças tipo II, não obstante o tamanho do progresso experimentado, se
também presentes em países ricos e pobres, mas com encontra na fronteira de graves responsabilidades morais,
uma parte evidente em paises pobres, como AIDS e determinadas pelo processo de intervenção cada vez
tuberculose, por exemplo; e 3 - doenças tipo III, que mais agressivo do homem na biosfera, acelerando sua
dizem respeito àquelas exclusivas ou predominantes em deterioração, e a intervenção na própria essência do ser
países pobres, como exemplificam a esquistossomose, humano, principalmente através da manipulação de sua
a leishmaniose, a filariose e a doença de Chagas. identidade genética.
As doenças do tipo I contam com P&D público e Destarte, as inovações tecnológicas podem não só
privado, com conseqüente incremento de novos produ- beneficiar a humanidade, mas também serem utilizadas
tos; no entanto a difusão desses produtos para países contra ela, já se tornando uma certeza que a última
pobres se torna restrita por causa dos custos ou proteção batalha em defesa da dignidade humana está sendo
patentária. Doenças do tipo II contam com recursos travada nos laboratórios de genética molecular, onde é
menores e as doenças do tipo III recebem menos ainda manipulado o DNA humano.
em P&D, e praticamente nada dos países ricos. É em razão destes fatos que Morin(20) adverte:
Para o Global Forum for Health Research(17) 10% dos "A humanidade corre o risco de naufragar no momento
gastos mundiais em pesquisa na área da saúde dizem em que dá a luz ao seu futuro".
respeito a doenças e condições que representam mais de O mais terrível para a humanidade - que obteve na

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ciência a desmistificação dos fenômenos naturais - é exata- hecimento empírico, muitas vezes misterioso e transcen-
mente a perda dos valores espirituais provocada pelo dental, como bem demonstra a sua história desde a
poder fascinantemente corrosivo que a tecnologia exerce Antiga Grécia até um tempo recente, quando, no século
sobre o pensamento humano, principalmente devido à 19 iniciou-se, de fato, o seu desenvolvimento científico.
luta desigual entre a velocidade das descobertas e a capaci- Até então, praticava-se uma medicina baseada nas
dade de reflexão moral sobre elas. manifestações sintomáticas e nos dados objetivos, volta-
Se o progresso da ciência é, de fato, bem mais veloz da para os cuidados do enfermo e que visava minorar-lhe
do que as reflexões sobre as suas repercussões na biosfera os sofrimentos.
e na vida humana, este fato torna mais angustiante e Hoje a extraordinária competência adquirida através
premente a discussão sobre os limites da intervenção da do conhecimento médico pode colocar o profissional
tecnologia médica sobre a vida humana. frente a inúmeros dilemas éticos conflitantes em relação
Daí porque Bobbio(21) justifica a geração sucessiva dos ao clássico mister da Medicina com respeito à melhoria
direitos como instrumentos de proteção do homem con- das condições de saúde, cujos avanços científicos podem
tra o poder, principalmente se representado pelo conheci- induzir o médico a se transformar em mero manipulador
mento, através da tecnologia: "Os direitos nascem quando da vida humana.
o aumento do poder do homem sobre o homem - que Não se pode coadunar com os que, a pretexto de uti-
acompanha, inevitavelmente, o processo tecnológico (a lizar a tecnologia mais recente, tenham por propósito
capacidade do homem de dominar a natureza e os outros sanar as doenças ou manter a vida do paciente, a
homens) - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, qualquer custo, mesmo depois de exauridas todas as
ou permite novas remédios para suas indigências". possibilidades biológicas para a manutenção de uma
Do igual modo como não se discute mais que a ciên- qualidade de vida digna, além de contribuir para o
cia e a tecnologia constituem hodiernamente um dos encarecimento da assistência médica e de saúde.
processos fundamentais para o progresso dos povos - As tecnologias modernas só estarão plenamente
distanciando aqueles que já detêm conhecimento e os que justificadas se estiverem condicionadas a uma efetiva
deles depende para obtê-lo -, não se pode utilizar o poder melhoria da qualidade de vida e da saúde do ser humano,
do conhecimento para a submeter os semelhantes. e não representar uma forma de dominação e usurpação
A tecnologia, pelo fato de significar um bem simul- da cultura médica pela máquina ou, ainda, pela submis-
taneamente público e privado (devido ao seu duplo são do paciente à ideologia do cientificismo ou à lógica
financiamento), tem um custo que nem todos os países de mercado, que contribuem para a ampliação dos lucros
podem assumir, razão pela qual dever-se-ia estimular o da indústria da saúde, enquanto se olvida de avaliar
desenvolvimento ou a maturação de sistemas nacionais de prudentemente a relação entre custo, riscos e os pos-
inovação tecnológica e sua conseqüente inserção interna- síveis benefícios a serem auferidos pelo paciente.
cional, especialmente sob a forma de cooperativas de
pesquisa e tecnologia, a fim de se diminuir o fosso que CONCLUSÕES
separa nações que, em se tratando de saúde humana, tem
significado a distância entre a vida e a morte para milhões O desenvolvimento da ciência e da tecnologia no
de humanos. último quartel de século, foi responsável pelo extra-
Deve ser desenvolvida a consciência de uma ética da ordinário progresso alcançado pelos diferentes setores
responsabilidade, quer no plano individual, quer em da sociedade moderna, de modo que atualmente a
instâncias institucionais e de governos, pois do mesmo tecnologia permeia praticamente todos os setores da vida
modo que o não desenvolvimento da ciência e da tecnolo- humana.
gia pode-se tornar uma estratégia imoral de manter povos Mais recentemente, o desenvolvimento da biotec-
submissos, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia nologia trouxe enorme contribuição ao setor saúde,
só poderá ser utilizado com a finalidade de contribuir para canalizando a maior parte dos investimentos em
o progresso individual e coletivo, ou seja, para a felicidade pesquisa e desenvolvimento (P&D) nos setores públi-
dos homens. cos e privados.
Por muito tempo a Medicina esteve balizada em con- Exemplos deste progresso, a genômica e a farmaco-

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genômica floresceram com a intenção de tornar a medici- gias de apoio ao desenvolvimento de sistemas nacionais
na cada vez mais preditiva, com benefícios não só para a de inovação em saúde nos países que ainda não dispõem
saúde individual, mas, também, para as políticas de saúde de um sistema científico-tecnológico amadurecido (ou o
pública em geral. tenha de modo incompleto) e propiciar a conexão inter-
A literatura internacional especializada em economia da nacional dos sistemas maduros ou completos com os
tecnologia, ao focar o subsistema saúde, comprova uma países subdesenvolvidos.
estreita relação entre a melhoria dos indicadores sanitários e De modo similar é necessário que os países em
investimentos em pesquisa e inovação em saúde. desenvolvimento estabeleçam políticas de ciência e
Entretanto, persistem questões não resolvidas e polêmi- tecnologia em saúde, com inovação tecnológica voltada
cas, como a relação dos custos das inovações e os benefícios
preferencialmente para o dar soluções aos problemas
delas auferidos pelas populações, o que provoca a interro-
predominantes nestas regiões.
gação se a tecnologia é um fator de encarecimento dos
Do ponto de vista da práxis médica, seja ela ambula-
custos da assistência à saúde, ou é parte do problema, ou
torial ou hospitalar, suas intimas relações com as ino-
ambos.
Por outro lado, a distribuição desigual da apreensão do vações tecnológicas têm ocasionado o aumento de
conhecimento e da informação em saúde se encontra dilemas éticos, tendo a Medicina, neste limiar do século
acumulada nos países centrais, em razão da concentração 21, se tornado instrumento da nova utopia da
dos investimentos no setor (cerca de 98%) com relação aos humanidade, qual seja a utopia da saúde e do corpo
países em desenvolvimento ou periféricos, causa um agudo perfeitos.
descompasso em relação à prevalência nosológica nas De tudo resulta que os avanços tecnológicos podem
regiões mais pobres do planeta, traduzido pelo famoso hiato estar induzindo uma cultura de transformar o profis-
10/90, designado pelo Global Forum for Health Research(17). sional médico mais num manipulador de vidas do que
Daí a necessidade de estabelecer políticas e estraté- em promotor da saúde humana.

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Ética e inovação tecnológica em medicina

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A formação em cuidados paliativos da equipe


que atua em unidade de terapia intensiva:
um olhar da bioética
The training in palliative care for the intensive care unit´s team: A bioethical perspective
El entrenamiento en cuidados paliativos del equipo de la unidad de cuidados intensivos:
Una perspectiva bioética
Karina Dias Guedes Machado*
Leo Pessini**
William Saad Hossne***

RESUMO: A medicina ao longo dos séculos, vem passando por transformações em relação ao avanço da tecnologia que trouxe melhorias significa-
tivas na área da saúde, porém também trouxe à tona dilemas éticos acerca da atitude dos profissionais quando nos referimos a condutas em pacientes
fora de possibilidades terapêuticas. Nesse aspecto existe uma lacuna na formação dos profissionais de saúde principalmente quando se refere ao
processo da terminalidade e cuidados paliativos.Esse estudo foi realizado de forma quantitativa por meio da aplicação de um questionário à equipe
multidisciplinar que atua em Unidades de Terapia Intensiva. Os dados sofreram análise descritiva de freqüência absoluta e relativa, e associações
entre variáveis quantitativas, utilizando a análise estatística do Chi 2 Foram obtidos 58 questionários sendo 21 de fisioterapeutas, 12 de médicos e
25 de enfermeiros. O objetivo da atual pesquisa foi analisar o preparo e formação, desses profissionais quanto a cuidados paliativos.A atual pesquisa
mostra que se tornam necessárias alterações urgentes na grade curricular dos profissionais de saúde, contemplando o ensino de cuidados paliativos
e auxiliando os profissionais nas reflexões bioéticas para a melhor tomada de decisão frente ao paciente fora de possibilidades terapêuticas.
PALAVRAS-CHAVE: Cuidados paliativos. Unidade de terapia intensiva. Bioética-ensino.

ABSTRACT: Medicine has been going through transformations throughout the centuries in relation to the advance in technology, which brought
significant improvement to the health area, although it has also highlighted ethical dilemmas over the professionals' attitude when it comes to pro-
cedures in patients out of therapeutic possibilities. In this regard, there is a gap in the education of health professionals, mostly when one refers to
the end-stage process and palliative care. A quantitative approach has been adopted in this study, which has been carried out by means of the appli-
cation of a questionnaire to multidisciplinary teams working in Intensive Care Units. The data have been submitted to a descriptive absolute and
relative frequency analysis and to associations among quantitative variables by applying Chi2 statistical analysis. Fifty-eight questionnaires have been
obtained, out of which 21 were from physiotherapists, 12 from physicians and 25 from nurses. The aim of this research has been to analyze and
discuss these professionals' skills and education in palliative care. The current research reveals that urgent changes should be made in health
professionals' curriculum grid, covering palliative care practice and bioethical reflections that will help them with better decision-making.
KEYWORDS: Palliative care. Intensive care unit. Bioethics-teaching.

RESUMEN: La medicina ha pasado por transformaciones a través de los siglos en lo referente a los avances tecnológicos, que trajeron mejoras
significativas al área de la salud, aunque también han destacado los dilemas éticos que afectan la actitud de los profesionales frente a los proce-
dimientos en pacientes sín posibilidades terapéuticas. En este sentido, hay un hiato en la educación de los profesionales de salud, sobre todo cuan-
do referente al proceso de los cuidados paliativos en el final de la vida. Se ha adoptado un acercamiento cuantitativo, que se ha realizado prome-
dio un cuestionario aplicado a equipos multidisciplinarios que trabajaban en unidades de cuidados intensivos. Los datos han sido sometidos a un
análisis descriptivo de frecuencia absoluta y relativa y a asociaciones entre variables cuantitativas aplicando el análisis estadístico Chi2. Se han
obtenido cincuenta y ocho cuestionarios, de los cuales 21 eran de fisioterapeutas, 12 de médicos y 25 de enfermeros. La meta de esta investigación
fue analizar y discutir las habilidades y entrenamiento de estos profesionales para los cuidados paliativos. La investigación revela que se deben realizar
cambios urgentes en el plan de estudios de los profesionales de salud, cubriendo la práctica de los cuidados paliativos y las reflexiones bioéticas que
les ayudarán en una toma de decisión mejor.
PALABRAS LLAVE: Cuidados paliativos. Unidad de cuidados intensivos. Bioética-enseñanza.

* Fisioterapeuta. Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo. E-mail: karinadiasguedes@terra.com.br
** Doutor em Teologia Moral. Professor do Programa de Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo.
*** Médico. Coordenador do Programa Stricto Sensu de Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo.

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A formação em cuidados paliativos da equipe que atua em unidade de terapia intensiva: um olhar da bioética

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INTRODUÇÃO tem sido muito enfatizado em detrimento de uma for-


mação mais humanista(3,4).
A medicina em todo o mundo passou por profundas Estabelecer limites aos atos é um desafio ético-edu-
transformações ao longo do século XX. Os avanços cacional. De acordo com Goic(5), há uma interrogação se
tanto na prática médica, como na tecnologia têm trazido durante os estudos formais ou posteriores (Educação
melhorias significativas na saúde, controle ou eliminação Continuada) os profissionais de saúde recebem for-
de doenças, porém tudo isso traz à tona decisões éticas mações técnica, ética e humana, requeridas ou neces-
acerca das condutas dos profissionais de saúde(1). sárias para atender adequadamente às necessidades médi-
As Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) associadas cas e humanas críticas de enfermo terminal.
ao avanço da tecnologia médica, têm crescido de forma Estudos realizados em diversos países mostram uma
substancial. De um lado, ampliam as perspectivas lacuna na formação dos profissionais de saúde no que
terapêuticas em diversas situações clínicas, mas de outro, tange aos cuidados paliativos, assim como o seu
ensejam a possibilidade de prolongamento da vida a reconhecimento da necessidade dessa formação(5,6,7,8).
qualquer custo, implicando muitas vezes em tratamentos Azulay(9) diz que, provavelmente, a utilização de
fúteis. medidas fúteis ocorre por desconhecimento dos profis-
sionais sobre cuidados paliativos.
Como um profissional de saúde que atua em UTIs,
No Brasil, existem vários desafios a serem vencidos
tendo em suas mãos a alta tecnologia, deve agir com
e dentro deles está a possível deficiência na educação de
esses pacientes fora de possibilidades terapêuticas (FPTs)
profissionais de saúde no que diz respeito à terminali-
e suas famílias na fase da terminalidade? Certamente, não
dade. Assim sendo, necessária a mudança de mentalidade
há como colocar em dúvida os benefícios promovidos
dos profissionais que nem sempre estão dispostos e
pelos avanços tecnológicos, desde que bem indicados e
disponíveis para uma nova organização(10).
utilizados.
O trabalho ainda é árduo, em termos de mudanças,
iniciando pelos aparelhos formadores que moldam
Formação dos profissionais de saúde profissionais com esmerada preparação técnica e nenhu-
ma ênfase humanística(11).
Parte-se do princípio de que a pessoa não nasce ética, A equipe de saúde e os demais seres humanos pre-
sua estruturação ética ocorre através do seu desenvolvi- cisam entender o processo de morte, e desenvolver
mento(2). Os profissionais devem ter preparo ético para principalmente a capacidade de "estar ao lado" quando a
saber lidar com os desafios que surgirão no campo do morte for inevitável(10).
trabalho. Para o dia-a-dia dentro de uma UTI, torna-se A responsabilidade ética individual é o coração da
necessário que o profissional de saúde alie para além competência clínica para todos que cuidam de
da competência técnico-científica uma competência doenças(12).
humana e ética, vivenciando os verdadeiros valores da Competência profissional é simplesmente um rótulo
bioética para um agir competente, coerente e respon- enganoso para descrever um cenário complexo de
sável. atributos e comportamentos necessários aos profis-
Com os avanços da tecnologia, a procura e a for- sionais de saúde que cuidam de pessoas com doenças
mação de profissionais tecnicamente capazes são cada incuráveis. Sabe-se da necessidade de formação de
vez maiores, deixando-se de lado, com certa freqüência, competência para um bom cuidado paliativo.
a preocupação com a alma humana. A medicina tem se Segundo Doyle et al(12) algumas abordagens aus-
segmentado cada vez mais, oferecendo, assim, além de tralianas têm descrito competências para médicos em ter-
especialidades, as subespecialidades, nas quais os profis- mos de metas para os cuidados. São elas: administrar o
sionais de saúde muitas vezes se aperfeiçoam em apenas ingresso nos cuidados paliativos, desenvolver plano de
um segmento do corpo e podem esquecer completa- direção com equipe interdisciplinar, revisar, monitorizar
mente da pessoa como um ser único dotado de corpo e e atualizar o plano de direção com equipe interdiscipli-
alma. nar; administrar a fase terminal e luto; dar suporte ativo
O conhecimento técnico nos cursos da área de saúde a todos os membros da equipe interdisciplinar.

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As competências unem: conhecimento médico, Os cuidados paliativos não se referem primariamente


habilidade de aconselhamento, equipe próxima, avaliação a cuidados institucionais; anterior a isso se trata de uma
e administração do controle da dor e sintomas, profis- filosofia de cuidados aplicáveis em todas as instituições,
sionalismo, qualidade humanística e ética médica(12). bem como em domicílio(16).
É sabido que os profissionais de saúde que partici- O Conselho da Europa, na sua recomendação nº24
pam do processo da morte não recebem formação sufi- do Comitê de Ministros para os estados membros, tem
ciente sobre o tema da terminalidade e sobre inúmeros como princípios fundamentais de cuidados paliativos: a
dilemas da bioética. Segundo Costa(13) cita: "[...]apesar de manutenção de um nível ótimo de dor e administração
a morte fazer parte do cotidiano médico, ela é grande dos sintomas; afirmam a vida e encaram o morrer como
ausente do ensino médico. É praticamente uma con- um processo normal, não apressam, nem adiam a morte.
stante nas escolas médicas, o conceito de medicina cura- Integram aspectos psicológicos e espirituais dos cuida-
tiva, a serviço do prolongamento da vida, não se dando dos com o paciente; oferecem um sistema de apoio para
a devida ênfase a um dos postulados básicos da medici- ajudar os pacientes a viver tão ativamente quanto
na, que é a diminuição do sofrimento humano[...] Em possível, até o momento da sua morte; ajudam a família
nosso sistema universitário sobra informação, falta a lidar com a doença do paciente e com luto; exigem uma
formação[...]". abordagem em equipe; visama a primorar a qualidade
de vida; são aplicáveis no estágio inicial da doença"(17).
Cuidados paliativos Em suma, os cuidados paliativos são de responsabil-
idade de uma equipe multidisciplinar e não de um só
Os cuidados paliativos entram como uma alternativa profissional. Essa equipe deve ter preparo para lidar com
para que não seja realizada a tão temida eutanásia nem a dis- os medos, angústias e sofrimentos do paciente e sua
tanásia. família, tendo sempre em mente agir com respeito frente
Segundo Pessini(14), eutanásia é "um ato médico que tem à realidade da finitude humana e às necessidades do
como finalidade eliminar a dor e a indignidade na doença paciente. Esse preparo pode ter como base as reflexões
crônica e no morrer eliminando o portador da dor". Já a dis- bioéticas onde procura-se o melhor para o ser humano
tanásia ou obstinação terapêutica, encarniçamento terapêuti- fundamentando-se nos referenciais discutidos a seguir.
co e tratamento fútil são entendidos como "ação, intervenção
ou procedimento que não atinge o objetivo de beneficiar a Bioética
pessoa na fase final de vida e que prolonga inútil e sofrida-
mente o processo de morrer, procurando distanciar a morte." Existe uma linha tênue entre a moralidade e a legali-
A dor, o sofrimento e a espiritualidade são tratados pelos dade do exercício médico voltado a cuidados paliativos;
cuidados paliativos, que buscam atender o ser humano na sua se algum ato estiver no código profissional é legal,
globalidade de ser na fase final de vida. Sua ênfase está em um portanto pode ser feito, se não estiver não pode ser feito.
trabalho multidisciplinar com atitudes de cuidados frente à Contudo a sociedade vem mudando e se abrindo cada
realidade da finitude humana. vez mais a novos conceitos e argumentações(18).
O desenvolvimento da medicina paliativa ocorreu frente Não devemos aceitar algo como verdade absoluta; é
à ameaça da medicina moderna, tecnicista em priorizar nesse momento que entra a bioética, que não traz
sempre a cura em vez do cuidado. Seu valor central baseia-se respostas prontas, mas sim, com sua visão pluralista, nos
na dignidade humana(14). faz exercitar a capacidade de reflexão na escolha das mel-
Hoje existem mais de oito mil serviços de cuidados palia- hores condutas para o paciente.
tivos pelo mundo(12). É importante citar os esforços que algu- Devido a estas características citadas anteriormente,
mas sociedades e instituições de ensino têm feito para que os a bioética possui correntes diversas, como a corrente
cuidados paliativos sejam do conhecimento de todos. Principialista, que, segundo Azulay(19), "consiste em con-
Salienta-se, aqui, o esforço da Comissão Nacional de seguir um método sistemático de reflexão que permita
Residência Médica, em conjunto com a Sociedade Brasileira eleger uma solução correta frente um dilema bioético."
de Clínica Médica para uma possível mudança no currículo A bioética principialista ressalta quatro balizas, ou
dessa especialidade(15). quatro princípios, que marcam o território da morali-

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dade. Estes princípios, enunciados no livro de de alterá-la para relação profissional saúde-paciente, em
Beauchamp e Childress, Princípios da Ética Biomédica, que o paciente confia no profissional e em sua promessa
são reconhecidos e formulados desde a antiguidade de colocar suas habilidades a serviço do bem do
pela tradição da filosofia moral cristã e também pela paciente(20).
teologia moral cristã e foram resumidos numa proposta A especialidade dos cuidados paliativos foi construí-
coerente pelos autores Ferrer e Alvarez(20). da, fundada em um corpo teórico centrado em etapa ter-
Contudo, segundo Hossne(21), "a teoria dos princí- minal, aliada a valores humanísticos, em especial, à com-
pios [...] é importante e necessária, porém, insuficiente", paixão(23).
pois quando analisada a teoria principialista, ela tem forte A sensibilidade e a compaixão devem estar presentes
fundamentação deontológica, e a bioética necessita mais na relação entre profissionais da saúde e pacientes.
que isso. Há necessidade de reflexão e juízo crítico, A legitimação da especialidade de cuidados paliativos
baseados em valores e referenciais, não somente em é constituída pela aquisição de conhecimentos técnicos,
princípios. associada a uma nova forma na relação equipe de
Hossne(21) cita, ainda: "os referenciais seriam como o saúde/paciente/familiares, capaz de prestar uma
próprio nome indica, as pontes de referência para a assistência à totalidade baseando-se na bioética.
reflexão bioética, assim os princípios deixam de ser O presente estudo teve por objetivo analisar e discu-
princípios (direito e ou deveres) e passam a ser ponto de tir, à luz da bioética, o preparo e a formação em cuidados
referência", nos quais devemos nos fundamentar para paliativos dos profissionais da equipe de saúde (médicos,
elaborar a reflexão bioética. fisioterapeutas e enfermeiros) que trabalha em unidade
Nessa teoria dos referenciais, que engloba os previa- de terapia intensiva.
mente denominados princípios (autonomia, não- Para tanto foi realizado levantamento em unidades
maleficência, beneficência, justiça) e virtudes (com- de terapia intensiva para adultos de três hospitais privados da
paixão, solidariedade, confidencialidade etc.) entre cidade de São Paulo, após aprovação do Comitê de Ética
outros, há total liberdade entre eles de atuarem e intera- em Pesquisa e consentimento dos profissionais com
girem de forma pluralista, inter e transdisciplinar, con- preenchimento do termo de consentimento livre e esclareci-
forme a situação bioética exigir. do.
A autonomia e o direito dos pacientes devem ter Os profissionais incluídos neste estudo eram médicos,
destaque frente ao paternalismo e comportamento fisioterapeutas e enfermeiros que atuavam nessas UTIs. A
autoritário da medicina que ainda ocorre nos dias atuais. preferência por esses profissionais foi por possuírem curso
Esse referencial ainda é ignorado na cultura latina superior, já que o estudo analisou sua formação acadêmi-
quando nos deparamos com um paciente com o diagnós- ca e posterior. Outro fator considerado muito importante
tico fora de possibilidades terapêuticas(19). No Brasil, a para a inclusão desses profissionais no estudo é que eles são
formação do médico, na maioria das instituições de ensi- os profissionais mais próximos e que mais "tocam" os
no, ainda é eminentemente paternalista. pacientes. Esse contato mais próximo é muito significati-
O referencial da beneficência diz respeito a ações vo quando se avalia o contexto de todos os envolvidos nos
realizadas em benefício de outros(22). Este referencial cuidados paliativos.
manda fazer o bem e permite que a atuação do profis- A amostra era composta de 67% do sexo feminino
sional seja benéfica ao paciente. e 33% do sexo masculino, 88% tinha idade inferior a
Utilizando esse referencial, uma vez encerrado o 40 anos e 12% idade igual ou superior a 41 anos, 47%
cuidado da cura da doença, deve-se, então, partir para tinha tempo de formação igual ou inferior a 10 anos e
retirar a causa do sofrimento, sanando suas dores e con- 53% superior a 11anos com tempo de atuação em
fortando o paciente. O referencial da não-maleficência unidade de terapia intensiva de 83% da amostra inferior
implica não causar dano, sendo necessário haver com- ou igual a 10 anos e somente 13% superior ou igual
promisso ético dos profissionais de saúde para não a 11 anos.
causar sofrimento desnecessário ao paciente(4). As respostas sofreram análise descritiva de freqüên-
A fidelidade à promessa é um referencial exigido da cias absoluta e relativa e associações entre as variáveis
relação médico-paciente, que aqui tomamos a liberdade quantitativas, utilizando a análise estatística do Chi(2).

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Cuidados paliativos na perspectiva da equipe de UTI Kovács(10) quando diz que "ocorre no Brasil uma grande
deficiência na educação dos profissionais da equipe de
A obra Oxford Textbook of Palliative Medicine(12) saúde nesses temas, fazendo com que os mesmos se
reconhece que os cuidados paliativos dependem de uma afastem desses pacientes."
equipe multiprofissional treinada e não apenas de um só Para Moritz e Nassar(24), os profissionais que atuam
segmento profissional; é necessário o desenvolvimento em UTI devem ter conhecimento quanto a finitude de
de competências de cada membro da equipe. Todavia alguns tratamentos, evitando, assim, as práticas que
pode-se afirmar por meio dos dados colhidos que há um levam à distanásia.
desequilíbrio entre o conhecimento geral dos diversos Quando questionados se houve abordagem específi-
segmentos profissionais que atuam em UTI com ca de tais temas (Gráfico 2 e Tabela 2) verifica-se que
pacientes fora de possibilidades terapêuticas. houve abordagem, porém insuficiente nesses temas para
Ao serem avaliados o preparo e a formação rece- os diversos segmentos da equipe.
bidos pela equipe (Gráfico 1), 66% afirmaram não ter o
conhecimento necessário para lidar com o processo de Gráfico 2
morte dos pacientes e os conflitos daí decorrentes.
F ORMAÇÃO SOBRE TEMAS D E F I NAL D E VIDA,
Os dados evidenciaram que houve diferença signifi-
MORT E, CUIDADOS PALIATIVOS E DISTANÁSIA

Gráfico 1
F ORMAÇÃO PROFISSIONAL PARA LIDAR
COM A MORT E E CONFLITOS DAÍ DECORRENTES

cante entre os três segmentos de profissionais (p < 0,05). Ao se considerar toda a equipe, chama a atenção alta
Quando analisada por categoria profissional essa porcentagem (73%) daqueles que desconheciam o tema
diferença tornou-se evidente na resposta dos fisiote- distanásia.
rapeutas, onde 90% relataram que não lhes foi oferecido Quando analisados se houve diferença significante
o conhecimento necessário durante a formação profis- entre as respostas, pode-se observar que isso ocorreu
sional. Essa diferença pode ser visualizada na (Tabela 1) quanto aos temas final de vida, morte e distanásia
a seguir. (p< 0,05).
Ao observar as equipes isoladamente, constatamos
que os fisioterapeutas são os profissionais que menos
Tabela 1 receberam formação acerca desses temas, em contraste
F ORMAÇÃO PROFISSIONAL PARA LIDAR com a equipe de enfermagem, que é a que mais referiu
NossosCOM
dados corroboram com a opinião de
A MORT E E SEUS CONFLITOS existir abordagem desses temas em seu curso superior; já
a equipe médica manteve equilíbrio em suas respostas.
Médicos Fisioterapeutas Enfermeiros Equipe
nº (%) nº (%) nº (%) nº (%)
Nas respostas dos fisioterapeutas, vale ressaltar que
Sim 5 (42) 2 (10) 13 (52) 20 (34) 81% negaram a abordagem do tema final de vida, 62 %
Não 7 (58) 19 (90) 12 (48) 38 (66)

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negaram a abordagem do tema morte, 71% negaram freqüentemente situações de óbito e, no entanto nem
sobre cuidados paliativos e 95% negaram a abordagem todos estão preparados para isso, conforme evidenciam
da distanásia (Tabela 2). nossos resultados.

Tabela 2 Tabela 3
F ORMAÇÃO SOBRE TEMAS D E F I NAL D E VIDA, F ORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS SOBRE ÉTICA
MORT E, CUIDADOS PALIATIVOS E DISTANÁSIA E OU DEONTO LOGIA DA MORT E

Médicos nº (%) Fisioterapeutas nº (%) Enfermeiros nº (%) Equipe nº (%) Médicos nº (%) Fisioterapeutas nº (%) Enfermeiros nº (%) Equipe nº (%)
Final de vida Sim 10 (83) 7 (33) 25 (100) 42 (73)
Não 2 (17) 14 (67) 0 16 (27)
Sim 6 (50) 4 (19) 18 (72) 28 (48)
Não 6 (50) 17 (81) 7 (28) 30 (52)
Morte Durante os cursos de formação profissional, prima-
Sim 7 (58) 8 (38) 23 (92) 38 (65)
se pela qualidade técnico-científica, subvalorizando os
Não 5 (42) 13 (62) 2 (8) 20 (35)
aspectos humanistas(25).
Essa priorização de atualização técnico-científica
Cuidados Paliativos
sobre os aspectos humanistas, principalmente quando
Sim 6 (50) 6 (29) 14 (56) 26 (45)
relacionados a terminalidade, pode ser evidenciada na
Não 6 (50) 15 (71) 11 (44) 32 (55)
Tabela 4.
Distanásia
Sim 4 (33) 1 (5) 11 (44) 16 (27)
Tabela 4
Não 8 (67) 20 (95) 14 (56) 42 (73)
E DUCAÇÃO CONTINUADA RELACIONADA COM
QUESTÕES HUMANÍSTICAS E TÉCNICO- CIENTÍFICAS
Quando os profissionais foram interrogados se
Médicos nº (%) Fisioterapeutas nº (%) Enfermeiros nº (%) Equipe nº (%)
durante sua formação acadêmica tiveram aulas sobre
Ética e Bioética
ética e/ou deontologia da morte, 73% da equipe, que
Sim 4 (33) 4 (19) 13 (52) 21 (36)
correspondem a 42 profissionais, responderam que sim,
Não 8 (67) 17 (81) 12 (48) 37 (64)
como pode ser observado no Gráfico 3. Porém nessa
Cuidados Paliativos
questão obteve-se também diferença significante (p<
Sim 5 (42) 3 (14) 5 (20) 13 (22)
0,05), destacando-se os profissionais fisioterapeutas com
Não 7 (58) 18 (86) 20 (80) 45 (78)
67% das respostas negativas, o que pode ser observado
Humanização
na Tabela 3.
Sim 6 (50) 15 (71) 24 (96) 45 (78)
Não 6 (50) 6 (29) 1 (4) 13 (22)
Gráfico 3
Distanásia
F ORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS SOBRE ÉTICA
E OU DEONTO LOGIA DA MORT E
Sim 5 (42) 1 (5) 4 (16) 10 (17)
Não 7 (58) 20 (95) 21 (84) 48 (83)
Atualiz. Técnica
Sim 12 (100) 19 (91) 20 (80) 51 (88)
Não 0 2 (9) 5 (20) 7 (12)
Atualiz. Científica
Sim 12 (100) 20 (95) 20 (80) 52 (90)
Não 0 1 (5) 5 (20) 6 (10)

A Assembléia parlamentar do Conselho da Europa


Os profissionais de saúde estão sujeitos a presenciar e a Assembléia Médica Mundial de Lisboa, em 1981,

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recomendaram que o médico, e aqui estão incluídos os experiência pessoal e acompanhá-los em suas relações
outros profissionais de saúde, devem aprender que os com os pacientes fora de possibilidades terapêuticas e
aspectos envolvidos na terminalidade são das situações com seus familiares.
mais difíceis que enfrenta o trabalho clínico e que têm Quando interrogados se acreditariam que a realiza-
implicações técnicas, éticas e humanísticas, sendo as três ção de reuniões específicas no ambiente de trabalho
inseparáveis e complementares(5). auxiliariam na resolução de dilemas bioéticos, 53 (91%)
Quando considerada toda a equipe, ou seja, 58 profissionais responderam que sim (Gráfico 5).
profissionais avaliados, chama a atenção que somente 21
(36%) já participaram de curso ou congresso de ética e Gráfico 5
bioética; 13 (22%) já participaram de cursos de cuidados I MPORTÂNCIA DAS REUNIÕES N A RESOLUÇÃO
paliativos; e 10 (17%) de cursos de distanásia. Quando D E DILEMAS BIOÉTICOS
questionados sobre a busca de atualização técnico-cien-
tífica, essa porcentagem aumenta consideravelmente
para 88%, ou seja, 51 profissionais já buscaram fazer
cursos de atualização técnica e 90%, que correspondem
a 52 profissionais, tentaram realizar cursos sobre atua-
lização científica.
Pode-se, portanto, afirmar com base nos dados
colhidos que os profissionais não buscaram atualização
nesse assunto, porém quando foram interrogados sobre
a oportunidade de realizá-la, se alterariam a grade
curricular de suas profissões, incluindo temas relaciona-
dos à morte, 97% da equipe, correspondendo a 53 Na opinião de Mota 26, "o profissional deve estar
profissionais, afirmaram que alteraria sim; já 2% preparado para fazer reflexões que só são possíveis
alterariam-na incluindo temas relacionados à medicina através do diálogo com todos os envolvidos no processo".
de alta tecnologia e 1% respondeu que não faria altera- A tabela 5 mostra as respostas quanto aos temas que
ções (Gráfico 4). a equipe assinalou que deveriam ser discutidos nessas
reuniões; todos os temas obtiveram grande importância,
Gráfico 4 pois atingiram valores percentuais maiores que 75%.
E SCOLHA POR ALTERAÇÃO N A GRADE CURRICULAR
Tabela 5
T EMAS D E INTERESSE DA E QUIPE
A SEREM DISCUTIDOS E M REUNIÕES ESPECÍFICAS

Equipe
nº (%)
Assistência a esses pacientes 54 (93)
Prognóstico 46 (79)
Decisões de reanimação ou não 47 (81)
Humanização em cuidados paliativos 54 (93)
Aspectos éticos 51 (88)
Aspectos psicológicos 52 (90)
Aspectos legais 51 (88)

Esses dados reafirmam estudo de campo prévio realiza-


Goic et al (1997) sugerem que a melhor forma de do por Moritz (2004) em que foi avaliada a atitude dos
aprendizado sobre esse tema seria o docente realizar profissionais de saúde diante da morte e mostrou que o
reuniões de reflexão com seus alunos, relatar sua segmento dos médicos e de enfermagem sente a necessi-

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dade de debater com maior freqüência o tema morte e mor- Os dilemas vividos no cotidiano dos hospitais
rer, assim como outros aspectos relacionados a esse tema. requerem que não só haja preocupação na educação do
profissional durante seu curso de graduação, mas também
CONSIDERAÇÕES FINAIS durante sua vida profissional.
Torna-se necessário que as instituições de saúde
A medicina dos tempos modernos, com sua alta tec- realizem reuniões específicas para a discussão de dilemas,
nologia, não se mostra suficiente para satisfazer as deman- principalmente os que envolvem cuidados e condutas com
das da população, especialmente quando falamos em sofri- pacientes fora de possibilidades terapêuticas e seus
mento humano e morte. familiares. Essas reuniões podem discutir e levar os profis-
Muito se fala na eficiência dos avanços tecnológicos sionais a refletirem sobre o que é melhor para o paciente,
,principalmente voltados à área da saúde e pouco se tem
sempre buscando respeitar a sua autonomia. Caso isso não
falado na arte da humanização. O profissional de saúde sabe
seja possível, que seja respeitada a autonomia de seus
manejar de forma eficaz a alta tecnologia, porém nem
familiares.
todos são tão eficazes quando se fala em manejar o proces-
so da terminalidade. Manejar no sentido de humanizar o A participação de toda a equipe multidisciplinar é
morrer, oferecer conforto ao paciente e ao seu familiar. muito importante, além de profissionais capacitados, a
É necessário o resgate urgente do verdadeiro sentido do discutir os temas embasados sempre na ética e, acima de
cuidar e deve-se lembrar que nem sempre curar é pos- tudo, no respeito à dignidade humana.
sível. Os cuidados paliativos podem ser instituídos na UTI,
A qualidade de vida e o conforto desses pacientes antes nas unidades de internação, em casa, não importa o lugar.
da morte podem e devem ser melhorados, por meio de algu- O que importa é a filosofia da humanização no resgate
mas atitudes que visem ao controle dos sintomas, uma da dignidade durante o processo da terminalidade.
relação honesta com apoio emocional e comunicação com As mentes do profissional e da família devem estar
o doente e seus familiares. abertas para entenderem que quando não há nada do
O conhecimento geral da equipe multidisciplinar ponto de vista técnico-científico a se fazer, ainda há
(médicos, fisioterapeutas e enfermeiros) acerca de temas muito do ponto de vista humano. A finitude humana
relacionados à terminalidade ainda é muito deficiente. deve ser aceita por todos da forma mais digna possível;
Nos dias de hoje, com esse aumento do número de deve-se cuidar da pessoa e não da doença.
doenças crônico-degenerativas, torna-se imprescindível que Como instituir uma cultura de qualidade de cuidados
os profissionais de saúde, principalmente os que atuam em no final da vida, em que o ideal da "boa morte" não se
Unidades de Terapia Intensiva e vivenciam o processo de torne uma mera miragem, senão realizando mudanças na
morte e sofrimento humano em seu cotidiano, adquiram política educacional dos profissionais que atuam nesse
habilidade, experiência e conhecimento necessários ao
contexto?!
atendimento de casos sem possibilidades terapêuticas.
É necessário cada vez mais à promoção de reflexões
O preparo e a formação desses profissionais, seja
bioéticas que auxiliem os profissionais nas tomadas de
durante a graduação ou em educação continuada, estão
em geral voltados para formar profissionais técnicos, decisão e em seus comportamentos frente aos cuidados
criando uma lacuna na formação humanística, da qual o de pacientes fora de possibilidades terapêuticas.
profissional sente falta ao se deparar com dilemas que A atuação da equipe multidisciplinar deve ocorrer de
requerem tomadas de decisão no seu dia-a-dia. forma individualizada e focada na dignidade do paciente.
Sugerimos então que cursos de humanização, cuidados A equipe, em geral, preocupa-se com o respeito à
paliativos e bioética sejam inseridos como disciplina funda- autonomia e com a dignidade do paciente, mas talvez não
mental durante a graduação, pós-graduação e treinamento consiga pôr em prática os cuidados pertinentes ou não
desses profissionais. Porém, só a teoria não é suficiente, há suspenda tratamentos considerados fúteis por descon-
a necessidade de instigar o profissional a reflexões bioéticas hecimento, o que acaba interferindo no morrer com dig-
acerca do tema. nidade, causando-se, assim, a temida distanásia.

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REFERÊNCIAS
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http//www.cuidadospaliativos.com.br/.
2. Segre M, Cohen C. (Org). Bioética. 2ª ed. São Paulo: Edusp; 1999.
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O cuidado espiritual ao paciente


terminal no exercício da enfermagem
e a participação da bioética
Spiritual care to the terminal patient in the practice of nursing and the participation of bioethics
El cuidado espiritual al paciente terminal en el ejercicio de la enfermería y la participación de la bioética

Lucilda Selli*
Joseane de Souza Alves**

RESUMO: Estudo qualitativo que aborda o papel da enfermagem no cuidado espiritual ao paciente terminal e a implicação da bioética no proces-
so saúde. Foi aplicado um questionário e uma entrevista individual semi-estruturada a sete pessoas pastoralistas de hospitais da grande porto ale-
gre, escolhidas intencionalmente. Os resultados são apresentados em cinco unidades temáticas: perfil pastoral dos agentes espirituais, característi-
cas do cuidado espiritual ao paciente terminal, preparo da enfermagem para o cuidado espiritual ao paciente terminal, inclusão do cuidado espiri-
tual ao paciente terminal no trabalho da enfermagem e integração enfermagem e capelania. O estudo conclui que a enfermagem não tem preparo
adequado para atender as necessidades espirituais do paciente terminal. Mesmo que esta não esteja preparada, o cuidado espiritual deve ser inclu-
so em suas tarefas, pelo fato de ter maior contato com o paciente e, dessa forma, conhecer suas necessidades de modo mais abrangente. É preciso
que as funções de capelania sejam bem definidas e integradas à enfermagem para que o paciente terminal possa receber o cuidado espiritual ade-
quado, sem sofrer interferências. A bioética é uma área de conhecimento isenta de determinismos e constitui campo fértil a guiar as pessoas nas
suas condutas, como se evidencia nas entrelinhas das falas analisadas. O esforço de, nas situações concretas, captar as peculiaridades vivenciadas
pelo paciente, reflete a implicação saúde, espiritualidade e bioética.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Enfermagem. Paciente terminal.

ABSTRACT: A qualitative study that approaches the role of nursing in the spiritual care to the terminal patient and the implication of bioethics in
the health process. A questionnaire and a semi-structured individual interview were applied to seven people intentionally chosen that act in the pas-
toral area of hospitals of Metropolitan Porto Alegre. The results are presented in five thematic units: the spiritual agents' pastoral profile, charac-
teristics of spiritual care to the terminal patient, training of nursing professionals for spiritual care to the terminal patient, inclusion of spiritual
care to the terminal patient in the work of nursing and integration of nursing and chaplaincy. The study concludes that nurses dare not appropri-
ately trained to assist the terminal patient's spiritual needs. Even then, spiritual care should be included in their tasks, for nurses have more contact
with patients and so know more what their needs are. It is necessary that chaplaincy functions are well defined and integrated into nursing so that
the terminal patient can receive the appropriate spiritual care, without unduly interferences. Bioethics is a knowledge area free from determinisms
and it constitutes a fertile field to guide people in their conducts, as it is evidenced in the implied senses of the analyzed utterances. The effort to
capture in concrete situations the peculiarities lived by the patient, reflects the integration among health, spirituality and bioethics.
KEYWORDS: Bioethical. Nursing. Terminal patient.

RESUMEN: Estudio cualitativo que aborda el papel de la enfermería en el cuidado espiritual al paciente terminal y la implicación de la bioética en
el proceso de la salud. Se aplicó un cuestionario y una entrevista individual semiestructurada a siete personas pastoralistas de hospitales de la Gran
Porto Alegre, elegidas intencionalmente. Los resultados son presentados en cinco unidades temáticas: perfil pastoral de los agentes espirituales, car-
acterísticas del cuidado espiritual al paciente terminal, preparación de la enfermería para el cuidado espiritual al paciente terminal, inclusión del
cuidado al paciente terminal en el trabajo de la enfermería y integración enfermería - capellanía. El estudio concluye que la enfermería no tiene
preparación adecuada para atender a las necesidades espirituales del paciente terminal. Aunque la enfermería no está preparada, el cuidado espiri-
tual debe estar incluso en sus tareas, por el hecho de esta tener más contacto con el paciente y, de ese modo, conocer sus necesidades de forma más
abarcadora. Se necesita que las funciones de la capellanía sean bien definidas e integradas a la enfermería para que el paciente terminal pueda recibir
un cuidado espiritual adecuado, sin sufrir interferencias indebidas. La bioética es un área de conocimiento exenta de determinismos y constituye un
campo fértil para guiar a las personas en sus conductas, como es evidente en las entrelíneas de las hablas analizadas. En las situaciones concretas,
el esfuerzo por captar las peculiaridades vividas por el paciente, refleja la imbricación salud, espiritualidad y bioética.
PALABRAS LLAVE: Bioética. Enfermería. Paciente terminal.

* Enfermeira Obstetra. Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília, UnB. Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva,
Universidade do vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. E-mail: lucilda@unisinos.br
** Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva - Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.

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INTRODUÇÃO Sempre que se pensa em cuidado, os aspectos espiri-


tualidade, saúde e bioética estão inclusos, pois são con-
Falando sobre o tema ceitos que se implicam e se interpenetram. Para que o
paciente terminal possa receber um cuidado completo na
A espiritualidade traduz-se em sermos seres espiritu- fase final de sua vida, é preciso haver sincronia entre
ais e possuirmos, transitoriamente, um corpo físico. estas áreas do conhecimento e ação. Também, não é pos-
Pesquisas realizadas pelas ciências naturais, como a física sível desvincular os papéis dos diferentes atores em
e a biologia, têm endossado essa afirmação. O corpo físi- saúde. Portanto, as ações dos profissionais e pastoralistas
co é apenas um reflexo do espírito. Assim, a espiritua- estão interligadas e traduzem processos de trabalho em
lidade é algo inerente ao ser humano(1). Constitui campo formas de produção coletiva de saúde; este aspecto traz
de elaboração subjetiva no qual a pessoa constrói de à pauta a característica interdisciplinar da bioética(6).
forma simbólica o sentido de sua vida e busca fazer A bioética e a espiritualidade constituem ferramentas
frente à vulnerabilidade desencadeada por situações que no sentido de ajudarem a ultrapassar a idéia curativa da
apontam para a fragilidade da vida humana. saúde e voltar-se para a potencialização do sujeito visto
em suas múltiplas dimensões.
Estudos recentes têm valorizado muito o conceito
A partir destas idéias, pode-se pensar que o lugar do
de espiritualidade e no Brasil, número significativo de
profissional de enfermagem, no campo do agir em saúde,
profissionais da saúde vêm se interessando pelo tema.
compreende mais do que a realização de procedimentos
Atualmente, as práticas religiosas têm estado presentes
e técnicas. Novas competências são exigidas dele em
no trabalho em saúde de forma pouco crítica e elabora-
relação ao trabalho realizado na perspectiva da visão
da. Mesmo que o elemento religioso esteja presente no
integral de saúde e do bem-estar físico, mental e social, e
modo como os pacientes elaboram suas crises, os profis-
não a simples ausência de doença(7). Verspieren(8) apre-
sionais de enfermagem não têm preparo para discutir e
senta uma visão integral de saúde, entendida como
como lidar com a religiosidade e lançam mão de suas
capacidade de reagir a elementos desestabilizadores do
convicções religiosas pessoais de forma acrítica(2). equilíbrio vital, compreendendo-a enquanto realidade
Um fator que dificulta o cuidado espiritual é a somática, psíquica, social e espiritual.
influência do materialismo por valorizar sobremaneira a Barchifontaine e Pessini(9) acrescentam que a saúde
beleza, o poder, o material, desse modo, esvaziando o ser não pode ser entendida apenas como ausência de
humano do valor que ele tem em si, como ser único, doença; é o produto de condições objetivas de existência.
inteligente, livre, responsável e digno. Este aspecto tem Resulta das condições de vida e das relações que as
reflexos na atuação dos profissionais de enfermagem que pessoas estabelecem entre si e com a natureza por meio
exercem sua profissão junto a pessoas fragilizadas, como do trabalho. Entende-se saúde para além da visão restri-
é o caso dos pacientes terminais. ta à ausência de doenças, sendo capaz de envolver a sub-
A bioética é uma área do conhecimento com pouca jetividade e o conhecimento prático do profissional. O
expressão, ainda, no campo da espiritualidade e sua sentido final do trabalho em saúde é defender a vida das
interlocução se dá efetiva tanto com as doutrinas éticas pessoas, indi-viduais e/ou, por meio da produção do
de inspiração teológica quanto com as doutrinas éticas de cuidado(10). O ato de saúde precisa ser um ato de cuida-
inspiração leiga(3). No entanto, a bioética pode ser defini- do dirigido, também, à dimensão espiritual do paciente.
da como a guardiã na terminalidade da vida, aquela que É preciso agregar ao saber científico intuição,
aposta na necessidade de se estar atenta à qualidade do emoção e acuidade de percepção sensível, além da
cuidado no adeus à vida, como muito bem teoriza razão(2). Na terminalidade, muitas vezes, manifestam-se,
Pessini(4), em seus estudos, quando aponta o papel da no paciente, sentimentos de medo e angústia, os quais
bioética na terminalidade da vida. devem ser identificados, respeitados e tratados pela
A bioética subsidia o respeito aos aspectos espiritu- equipe de enfermagem. Não propomos um discurso
ais e religiosos, pois prima pelo caráter plural na análise e religioso, pois o respeito à crença de cada pessoa é
discussão de situações concretas, assim, evitando assumir indiscutível, como prevêem tanto a espiritualidade quan-
posições sectárias(5). to a bioética. Pensamos em um acolhimento abrangente,

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como qual podemos demonstrar amor e interesse pela experiência no cuidado espiritual ao paciente em fase ter-
sua vida, auxiliando-o a tornar sua morte mais serena. minal; caracterização do cuidado espiritual ao paciente
Esse cuidado mais abrangente do que somente tratar terminal; preparo dos profissionais de enfermagem para
o corpo pode estar incluso nas tarefas da enfermagem, cuidar das necessidades espirituais do paciente terminal;
principalmente, porque a mesma tem mais contato com experiência espiritual do entrevistado; o cuidado espiritu-
o paciente do que o profissional que exerce a função de al ao paciente terminal deveria estar incluso no trabalho
assistente espiritual. Sendo o cuidado espiritual impor- da enfermagem e por quê?; e capelania e enfermagem
tante, a enfermagem deve se instrumentalizar para inte- poderiam organizar e desenvolver um trabalho integrado
grá-lo em sua atividade diária. Esse cuidado não supõe no sentido de oferecer ajuda espiritual sincronizada ao
um tempo específico, mas se faz presente na relação, na paciente que está morrendo? Além da aplicação do ques-
maneira do profissional de enfermagem estar presente, tionário, a coleta de dados foi complementada com per-
ouvir, orientar e exercer técnicas junto ao paciente. guntas dirigidas aos pesquisados, pela pesquisadora, para
Existe um aumento de interesse em compreender o aprofundar o tema em estudo.
efeito da fé na saúde. Há interesse e maior abertura para
o estudo e a inclusão do tema em nível acadêmico e de Coleta e Análise dos Dados
pesquisa(11).
Dessa forma, o presente estudo, resultado de uma Após contatar com os interagentes que compõem a
pesquisa feita com pessoas que trabalham no campo da amostra de pesquisa, saber de seu interesse em participar e
espiritualidade, visa a refletir sobre a necessidade da obter o Consentimento Livre e Esclarecido, conforme pre-
enfermagem integrar, no seu trabalho com o paciente coniza a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde(12), pro-
terminal, o cuidado espiritual, dando a ele, assim, um cedeu-se a coleta de dados. Esta deu-se no local de traba-
atendimento mais abrangente, ou seja, sobre o jeito de lho de cada integrante da pesquisa. Os participantes foram
transmitir ao paciente que está morrendo, o consolo, o denominados entrevistados, respeitando sua confidenciali-
conforto, o descanso e a paz que pode encontrar, até dade e seu anonimato. Foi feito novo contato para marcar
mesmo num leito de morte. os encontros e para a entrega do questionário. Procedemos
a entrega dos questionários e, após o recolhimento e a leitu-
Metodologia ra das respostas foram realizadas entrevistas para coleta de
dados adicionais ao questionário. Em seguida, foi elabora-
Sujeitos e Locais do Estudo do o material para a análise. As respostas foram organizadas
de forma que não fosse modificado seu conteúdo, conser-
A coleta de dados para o estudo desenvolveu-se junto vando, assim, os termos peculiares da linguagem dos
a sete profissionais que atuam na área da pastoral da sujeitos. Foi empregada a abordagem qualitativa, referenci-
saúde. Os locais foram dois hospitais, um seminário, uma ada por Minayo(13), considerando a subjetividade do tema.
instituição de ensino e duas igrejas (Igreja Evangélica
Batista e Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Resultados e Discussão
Brasil).
Os sujeitos pesquisados exercem a função de pas- Perfil pastoral dos agentes espirituais
tores, sacerdotes e pastoralistas; residem e atuam na
Grande Porto Alegre, RS. Foram escolhidos intencional- Com relação à preparação específica de cada um dos
mente para compor a amostra de estudo por terem for- entrevistados, todos relataram terem formação empastoral
mação em pastoral e experiência em capelania hospitalar, e experiências práticas no atendimento espiritual ao
além de alguns serem profissionais da saúde. paciente em fase terminal. O pastor que integrou a pesquisa
é membro de uma Igreja Batista da Grande Porto Alegre,
Instrumentos de coleta de dados tem 13 anos de formação em teologia e fez curso de
especialização em capelania hospitalar, no Rio de Janeiro;
Foi aplicado um questionário e seguido de entrevista fez estágio em um hospital evangélico, com pacientes
individual semi-estruturada. Os itens investigados foram: terminais.

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O frei é professor e assistente espiritual em um Semi- A enfermeira, que é da mesma instituição da reli-
nário do Rio Grande do Sul. Visita pacientes em hospi- giosa, tem experiência profissional construída ao longo
tais há um longo período de tempo. Fez preparação em de vinte e quatro anos. Neste período, assistiu e auxiliou
Pastoral de Saúde junto aos capelães em hospitais, nos muitos pacientes terminais por meio do Serviço de
quais exerce o ministério da Pastoral da Saúde. Pastoral da Saúde Hospitalar. Lê e participa de palestras
A enfermeira exerce a função de supervisora em um e encontros que abordam o tema da Pastoral da Saúde e
hospital de Porto Alegre, é generalista e inclui em seu sua aplicabilidade prática.
serviço a supervisão da equipe de Serviço de Pastoral da
Saúde. Atuou, ao longo de nove anos, em UTIs e durante Primeira unidade temática
doze anos exerceu o serviço de assistente espiritual a
pacientes terminais, sendo solicitada pelos pacientes, Características do cuidado espiritual
familiares e serviço de enfermagem para dar atendimen- ao paciente terminal
to pastoral a pacientes terminais e a outros pacientes em
suas necessidades. Participou de cursos, congressos e Quanto à caracterização do cuidado espiritual ao pa-
seminários onde foram abordados temas sobre a Pastoral ciente terminal, um dos entrevistados considera desa-
da Saúde e o paciente em suas necessidades biopsico- fiador, porém sublime. Da mesma forma, uma entrevista-
espirituais. É membro integrante do grupo de apoio à da refere ser um trabalho muito delicado e, ao mesmo
criança terminal do hospital no qual atua. Tem formação tempo, importante. A entrevistada de um dos hospitais
em ética e bioética, realizou trabalho de conclusão de complementa dizendo que é um momento que exige
curso abordando o tema do paciente terminal. Fez curso muita maturidade e serenidade, como podemos ver em
de capelania hospitalar num Seminário no Rio de Janeiro seu depoimento:
e estágio em um hospital da mesma região. A teóloga e "O cuidado espiritual ao paciente terminal requer maturidade,
educadora é formada há 15 anos em um Instituto serenidade e entender reações e estágios frente à morte, pois o paciente
Evangélico de Educação Religiosa do Rio de Janeiro. Fez nesta fase deseja receber atenção e tratamento personalizado".
curso de especialização em capelania hospitalar durante Pequenos gestos de afeto e atenção influenciam a
um ano, com estágio em um hospital da mesma locali- recuperação do paciente. O paciente precisa encontrar
dade. Trabalha em uma instituição de ensino de Porto pessoas solidárias que o auxiliem no enfrentamento de
Alegre como capelã, há 5 anos. seu mal físico e de suas necessidades espirituais. Isso vai
O outro pastor é capelão da Igreja Luterana da depender de nossa avaliação sobre a vida e responsabili-
Grande Porto Alegre. Trabalha na área de aconselhamen- dade diante dos pacientes em suas diferentes necessi-
to com os alunos, pais e professores de uma instituição de dades(14).
ensino. É professor de religião na mesma instituição, faz Outra entrevistada, também, relata que é um estágio
parte da equipe diretiva, realiza projetos de solidariedade particular e de muita importância para o paciente, exigin-
à comunidade carente do vale dos sinos (campanhas de do habilidade e sensibilidade. Ainda, outra entrevistada
agasalho, alimentos e brinquedos), realiza cultos e progra- enfatiza que o cuidado espiritual é um momento de fé,
mas de datas comemorativas na instituição em que trabal- conforto, esperança e carinho para com o paciente, con-
ha e organiza os painéis de datas come-morativas. Fez forme seu relato:
preparação específica durante o curso de teologia. "Creio que este atendimento traz um referencial de fé, conforto,
A religiosa é auxiliar de enfermagem e exerce sua esperança e é uma manifestação de presença, carinho e cuidado rele-
função em um hospital da Grande Porto Alegre. Tem vante neste momento".
vinte e dois anos de experiência e vivência em ambiente A dimensão espiritual da pessoa, na sua transcendên-
hospitalar, atendendo pacientes no serviço de pastoral, cia como ser integral, deve caracterizar as relações inter-
dedicando-se de forma mais específica a pacientes termi- pessoais e intergrupais na sociedade do terceiro milênio,
nais. Fez diversos cursos e encontros de Pastoral da Saúde quando a cidadania, a justiça e a ética formarão novo
e Pastoral dos Enfermos. Tem curso de formação paradigma social(15). A evolução da medicina como ramo
superior em teologia e diz ler muito sobre o tema da de comércio foi o elemento mais decisivo para que os
espiritualidade. profissionais da saúde se afastassem da espiritualidade.

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Recentemente, esta questão estimulou ainda mais o Segunda unidade temática


debate nos meios científicos: cada vez mais médicos Preparo da enfermagem para o cuidado
reconhecem que a fé das pessoas ajuda no processo de sua espiritual ao paciente terminal
cura física. A ligação entre corpo e espírito é reconhecida
pela humanidade há muito tempo. Nos séculos passados, a Quanto ao preparo dos profissionais de enfer-
comunidade científica considerava fé e espiritualidade magem, como equipe multicategorial, para cuidar das
como sinais de crendice e de ignorância, mas pesquisas necessidades espirituais dos pacientes terminais, todos os
recentes começaram a relacionar fé com uma boa entrevistados referem que a enfermagem, em geral, não
saúde(16). está preparada para auxiliar o paciente em suas necessi-
O cuidado com os pacientes deve ser digno, ou seja, dades espirituais, o que fica evidenciado na fala a seguir:
dar a eles todo o suporte psicológico, espiritual e emo- "Diria que alguns sim e muitos não. Trabalhar com momentos tão
cional, assim como a seus familiares, e oferecer-lhes dolorosos da vida humana e estar preparado para cuidar das neces-
assistência médica de excelência para que desfrutem de sidades espirituais dos pacientes terminais implicam num processo
uma vida digna e de qualidade. É assim que deve ser a pessoal de autoconhecimento, amadurecimento pessoal, um contato
medicina hoje e sempre(17). rico e produtivo com as próprias dores e conflitos, uma experiência
Uma das entrevistadas refere o cuidado espiritual
de fé significativa". Mais que uma formação acadêmica, uma vivên-
como sendo um momento benéfico para o paciente e
cia pessoal significativa. [...]o ser humano utiliza muitos mecanis-
gratificante para o pastoralista, como podemos identificar
mos de defesa para fugir daquilo que assusta e faz sofrer. Para
em suas palavras:
alguns profissionais, a indiferença pela vida humana, às vezes,
"Posso dizer o quanto é benéfico ser presença junto ao paciente termi-
acaba sendo um modo de não entrar em contato com as suas
nal, sem nos preocuparmos tanto com as palavras, o que dizer, mas
próprias dores e medo da morte. É relevante que o profissional
ser presença que transmita conforto, segurança, compreensão da situ-
desta área tenha um acompanhamento de maneira a 'estar se dando
ação. É muito gra- tificante sermos instrumentos mediadores para o
conta' de como as situações que lida afetam sua própria existência.
encontro definitivo com Deus".
A espiritualidade não finaliza no religioso e, além Creio que alguns profissionais, em função de sua formação e, prin-
disso, tem uma função terapêutica(18). A espiritualidade, cipalmente, de suas vivências, estão preparados; muitos não".
com a religiosidade, é uma fonte importante de apoio exis- Uma das entrevistadas falou que a causa da enfer-
tencial, beneficiando a saúde integral do homem(19). magem não estar preparada para esta ação fundamenta-
Através da espiritualidade, experimentam-se pessoalmente se na falta de formação específica dos profissionais,
os misteriosos caminhos do eu profundo, suas con- causando ansiedade e, até mesmo, indiferença. Outra
tradições e mecanismos internos, suas formas simbólicas entrevistada complementa dizendo que falta uma for-
de expressão, sua capacidade de mobilizar energias inten- mação específica e base teológica pastoral.
sas e de encontrar significados para as situações de crise. A mesma diz que persiste a idéia entre os profis-
Os instrumentos para compreender os caminhos da alma sionais e a sociedade de que a doença é prova e castigo
dos pacientes aparecem, bem como os sutis significados de de Deus.
seus gestos. Ela relata:
A espiritualidade capacita o profissional para lidar com "O carinho, a dedicação, a doação, fazem parte do cuidado espiri-
as emoções intensas e os questionamentos angustiados tual, porém falta toda uma formação de base teológica pastoral
dos pacientes e seus familiares em crise existencial, evitan- para a equipe, de modo geral para o enfrentamento e elaboração das
do que se assuma a atitude usual de fuga destas situações reações pessoais e de equipe frente ao paciente terminal. Persiste
ou de criação de mecanismos de bloqueio da sensibilidade forte ainda a concepção de prova e castigo".
para poder preservar sua própria estabilidade emocional(2). Um dos entrevistados comenta que faltam aos profis-
Por esta unidade de análise, foi possível constatar que sionais cursos preparatórios para o acompanhamento a
o cuidado espiritual é importante para o paciente, pois a pacientes terminais em suas necessidades espirituais.
espiritualidade faz diferença em sua saúde. O outro entrevistado refere que a causa da enfer-
É um momento de maturidade, serenidade e carinho, magem não estar preparada não se relaciona ao preparo,
como elementos de conforto para o paciente terminal. mas sim ao ambiente de pressão e sofrimento, tornando

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os mesmos insensíveis, calejados. Verificamos isso em buscando uma articulação baseada nos princípios éticos,
suas palavras: respeitando e valorizando as pessoas envolvidas(23).
"Há carência neste campo, há pouco diálogo e muito remédio Atualmente, distancia-se do conviver com alguém
curativo". que está morrendo diferente de tempos anteriores.
Outra entrevistada ressalta que a preocupação da Agora, o paciente fica no asilo ou hospital e não morre
enfermagem se restringe à parte técnica, deixando de mais em casa. A família e amigos não têm mais um
lado osoutros aspectos que envolvem outras necessi- contato pessoal com o paciente, comprometendo
dades do paciente: o cuidado espiritual, pois os profissionais de saúde
"Penso que, na grande maioria, os profissionais de enfermagem não também se sentem despreparados para dar a assistência
estão preparados para cuidar das neces-sidades espirituais dos integral ao paciente(24).
pacientes terminais [...]a preocupação está mais na parte técnica. A partir das falas dos sujeitos entrevistados, consta-
Vejo a necessidade de incluir cuidados espirituais nos cursos ta-se que a enfermagem não está preparada para exercer
acadêmicos". este cuidado devido à falta de formação específica no
As reações de estresse do paciente variam de indiví- curso acadêmico e outros complementares. Outro fator
duo a indivíduo, tornando-se, assim, evidente a necessi- que interfere, além da especificidade, é a falta de cons-
dade de acolhimento e valorização da pessoa neste cientização da enfermagem com relação à importância
momento(20). do cuidado espiritual ao paciente e a clareza da con-
O outro entrevistado afirma que é possível a enfer- tribuição dos profissionais de saúde no cuidado, de uma
magem também participar do cuidado espiritual do forma mais abrangente.
paciente terminal, mas tem que haver vocação, dedi-
cação, ensino e treinamento. Uma das entrevistadas disse Terceira unidade temática
que, além de uma formação acadêmica que favoreça
também um preparo teológico espiritual, é necessária Inclusão do cuidado espiritual ao paciente
uma vivência pessoal significativa, isto é, uma experiên- terminal no trabalho da enfermagem
cia de vida. Em um tempo histórico de fascínio pela tec-
nociência e por suas descobertas que podem tornar o ser Com relação à inclusão do cuidado espiritual ao
humano um mero detalhe ou objeto, é necessário paciente terminal no trabalho de enfermagem só um dos
superar esta "condição", mediante a valorização do ser entrevistados pensa não ser um cuidado para a enfer-
humano em sua dignidade plena. magem, pois exige pessoas preparadas para tal. A enfer-
Para isso, precisamos nos humanizar, bem como meira deve somente auxiliar, por ser uma tarefa séria e
sermos protagonistas de ações humanizantes, cultivando cuidadosa.
o diálogo personalizador em vários âmbitos, principal- Os outros entrevistados referem que o cuidado
mente nas situações de sofrimento e final de vida. espiritual deve estar incluso no trabalho de enfermagem.
Humanizar é garantir dignidade ética diante do sofrimen- Um dos entrevistados justifica esta possibilidade, dizen-
to humano(21). do que o contato constante que a enfermeira tem com os
A sociedade tem contribuído para que rejeitemos a pacientes a favorece perceber essa necessidade e auxiliá-lo.
morte; a religião tem perdido adeptos entre os que acre- Segundo ele:
ditavam numa vida após a morte, isto é, na imortalidade, "O cuidado espiritual ao paciente terminal deveria estar incluído no
trazendo desvantagem ao paciente(22). trabalho da enfermagem pelo contato cons-tante com o paciente, tor-
É neste cenário que se dá a necessidade do resgate nando muito mais fácil cuidar deste assunto com os pacientes".
dos valores subjetivos, que foram diminuindo com os A enfermeira, com base nos fundamentos de seu
avanços da ciência. Para isso, é preciso o desenvolvimen- saber técnico, busca o que entende ser bom para o
to de um novo olhar, de uma nova forma de atuar frente paciente, promovendo o bem-estar e protegendo os
a essa realidade. interesses deste. Porém, ao fazer isso, não pode descon-
Não se trata de deixar de lado as inovações científi- siderar a manifestação da vontade, dos desejos, dos
cas e tecnológicas, mas sim de agregar valores humanos sentimentos, das crenças e das opções de cada um(25).
às relações que ocorrem nas instituições de saúde, Seis dos entrevistados defendem que deveria haver

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treinamentos para os profissionais de enfermagem, para os profissionais de enfermagem, e também treina-


preparando-os para capacitação no encaminhamento de mento, seja no decorrer do curso ou até mesmo no local
questões desta ordem no próprio local de trabalho. Esses de trabalho, por pessoas habilitadas e experientes na área.
treinamentos deveriam, segundo eles, estar incluídos no Este cuidado supõe fé e experiência de vida na
currículo e serem praticados. O vínculo criado entre a dimensão espiritual.
enfermeira e o paciente facilita este cuidado espiritual por A tendência crescente da enfermagem em ver o indi-
ampliar a confiança e comunicação enfermeira-paciente. víduo de uma maneira holística gera questionamentos
Uma das entrevistadas relata que a fé cuida da pessoa sobre o cuidado nessa dimensão. O corpo, mente e
toda, e os remédios somente do corpo. O outro entrevis- espírito são mais do que a soma de suas partes, essas
tado complementa dizendo que a fé proporcionaria mais dimensões interagem e, assim, tratando uma delas, as
serenidade e felicidade ao paciente. demais serão afetadas. Embora esta interdependência
Ele refere: exista, as intervenções de enfermagem são escolhidas e
"O paciente sentir-se-ia mais sereno e feliz, se ouvisse da implementadas segundo as alterações associadas a cada
equipe de enfermagem que a fé também cura". dimensão(27).
A enfermeira tem uma convivência mais simples com O cuidado ao paciente deve ser altamente técnico e
a morte, pois faz parte do seu dia-a-dia e não representa científico, porém é importante a capacidade de se sentar
para ela uma derrota profissional. Portanto, a enfer- junto à sua cabeceira, de ter tempo e paciência para ouvir
magem pode dar assistência integral aos pacientes, mas suas queixas, sua insegurança, sua história de vida, isso
para isso é preciso que perceba como ser espiritual e também faz parte do processo de cuidado.
desvende maneiras de, na sua profissão, oferecer aos A fé, diante das situações difíceis de assistir um
pacientes terminais cuidados que venham ao encontro paciente em fase terminal, apresenta-se como fonte de
de suas necessidades(24). Juntamente ao cuidado com o paz e esperança, tanto para os profissionais como para os
corpo, é importante prestar o cuidado social, psíquico e, pacientes.
principalmente, espiritual(4).
Nessas condições, proporciona-se o cuidado espiri-
Então, falar em bioética é falar em medidas que
tual, tão importante e necessário.
englobam a pessoa de uma forma integral: biológica
(física), emocional e mental (psicológica), social e espiri- Quarta unidade temática
tual, que se inicia sensibilizando a todos da existência
dessas dimensões em si mesmo. Só é possível cuidar
integralmente do outro se todas as dimensões são Integração enfermagem e capelania
consideradas. Pode-se começar simplesmente com um
olhar: olhando verdadeiramente para o outro. A espiritualidade pode surgir, na doença, como um
Olhar para o outro é calar, ouvir verdadeiramente o recurso interno que favorece a aceitação, o empenho no
que o outro tem para dizer, fitar seu olhar, esquecer de si restabelecimento, a aceitação de sentimentos dolorosos, o
e perceber o outro em suas necessidades físicas e emo- contato e o aproveitamento da ajuda das outras pessoas e
cionais. Mas para ser capaz disso devemos ser capazes de até a própria reabilitação.
olhar para nós mesmos, ouvir verdadeiramente quais são Isso remete à sua essência básica como um fator de
nossas necessidades, o que nos faz bem e o que nos faz saúde e realça sua importância nos processos de prevenção
mal, percebermo-nos em nossas necessidades físicas e de doenças, manutenção da saúde ou de reabilitação e
emocionais, perceber a nossa subjetividade(26). cura. O conceito de saúde também tem mudado e torna-
Nos relatos dos entrevistados, constata-se que há a se cada vez mais complexo. Muitos estudos têm fornecido
possibilidade da enfermagem prestar o cuidado espiri- uma atenção mais acurada para a dimensão espiritual(28).
tual aos seus pacientes, pois é uma questão de perceber a Continuando, um dos entrevistados ressalta que a
pessoa na sua totalidade. A enfermagem teria que capelania pode atender os profissionais também. Outro
aproveitar esse contato mais direto, pessoal e contínuo entrevistado coloca que os assistentes espirituais podem
com os pacientes e ajudar o paciente terminal a ter uma oferecer cursos, seminários, acompanhar e supervisio-
morte tranqüila. Precisa conscientização neste aspecto nar a enfermagem no cuidado espiritual. A integração

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entre ciência e espiritualidade tem grande importância no Considerações Finais


enfrentamento dos problemas de saúde não só para os
indivíduos, como também para a coletividade(2). O cuidado espiritual ao paciente terminal caracteriza
Em relação à temática de pesquisa, uma maneira da um desafio. Supõe formação, maturidade, habilidade,
enfermagem e capelania realizarem um trabalho inte- serenidade e sensibilidade às reais necessidades do outro.
grado é, acima de tudo, como foi relatado pelos entre- Traduz um momento importante para o paciente e grati-
vistados, por meio do diálogo e respeito mútuo. ficante para o pastoralista.
Entende-se que as reuniões para trocar informações e A dimensão espiritual formará um novo paradigma
para traçar linhas de ação são muito importantes, bem social. Cada vez mais se reconhece que a fé ajuda no proces-
como os treina-mentos para a enfermagem. Esses so de recuperação da saúde e enfrentamento da doença.
treinamentos podem ser dados pela própria capelania. A espiritualidade beneficia a saúde integral da pessoa e
A enfermagem deve buscar mais condições para capacita o profissional a lidar com o paciente terminal.
praticar o cuidado espiritual, tanto por meio de semi- A enfermagem, no geral, não está preparada para
nários e cursos como de leituras complementares. prestar o cuidado espiritual ao paciente terminal. Este
É necessário considerar a pessoa como ser holísti- cuidado implica um processo pessoal de autoconheci-
co para se entender a espiritualidade como um aspecto
mento e amadurecimento, uma experiência de fé significa-
importante no processo terapêutico e essencial para o
tiva. É preciso saber entrar em contato com as próprias
bem-estar. O profissional de saúde pode ajudar o
dores e medo da morte.
paciente ouvindo-o, estando atento às suas emoções e
Um outro motivo que traduz o despreparo da enfer-
aos seus sentimentos. Muitas vezes, isso é mais impor-
magem em lidar com o paciente terminal é a falta de for-
tante que qualquer terapêutica. É necessária uma
mação específica para o enfrentamento e elaboração das
preparação acadêmica que reforce o respeito pela pes-
reações pessoais frente ao paciente terminal. Os profis-
soa e por sua crença. Para atender as necessidades
sionais de enfermagem tornaram-se calejados e insen-
espirituais do paciente, não há uma regra nem uma fór-
mula. síveis frente ao ambiente de sofrimento em que traba-
Quem contata todos os dias com os pacientes e lham e, muitos, ainda, restringem-se somente à parte
com o seu sofrimento, sabe que cada pessoa sente de técnica. É preciso vocação, dedicação, treinamento e uma
uma forma diferente, tem uma vivência própria, tem experiência de vida para incluir, no cuidado ao paciente
um objetivo de vida próprio, tem uma espiritualidade terminal, a dimensão espiritual.
própria(29). A revolução do conhecimento científico, voltada
A dimensão espiritual é inerente ao indivíduo, para a tecnociência, tem reforçado a dificuldade da enfer-
sendo importante para os enfermeiros avaliá-la e nela magem de lidar com o paciente terminal.
intervir quando necessário. Entretanto, essa dimensão É preciso humanizar e resgatar os valores subjetivos.
deve ser diferenciada do aspecto religioso e do compor- Todos os entrevistados trouxeram a importância de
tamento psicossocial. incluir o cuidado espiritual às tarefas técnicas prestadas
Para diferenciar esse aspecto, é importante que haja ao paciente terminal pela enfermagem.
estudos que definam a espiritualidade por reflexões em O fundamento para tal inclusão reside no fato da
que sua especificidade seja levada em conta(27). enfermagem estar em constante contato com o paciente.
É importante que estejam bem definidas as tarefas O cuidado espiritual supõe permanecer sensíveis
da enfermagem e da capelania, havendo colaboração, e abertos para falar aquilo que sentimos ser o melhor
diálogo e integração entre os setores. No momento em para o paciente. É nessa relação que encontramos e
que as funções da capelania e enfermagem estão descobrimos a forma e o momento corretos de falar,
definidas, o paciente poderá receber um cuidado espir- como falar e o que falar.
itual adequado e contínuo. A enfermagem, também, Nesta perspectiva, o serviço de pastoral implica em
deve dar as informações biopsicossociais e espirituais respeito, fé, abertura e um grande amor às pessoas.
do paciente aos assistentes espirituais, facilitando seu O vínculo criado entre enfermagem e paciente facili-
trabalho, preservando sempre sua privacidade. ta o cuidado espiritual, pois amplia a confiança e comu-

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O cuidado espiritual ao paciente terminal no exercício da enfermagem e a participação da bioética

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nicação entre ambos. A enfermagem tem um contato Constatou-se, também, a importância da con-
pessoal e contínuo com o paciente e tem uma convivên- tinuidade ao cuidado espiritual prestada pelos agentes de
cia mais simples com a morte, pois não representa para pastoral e capelania, bem como o fornecimento de infor-
si uma derrota profissional. A integração entre enfer- mações do paciente em um trabalho integrado entre
magem e capelania no cuidado espiritual ao paciente enfermagem e capelania, com o repasse de aspectos
terminal é uma tarefa difícil. É preciso haver interesse significativos colhidos pela enfermagem para o serviço
comum pelo paciente. Os dois setores têm que falar a de pastoral.
mesma linguagem e deve haver, entre ambas as partes, Para a enfermagem integrar o cuidado espiritual ao
diálogo e respeito. A enfermagem também deve ser
rol de suas práticas diárias precisa habituar-se a ver o
habilitada.
paciente na sua totalidade.
É necessária uma preparação acadêmica que reforce
Neste estudo, a bioética faz-se presente nos relatos
o respeito pelo paciente e sua crença.
É importante a definição de tarefas de cada um e dos entrevistados quando apontam a necessidade de
colaboração e integração entre os setores. responsabilidade, a troca de conhecimento, o pluralismo,
A integração entre ciência e espiritualidade tem a superação de posturas sectárias e a preservação do
grande importância para o paciente terminal. Muitos caráter plural da discussão. Saúde, espiritualidade e
estudos têm fornecido uma atenção mais especial à bioética implicam-se. O cuidado espiritual, como mais
dimensão espiritual, pois a espiritualidade pode surgir um aporte do saber/fazer da enfermagem, supõe
como um recurso interno de aceitação da doença e de capacidade de captar relações de significado entre as
sentimentos dolorosos para o paciente terminal. diferentes instâncias de saber.

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A clínica como instrumento de fortalecimento


do sujeito: um debate ético-filosófico
Medical Clinic as a tool for strengthening subjects: an ethical-philosophical debate
La clínica médica como herramienta para fortalecer el sujeto: una discusión ético-filosófica

Sabrina Helena Ferigato*


Maria Luisa Gazabim Simões Ballarin**

RESUMO: Para a elaboração deste trabalho, inicialmente realizaremos um breve relato sobre a história recente da saúde pública suas políticas de
atenção, visando demonstrar que nas últimas décadas, o entendimento do processo saúde-doença sofreu diversas alterações do ponto de vista práti-
co-teórico, e por maiores que tenham sido estas alterações, as relações de poder, imanentes ao processo relacional da clínica, permaneceram, com
a mesma estrutura, ou seja, o poder sendo exercido verticalmente de quem trata sobre quem é tratado. Para proporcionar um possível desvio a essa
"racionalidade hegemônica", propomos como alternativa, o fortalecimento dos Sujeitos envolvidos na situação terapêutica e o investimento em sua
autonomia, o que amplia as possibilidades de novas formas de produção de subjetividade a partir de uma reformulação ética da atenção em saúde.
Desta forma, nos apoiaremos em construções teóricas de alguns ícones da Saúde Coletiva no Brasil, buscando estabelecer um diálogo com a
filosofia genealógica de Michel Foucault.
PALAVRAS-CHAVE: Clínica. Atenção em saúde. Sujeito-autonomia.

ABSTRACT: In this work, we shall first present a brief report about Public Health recent history and its care policies, aiming to show that in the
last decades the health-disease process has suffered several changes from the practical and theoretical point of view and, no matter how great these
changes have been, power relationships, interfering in the relational clinic process, has remained with the same structure, that is, power is used
vertically from the one who treats over the one who is treated. To offer a possible alternative to this hegemonic rationality, we propose
strengthening all subjects involved in the therapeutic situation and the investment in their autonomy, which enlarges the possibilities of new forms
of subjectivity production from an ethical reformulation of health care. With this object in mind, we shall be supported, on the theoretical
construction, by some icons of Public Health in Brazil, in a dialogue with the genealogical philosophy of Michel Foucault.
KEYWORDS: Clinic. Health care. Subjects-autonomy.

RESUMEN: En este trabajo, primero presentaremos un breve informe sobre la historia reciente de la Salud Pública y sus políticas del cuidado, como
para demostrar que en las décadas pasadas el proceso salud-enfermedad ha sufrido varios cambios del punto de vista práctico y teórico y que estos
cambios, aunque grandes, mantienen las relaciones de poder, interfiriendo en el proceso emparentado de la clínica, con la misma estructura, es decir,
el poder se utiliza verticalmente por quién trata sobre el que se trata. Para ofrecer una alternativa posible a esta racionalidad hegemónica, pro-
ponemos el fortalecimiento de todos los sujetos implicados en la situación terapéutica y la inversión en su autonomía, que agranda las posibilidades
de nuevas formas de producción de subjetividad desde una reformulación ética del cuidado médico. Con este objeto en mente, nos apoyaremos, en
la construcción teórica, en algunos iconos de la salud pública en Brasil en diálogo con la filosofía genealógica de Michel Foucault.
PALABRAS LLAVE: Clínica. Cuidado médico. Sujetos-autonomía.

* Terapeuta ocupacional - Hospital e Maternidade Celso Pierrô. Mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
** Doutora em Saúde Mental pela UNICAMP e docente da Faculdade de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas.
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ARTIGO ORIGINAL/ ORIGINAL REPORT/ ARTÍCULO

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INTRODUÇÃO ciando-se um processo significativo de crescimento tanto


da Epidemiologia Social e das políticas sanitárias de
Para pensarmos a clínica como instrumento de for- saneamento básico, como dos movimentos sociais, das
talecimento dos sujeitos nela envolvidos, em primeiro campanhas de combate à desigualdade, miséria e ao
lugar, faz-se necessário, resgatarmos a construção históri- sistema privatista-elitista da saúde.
ca em torno dos modelos de intervenção em saúde, com Vislumbrou-se do então modelo, o cenário pós 1975,
enfoque dado nas relações de poder imanentes a esse com as origens da Reforma Sanitária e a tentativa da con-
processo. Em segundo lugar, pretendemos refletir sobre solidação do processo democrático da saúde, culminan-
as práticas clínicas introduzidas no Sistema Único de do com a constituição de 1988. Tal perspectiva, ofereceu
Saúde, analisando os diversos modelos de intervenção teoricamente um sistema de proteção social de caráter
que estão em construção, na tentativa de ampliar o con- universal-redistributivo, constituindo-se como base para
ceito de clínica, consequentemente, ampliando também a formação das diretrizes principais para o Sistema Único
sua potência. de Saúde - SUS e a garantia da saúde como "direito de
Ao longo da maior parte da história recente da todos e dever do Estado".
medicina, podo-se observar que a evolução dos trata-
mentos relacionados às diferentes patologias, manteve-se O Sistema único de saúde e as práticas clínicas
centrado no modelo ecológico de explicação do proces-
so saúde-doença com os investimentos do saber cien- Sem a pretensão de nos aprofundarmos nas questões
tífico, centrados na tríade agente patológico, hospedeiro históricas da saúde pública e da Saúde Coletiva, que
e meio ambiente, hora com maior ênfase em um, hora precederam o processo de estabelecimento do SUS,
com maior ênfase em outro; tudo isso tendo como pano ainda em construção, gostaríamos, a partir da metodolo-
de fundo, o tratamento baseado no modelo da evolução gia de revisão bibliográfica, de expor algumas de suas
natural da doença, que se dividia, nos diferentes estágios diretrizes, refletindo sobre aspectos que ainda nos
de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da escapa.
saúde. Quando pensamos na ênfase maior do tratamento Podemos citar como exemplo das diretrizes do SUS,
centrado no agente patológico, as estratégias parecem o acesso universal, a eqüidade, a resolutividade, a hierar-
imediatas e, são de valor: vacinas, higiene social, desen- quização, a integralidade, o controle social, a descentra-
volvimento farmacológico, além dos investimentos nas lização, etc. Aspectos que, regulamentam uma forma de
políticas campanhistas como os mutirões "mata mosqui- garantia de acesso à saúde como direito de todo cidadão
to", entre outras. e buscam garantir a boa qualidade dos serviços ofereci-
Da mesma forma, quando a ênfase é dada ao hos- dos à população, ampliando a participação dos cidadãos
pedeiro enquanto corpo individual, as tecnologias na construção das políticas de saúde(a), tornando os
organicistas ou farmacológicas, bem como os atendimen- serviços mais acessíveis e mais democráticos.
tos pontuais à queixa apresentada são respostas satis- No entanto, quando falamos em população, estamos
fatórias para um hospedeiro, com nome, número de falando em pessoas, e quando falamos em pessoas
inscrição na instituição de saúde e que tenha realizado os falamos necessariamente em relações. Neste caso,
exames previamente solicitados, porém possivelmente, particularmente as relações estabelecidas na situação
sem história, desejos e necessidades. clínica entre usuários e profissionais da saúde.
No entanto, segundo Carvalho(1) no início da década De um modo ou outro, as políticas do SUS, bus-
de 70, com a ênfase dada ao fator econômico-social caram de alguma forma, minimizar as injustiças e o con-
como determinante dos processos patológicos, pela trole das burocracias existente nas políticas pré-exis-
influência das correntes estruturais marxistas, este tentes de saúde. No entanto, o aspecto relacional da
panorama começa a mudar. Naquele momento houve um clínica, a fluidez de poderes e saberes imanentes a ela,
profundo investimento no social e no meio ambiente, ini- não é regulamentado, e por isso, não necessariamente

a. O controle social,a participação popular na regulamentação, avaliação e construção das


políticas do SUS é efetivada, por exemplo, através dos conselhos locais, distritais e municipais de
saúde, dos fóruns coletivos, dos núcleos de saúde coletiva, das assembléias populares etc.

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A clínica como instrumento de fortalecimento do sujeito: um debate ético-filosófico

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modificado neste processo. Segundo Campos(2) ao falar- A Construção de uma nova prática clínica
mos em pessoas e relações interpessoais, estamos auto-
maticamente falando em desejos, poderes, saberes e Com isso, nos propomos a refletir sobre a clínica
singularidades. queremos, ou melhor; em qual método de intervenção
Com a ênfase da saúde pública estrutural marxista seria possível resgatar o sujeito como aspecto central no
focada no modelo de determinação social da doença, tratamento, evidentemente, sem desconsiderar os aspec-
lutando em contrapartida ao modelo médico organicista, tos construídos na história pelos modelos vigentes até
positivista tradicional, gerou-se um contexto em que, em então?
ambos os casos, embora tenham muitos aspectos que Sabemos que a Psicanálise caracteriza-se em sua
devam ser valorizados e preservados, se operou uma essência, por este resgate do sujeito no tratamento, e por
espécie de "abolição" do sujeito adoecido. No primeiro isso, utilizaremos muitos de seus aspectos para a cons-
caso, por considerar a doença apenas como produto das trução desta nova clínica; no entanto, apoiados na tese
desigualdades sociais e das lutas de classes, e no segundo defendida por autores como Nietzsche, Foucault, entre
por considerar a doença sem sujeito(3) e o indivíduo
outros, acreditamos que, embora se considere a existên-
apenas como objeto de intervenção de um determinado
cia do sujeito, ainda nesta construção de saber, se opera
saber técnico sobre a doença(b).
a concentração do poder nas mãos de quem trata sobre
Em ambos os casos, saber e poder, como nos mostra
quem é tratado.
Foucault(4) se sustentam mutuamente, pois, as possíveis
Por exemplo, para Foucault(4) quando falamos em
respostas encontradas para determinar o processo de
doença mental e tratamento entendemos que se por um
adoecimento já estão previamente dadas e definidas por
um conjunto de saberes dos quais o sujeito adoecido não lado, Freud retomou a loucura ao nível de sua linguagem,
fez parte da construção, muitas vezes, nem mesmo os reconstituindo um dos elementos essenciais de sua
profissionais atuantes na clínica fizeram parte dela, experiência reduzida ao silencio pelo período das inter-
apenas o reproduzem. nações, por outro, tornou o doente mental submisso a
Neste caso, a maioria dos saberes não científicos que uma outra ordem de saber: o analista sabe da sua loucu-
o sujeito adoecido possa vir a ter em sua carga de ra, mais do que ele próprio. A cura pela palavra, em sua
experiência é subestimada, quando não desconsiderada. abordagem ortodoxa, se dá num monólogo, quase uma
Esta forma de racionalidade fundamenta-se na verti- confissão, onde quem escuta é o detentor da verdade de
calidade de poder existente entre quem trata e quem é quem fala e quem fala é o objeto de saber de quem ouve,
tratado, sendo que os primeiros impõem uma objetivi- numa relação onde saber e poder se alimentam.
dade aos usuários restringindo as possibilidades de Desta forma, o que procuraremos propor, é a
expressão da subjetividade, e conseqüentemente, de reflexão sobre uma forma de clínica(5), onde não apenas
desejos, interesses, necessidades e singularidades e ao a concepção de doença se altere, mas onde a concepção
mesmo tempo, profissionais permanecem aprisionados a de sujeito(c) seja modificada e os fluxos de poder(d)
determinados discursos que embora lhe atribuam uma possam ser desviados e utilizados para a produção de
carga de poder, pouco oferecem margem à expressão de subjetividade e em produtos com "valores de uso" para
sua singularidade, criatividade. os coletivos.

b. Temos como exemplo o estudo do corpo humano nas aulas de anatomia, disciplina que os profissionais
da saúde estudam para tornarem-se curadores de homens. "O homem é a imagem de si mesmo, mas a
imagem de si mesmo morto (...). A vida do homem e sua organização social são expulsas totalmente daqui-
lo que é seu corpo doente. Uma coisa é o corpo, outra coisa é a doença e outra a vida" (p.52)(3).
c. Trabalhamos com a premissa de que "sujeito é uma síntese singular, resultante do eletrochoque entre deter-
minantes e condicionantes particulares e universais e a capacidade do próprio sujeito de alterá-los, mediante
processos de análise e intervenção sobre estes fatores" (Campos;2005. p.235), o que, em nossa análise, não
contradiz a concepção de Foucault, que ao teorizar a respeito da subjetivação, introduz o conceito de sujeito
forma, ou seja, um sujeito apontado para o processo de sua constituição, sujeito como atividade, em devir,
que visa sua multiformidade histórica. Neste sentido, para Foucault, na leitura de Paiva 5 quem somos, não é
uma questão meramente pessoal, psicológica, existencial, mas engaja a pergunta pelo que viemos a ser com
relação às práticas que nos constituem, as quais organizam nossa relação conosco e com os outros.
d. Para Foucault 4, é preciso "deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui,
reprime, censura. Na verdade, além disso, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos
e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção"(p.161)(4).

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É importante ressaltar que não pretendemos aqui, reformulação do papel de controle dos micropoderes(e),
dar conta de toda complexidade da clínica, nem mesmo e, além disso, são abertas possibilidades para a experi-
negar seus aspectos objetivos e orgânicos, tão relevantes mentação de novos tipos de relações sociais, denomi-
quanto seus aspectos filosófico-ideológicos. Por isso, nadas por Foucault como relações agonísticas, que nada
neste trabalho, para discutirmos a clínica, estaremos mais são que "relações livres, que apontam para o desafio e para
enfocando, especificamente, as relações de poder, a incitação recíproca e não para a submissão ao outro"(p.89)(8).
existentes na situação terapêutica e a possibilidade de Esta proposição não permitiria, por exemplo, que as
desviarmos das lógicas hegemônicas o fluxo deste poder, relações de poder inevitavelmente existentes entre
a partir da conquista de autonomia e do fortalecimento profissionais de saúde e usuários, se transformassem em
dos sujeitos nela envolvidos. estados de dominação. Há aqui, um apelo pela criação de
Em Saúde Paidéia, Campos(6) trás um novo conceito novas formas de vida, que mantenha minimamente o
de clínica, por ele denominado clínica ampliada que, de direito relacional entre os seres humanos nos espaços
acordo com Onoko Campos(7) não nega as técnicas da
públicos, possibilitando novas formas de subjetivação.
clínica strictus sensu, mas as incorporam em um conjun-
Neste caso, ao profissional de saúde, é fundamental
to mais amplo de ações, entrelaçando clínica e política,
a aquisição de uma postura terapêutica que ultrapasse o
tratamento, organização institucional, gestão e subjetivi-
saber do seu núcleo profissional e o manejo das
dade. Os cuidados buscam a produção de novos valores
melhores técnicas para aplicá-lo, é preciso "um investimen-
de saúde e cidadania.
Este cuidado não é reproduzido em série, normativo; to que trabalhe até o limite a necessidade da defesa da vida", neste
ao contrário a cada usuário é oferecido e construído caso, a postura terapêutica é como aponta Onoko(9)
juntamente a ele um projeto terapêutico individualizado, necessariamente, uma postura ético-política; que vislum-
conforme suas necessidades - Esta idéia me parece bre a transformação daquilo que é dado como universal.
bastante próxima do conceito de "programa vazio" Neste sentido, não se trata de um profissional
introduzido por Foucault, termo que sugere, nas modificando um usuário, mas do profissional se revendo
palavras de Ortega(8), a existência humana como o tempo todo, ao mesmo tempo em que revê a posição
uma cavidade que pudesse ser preenchida por cada do usuário e também o conduz a essa revisão.
indivíduo segundo suas necessidades, renunciando Para Benevides(10) quando colocamos em questão a
a qualquer pretensão de prescritividade e de universali- naturalidade ahistórica de categorias com as quais nos
dade, para possibilitar a experimentação e a criação de identificamos e indagamos seu processo de constituição
novas formas de existência. realizamos um exercício crítico-clínico que nos desvia da
Quando estes autores incitam a criação de novas for- natureza humana na qual acreditamos nos definir, e por
mas de se operar à clínica, se propõe ao mesmo tempo, a tanto, realizamos um exercício de liberdade(f).

e. Denominamos como micropoder "a mecânica do poder que se expande por toda sociedade, assumindo as formas
mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este que
intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos - o seu corpo - o que se situa ao nível do
próprio corpo social, e não a cima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso podendo ser caracterizado como
micropoder" (p. XII)(4).
f. Para Benevides 10 a noção de liberdade em Foucault tem um sentido nominalista e um sentido real. "É por uma
história nominalista dos sentidos da liberdade que podemos alcançar uma liberdade real. Para cada concepção instituí-
da de liberdade, é preciso realizar a inversão nominalista, que consiste em afirmar criticamente que o que se alcançou
tem tão somente um nome de liberdade não sendo efetivamente liberdade real(...). O nominalismo de Foucault faz da
liberdade não uma coisa ou um estado, mas um processo, uma libertação" ( p.12)(10).

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Assim, acreditamos que, tanto a proposta de clínica também, com capacidade para assumir compromissos e
ampliada quanto à proposta dada por Foucault, em sua responsabilidades"?(p. 123)(2).
conceituação oferecida sobre programa vazio e sobre a Para apontar possíveis soluções para esse desafio,
constituição de relações agonísticas, apontam para uma acredito ser bastante potente a teoria da Ética de si pre-
modelagem de clínica que buscam o fortalecimento do conizada por Foucault(11), que se fundamenta na
sujeito adoecido, não apenas em sua relação com a proposição de que a constituição subjetiva do sujeito
doença, mas em sua relação com quem o trata, com o coletivo deve ser essencialmente como uma constituição
mundo e com as pessoas ao seu redor. ética.
O fortalecimento do sujeito pode ser entendido de Para ele, uma possível saída para este dilema, não
diversas maneiras de acordo com a apresentação de cada estaria, nem mesmo em nenhuma das teorias levantadas
teoria. Para nós, este fortalecimento tem o sentido de anteriormente, nem mesmo em nenhum a atitude
potencialização da autonomia, do controle sobre si Estadual sobre a regulamentação acerca o uso ideal do
mesmo e sobre suas ações no mundo. poder, mas os efeitos negativos deste empoderamento,
Campos(2) ao apresentar o método da roda(g), explica poderiam ser minimizados, a partir de uma "ontologia
que o fortalecimento dos sujeitos só é possível a partir do histórica de nós mesmos"(h), uma crítica do que dizemos,
momento em que são ampliadas suas capacidades de pensamos e fazemos, a análise sobre nossos possíveis
análise e de intervenção nas atividades ou processos em limites e a reflexão sobre eles, conjuntamente a uma
que estão inseridos. Este fortalecimento, associado à crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível.
democratização das instituições, seria os dois principais Ou seja, acredito que tanto o ethos filosófico quanto
caminhos para a reformulação das racionalidades o método da roda procuram "romper com a tradição
hegemônicas e para se democratizarem as relações de instituída, tratando de combinar compromisso social
poder. com liberdade"(p.34)(2), entendendo que "seres humanos
Para Foucault(11) quando falamos em fortalecimento menos alienados ou com maior capacidade analítica, ou
ou empoderamento dos sujeitos, estamos discorrendo reflexiva serão, sempre, mais capazes de construir a
também sobre o uso público ou privado das nossas ati- felicidade humana"(p.107)(2).
tudes. Por isso, vale dizer, que este fortalecimento impli- Podemos dizer que na situação clínica, poderiam ser
ca em ampliação de poderes e o uso desses poderes, pode estimuladas, verdadeiras técnicas de si, termo fou-
coincidir ou não, com os interesses coletivos e sociais, caultiano que se referem às técnicas "que permitem aos
pode se dar de forma construtiva, mas também perversa indivíduos efetuarem sozinhos ou com a ajuda de outros,
e destrutiva, pois, afinal, "não é simples a articulação um certo número de operações sobre seu próprio pensa-
entre vínculo social e narcísico em cada sujeito"(p.118)(2). mento, sobre sua própria conduta, e isso, de tal maneira
Assim, esta articulação pode produzir contradições e a transformarem-se e produzir a verdade à cerca de si
conflitos em decorrência da duplicidade dos objetivos próprios"(p.129)(5).
individuais e coletivos. Põe-se desta forma um desafio. A partir deste referencial, como profissionais,
Como estabelecer o fortalecimento do sujeito sem for- trataríamos de tomar como domínio homogêneo de
talecer os conflitos gerados pela ampliação dos poderes referência não apenas as representações que os saberes e
individuais no coletivo? Em outros termos: como "con- os homens se dão de si mesmos, nem as condições que
stituir uma sociedade justa, habitada por seres humanos determinam os usuários sem que eles o saibam, mas sim,
concretos com coeficientes crescentes de liberdade, mas o que fazemos e a maneira como fazemos; a forma com

g. "É um método crítico a racionalidade gerencial hegemônica, propondo uma reconstrução operacional dos
modos para fazer a co-gestão de instituições e a constituição de sujeitos com capacidade de análise e de
intervenção" (p.234)(2).
h. Isso é o que Foucault 11 denomina êthos filosófico.
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que reagimos ou permitimos que os usuários reajam ao sentido e valor àquilo que essa incômoda sensação nos
que os outros fazem ou ao que fazemos, modificando até sopra, criando condições para realizar a conquista de
certo ponto, as regras do jogo. uma certa serenidade no sempre devir do outro(p. 32)(13).
Assim, na situação clínica, aquele sobre o qual o Tudo isso, além de culminar com o fortalecimento
poder se exerce, permanece até o fim como um "sujeito dos sujeitos, culminaria automaticamente com uma
de ação", de resistência - "sujeitos livres" - sujeitos indi- forma de reversão de caminhos que conferem à
viduais ou coletivos que têm diante de si um campo de redefinição de um projeto ético de convivência, onde se
possibilidades onde diversas condutas, reações ou diver- desviaria aos efeitos da vontade de saber-poder e ao
sos modos de comportamento podem acontecer, e não mesmo tempo, se fortaleceria formas de resistência ao
como um objeto passivo ou puro produto de atitudes biopoder(j).
terapêuticas. Isso porque, "a liberdade é vista agora como Constatamos portanto, que este discurso de descons-
um elemento fundamental incluído na própria definição trução do estabelecido, a partir do fortalecimento da
do exercício do poder"(p. 126)(5) Libertação e relações de liberdade e da autonomia dos sujeitos na situação clínica
poder deixam de ser situações antagônicas, e passam é bem diferente do discurso da aceitação às diferenças,
a ser movimentos agosnísticos. Desta forma, é preciso do discurso cristão que prega a igualdade entre todos os
considerar a ontologia crítica de nós mesmos, não certa- homens e também da utopia de uma relação de poder na
mente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo um clínica sem diferenciação entre usuários e profissionais, o
corpo permanente de saber que se acumula, é preciso que anularia o papel das relações de saber e das singular-
concebe-la como uma atitude, um êthos, uma via filosó- idades humanas que diferenciam as pessoas entre si e as
fica em que a crítica do que somos é simultaneamente fortalecem perante o coletivo.
análise histórica dos limites em que são colocados e prova
de sua ultrapassagem possível (p. 351)(11). CONCLUSÃO
Segundo Paiva(5) tal processo de fortalecimento do
sujeito, na leitura foucaultiana, implica em abrir mão do Depreende-se dos aspectos descritos, pertinentes à
vício em identidades, em não "domesticar" as forças de construção teórica sobre às práticas clínicas, que o fortale-
instabilização, o que só faz "brecar" os processos da cimento dos sujeitos adoecidos em seu papel ativo no trata-
subjetividade nos termos de sua produção, do governo de mento, não significa o enfraquecimento do profissional e,
si(i) e dos outros. Ou, seja, "temos que promover novas nem significa dizer que construiríamos uma situação
formas de subjetividade através da recusa desse tipo de clínica onde as relações de poder se anulem ou tornem-se
individualidade que nos foi imposta há vários séculos"(p. invertidas, pois afinal, viver em sociedade exige sempre que
239)(12). alguns ajam sobre a ação dos outros. Portanto, pensar a
Desta forma, nem sempre a busca da estabilização, do situação clínica, bem como "pensar uma sociedade sem
controle das doenças ou a exclusão das diferenças se relações de poder só pode ser uma abstração".
constitui como o melhor caminho, muitas vezes, é Assim, o fortalecimento do Sujeito e a ampliação de
necessário aliar-se com as forças da processualidade, sua autonomia se caracterizam, não pela eliminação de
como aponta Rolnik(13). qualquer relação de dependência, situação imaginária e
Torna-se, portanto, necessário pensar uma forma de utópica; Mas sim, pela capacidade dos sujeitos de entrarem
clínica que não seja totalmente capturada pelas insti- e saírem de situações, de instituições ou teorias em que
tuições de poder agenciadoras de nossa subjetividade. experimentariam distintos graus de dependência, de
Essa aliança depende - mais do que de qualquer influência mútua. Sujeitos autônomos seriam em tese,
outro tipo de aprendizado - de estar à escuta do mal-estar mais capazes de lidar com relações de dependência e para
mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da administrar conflitos de forma positiva para si mesmos e
capacidade de suportar e de improvisar formas que dêem para o coletivo(p. 208)(2).

I. Governo como "modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos
destinados a agir sobre as possibilidades de ação" (p.244)12 e não se referindo às estruturas
políticas dos Estados.
J. Biopoder é uma expressão introduzida por Foucault, para caracterizar a forma típica de
poder que se dá na sociedade contemporânea, poder que incide sobre o próprio processo de
vida, no viver.

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Ao mesmo tempo, no entanto, isso não pode ser cadeias que prendem o Sujeito, a possibilidade de agir-se
utilizado como instrumento argumentativo para a sobre esses condicionantes, modificando-os, uma
manutenção de relações autoritárias e dominadoras, pois, perspectiva ativa de trabalhar as necessidades sociais
dizer que não pode existir clínica ou sociedade sem para modificá-las ou administra-las segundo os interes-
relação de poder, não quer dizer nem que aquelas que são ses dos interessados(...) analisar e intervir na produção
dadas são necessárias, nem que de qualquer modo o
da própria demanda, ou seja, pensar e participar ativa-
"poder" constitua no centro das sociedades uma fatalidade
mente do que é ativamente buscado(p. 119)(2).
incontornável; mas que a retomada da questão das
relações de poder e do "agonismo" entre relações de poder Assim, propomos uma situação de clínica ampliada,
e intransitividade da liberdade é uma tarefa política onde profissionais e usuários, trafeguem com autono-
incessante e que é exatamente esta a tarefa política mia; os primeiros sem se aprisionarem ás suas técnicas e
inerente a toda existência social (p. 246)(12). obrigações institucionais e os segundos sem subor-
Assim, a ética de si proposta por Foucault, em dinarem-se a elas, ambos reconhecendo-se mutuamente
termos clínicos, implica que o sujeito se constitua em como sujeitos, como nos mostra Campos(2) seres com
face de si próprio como um indivíduo que sofre de desejos e interesses a serem considerados, com possibi-
certos males e que deve fazê-los cuidar; é estabelecida lidade de se expressar e de agir e interagir dialeticamente.
uma relação concreta que permite gozar de si como que O desafio constitui-se na situação de possibilitar ao
de uma coisa que ao mesmo tempo necessita e pode usuário uma ampliação de sua capacidade de interferir
usufruir os cuidados oferecidos por outrem, possibili-
e negociar com a realidade de seu processo de adoeci-
tando na terapêutica - espaço social complexo com
mento, reconhecendo pontuais situações de dependên-
novas condições para o exercício do poder - a possibili-
dade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema cia em relação ao profissional de um determinado
de obrigações recíprocas, nem autoritário, nem assisten- saber, mas mesmo tempo, autorizando-se a interferir e
cialista. questionar as práticas aplicadas sobre o tratamento que
De acordo com Paiva(5) é preciso sublinhar que esse passará a interferir em maior ou menor grau em sua
maciço investimento sobre o eu, representa a possibili- vida.
dade de redefinição da relação consigo, não mais assen- É importante sinalizar que, Foucault e imaginamos
tada numa estética da vida em conformidade com o que nenhum dos autores citados anteriormente, nunca
status, ou com o cientificamente aceito, estamos falando sonhou com um happy end para a humanidade a partir da
sobre a possibilidade de construção de novas figuras de clínica ampliada, do método da roda ou da ética de si.
subjetividade, ou em termos foucaultianos, inaugurando "Não há garantias para este trabalho de autoestilização,
uma nova estilística da existência.
para esse eu em estado de mobilização subjetiva perma-
Quando analisado superficialmente, este método
nente"(p. 219)(5).
pode sugerir uma forma individualista de se causar
transformações individuais, um método centrado no Porém, repensar nossa prática de trabalho, descons-
indivíduo olhando apenas para si mesmo. No entanto, truir o universalmente aceito, reinventar novas verdades
podemos entender esta estratégia como um potente sem aprisionar-se a elas, reescrever-se no cotidiano,
instrumento de transformação social se, acrescentar à enfim,no dizer de Foucault, experimentar-se outro, é o
importância de analisar-se reconhecendo necessidades e único trabalho que vale a pena.

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REFERÊNCIAS
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Hucitec; 2005.
2. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005.
3. Basaglia F. A Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. Traduzido por: Sônia Soianesi e Maria
Celeste Marcondes. São Paulo: Brasil Debates; 1979.
4. Foucault MA. Microfísica do poder. 19a ed. Traduzido por: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal; 2004.
5. Paiva ACS. Sujeito e laço social: a produção de subjetividade na genealogia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
Fortaleza CE: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado; 2000.
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maio/ago.; 25 (58): 98-111.
8. Ortega F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. 2a ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2000.
9. Onoko CR, Rodrigues A et al. O inter "esse" dos programas de aprimoramento: comunicação pessoal . Campinas: Unicamp
FCM; 2003. [Curso de Aprimoramento em Saúde Mental].
10. Benevides R, Passos E. Clínica e biopolítica na experiência do contemporâneo.Rev Psicol Clín 2001; 13(1):89-100.
11. Foucault M.O que são as luzes? In: Ditos e escritos: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamentos.
Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000. v.2
12. Foucault M.O sujeito e o poder. In: Rabivow P, Dreyfus H.Uma trajetória filosófica - para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995.
13. Rolnik S. Uma insólita viagem à subjetividade: fronteiras com a ética e a cultura. In: Lins D, organizador. Cultura e subjetividade:
saberes nômades. Campinas: Papirus; 1997.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

1. Foucault M. A história da loucura. 7a ed. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva; 2004.
2. Foucault M. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 29a ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes; 2004.
3. Ferigato S.A genealogia de Foucault e suas contribuições para a crítica da sociedade e para as políticas de atenção à saúde
mental. Phrónesis - Revista de Ética. 2004 jul./dez.; 6(2): 43-55.

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Introdução às questões bioéticas


suscitadas pela nanotecnologia
Introduction to nanotechnology-provoked bioethical questions
Introducción a las cuestiones bioéticas suscitadas por la nanotecnología

João Carlos Silva de Lêdo*


William Saad Hossne**
Margareth Zabeu Pedroso***

RESUMO: O presente artigo objetivou apresentar uma introdução às questões bioéticas suscitadas pela nanotecnologia a partir do estudo teórico
da bibliografia existente. Tal estudo buscou conhecer os benefícios e os riscos que essa tecnologia apresenta no presente e suas perspectivas no
futuro.O trabalho desenvolveu-se ao analisar a partir da bibliografia técnico-científica disponível, os riscos e questões bioéticas suscitadas pela
nanotecnologia.Os dados obtidos evidenciam ampla gama de questões bioéticas que a revolução da nanotecnologia suscita, em particular as questões
advindas da nanobiotecnologia.Benefícios já se fizeram sentir, mas os riscos começam a surgir e serem identificados. Tanto riscos como benefícios
ocorrem em vários campos das atividades: econômicas, sociais, biológica, sanitários...Fica cada vez mais evidente a importância do pluralismo,
característica essencial da Bioética, para a devida avaliação dos avanços da nanotecnologia, sobretudo da nanobiotecnologia. Se de um lado o avanço
científico e tecnológico é louvável e desigual sob múltiplos aspectos, é urgente e absolutamente necessário o levantamento das questões éticas e,
sobretudo bioéticas que possam surgir a partir dos avanços tecnológicos.Ao lado da revolução científica deve ocorrer a "evolução da ética", isto é,
se o avanço é inexorável e desejável sob vários ângulos, deve ser balizado pela reflexão bioética a partir da conscientização da problemática segui-
da da devida reflexão crítica, no sentido pluralístico o mais amplo possível.
PALAVRAS-CHAVE: Nanotecnologia. Nanobiotecnologia. Bioética.

ABSTRACT: The present article aims to present an introduction to nanotechnology-provoked bioethical questions from the theoretical study of the
existing bibliography. Such study searched to identify the benefits and risks that this technology presents currently and its perspectives in the future.
The work was developed by analyzing what the available technical-scientific bibliography present about the risks and bioethical questions raised by
nanotechnology. Collected data show an ample gamma of bioethical questions that the revolution of nanotechnology brings to the fore, in
particular questions linked nanobiotechnology. There have been undeniably benefits but risks begin to appear and to be identified. Both risks and
benefits occur in several fields of activity: economic, social, biological, sanitary... It is ever more evident the importance of pluralism, an essential
characteristic of Bioethics, for the evaluation of advances in nanotechnology, over all of nanobiotechnology. If on the one hand scientific and
technological advances are praiseworthy and unequal under multiple aspects, it is urgent and absolutely necessary to survey ethical and mainly
bioethical questions that can be raised by technological advances. Scientific revolution must be paralleled by "the evolution of ethics", that is, if the
advances are inexorable and desirable under some perspectives, it must nevertheless be guided by the bioethical reflection from the awareness of
the problematic, the basis for a ulterior critical reflection, in the amplest pluralistic sense possible.
KEYWORDS: Nanotecnology. Nanobiotechnology. Bioethics.

RESUMEN: Este artículo pretende presentar una introducción a las cuestiones bioéticas suscitadas por la nanotecnología desde el estudio teórico
de la bibliografía existente. Tal estudio buscó identificar las ventajas y los riesgos que esta tecnología presenta actualmente y sus perspectivas en el
futuro. El trabajo fue desarrollado analizando lo que se levantó en la bibliografía técnico-científica disponible presente sobre los riesgos y las cues-
tiones bioéticas suscitadas por la nanotecnología. Los datos recogidos demuestran una gama amplia de cuestiones bioéticas que la revolución de la
nanotecnología trae a la delantera, en particular las cuestiones vinculadas a la nanobiotecnología. Existen innegables ventajas pero los riesgos
comienzan a aparecer y a ser identificados. Los riesgos y las ventajas ocurren en varios campos de actividad: económico, social, biológico, sanitario.
Es siempre más evidente la importancia del pluralismo, una característica esencial de la bioética, para la evaluación de avances en nanotecnología,
sobre todo en nanobiotecnología. Si los avances científicos y tecnológicos son de una parte loables y desiguales, es urgente y absolutamente nece-
sario examinar cuestiones éticas y principalmente bioéticas que puedan plantear los avances tecnológicos. La revolución científica debe ter el
paralelo de "la evolución de la ética", es decir, si los avances son inexorables y deseables desde algunas perspectivas, él se debe sin embargo dirigir
por la reflexión bioética desde el conocimiento de la problemática, la base para una reflexión crítica ulterior, en el sentido pluralista más amplio
posible.
PALABRAS LLAVE: Nanotecnología. Nanobiotecnología. Bioética.

* Engenheiro. Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo.


** Médico. Professor emérito da UNESP, Botucatu. Coordenador do Programa de Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo.
*** Bióloga. Doutora em Ciências (Micro-imuno e Ultra estrutura) pela Universidade Federal de São Paulo. Docente do Programa de Mestrado em
Bioética do Centro Universitário São Camilo.
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INTRODUÇÃO seja por volta de 5 bilhões de euros , conforme The Royal


Society & The Royal Academy of Engineering(4) sendo que 2
Os termos nanociências e nanotecnologias se bilhões de euros vêm da iniciativa privada.
referem, respectivamente, ao estudo e às aplicações Segundo a European Comission(5) os investimentos
tecnológicas de objetos e dispositivos que tenham ao públicos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em
menos uma de suas dimensões físicas menor que, ou da nanociência e nanotecnologia foram: Europa: 1 bilhão de
ordem de, algumas dezenas de nanômetros. Nano (do euros, sendo dois terços em programas nacionais e
grego: "anão") é um prefixo usado nas ciências para regionais; Japão: 400 milhões de dólares em 2001,
designar uma parte em um bilhão e, assim, um crescendo para 800 milhões em 2003, esperando-se um
nanômetro (1nm) corresponde a um bilionésimo de um incremento de 20% em 2004; EUA: 750 milhões de
metro. Somente para se ter uma idéia de tamanho, um fio dólares em 2003 e 3,7 bilhões de dólares de 2005 a 2008
de cabelo tem cerca de 100x10-6m por 0,1mm de pela "Lei do Século XXI da Pesquisa e Desenvolvimento
diâmetro, ou seja, é 100.000 vezes maior que um em Nanotecnologia" (excluindo substanciais despesas
nanômetro. "Nano", portanto, é uma medida e não um relacionadas com defesa); Reino Unido: 45 milhões de
objeto. libras por ano de 2003 a 2009 investidos pelo governo
Diferentemente de "biotecnologia", cuja palavra britânico na iniciativa em nanotecnologia em 2003.
explica que a vida (bios) é manipulada pelo engenho Outros países menores, que tradicionalmente mais
humano (teknê), nanotecnologia indica somente o investem em pesquisa e desenvolvimento, como Coréia
tamanho envolvido(1). do Sul, Taiwan, Austrália, Israel e Canadá também incre-
O objetivo da nanotecnologia é o de criar novos mentaram substancialmente seus investimentos em nan-
materiais, desenvolver novos produtos e processos
otecnologia(6).
fundamentados na crescente capacidade da tecnologia
A National Science Foundation (NSF) estimava que em
moderna de ver e manipular átomos e moléculas.(2)
um período de 10 a 15 anos haveria um mercado de cerca
Conforme assinala o documento oficial
de US$ 1 trilhão para produtos e processos fundamenta-
"Desenvolvimento da Nanociência e da Nanotecnologia,
dos na nanotecnologia e, segundo a mesma organização,
Proposta do Grupo de Trabalho criado pela Portaria do
em 2002 esse mercado já teria atingido a marca de U$ 200
Ministério de Ciência e Tecnologia MCT n. 252(3), como
bilhões(6).
subsídio ao Programa de Desenvolvimento da
Segundo a National Science Foundation(6) a estimativa de
Nanociência e da Nanotecnologia do PPA 2004-2007":
"A nanotecnologia é hoje um dos principais focos mercados para produtos e processos fundamentados na
das atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação nanotecnologia, e divididos entre os grandes setores da
em todos os países industrializados. Os investimentos na economia, em ordem decrescente de sua importância
área têm sido crescentes e atingiram, mundialmente, um econômica, seria: Indústria de Materiais: U$ 340 bilhões;
valor de 5 bilhões de dólares em 2002. Já há alguns Indústria Eletrônica: U$ 300 bilhões; Indústria
produtos industriais nanotecnológicos e o seu número Farmacêutica: U$ 180 bilhões; Indústria química: U$ 100
aumenta rapidamente. Estima-se que, de 2010 a 2015, o bilhões; Indústria Aeroespacial: U$ 70 bilhões; e Indústria
mercado mundial para materiais, produtos e processos Instrumental: U$ 22 bilhões.
industriais baseados em nanotecnologia será de 1 trilhão O Brasil tem em seu Programa de Desenvolvimento
de dólares" da Nanociência e da Nanotecnologia, incluído no Plano
Pluri Anual - PPA - de 2004-2007, uma série de investi-
Importância econômica mentos previstos ao lado de dotação orçamentária de
porte bastante importante. Conforme descrito por
A nanociência e a nanotecnologia estão atraindo Nazareno(7), o orçamento total previsto até 2007 está
rapidamente crescentes investimentos de governos e assim distribuído: a) implantação de novos laboratórios(6),
empresas privadas em várias partes do mundo; estima-se reformas de existentes(37) e implantação de redes (R$ 284
que o total de investimento global em nanotecnologia milhões); b) apoio às redes e laboratórios (R$ 30 milhões);

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Introdução às questões bioéticas suscitadas pela nanotecnologia

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c) gestão do programa (R$ 1.4 milhões); d) P&D (R$ 86 os instrumentos da nanotecnologia: a microscopia
milhões). eletrônica de alta resolução, as microscopias de varre-
De acordo com Silva(6), são previstos, em termos de dura (tunelamento e força atômica) e as fontes de luz
mercados, que o Brasil tem possibilidades realistas de síncotron.
competir internacionalmente na área de materiais, porém A nanotecnologia, por manipular átomos, poderia
tem poucas possibilidades na área de eletrônica, apesar de ser considerada, em princípio, o limite final para o proje-
existirem nichos a serem explorados como, por exemplo, to e a criação de novos materiais. Daí se origina o
sensores. Outros dois setores importantes são os de pro- interesse industrial pela nanotecnologia, pois ela não
dutos farmacêuticos e da indústria química, setores nos seria a mais recente revolução em termos de materiais,
quais o Brasil tem interesses estratégicos, seja pelas mas, sim, a última, pois o átomo seria o limite da matéria,
dimensões e demandas de seu mercado interno (indústria a princípio, porque já existe na literatura quem afirme
farmacêutica), seja pela existência de grandes grupos que o homem possa manipular as partículas formadoras
empresariais nacionais (indústria química). dos átomos e, assim, chegar a formar novos átomos(1).
Na área aeroespacial, existe a limitação de contarmos Quando se trata de nanotecnologia é sempre difícil
com apenas uma empresa na área, de porte médio, se falar sobre limites. Apesar da nanotecnologia apresentar-
considerarmos a referência dos padrões internacionais. se, na maioria das vezes, como uma nova revolução, é
O agronegócio é um setor que deverá ser de grande importante que seja dito que já existem estruturas
relevância para o Brasil, porém não é citado nos estudos nanotecnológicas em nossa vida cotidiana, principal-
da National Science Foundation (NSF). mente quando nos referimos aos componentes
O potencial dos produtos e processos nanotec- microeletrônicos, tais como os microprocessadores dos
nológicos e nanobiotecnológicos para o setor de computadores ou dos lasers semicondutores de nossos
agronegócio do Brasil é vasto e merece atenção, CD e DVD "players".
abrangendo desde fertilizantes e defensivos agrícolas As estruturas nanotecnológicas estão cada vez
menos agressivos ao meio ambiente até embalagens mais sendo desenvolvidas e modificadas pela redução de
"inteligentes" que informam ao consumidor sobre o esta- tamanho quer pela formação de estruturas supramolecu-
do do produto adquirido(6). lares bem definidas, cada vez mais complexas e capazes
Os dados aqui sumarizados traduzem a importância de desempenhar funções também complexas.
econômica e a perspectiva crescente da pesquisa em Recentemente, os investimentos em pesquisa, asso-
nanotecnologia, o que faz prever a possibilidade do ciados ao desenvolvimento de novos conceitos que são
surgimento de questões bioéticas daí decorrentes, sobre- agregados à nanotecnologia fazem surgir uma nova fase
tudo quanto a benefícios e eventuais riscos, ainda que de do conhecimento e da tecnologia do homem sobre a
ponto de vista sócio-economico. matéria.
E porque na nanotecnologia o tamanho faz tanta
Importância tecnológica diferença? Ocorre que a matéria, na forma que conhece-
mos, tem propriedades físicas e químicas completamente
O final da década de 50 do século XX (1959) tornou- diferentes das propriedades do mesmo material quando
se o período simbólico do inicio da nanotecnologia, analisada em dimensões nanométricas. Um micrômetro
quando o físico Richard Feynman (prêmio Nobel, 1965) (µm) é mil vezes maior que um nanômetro (nm), mas a
proferiu uma palestra no Instituto de Tecnologia da diferença que ocorre na matéria é muito maior que
Califórnia intitulada "Há muito espaço lá embaixo" na qual simplesmente tamanho. Abaixo de 50nm entra em
apresentou a possibilidade de projetar e criar novos mate- ação o que os cientistas chamam de efeito do tamanho
riais com propriedades físicas e químicas previamente quântico: a mecânica quântica assume as propriedades
determinadas mediante a manipulação de átomos. físicas da matéria, prevalecendo sobre a mecânica clássi-
Entretanto, o desenvolvimento de instrumentais que ca que domina o macro e o micro-mundo(1). Devido à
permitissem esse tipo de manipulação só realmente mudança de tamanho (escala nanométrica) e sem mudança
aconteceu no fim dos anos 70. Destacando-se entre eles na substância, características fundamentais da matéria,

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tais como condutividade elétrica, cor, dureza, ponto de A importância tecnológica da nanotecnologia pode
fusão, podem sofrer mudanças totais, por exemplo: ser fortemente demonstrada por uma de suas especiali-
- O ouro normalmente é amarelo, o "nano" ouro é dades - nanobiotecnologia - que seria um passo a frente
vermelho; em relação à biotecnologia. Esta já tinha rompido a bar-
- Materiais frágeis e maleáveis em escala macrométri- reira das espécies e consolidado a chamada "indústria da
ca podem ser mais duros que o aço quando em escala vida" dando inicio ao seu comércio(8).
nanométrica, por exemplo, o carbonato de cálcio (giz); A nanobiotecnologia tem como meta avançar, com-
- Um grama de um catalisador feito de partículas de binando as capacidades não biológicas da matéria
10nm de diâmetro é 100 vezes mais reativo que o mesmo inorgânica (como condutividade elétrica e força), com as
material em partículas de 1µm de diâmetro; capacidades do biomaterial (auto-reprodução, auto-
- O carbono puro em escala nanométrica pode ser reparação, adaptabilidade). Busca-se portanto, desenhar e
condutor ou semi-condutor de eletricidade. O carbono fundir materiais vivos e não vivos, materializados num
puro em escala macrométrica, por exemplo, o diamante, organismo híbrido, previsível, controlável e que faça o
não tem tais características(1). trabalho das máquinas, sendo comercialmente viável.
Conforme descrito por Silva(6), a nanotecnologia pode É preciso ressaltar que a nanotecnologia faz parte do
ter uma outra dimensão, bastante intrigante. grupo de tecnologias que se encontra em processo de
O paleontólogo Gold citado em Silva (2003) enumera 3 convergência de diversos ramos da ciência e da tecnolo-
grandes revoluções conceituais que mudaram a maneira da gia. Estas são a Tecnologia da Informação (Bits), a
humanidade perceber o universo e o lugar da espécie Nanotecnologia (Átomos), a Neurociência Cognitiva
humana a saber: (Neurônios) e a Biotecnologia (Genes).
- A revolução copernicana: a remoção da Terra como A convergência demonstrada entre estas tecnologias,
centro do universo tocou no cerne de um conceito religioso evoca suas sinergias, seus potenciais de inovações e
e social da idade média;em conseqüência a centralidade da transformações. Quando as consideramos todas juntas,
criação no Universo e uma hierarquia de uma sociedade estamos nos referindo à questão de estender o controle
estruturada em castas, cujo poder seria recebido diretamente humano a todos os objetos, à vida e ao conhecimento.
de Deus; Isto traz importantes impactos sociais, políticos e ambi-
- A revolução darwiniana: colocou em polêmica a cria- entais para a sociedade em que vivemos(8).
ção bíblica, tirando a espécie humana do centro da criação. Ainda que de forma sumarizada, as referências de
O homem não é mais um ser criado "a imagem e natureza tecnológica, aqui apresentadas parecem-nos
semelhança de Deus", mas produto de uma evolução genéti- suficientemente sugestivas da ampla gama de questões
ca contingente; bioéticas que podem surgir, particularmente as rela-
- A revolução freudiana: retirou do homem a última cionadas à nanobiotecnologia.
muralha que o separa do resto da criação - a ilusão da
racionalidade - seríamos movidos por instintos, cobertos Implicações filosóficas
por um "verniz" de razão.
Assim, segundo Gold citado em Silva(6), a humanidade Boa parte das tecnologias, e no caso, a nanotecnolo-
viu serem retirados seus privilégios sem nenhuma compen- gia, prometem muito. Prometem uma vida melhor em
sação especial, a não ser novo o conhecimento adquirido. um determinado aspecto, uma evolução em outro, uma
O impacto que a nanotecnologia poderá ter sobre a mudança de paradigma; prometem mudanças geralmente
visão que a sociedade do futuro terá de nosso lugar no enfatizadas como positivas.
universo deverá ser enorme já que tudo o que conhecemos O fato é que, quando as promessas oferecidas pela
em termos materiais, de um grão de areia a um ser humano, tecnologia se concretizam, em geral, o que vemos poste-
seria feito da mesma matéria prima. Nos dias atuais, é sabido riormente é que os objetivos propostos foram alcança-
que a matéria viva ou não-viva é originada na nano-escala, dos e muitas vezes até superados, porém, não raramente,
tornando cada vez mais singela a diferença entre o que é são acompanhados também de aspectos negativos.
natural e o que é sintético. Alguns destes aspectos negativos poderiam ser pre-

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vistos e providências para prevení-los poderiam ser único a desafiar o chefe do Panteão revelando as fraque-
executadas, mas, em geral, de muitos deles só se toma zas e precariedades dos deuses. Para castigá-lo, Zeus
conhecimento após a tecnologia ter alcançado um ordenou que Hefáistos, deus do fogo e do metal, o acor-
estágio de maturidade. rentasse em um rochedo no Cáucaso, onde um abutre
Mais que isso, tais aspectos negativos poderiam estar vinha dilacerar-lhe o fígado durante a noite, que, no dia
mais ligados a uma questão inerente da natureza humana, seguinte, se regenerava.
na qual para cada evolução alcançada haverá sempre uma Para os humanos, os deuses criaram uma jovem
conseqüência negativa que deveria ter sido pensada atraente dotada por Atenas, deusa da sabedoria, com
antes. Mas, na esperança de alcançar os grandes benefí- todos os talentos e graça para seduzir os humanos:
cios de determinada tecnologia, simplesmente não são Pandora. Zeus deu a Pandora uma caixa que deveria ficar
abordadas ou são negligenciadas, pois os benefícios fechada, e ordenou que a levasse à Terra onde foi acolhi-
seriam consideradas maiores que os malefícios. da por Epimeteu, que a desposou. Movida pela curiosi-
Esta saga da busca de uma evolução positiva, acom- dade, abriu a caixa, e todos os males que ali estavam
panhada de conseqüências negativas, nos remete ao Mito encerrados escaparam e se espalharam pela Terra. Assim,
de Prometeu(9) que, em sua audácia, trouxe dos deuses o os humanos conheceram a fadiga, o trabalho árduo
fogo que permitiu à humanidade a evolução, mas que em como necessidade, o sofrimento, a doença e a morte(10).
sua inconseqüência trouxe a dor e a morte a essa mesma Pandora lança no mundo uma ambigüidade, e na
humanidade que ele, Prometeu, tentava ajudar. A saga de vida dos humanos o contraste, a mistura: o bem pode
Prometeu pode, emblematicamente, ilustrar as impli- trazer consigo, em contraponto, o mal e a luz, a sombra.
cações filosóficas das tecnociências em geral, aplicável "Zeus quis que o bem e o mal nascidos do conhecimen-
portanto à nanotecnologia. to fossem não somente misturados, mas indissoluvel-
mente ligados, inseparáveis"(11).
A saga de prometeu Deveremos forçosamente vivenciar a revolução
nanotecnológica como uma saga prometeica? Não
De acordo com Zuben(10), a mitologia grega nos seria a busca do saber enquanto forma de sabedoria
fornece uma figura (Prometeu) que serve de emblema (philosophia) aliada à bioética, uma fonte e um instru-
para a técnica, para seu sentido e impacto sobre a vida mento para o equilíbrio?
dos humanos e seus desafios no decorrer da história.
Prometeu era neto de Urano e Gaia, filho de Jápeto Riscos e questões éticas
e de Clímene, irmão de Atlas e de Epitemeu, descen-
dente dos titãs que estavam em batalha constante contra Segundo o Action Group on Erosion, Technology and
Zeus. Enquanto os Gigantes contavam com sua força Concentration(1), enquanto a sociedade civil e os governos
bruta na guerra contra o rei do Olimpo, Prometeu apre- focavam a atenção nas modificações genéticas e nas
sentava uma estratégia fundada na astúcia. Prometeu, questões da biotecnologia (em particular o uso das cé-
herói civilizador por excelência, protetor da humanidade lulas tronco), uma impressionante série de empresas e
contra a ira de Zeus, rouba o fogo do céu e o entrega aos centros de pesquisa estavam desenvolvendo uma
humanos. Para estes, essa era a melhor proteção e fonte revolução científica que pode modificar a matéria e
de inúmeras atividades; só não suspeitavam que no seio transformar cada aspecto do trabalho e da vida neste
de tudo isso se encontrava o germe de desagradáveis nosso planeta. Os primeiros impactos, desta revolução
surpresas e armadilhas. Com o fogo surgiu a cultura, prevê-se, aparecerão primeiramente nos países do Norte,
permitindo aos humanos compensar as insuficiências da mas a nanotecnologia, como anteriormente ocorrido
natureza. com a biotecnologia, terá rapidamente conseqüências em
Agindo assim, Prometeu rebelou-se abertamente termos econômicos e ambientais, também nos países em
contra o mundo dos Imortais ao qual pertencia, e tomou desenvolvimento em escala global.
partido da Terra e dos humanos que nela viviam sob o Poucos cientistas e um número ainda menor de
olhar invejoso e de desprezo dos deuses. Prometeu é o governos reconheciam em 2003 que a nanotecnologia

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ARTIGO ORIGINAL/ ORIGINAL REPORT/ ARTÍCULO

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tanto apresentava tremendas oportunidades como sérios Desenvolvimento (P&D) e a avaliação de projetos e seu
riscos sociais e ambientais(12). monitoramento. Isto exigiria a promoção e a explicitação
O ETC já afirmava que a nanotecnologia poderia de diálogo sobre a escala de valores e as diferentes
permitir que a indústria monopolizasse as plataformas de opções sociais. Deveria ser exigido, particularmente nas
manufatura de nível atômico que suportam todas as áreas de saúde, segurança do trabalho, privacidade e
matérias animadas ou inanimadas. A produção de mate- preservação do meio ambiente, um acordo sobre os
riais e novas formas de carbono com características não referenciais éticos, o respeito à dignidade humana,
estudadas constituem, no entanto, a maior preocupação. autonomia, a obrigação de não ferir e fazer o bem (riscos
Assim, a produção em massa de materiais totalmente versus benefícios).
novos e criação das nano-máquinas auto-replicantes
indicam a probabilidade de riscos incalculáveis e até
CONCLUSÃO
imprevisíveis. A nanotecnologia poderia também repre-
sentar a criação e a combinação de novos elementos para
As considerações até aqui feitas, com base nos dados
a amplificação das armas de destruição em massa.
da literatura evidenciam claramente que a nanotecnolo-
O impacto das tecnologias convergentes a nano-
gia em geral, e a nanobiotecnologia, em especial, têm
escala é desconhecido e foi subestimado no fórum
fortes implicações sociais e bioéticas.
inter-governamental(1).
Algumas questões bioéticas já estão sendo postas,
Devido ao fato dessas tecnologias serem aplicadas
outras se insinuam e outras certamente surgirão.
nos mais diversos setores da ciência e da tecnologia,
Percebemos ser oportuna uma reflexão sobre essa
nenhuma agência governamental de qualquer país estaria
em 2003 mantendo algum controle sobre as pesquisas. problemática à luz da bioética, envolvendo diversos
segmentos da sociedade. Essa reflexão pressupõe um
Já nesta ocasião, Jacob(11) assinalava que, os governos
e organizações da sociedade civil deveriam estabelecer diálogo entre todas as partes envolvidas, sob enfoque
uma Convenção Internacional para a avaliação de novas pluralista, multi e transdisciplinar.
tecnologias, incluindo mecanismos para monitorar seu Como já apresentado, se de um lado o avanço cientí-
desenvolvimento. fico e tecnológico é louvável e desigual sob múltiplos
Os riscos inerentes à introdução de novas tecnolo- aspectos, é urgente e absolutamente necessário o levan-
gias exigem um diálogo constante com a sociedade civil, tamento das questões éticas e, sobretudo bioéticas que
que é quem sofre os riscos, mas nem sempre recebem os possam surgir a partir dos avanços tecnológicos.
benefícios resultantes da nanotecnologia. Também a Ao lado da revolução científica deve ocorrer a
indústria, área acadêmica e o governo deveriam ouvir o "evolução da ética", isto é, se o avanço é inexorável e
público, num sistema de comunicação em duas vias. desejável sob vários ângulos, deve ser balizado
Entre outros problemas que deveria ter maior pela reflexão bioética a partir da conscientização da
envolvimento da sociedade nesta área destacam-se as problemática seguida da devida reflexão crítica, no senti-
decisões sobre alocação de recursos para Pesquisa e do pluralístico o mais amplo possível.

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Introdução às questões bioéticas suscitadas pela nanotecnologia

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REFERÊNCIAS
1. ETC Group - Action Group on Erosion, Technology and Concentration. The Big Down: From Genomes to Atoms; 2003. p.05-16
2. Silva CG. O que é nanotecnologia. 2002; 10:1. Available from: URL: http://www.comciencia.br/reportagens/nanotecnolo-
gia/nano10.htm
3. Brasil. Ministério da Ciência e Tecnologia.Portaria MCT n.252 . Estabelece subsídio ao Programa de Desenvolvimento da
Nanociência e da Nanotecnologia do PPA 2004/2007.Brasília:Ministério da Ciência e Tecnologia; ano?
4. The Royal Society & The Royal Academy of Engineering. Nanocience and Nanotechnologies: Opportunities and Uncertainties.
July 2004.
5. European Comission. Towards a European Strategy for Nanotechnology. 2004. Available from: URL:
http://www.cordis.lu/nanotechnology/actionplan.htm
6. Silva CG. Uma Introdução à Nanotecnologia. Cadernos de Estudos Avançados. 2003; 1:14.
7. Nazareno C. Nanotecnologia. Consultoria Legislativa, Câmara dos Deputados 2004; 6:6. Available from: URL:
http://www2.camara.gov.br/publicacoes/estnottec/tema4
8. Martins PR. Nanotecnologia, Sociedade e meio ambiente no Brasil: Perspectivas e Desafios. 2003; 2. Available from: URL:
http://www.anppas.org.br/encontro/segundo/papers/GT/GT09/paulo_martins.pdf
9. Ésquilo. Prometeu Acorrentado. Editora Martin Claret; 2004. p.25-55.
10. Zuben NA. A Saga da Prometeu: Ambivalência das Tecnociências e Implicações Éticas. In: Bioética e Tecnociências:
a saga de Prometeu e a esperança paradoxal. Bauru: Edusc; 2006. p.31-59
11. Jacob F. O rato, a mosca e o homem. São Paulo: Companhia das Letras; 1998.p100.
12. ETC Group - A invasão invisível do campo: o impacto das nanotecnologias na alimentação e na agricultura, 2004.

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Bioética e profissionais de saúde:


algumas reflexões
Bioethics and health professionals: some reflections
Bioética y profesionales de salud: algunas reflexiones
Angela Cristina Pontes*
Joelma Ana Espíndula**
Elizabeth R. Martins doValle***
Manoel dos Santos****

RESUMO: O objetivo do estudo é conhecer e refletir sobre o que está sendo publicado na literatura científica sobre a questão da morte e o morrer
em suas nuances bioéticas, bem como o modo como os profissionais de saúde estão enfrentando e discutindo tais aspectos. Trata-se de um estudo
qualitativo-descritivo, através do levantamento bibliográfico. Faz-se indispensável ao profissional de saúde superar as dificuldades inerentes a uma
relação médico/paciente baseada "tentação tecnológica", reunir os fragmentos e compor novamente o todo desse indivíduo, muitas vezes, tão vio-
lentado e, desse modo, estabelecer um compromisso com a vida, entendida como o bem maior e digna de respeito. Ou ainda, o que é mais perigoso,
um profissional autômato, adotando uma postura mecânica, dissociada de seus aspectos humanos mais intrínsecos. Nessa trajetória empreendida a
algumas décadas pelo binômio vida/morte, percebe-se que o cuidar exige, essencialmente, compartilhar com seu paciente experiências e vivências
que culminem na ampliação do foco de atenção do cuidador, sem perder de vista a compreensão da pessoa que adoece em sua singularidade e
dignidade. A dificuldade na comunicação médico-paciente, o temor dos sentimentos, o isolamento das emoções (neutralidade) e a dinâmica de
onipotência e idealização (identificação médica com a imagem de plenitude), são alguns dos fatores que assombram a assistência à saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Profissionais de saúde. Bioética. Assistência à saúde.

ABSTRACT: The objective of the present study was to learn and reflect about what is being published in the scientific literature regarding the ques-
tion of death or dying in its bioethical nuances, as well as about the way health professionals face and discuss these aspects. This is a qualitative-
descriptive study based on a bibliographic survey. It is indispensable for the health professional to overcome the difficulties inherent in a
doctor/patient relationship based on "technological temptation", to reunite the fragments and recompose the wholeness of the individual, often so
violently aggressed, thus establishing a pact with life, understood as the greatest good and worthy of respect. What is noted in health practice is a
professional immersed in this ample context who, because of this, is paralyzed, with no condition to reflect and to program a sustained action in
the presence of the bioethical dilemmas imposed on his/her daily practice. In this trajectory followed a few decades ago by the life/death binomi-
al, it can be perceived that caregiving essentially requires sharing experiences with the patients that culminate in the expansion of the focus of atten-
tion of the caregiver, without losing sight of the understanding of the person who falls ill in his singularity. The difficulty in doctor-patient
communication, the fear of one's feelings, the isolation (neutrality) of one's emotions and the dynamics of omnipotency and idealization (medical
identification with the image of plenitude) are some of the factors that negatively affect health care.
KEYWORDS: Health professionals. Bioethics. Health care.

RESUMEN: El objetivo del actual estudio fue aprender y reflejar sobre qué se está publicando en la literatura científica respecto al tema de la muerte
o el morir mirando sus aspectos bioéticos, así bien sobre la manera cómo los profesionales de salud hacen frente y discuten a estos aspectos. Es un
estudio cualitativo-descriptivo basado en un examen bibliográfico. Es imprescindible que el profesional de salud supere las dificultades inherentes a
una relación doctor/paciente basada en la "tentación tecnológica", que junte los fragmentos y recomponga la integridad del individuo, a menudo
agredido muy violentamente, estableciendo así un pacto con la vida, entendida como el bien más grande y digno de respecto. Lo qué se observa en
la práctica de la salud es un profesional sumergido en este contexto amplio que, debido a esto, está paralizado, sin condiciones para reflejar y para
planear una acción sostenida en la presencia de los dilemas bioéticos impuestos ante su práctica diaria. En esta trayectoria comenzada desde algunas
décadas por el binomio vida/muerte, uno puede percibir que el cuidado esencialmente requiere compartir experiencias con los pacientes que cul-
minan en la extensión del foco de la atención del cuidador, sin perder de vista la comprensión de la persona enferma en su singularidad. La
dificultad en la comunicación doctor-paciente, el miedo de sus sensaciones, el aislamiento (neutralidad) de sus emociones y las dinámicas de la
omnipotencia e la idealización (identificación de los doctores con una imagen de plenitud) son algunos de los factores que afectan negativamente el
cuidado médico.
PALABRAS LLAVE: Profesionales de salud. Bioética. Cuidado médico.

* Doutoranda em Psicologia. Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
** Doutoranda em Enfermagem. Departamento de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP).
*** Professora Livre Docente do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP).
**** Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
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Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões

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INTRODUÇÃO cuidado e buscando encarar a morte como um processo


normal da vida humana. Além disso, propõe a oferta de
Atualmente, com o aumento da expectativa de vida e um sistema de apoio aos familiares dos pacientes, no
sobrevida dos indivíduos acometidos por doenças crôni- sentido de lidar com o adoecimento, o luto e suas perdas.
cas e/ou degenerativas, em várias regiões do mundo, a Trata-se de uma filosofia de cuidados que pode ser
partir do desenvolvimento da medicina e da tecnologia empregada em diferentes contextos (instituições de
nas três últimas décadas, a bioética tem sido muito discu- saúde ou na casa do paciente ou estilo hospice, por exem-
tida nas questões de humanização e bem-estar total nas plo), em busca de uma compreensão do indivíduo que
relações interpessoais e de cuidado. Doenças que antes adoece, em seus aspectos pessoais, sociais, afetivos e
eram tidas como brutalmente letais, hoje são passíveis de culturais, e do aprimoramento de sua qualidade de vida
(3,4,5,6).
tratamentos e intervenções que prolongam, de maneira
significativa, a vida dos pacientes, suscitando a discussão Diante, pois, dessa concepção, que procura tomar o
e reflexão sobre a legitimidade e, até mesmo, sobre o ser humano em sua totalidade frente às questões da
custo desse prolongamento da vida. Faz-se necessário morte e do morrer, o campo da saúde, com seus diversos
aos profissionais de saúde uma maior compreensão profissionais, viu-se envolvido em inesperadas e com-
plexas decisões morais e éticas.
sobre os cuidados com a vida e as dimensões da morte,
Questões limites sobre vida e morte, como "Até
o morrer, a dor e o sofrimento. Nas palavras de Pessini(1),
quando prolongar a vida?", ou "Qual o objetivo da
"[...]a questão do cuidado da vida humana no seu final
medicina: cuidar de índices fisiológicos ou de pessoas?",
tornou-se uma questão de primeira grandeza em
"E quando o tratamento causa mais sofrimento do que
nossa sociedade atual, principalmente na área da medici-
benefício?", se apresentam aos profissionais de saúde
na" (p.16).
(sobretudo ao médico), que percebem não encontrar
O cuidado com a dor e o sofrimento humano figura
respostas prontas, provenientes de sua formação
no grande desafio a ser trabalhado pela área da saúde e
acadêmica, pois se tratam de questões relacionadas com
um dos objetivos centrais da filosofia dos cuidados palia- a condição humana, sua finitude, incerteza e transito-
tivos. Em 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) riedade(7). Adentramos, pois, o campo da bioética.
definiu cuidado paliativo como: o cuidado ativo total dos Muitos outros problemas bioéticos podem ser levan-
pacientes cuja doença não responde mais ao tratamento tados, como a escolha do tratamento mais vantajoso para
curativo, buscando o controle da dor e de outros sin- o paciente que está diante de uma fase aguda de sua
tomas, bem como atenção aos problemas de ordem psi- doença, o momento e a forma de informar os familiares
cológica, social e espiritual. O objetivo do cuidado palia- sobre esta verdade e, ainda, a decisão quanto à prescrição
tivo é conseguir a melhor qualidade de vida possível para de sedativos ou opióides no alívio da dor.
os pacientes e suas famílias(2). Questões ainda não esclarecidas no âmbito da psi-
Mais recentemente, a mesma organização redefiniu o cologia e o direito não esclarecem completamente o
conceito, dando ênfase à prevenção do sofrimento, nos assunto, tornando-se, assim, necessário trilhar um cami-
seguintes termos: nho além do mérito existencial, ou seja, entrar em aspec-
"[...]cuidados paliativos é uma abordagem que aprimora a tos da filosofia e da antropologia, de modo a compreen-
qualidade de vida dos pacientes e famílias que enfrentam der a complexidade desse tema.
problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, Na busca de um olhar mais aprofundado, destaca-se
através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de aqui o modelo bioético personalista de Elio Sgreccia(8),
identificação precoce, avaliação correta e tratamento da cuja fundamentação é a pessoa humana na sua unidade,
dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e constituída de corpo e alma. Essa dimensão valoriza a
espiritual"(2). experiência elementar, que é o conhecimento da própria
Nesse sentido, o conceito de cuidados paliativos tem experiência. Visa a uma concepção integral do indivíduo
como essência aliviar os sintomas, a dor e o sofrimento e recusa propostas ideológicas, parciais e contingentes,
de pacientes fora de perspectivas terapêuticas, integran- na busca de promover a defesa de todo o bem da
do os aspectos psicológicos e espirituais envolvidos no pessoa(9).

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Um outro modelo de paradigma bioético difundi- Método


do nos comitês de Ética dos hospitais, nas discussões
dos profissionais e em muitos documentos da OMS, é Este estudo qualitativo-descritivo, foi realizado por
o paradigma principialista desenvolvido por Tom meio do levantamento bibliográfico manual de livros e
Beauchamp e James Childress(10), autores do livro publicações indexadas e pelo acesso ao banco de dados
Principles of biomedical ethics. Este paradigma propõe o LILACS (Literatura Latino Americana de Ciências de
que Pessini e Barchifontaine denominaram de Saúde) e Scielo, utilizando os descritores "bioética, cuida-
trindade bioética, ou seja, os princípios da beneficên- dos paliativos e assistência à saúde". A maioria das
cia (e como uma conseqüência a não-maleficência), referências nacionais citadas datam a partir de 2000, com
justiça e autonomia, a serem discutidos mais adi- exceção de alguns livros clássicos. Para inclusão no estu-
ante(11). do foram mencionados os seguintes critérios: meio de
Frente aos problemas cotidianos vividos no con- publicação: periódicos e livros; idioma de publicação:
texto hospitalar, faz-se necessária uma reflexão português; referências que enfocam como objeto de
embasada nesses princípios norteadores da ação, de estudo questões sobre a morte e o morrer no juízo
modo que não se percam os referenciais ontológico e (a)bioético para os profissionais da saúde; modalidade de
antropológico do ser humano, sob pena de transfor-
produção científica: trabalhos empíricos, artigos teóricos
má-los em princípios estéreis e confusos(8,9). Sabe-se
e de revisão.
que esta não é uma tarefa fácil, que exige, não apenas
De posse dos textos, foi realizada uma leitura geral, a
recursos técnicos, disponibilizados pela formação
fim de se obter um panorama das publicações científicas
acadêmica, mas, sobretudo, recursos humanos,
envolvendo os temas sobre a morte, o morrer, bioética e
intrínsecos ao próprio indivíduo (profissional de
profissionais de saúde. Após esse contato inicial, as
saúde), em sua relação com o outro em situação de
leituras foram direcionadas ao objetivo do trabalho e
profunda angústia (paciente). Angústia esta que,
embasadas em uma análise compreensiva dos dados.
invariavelmente, também é vivenciada pelo profis-
sional e que quando não elaborada acaba por con- As releituras se deram quantas vezes se fizeram
tribuir para a despersonalização do atendimento ao necessárias e visaram à detecção de temas relacionados à
paciente e sua família, gerando distanciamento, proposta do estudo(12,13). Desse trabalho emergiram
estresse e mais sofrimento para ambos da dupla rela- duas grandes temáticas, que serão desenvolvidas a seguir:
cional. bioética: conceitualização e principais discussões; e
Diante do exposto, na busca de uma maior com- profissionais de saúde: principais dilemas enfrentados.
preensão da realidade vivenciada pelos profissionais
de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, assis- BIOÉTICA: CONCEITUALIZAÇÃO E
tentes sociais etc.) no contexto da morte e morrer e PRINCIPAIS DISCUSSÕES
seus dilemas éticos, o presente artigo tem por objeti-
vo, em sua característica de estudo bibliográfico, O termo bioética foi apresentado pela primeira vez
conhecer e refletir sobre o que está sendo publicado pelo oncologista Potter, em 1971, em sua obra Bioethics -
na literatura científica sobre a questão da morte e do Bridge to the Future(7). É definida como "o ramo da ética
morrer em suas nuances bioéticas, bem como o modo que enfoca questões relativas à vida e à morte, propondo
como os profissionais de saúde estão enfrentando e discussões sobre alguns temas, entre os quais: prolonga-
discutindo tais aspectos. Para tanto, será tratado o mento da vida, morrer com dignidade, eutanásia e suicí-
conceito de bioética, seus paradigmas e principais dio assistido"(p.117). Iniciando-se com uma grande pre-
focos de discussão na atualidade, ou seja, as questões ocupação, dentro da teologia, com valores humanos, a
sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia. Em seguida bioética estendeu-se pela filosofia, adquiriu um caráter
o trabalho abordará a vivência do profissional de multidisciplinar (direito, antropologia, ciências sociais,
saúde dentro desse complexo contexto, seus dilemas e psicologia e outras). Nas ciências da saúde, especifica-
seus recursos para lidar com as situações limites entre mente, preocupou-se com as condutas médicas e a
vida e morte. relação médico-paciente. Em uma terceira fase, as dis-

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Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões

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cussões bioéticas centram-se na macropolítica da saúde, Segundo o modelo bioético personalista, na busca de
economia e na questão dos excluídos(7). decisões sábias diante do paciente em situação limite, é
Ainda destacando as colocações de Kovács(7), sob o necessário atenção a um método que direciona para a
referencial principialista, o desenvolvimento da bioética pessoa humana, em sua essência, natureza e verdade.
funda-se em um tripé, denominado de “trindade bioé- Basicamente são esses três os elementos que constituem
tica”, ou seja, nos princípios da autonomia, beneficência o indivíduo. Se formos capazes de aceitar que ele pode
e justiça. A autonomia refere-se ao direito do indivíduo ser formado por muitos componentes e reconhecermos
de autogovernar-se, isto é, exercer a função de protago- nesses sua complexidade, se tornaria possível respeitá-lo
nista em seu processo de saúde e doença. O princípio da em tudo o que ele representa.
beneficência diz respeito ao fazer o bem e evitar o sofri- Frente à questão ontológica do ser humano, é impor-
mento adicional. O princípio da justiça deve ser entendi- tantíssimo se ter claro o conceito de pessoa. Existem
do como eqüidade, reconhecendo que todas as pessoas diferentes definições, mas vamos nos ater à duas con-
devem ter suas necessidades atendidas, preservadas suas cepções essenciais.
diferenças e singularidades. A primeira, conceitualizada por Engelhardt Jr, 1998
Sobre a questão do respeito aos princípios bioéticos, apud Ramos(2003)(13), refere-se à pessoa como indivíduo
sobretudo com relação à beneficência e autonomia do consciente, racional, livre para escolher e possuidor de
paciente diante de sua própria vida, discute-se a eutanásia um sentido moral. O valor do ser humano advém, para o
como um tema complexo que tem sido alvo das atuais autor, de seus atos e de seus aspectos psicológicos e
reflexões na área. empíricos. Aqueles que não comparti-lham destas carac-
Assinada pela igreja católica, em 1980, a declaração terísticas psicológicas não seriam sujeitos, mas "vidas
sobre a eutanásia a descreve como "uma ação ou omis- humanas", tais como, a pessoa em estado vegetativa, o
são que, por sua natureza ou nas intenções, provoca a doente mental.
morte a fim de eliminar toda a dor. A eutanásia situa-se, A bioética personalista amplia essa visão ao afirmar
portanto, no nível das intenções e no nível dos métodos que o valor da pessoa provém da própria estrutura
empregados"(p. 406)(12). ontológica do ser humano. Nas palavras de Meilaener,
Em termos de caracterização, o ato da eutanásia 1997 apud Ramos(2003)(15):
pode ser ativo, passivo e de duplo efeito, sendo os dois Em décadas passadas, tornou-se comum definir a
últimos os mais aceitos na sociedade atual. O primeiro pessoalidade segundo determinadas capacidades. Para ser
(eutanásia ativa) é a ação que causa ou acelera a morte; o pessoa é preciso ter consciência, autoconsciência e ser
segundo (eutanásia passiva) consiste na retirada dos produtivo. [...] Nossa história pessoal começa com
procedimentos terapêuticos que prolongam a vida. dependência - primeiramente no ventre materno e depois
A eutanásia de duplo efeito consiste em uma ação de como recém-nascidos. Muitas vezes nossa vida termina
cuidados realizada que acaba conduzindo, como efeito também na dependência da velhice e na perda das capaci-
secundário, ao óbito. Um exemplo disso seria a analgesia dades que tínhamos. A condição de pessoa não é algo que
e a sedação, utilizadas em pacientes sem possibilidades possuímos em determinado ponto dessa história. [...] A
terapêuticas, que têm como objeto principal aliviar os dependência faz parte da história da vida das pessoas.
sintomas e promover a qualidade de vida, e não provocar Sgreccia(8) afirma que o ser humano é antes de tudo
a morte, embora esta possa ocorrer(7). um corpo espiritualizado, um espírito encarnado que vale
Em relação ao respeito pela pessoa doente, não se por aquilo que é e não somente pelas escolhas que faz.
pode privá-la de sua autonomia, em nome da beneficên- Cada indivíduo é singular e único e responsável pelos seus
cia de cunho "paternalista", que prioriza apenas a visão do atos.
médico e não consegue vislumbrar o desejo do paciente. Sgreccia(8) cita duas atitudes que impedem o homem
Isto pode acontecer até no momento final da vida. de dar sentido à morte. De um lado ela é negada e retira-
Há que se levar em conta autodeterminação do da da consciência, da cultura, da vida e rejeitada como
paciente e sua autonomia, desde que ele esteja consciente critério de verdade e avaliação da existência cotidiana; por
de suas decisões, sendo dever do médico assim atuar no outro lado, é apressada e imediatamente afastada, evitan-
benefício do enfermo(12). do a consciência de sua presença.

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Nesse contexto, a eutanásia é vista como um proces- não como uma doença a curar, mas sim como algo que
so que supervaloriza a independência do homem na faz parte da vida.
tomada de decisões, distanciando-se, assim, de Deus e, Diante, pois, das questões bioéticas envolvendo a
conseqüentemente, tornando banal o sofrimento vida e morte humana, no sentido mencionado anterior-
humano e rejeitando o simbolismo religioso da morte. mente, impõe-se o aspecto espiritual que, recentemente,
Na contramão dessa perspectiva, mas muito vincula- tem sido objeto de estudo por parte de alguns estu-
do à medicina moderna e seu paradigma, Pessini(14) diosos(18,19,20). Sabe-se que a fé proporciona conforto,
define o conceito de distanásia como o prolongamento paz, esperança e sentido, principalmente para pacientes
exagerado da agonia, sofrimento e morrer, no âmbito de fora de possibilidades terapêuticas. Para o Papa Pio XII,
um tratamento "inútil e fútil", baseado na "obstinação é reconhecido o valor salvífico do sofrimento humano,
terapêutica". No Brasil, a tradição médica tem a tendên- mas não há nenhum compromisso de deixar de utilizar
cia de validar a prática da distanásia, amparada pela lei. analgésico, quando preciso. Não há um culto à dor ou ao
Assim, o artigo 56 do Código de Ética Médica(16) dolorismo; pelo contrário, o alívio da dor é um bem.
autoriza a distanásia ao dizer "que é vedado ao médico: Sobre essa questão da espiritualidade no âmbito da
desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente morte e sofrimento, destaca-se o estudo realizado por
sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, Teixeira e Lefèvre(20), que, tendo como base entrevistas
salvo de iminente perigo de vida"(p. 62). com psicólogos, concluíram que a fé, diante de uma
Isso fica evidente, também, no artigo 57 do Código grave enfermidade, traz ao paciente maior força de von-
de Ética Medica Brasileiro(16), que fala da obrigação do tade para o enfrentamento da doença. Conclui-se pela
médico em "utilizar todos os meios disponíveis de dia- necessidade do profissional de saúde estar atento aos
gnóstico e tratamento a seu alcance em favor do sentimentos religiosos do paciente, ou seja, reconhecer
paciente[...]"(p. 63). sua dimensão espiritual, na medida em que esta lhe traz
Ocorre que muitos médicos ainda interpretam tais estímulo para o tratamento, qualquer que seja a natureza
prescrições legais baseados na concepção da medicina deste.
moderna (exclusivamente curativa), sentindo-se obriga- Percebe-se que a consideração das questões espiri-
dos a fazerem tudo pelo paciente e em qualquer circuns- tuais, como importante dimensão humana, consiste em
tância, até mesmo quando a morte é inevitável. uma profunda afirmação da vida, que ultrapassa o
Amparando tal atitude médica, soma-se o artigo 133 reducionismo biológico e nos remete a uma concepção
do Código Brasileiro, que prevê crime à omissão de humana, essencialmente biopsicossocial e espiritual.
socorro(12). Todavia, Breitbart(16) cita em seu artigo um Trata-se dos profissionais de saúde à exigência de
estudo próprio, no qual constatou que 17% de pacientes uma especial atenção à realidade da dor e do sofrimento
com câncer em estágio terminal têm um forte desejo de humano, evitando, assim, o desengano da obstinação
uma morte imediata. terapêutica. À medida que o objetivo das intervenções
Como o resultado dessas reflexões, Pessini(17) retoma em saúde passe a ser focado, não apenas no cuidado,
o conceito de ortotanásia, definido como: mas, sobretudo, no resgate da dignidade humana asso-
"[...] A arte de bem morrer, que rejeita toda forma de ciada ao cuidado, a saúde poderá se orgulhar de vislum-
mistanásia (morte infeliz, vida abreviada não apenas de brar a vida que há na morte.
algumas pessoas, mas de centenas de milhares por vio-
lência, exclusão e pobreza), sem cair nas ciladas da PROFISSIONAIS DE SAÚDE: PRINCIPAIS
eutanásia e muito menos da distanásia" (p. 28). DILEMAS ENFRENTADOS
Trata-se de um conceito novo que adquiriu visibili-
dade pública na Espanha através de alguns teólogos Os benefícios introduzidos pela tecnologia científica
moralistas e vem crescendo sua aceitação no meio da na área de saúde são indiscutíveis, pois o progresso tec-
saúde, também no Brasil. Assim, pautada na perspectiva nológico está sendo fundamental para a resolução de
de um compromisso com a promoção do bem-estar do problemas e para a manutenção da vida das pessoas.
doente crônico e terminal, a ortotanásia busca enfrentar Para Sgreccia(8), o aumento progressivo e acelerado
a realidade da existência com aceitação e encarar a morte das especialidades médicas, com o desenvolvimento da

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Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões

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ciência médica, comporta problemas não só de ordem pelo "paradigma da cura", cuja concepção afirma o foco
epistemológico-didática, mas, sobretudo, ética: o das intervenções na doença e não no indivíduo que
desvanecimento da visão global, da concepção holística e adoece; sustenta uma idolatria da vida física e busca
da história pessoal do paciente, mais precisamente, a retardar a morte, que é tida como uma falha da medicina
setorização do diagnóstico e a despersonalização da moderna.
doença. Se por um lado essa "superespecialização" da Por outro lado, uma outra posição baseia-se na
ciência médica tem a vantagem de aumentar o número de aceitação benevolente da morte como parte da condição
dados sobre a doença, sobre o diagnóstico e sobre o trata- humana e, por isso, concebe como fundamentais o alívio
mento do paciente, por outro, ela requer maior empenho do sofrimento e do cuidado, bem como a preocupação
dos profissionais de saúde para compor tanto o objeto de com a pessoa doente. É o chamado "paradigma do cuida-
pesquisa ou de tratamento (a doença), quanto a unidade do", que por sua concepção humanista, prioriza o cuida-
de consciência no indivíduo doente e, conseqüentemente,
do sobre a cura, numa perspectiva em que a preocupação
a dualidade da relação médico-paciente. Trata-se do
das intervenções em saúde se dá com a "pessoa doente"
"reducionismo científico". Nas palavras de Sgreccia:(8)
[...] Não se pode explicar uma casa construída e não com a "doença da pessoa". Pessini(21) resume com
descrevendo-se apenas os tijolos e o plano pela qual eles maestria tal concepção ao afirmar que:
se justapõem uns aos outros. O problema não é mais [...]O cuidado é a pedra fundamental do respeito e da
apenas científico-descritivo, mas se torna por isso filosó- valorização da dignidade humana, sobre o qual tudo o
fico. [...] a tentação reducionista está presente dentro mais deve ser construído. É no cuidar que mais expres-
da medicina, não apenas no momento científico e de samos nossa solidariedade para com os outros, e é por
pesquisa de base, mas também no momento aplicativo e esse caminho que toda relação terapêutica, enquanto tal,
de assistência ao doente, todas as vezes que a ótica da deveria se caracterizar, mas de forma especial neste con-
relação médico-paciente se tornar reducionista, eliminan- texto crítico de final de vida (p. 197).
do o "espirit", a palavra, o diálogo e a leitura pluridimen- Nesse sentido, ao contrário do que, muitas vezes, se
sional e não apenas biológica da doença, da dor, da morte supõe na medicina moderna, o binômio médico-
e da terapia (p. 188). paciente, dentro do contexto dos cuidados paliativos, não
Delineia-se, assim, de maneira cada vez mais nítida, o
está fadado ao fim. Se por um lado a situação de termi-
eixo da problemática bioética na área da saúde. A relação
médico-paciente, imersa e entregue à "tentação tecnoló- nalidade inviabiliza a tão sonhada cura, por outro ela abre
gica", traz como conseqüências o aumento, cada vez a possibilidade de um aprofundamento dessa relação
maior, do poder conferido ao fazer do médico e à sua humana, superando o reducionismo e a "tentação tecno-
idealização como detentor do conhecimento, acarretando, lógica" e abrindo espaço para a inserção de uma visão
por sua vez, uma redução da escuta e do diálogo entre a mais global e humana da assistência à saúde.
díade, a medicalização da vida e da morte e uma significa- Apesar disso, o que se nota nas práticas em saúde é
tiva imprecisão entre os limites do viver e do morrer(8,22), um profissional mergulhado nesse complexo contexto e,
tal como nos colocam Bettinelli, Waskievicz e por isso mesmo, paralisado, sem condições de refletir e
Erdmann(22): "[...]urge discutir o que representam para a programar uma ação sustentada frente aos dilemas
vida do ser humano os avanços técnico-científicos e a bioéticos que lhe são impostos em sua prática cotidiana.
tecnologização das relações" (p. 89). Ou, ainda, o que é mais perigoso, um profissional
Dentro desse contexto, faz-se indispensável ao autômato, adotando uma postura mecânica, dissociada
profissional de saúde superar essa dispersão, reunir os de seus aspectos humanos mais intrínsecos e, em decor-
fragmentos e compor novamente o todo desse indivíduo
rência disso, reprodutora do perigoso reducionismo
tão violentado e, desse modo, estabelecer um compromis-
so com a vida, entendida como o bem maior, inviolável e mencionado anteriormente. Pensar no profissional de
digna de respeito. Essa não é uma tarefa fácil. saúde enquanto cuidador traz à tona a questão dos seus
Outro aspecto importante marca a vivência do aspectos pessoais e profissionais para lidar com a impac-
profissional de saúde no contexto hospitalar, influencian- tante realidade das instituições hospitalares.
do, de maneira direta, a díade médico-paciente, a saber: Carvalho(23), em seu artigo sobre os profissionais de
os paradigmas assistenciais em saúde. De acordo com saúde que lidam com pacientes portadores de doenças
Pessini(22), as ações de saúde, na atualidade, são marcadas graves ou fora de possibilidades terapêuticas, refere que

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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a concepção da morte como um fracasso (paradigma da sem possibilidades terapêuticas, comprometendo, desse
cura), a insalubridade do ambiente e a alta exposição a modo, os pilares da filosofia dos cuidados paliativos.
diferentes fontes de estresse (como indisponibilidade de Torna-se fundamental na assistência à saúde a ênfase nas
recursos financeiros, complexidade tecnológica, riscos relações humanas, com espaços reservados para a
ocupacionais e baixa remuneração), podem levar ao reflexão e discussão envolvendo questões bioéticas, que
surgimento da síndrome da sobrecarga no trabalho, auxiliam a análise frente aos dilemas da prática profis-
caracterizada por fadiga, irritabilidade, distúrbios do sional no contexto da morte, do morrer e do cuidado no
sono e concentração, depressão e queixas físicas. Essa hospital(4).
síndrome tem uma expressão denominada pelos profis-
sionais de saúde de Burn-out. CONCLUSÃO
Outros autores enfatizam a questão do preparo do
profissional de saúde para lidar com a morte em suas Ao longo de toda essa trajetória empreendida nos
várias facetas nas instituições de saúde(24,25,26), sendo que caminhos traçados pelo binômio vida/morte, enquanto
todos são unânimes ao afirmar que se trata de um tema profissionais de saúde percebem-se que o cuidar de
permeado por angústias e inseguranças, que exige dos paciente em estado grave/terminal exige, essencial-
profissionais uma extrapolação da competência mera- mente, compartilhar com ele experiências e vivências que
mente técnica e acadêmica. culminem na ampliação do foco de atenção do cuidador,
A dificuldade na comunicação médico-paciente, o
facilitando a compreensão da pessoa que adoece em sua
temor dos sentimentos, o isolamento das emoções (neu-
singularidade e dignidade. Fazendo uma apropriação das
tralidade) e a dinâmica de onipotência e idealização (iden-
palavras de Pessini(22), trata-se da "necessidade imperiosa
tificação médica com a imagem de plenitude), são alguns
de cuidado solidário, que une competência técnico-cien-
dos fatores que assombram a assistência à saúde. Por
tífica e humanidade, principalmente em situações
isso, muitas vezes, na tentativa de fugir dos sentimentos
extremas na fronteira entre a vida e a morte" (p. 12).
que a morte provoca, o profissional omite informações
do paciente e imprime a si mesmo uma dinâmica de Desse modo, apesar das possíveis diferenças filosó-
exclusão das emoções, que justifica a falta de relaciona- ficas e ideológicas, faz-se necessário que os profissionais
mento com aquele que adoece, protegendo-se, assim, do de saúde, ao cuidarem de pacientes graves, se mostrem
sofrimento frente à morte do outro(24). Explicam os conscientes e atentos aos direitos da pessoa humana, ao
autores: real significado dos conceitos de saúde e doença, às
"[...] É que estamos na presença de um ser humano que, questões da falta de possibilidades terapêuticas, à velhice
diante dos perigos de um envolvimento que escaparia a extrema e à morte.
seu controle por não dispor de ferramentas adequadas Espera-se que estes mesmos profissionais se pergun-
para com ele lidar,lança mão dos únicos mecanismos de tem se não terão o direito de buscar para si mesmos, tal
que dispõe: dissociar a doença daquele que a padece. como para seus semelhantes, uma "morte suave", digna.
Com efeito, o isolamento das emoções é uma forma Acreditamos que, muitas vezes, o pedido do paciente
privilegiada que a medicina encontra para fazer frente a para abreviação de sua vida, pode não ser um verdadeiro
essa armadilha da profissão médica, que é estar quotidi- desejo de eutanásia, mas, talvez, um anseio angustiado
anamente em contato com a morte, mas, contraditoria- por ajuda, atenção, amor e afeto, que transpõe o âmbito
mente, não ser preparado para lidar com ela" (p. 206). dos cuidados médicos físicos e que, por essa razão, deve
Dentro dessa dinâmica, profissional de saúde acaba ser escutado por todos que o cercam, sejam médicos,
por perder a possibilidade de prestar ajuda ao paciente psicólogos, enfermeiros, pais, filhos ou amigos.

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Bioética e profissionais de saúde: algumas reflexões

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):68-75

REFERÊNCIAS

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Ensino da bioética nas


faculdades de medicina do Brasil
Bioethics teaching in Brazil´s medical schools
Ensenãnza de la bioética en las escuelas médicas de Brasil

Homero Januário Caramico*


Vera Lucia Zaher**
Margaréte May B. Rosito***

RESUMO: Este trabalho trata do ensino de Bioética nas faculdades de medicina no Brasil.Objetiva demonstrar a escassez de estudos relacionados
à Bioética, como campo de conhecimento. Constatou-se que a maioria dos trabalhos nesta área, diz respeito à ética médica,chegando até mesmo a
ser confundida bioética com ética médica. Depreendemos que após três décadas de Potter, nas faculdades brasileiras de Medicina, a bioética ainda
é tratada ora como ética ora como disciplina autônoma. Há muito o que fazer para o fortalecimento da bioética na graduação e pós-
graduação,como fundamentação do comportamento médico condizente com a arte médica. Constatou-se também que os estudantes de medicina
anseiam por aprender algo mais que a técnica,indo em busca de novos sentidos do que está tradicionalmente posto.O ensino de bioética nas fac-
uldades de medicina no Brasil necessita da construção de uma identidade própria,como forma de superar uma série de fatores peculiares advindos
do modelo tradicional de ensino -aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética-ensino. Bioética-medicina. Ética médica-ensino.

ABSTRACT: This work deals with Bioethics teaching in Brazil's medical schools. It aims to demonstrate the scarcity of studies related to Bioethics
as a knowledge field. It has evidenced that the majority of the works in this area regards medical ethics and even comes to confused bioethics with
medical ethics. We infer that after three decades of Potter's proposals, in Brazilian Medical Schools bioethics is treated sometimes as an ethics and
sometimes as an autonomous discipline. There is much to do for strengthening bioethics in undergraduate and graduate courses, as the basis for a
medical behavior that honors the medical art. It was also evidenced that medical students yearn for learning something more than technique, search-
ing for senses other than traditional ones. Bioethics teaching in medical schools in Brazil requires the construction of an identity of its own, as a
way to surpass a series of peculiar factors present in the traditional model of teaching-learning.
KEYWORDS: Bioethics-teaching. Bioethics-medicine. Medical ethics-teaching.

RESUMEN: Este trabajo se ocupa de la enseñanza de la bioética en las escuelas médicas de Brasil. Pretende demostrar la escasez de estudios rela-
cionados con la bioética como campo del conocimiento. Ha evidenciado que la mayoría de los trabajos en esta área mira la ética médico e incluso
confunde la bioética con la ética médica. Deducimos que después de tres décadas de las propuestas de Potter, la bioética en las escuelas médicas
brasileñas es tratada a veces como ética y a veces como disciplina autónoma. Hay mucho a hacer para consolidar la bioética en cursos de pregrado
e de postgrado como la base para un comportamiento médico que honre el arte médico. También fue evidenciado que los estudiantes de medici-
na anhelan a aprender algo más que técnica, buscando sentidos que van más allá de los tradicionales. La enseñanza de la bioética en escuelas médi-
cas en el Brasil requiere la construcción de una identidad propia, como una manera de sobrepasar una serie de factores peculiares presentados en
el modelo tradicional de enseño-aprendizaje.
PALABRAS LLAVE: Bioética-enseñanza. Bioética-medicina. Ética médica-enseñanza.

* Médico. Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo-SP. Cirurgião e Docente de Bioética no Curso de Medicina.
** Médica. Psicóloga. Doutora pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo. Supervisora no Projeto Tutores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Coordenadora adjunta do Curso de Mestrado em Bioética do
Centro Universitário São Camilo.
*** Pedagoga. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas-Unicamp. Docente no Curso de Pedagogia do Centro Universitário São Camilo.
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Ensino da bioética nas faculdades de medicina do Brasil

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INTRODUÇÃO variantes uma gama de pensamentos e correntes a serem


discutidas e é nesse momento que se aplica áquilo que a
Os cursos de Medicina, após 35 anos da revolução bioética tem de especial, a capacidade de abrir horizontes
introduzida pelo termo Bioética por Potter, encaram o e disseminar o respeito pelas idéias do outro.
desafio de criar uma ponte entre o passado hipocrático, Em outro momento, temos no aborto um motivo
que estudava a doença para compreender o doente e o emergente de discussão, como os fetos anencefálicos,
presente em que a medicina, dia a dia, voltou-se mais que suscitam as mais diversas afirmações, sendo uma
para a doença sem a relação com as estruturas sociais, que eleva o pensamento ético - "não se está admitindo
educacionais e psíquicas do doente. a indicação eugênica do aborto com o propósito de
Nesse clima de pensamento científico que clama por melhorar a raça ou evitar que o ser em gestação venha
progresso, liberdade e evolução, encontram-se pontos a nascer logo, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se
ético-morais discutíveis, nos quais a influência da evitar o nascimento de um feto cientificamente sem
sociedade em que se vive acarreta no jovem um confron- vida, inteiramente desprovido de cérebro e incapaz
to em relação a esses desafios que surgem durante o de existir por si só"(4).
curso de medicina. Isto não é um fato novo, vem de 1910 Como definiu Potter, "bioética como nova ciência
ética que combina humildade, responsabilidade e uma
quando Flexner(1) encabeçando uma série de relatórios
competência interdisciplinar, intercultural e que poten-
que na ocasião se reportavam contra a criação de
cializa o senso de humanidade"(5).
faculdades de Medicina nos Estados Unidos, foi apoiado
As questões que angustiam o ser humano são o di-
pelas fundações privadas americanas e pela AMA
reito à vida, o sentido da vida, a busca da verdade e a
(American Medical Association), com seus médicos-cientis-
busca da felicidade. Mas, antes de tudo, lembramos que
tas, gerando uma nova característica de relacionamento
o Artigo 50 da Constituição da República Federativa do
entre o ensinar-aprender na faculdade de medicina
Brasil reza: todos são iguais perante a lei, sem distinção
entre médico e paciente, mais técnica, porém muito
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
menos humanista. aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
A valorização da ciência e do cientificismo é um direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
imperativo, porém, a sua supervalorização implica capi- propriedade. A vida é o supremo bem pelo qual devemos
tulações graves em relação à atitude humanista, em vista zelar e entendemos em primeiro lugar que não há direito
que os avanços tecnológicos vêm ocorrendo despidos de à vida sem liberdade, igualdade segurança e propriedade.
qualquer reflexão ética(2). Depois, para defender o direito à vida, precisamos
Os tempos tecnológicos em que vivemos trazem a nos perguntar: que valor atribuímos à vida? De que
sensação de uma liberdade supernutrida. Crescendo na modo podemos proteger e tornar melhor esse bem?
capacidade de fazer e agir, ampliamos o campo da liber- Como melhorar nossa convivência humana? Eis o ver-
dade nas escolhas. Os próprios limites da doença e da dadeiro sentido do direito à vida(6).
morte são espantados para cada vez mais longe. Mas a Assim, necessita-se conhecer os conceitos vindos
ciência e a tecnologia são antes um instrumento com o com os alunos ingressantes ao curso de Medicina para
qual exercemos a liberdade ou desenvolvemos a liber- podermos abrir um leque de discussão sobre esses temas
dade. Na medida em que, pelas ciências, sabemos como para evitar o maniqueísmo e idéias fixas, que não dão
somos, buscamos também técnicas para superar os maleabilidade à reflexão ética.
limites ou exatamente para explorar os interesses que se Existe a crença de que a sensibilidade de detectar
descobrem neles(3). problemas éticos em casos padronizados é maior nos
Temas bioéticos, como o início de vida, por exemplo, alunos dos últimos anos do que nos ingressantes dos
abrem uma discussão inacabada que se iniciou há sécu- primeiros anos, porém nos Estados Unidos e no Canadá
los. Variabilidades múltiplas, como religião, etnia, cultura a situação foi detectada inversamente, quando alunos dos
e outras, aplicam a esse tema um colorido das mais últimos anos de graduação achavam normais e rotineiros
variadas nuances como iniciar-se-ia a vida na concepção, problemas éticos que eram detectados por eles nos
ou como quando o ser humano nasce? tendo entre estas primeiros anos da faculdade(7).

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Então, como devemos entender o ensino da bioéti- Alguns autores relatam que a evolução social,
ca no contexto de uma faculdade de medicina? Desta humana e política que a sociedade se depara pressionam
forma, podemos dizer que a função primordial da bioética no ensino médico algo mais que somente as disciplinas
é ter como objetivo indicar valores, promovendo os princí- de medicina legal e deontologia. As novas experiências
pios básicos e primários, alcançando assim, a modelagem vividas pelo médico no seu cotidiano, associado a uma
de virtudes para uma conduta profissional adequada(8). pluralidade de morais e costumes gerados pela miscige-
Algumas faculdades enquadram a bioética como uma nação de raças e credos, obrigam-o a buscar uma abertura
sucessora da antiga deontologia médica, que passou a ser de visão par estes fatos e interagir de uma maneira
vista posteriormente como ética médica, e que o desen- direcionada para com esta nova realidade. Assim a bioéti-
volvimento ideológico do caráter moralista da ética ca tem a função de complementação `aquilo tudo que
passou para uma visão mais abrangente, autônoma, da é explanado na deontologia e medicina legal, com a
atividade profissional, observando a ética atualmente tolerância, prudência e poder de discriminação que lhe é
como uma reflexão da vida(9). característica(16). Este mesmo autor infere que os estudos
Assim como toda disciplina de área médica, a bioéti- da bioética, medicina legal e deontologia são comple-
ca vem no intuito de complementariedade com a cadeira mentares e não excludentes. Devendo a bioética ocupar
de ética médica, já marcada pela deontologia médica, que toda a grade de ensino médico,pois ela avança em con-
procura nortear o médico em seus deveres e direitos. junto com o conhecimento técnico adquirido e o crescer
A bioética abre uma porta para reflexões e atitudes intelectual do aluno em questão. Neste mesmo trabalho,
sobre novos problemas na área da medicina que surgem o autor infere que devemos mudar muito o modelo atual
no dia-a-dia devido ao progresso tecnológico e sua inter- de ensino para que se possa ofertar uma formação ética
ferência no cotidiano das pessoas. Assim pode-se dizer aos alunos do curso médico.
que a formação da Ética Médica se constitui de dois Pois segundo Kohlberg as pessoas evoluem conforme
pilares, um que representado pela deontologia, estudo seu amadurecimento na participação e tomada de decisões(15).
dos deveres profissionais e outro pela bioética,"disciplina Este pensamento é compartilhado em outros países nos
que combina humildade, responsabilidade e uma com- quais, de 1993 a 2000, foram introduzidos novos currícu-
petência interdisciplinar, intercultural e que potencializa los escolares nas escolas médicas, com ênfase para bioéti-
o senso de humanidade"(10). A bioética tem como estru- ca, gerenciamento de cuidados com a saúde e medicina
tura a ética, tendo como caráter principal, respeito pela alternativa ou complementar(17).
dignidade do outro e do meio ambiente(11). Autores de outros países também incluem uma
No Brasil, o ensino da bioética tem como conteúdo educação médica aprimorada com historia da medicina,
programático a reflexão ética, como citado no trabalho antropologia, literatura ética e boas artes como uma
publicado por Munõz e Munõz e Siqueira(8,15). Muñoz e forma de conhecimento ampliado para melhoria
Muñoz(8) realizaram um levantamento sobre o ensino da no aprendizado médico. Com isto pretendem que
Ética nas Faculdades de Medicina no país, destacando a um profissional com maior sentido de humanização
grande diferença entre elas em situações como inde- poderá traba-lhar melhor o outro nas suas plenitudes
pendência como disciplina, sendo independente em de tratamento(18).
37,7% somente; o período de em que se leciona a matéria Neste clima atual de desenvolvimento das tecnolo-
é por demais diferente,algumas lecionam em determina- gias e da bioética, multiplicam-se pensamentos
dos períodos somente, 4º ano por exemplo, e somente 3 para adaptá-la à realidade do cotidiano. Autores tendem
faculdades lecionam em período integral. O número de a formatar as idéias conforme suas realidades,
professores difere varia mas existe uma maioria que surgindotermos como a bioética pós-moderna por
dispensa o trabalho de dois professores (67,4%). exemplo. Surgem metodologias alternativas como
Neste mesmo estudo os autores relatam que há uma trabalhos comunitários e comunidades de apoio humano,
década a ética era administrada como disciplina autônoma além do próprio aprendizado escolar na faculdade
em 33,3% das faculdades e em 67,7% era denominada deon- de medicina(19).
tologia, não havia até então a denominação de bioética. Hoje É a partir desta multiplicidade de opções que obser-
a denominação de bioética é utilizada em 26,7%(8). varemos o ensino da bioética nas faculdades de medicina.

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Ensino da bioética nas faculdades de medicina do Brasil

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1.1 O Ensino da Bioética rência de métodos de uma disciplina à outra, assim


teremos distinguido três graus de interdisciplinaridade, o
O ensino da bioética vem abrindo um debate de de aplicação, o epistemológico e o de geração de novas
como se deve realizar a sua ementa e sua metodologia. disciplinas(25).
A variabilidade de idéias é enorme, pensa-se nos Como exemplo de grau de aplicação surge quando
assuntos a serem discutidos com os alunos e as formas transferimos métodos da física nuclear para a medicina,
de ensino, porém poucos se adiantaram ao tempo e resultando novos tratamentos para câncer.
foram ás bases discutir ou ouvir suas necessidades. Quanto a gerar novas disciplinas temos como exem-
Os dilemas éticos clássicos como aborto, eutanásia, plo quando transferimos métodos da física de partículas
testemunhas de Jeová, devem ser analisados sempre, pois para a astrofísica assim produzindo a física quântica.
servem como exem-plos para-digmáticos, porém não A interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas
devemos deixar de possibilitar ao estudante a oportu- seu objetivo permanece dentro do mesmo quadro de
nidade de discussão de casos do seu cotidiano e as quais referência da pesquisa disciplinar(25).
ele tem uma parcela ou totalidade de decisão(20). Somado aos fatos acima, surge neste momento um
Alguns docentes preconizam o inicio do curso de aluno que ingressa em uma faculdade de Medicina
trazendo em seu bojo a moral adquirida no seio familiar
bioética no curso de Medicina desde o 1º semestre com
e social até então vividos. Agora sua trajetória de
ênfase na Antropologia, Historia da Medicina e etc.,
interesses entra em conflito com as necessidades e
aumentando a carga de conhecimentos progressivamente
os interesses do outro (o paciente) e como ele respon-
até os últimos semestres quando seriam observadas suas
derá a esse apelo?
necessidades de interação com os casos à medida que
A responsabilidade do professor é fundamental para
forem surgindo(21). Este também é o pensamento de
dar-lhe as ferramentas adequadas para tal momento.
ou-tros que a Ética deveria ser lecionada nos seis anos do
Não basta passarmos somente à parte técnica do pro-
curso, acompanhando o aluno e discutindo os problemas
cesso de formação, que é imprescindível, mas também
éticos na medida que surgem(7,15). Existem escolas que alimentá-lo com uma boa base de conhecimento e ideal
entendem que no ensino da bioética deva existir uma médico que irão cada vez mais se aprimorarem na medi-
formação de núcleo, que tem o propósito de ampliar as da de sua experiência médica.
discussões e o ensino de bioética em toda a comunidade Rebuscando no passado, existem palavras que são
em que se insere(22). como esponjas, absorvem as substâncias que encontram,
se enriquecem dos sentidos atribuídos, mas correm o
Mas, como devemos pensar a Bioética? risco de se esvaziar e não apresentar mais nenhum
Como uma disciplina, ou seja, um ramo do conhe- significado(26).
cimento que se aprende, uma matéria de ensino?(23), ou De esta forma observar somente critérios didáticos
como definiu Potter(24),desde 1970 até 1998, um con- para a programação da bioética nas faculdades de medi-
ceito de interdisciplinaridade para se atingir uma nova cina é incorrer em submete-la a ser uma disciplina a mais
sabedoria(1971), uma ponte interligando éticas (1970) no currículo médico, é dever portanto ser observado
ou uma nova ciência, como veremos a seguir que pode aquele que é o fator multiplicador de uma arte, o aluno.
surgir dos conhecimentos interdisciplinares.
Desta forma, o professor de bioética se encontra 1.2 Histórico do Ensino de Bioética
em uma encruzilhada entre a forma interdisciplinar e a nas Faculdades do Brasil
disciplinar, cujo resultado levaria a uma reflexão proto-
colada com normas e casuísticas morais, as quais pode- Desde o juramento de Hipócrates lemos em suas
riam interessar somente à sociedade que as criou ou a entrelinhas a deontologia e a diceologia ditas com o
uma variedade mais ampla na qual os resultados destas ardor de sentimento encarnado na frase "Se eu cumprir
casuísticas abarcassem em seu resultado uma diretriz este juramento com fidelidade, goze eu, minha vida e a
maior que impingisse um caráter ético à questão. minha arte de boa reputação entre os homens; se eu o
Podemos definir interdisciplinaridade como transfe- infringir ou dele me afastar, suceda-me o contrário"

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Portanto, não poderia ser de outra forma que não a Como a própria definição implica a interdisciplinari-
deontologia/diceologia fosse a partida para o ensino da dade é evidente, e mais ainda fundamental, pois a neces-
ética em uma faculdade de medicina. sidade de todo conhecimento técnico é imprescindível
O ensino da ética médica no Brasil data do final do para a formulação de um conceito, conhecimento novo e
século XIX com nomes dentro dos anais da medicina sua abrangência pela maioria da sociedade. Poucos são
legal/deontologia como Flamínio Fávero, Oscar Freire e aqueles que possuem tamanha formação acadêmica para
outros, que escreviam sobre as qualidades morais que o poder discorrer sobre todos assuntos que abrange a
médico deveria apresentar para exercitar sua carreira na bioética e que diariamente se modifica perante uma lei,
medicina.Flamínio Fávero citava como estas qualidades à um novo conhecimento científico ou mesmo com uma
vocação médica, a dignidade, honestidade e coragem, nova abordagem terapêutica, por exemplo. Inúmeras
tudo aliado a um espírito de sacrifício enorme ou seja descobertas são realizadas em todos os campos da
sempre pronto para o bem, aliviar e consolar os necessi- medicina, biologia, física e outras, que são notificadas e
tados. Gomes ampliou estas qualidades associando princí- poucos da sociedade têm a felicidade de desfrutar ou
pios de Beauchamp e Childress a solidariedade, o sigilo, a aproveitar para seu bem ocasionando assim uma
preservação da vida, a índole para alívio de sofrimentos(8). nova característica no relacionamento ciência/benefício
Esta visão dada por estes pioneiros foi devida aos humanitário.''
fatos que sucederam a teoria de Claude Bernard a respeito Após seis meses do lançamento do livro de Potter,
da biologia experimental associada ao conceito pós-rela- André Hellegers utilizou a palavra bioética na inaugu-
tório Flexner, que levou a uma medicina mais científica, ração do Joseph and Rose Kennedy Institute for the study of
porém com distanciamento entre a medicina e a ética, human reproduction and bioethics, hoje conhecido como
criando uma tecnocracia médica que resultou em uma Bioethics Kennedy Institute. Na enciclopédia de bioética,
formação médica essencialmente baseada em fatos, Reich infere que Hellegers procurou relacionar a pessoa
porém sem uma humanização nos tratamentos realizados. como uma ponte entre a medicina, a filosofia e a ética.
Com isso houve uma inversão de valores, entre o Isto acabou se impondo, tornando-se a bioética um estu-
valor tecnológico agregado ao tratamento do paciente e do revitalizador da ética médica(27). Assim sendo temos
pensamento médico envolvido no raciocínio diagnóstico duas correntes iniciais para a bioética(28).
e na sua conduta perante o paciente. Esta conduta médi- A visão de Potter que imaginava a bioética em uma
ca envolve seu comportamento, aqui quero deixar minha amplitude abarcando o conhecimento cientifico e filosó-
preferência em relação às palavras comportamento e pos- fico e não somente o relacionamento da medicina com a
tura em relação à ética, com o paciente tanto quanto o ética. A bioética foi criada para se tornar um norteador
ponto de vista clínico-técnico, quanto a ponto de ser o nos avanços tecnológicos de todas as áreas para o uso
norteador e alicerce de sua psique, sentimentos e adesão em beneficio da humanidade interessando a maioria
a esta fase de sua vida. Assim chegamos no ponto de exis- possível da sociedade.
tir um sentimento social de os médicos não terem um Sob a visão de Hellegers a bioética tem uma ligação
comportamento digno e de serem pouco humanos. estreita e de certa forma herdeira de valores que a própria
Acompanham este coro de desmandos a formação ética médica não conseguiu se impor até então, abrindo
médica humanitária atual nas faculdades de medicina, um caminho de reflexão aberta a respeito de uma visão
com predominância de ênfase para cadeiras ditas mais científica, social e observadora da presença e das neces-
importantes em detrimento de um ensino voltado à parte sidades do outro.
social e ética na medicina, guardando ainda os resquícios As sociedades divididas em pobres e ricos, criam uma
da medicina tecnocrata característica própria no ensino da bioética. Enquanto
Nossa referência com a bioética data seu inicio na paises vivem como no passado, lutando por saneamento
década de 1970, quando Potter proferiu a definição de básico, contra a fome, racismo e outros males, os países
bioética como a ética da terra, uma ética internacional. ditos ricos têm problema de ordem bioética quanto à repro-
uma ética geriátrica, enfim uma ética da vida, a bioética, dução assistida, transplantes de órgãos, projetos como o
que envolveria tanto a ciência como as cadeiras Genoma, e com isto criando um sentido bioético mais ade-
humanas(24). quado a suas morais tanto sociais como culturais. É óbvio

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Ensino da bioética nas faculdades de medicina do Brasil

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que os interesses nestes casos são inteiramente contra- graduação são formar profissionais mais humanos,
ditórios, por exemplo, o efeito estufa e suas discussões. formar profissionais com comportamento ético mais
Esta concepção de uma bioética de “fórmulas prontas” compatível com os ideais da profissão e ensinar as
vai contra mão aos interesses destes países, como normas que regem a profissão, entre outros.
por exemplo, propostas dos países ricos são adaptadas aos Hoje já temos cerca de 26,7% das faculdades de
países pobres(29). medicina com a cadeira denominada bioética, o que na
Como foi exposto acima, no final do século XIX década passada era denominada ética médica em 33%
a ética médica era ensinada durante o curso de medicina das faculdades e em 68% denominada deontologia(8). A
na cadeira de medicina legal, justificada pela relação inclusão da bioética possibilitou uma nova face ao
entre a lei e o exercício profissional, que era de caráter ensino da ética médica, abriu horizontes, protocolou
deontológico(30). temas para reflexão, expandiu e modificou tratamentos
Na década de 60 houve um crescimento do estudo de médicos, trouxe mais respeito para com o outro (que
ética nas faculdades de medicina, levando mais tarde, a uma para alguns autores é denominada humanização) e o
reunião em 1983, em Dartmouth College, para propor uma que é muito importante também inter-relacionou as
base curricular ao ensino de ética nas faculdades de especialidades, médicas e não médicas, assim como as
medicina. O início do ensino de ética médica nas faculdades médicas com as médicas.
de medicina foi gradual e com número de horas/aula reduzi-
do e sempre ligado à cadeira de medicina legal, na maioria OBJETIVO GERAL
das escolas médicas(27).
Atualmente alguns movimentos sociais reivindicatórios Conhecer a literatura científica a respeito do ensino de
à autonomia do ensino, à melhoria do conhecimento pela bioética nas Faculdades de Medicina no Brasil
população, e em relação aos alunos que saem de escolas
médicas com preparo abaixo da crítica, fizeram com que as OBJETIVOS ESPECÍFICOS
entidades de classe como os conselhos (em 1975 o Conselho
Federal de Medicina) emitissem resoluções no intuito de que Discutir a implantação do ensino de Bioética nas
o ensino de ética médica fosse ensinado ao longo dos 6 Faculdades de Medicina
anos. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo
(CREMESP), mediante resolução nº 101, de 29 de Janeiro Relatar uma experiência de ensino em uma Faculdade de
de 2002, decidiu colaborar com o ensino de Ética Médica e Medicina na cidade de São Paulo e as observações dos alunos.
Bioética nas Faculdades de Medicina.
A partir deste instante deu-se a largada para uma pontu- PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
ação crescente de temas para tornar a medicina uma carreira
mais humana. Neste momento impõe-se à medicina o apro- Tipo de estudo: Esta pesquisa é um estudo bibliográfico,
fundamento de questões humanísticas, já que o fator de descritivo de um fenômeno com técnica padro-nizadas na
humanidade deve ser sempre a liga junto ao respeito e ao coleta de dados.
conhecimento técnico da arte de ser médico.
Até o momento vemos que não existe um padrão de Fontes de buscas: O levantamento de dados utilizados
ensino de bioética nas faculdades de medicina. Temos cur- foi através de pesquisas nos portais Bireme, através do
sos com número de professores variados, alguns cursos com Scielo, Embase, Scirus, Scopus e Medline.
professores médicos, outros com mescla de professores
médicos e não médicos, ministrando estas aulas. Identificação das fontes: Foram pesquisados artigos
Cursos com número de professores reduzidos, assim como, científicos, monografias, revistas e teses, em um período de
o número de horas/aula. 15 anos. Os unitermos utilizados foram: Ensino de
Em algumas faculdades, a maioria, a ética médica Bioética; Faculdades de Medicina; Ética.
ainda é ensinada junto com Medicina Legal, não possuin- Este cruzamento resultou nas seguintes seqüências:
do espaço próprio para ser ministrada. Faculdade de medicina e ensino de bioética e faculdade
Os objetivos mais importantes do curso de ética na de medicina e ética.

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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Obtenção do material cação da obra segundo os dados: cabeçalho com refe-


rência bibliográfica segundo a ABNT (NBR6023:2002);
O material obtido foi então submetido a uma leitura espaço reservado para um resumo da obra; espaço reser-
interpretativa e exploratória no sentido de atender às vado para transcrições selecionadas a respeito dos obje-
necessidades dos objetivos do estudo. Foram encontrados tivos já mencionados; outros trabalhos foram considera-
no Scopus somente 13 trabalhos internacionais a respeito dos em sua íntegra, tendo em vista o estudo em foco.
de ensino da bioética nas faculdades de medicina. No
Google acadêmico cruzando as informações com "O ensi- DISCUSSÃO
no da bioética nas Faculdades de Medicina do Brasil"
encontramos 102.000 páginas, porém a grande maioria O ensino da bioética foi agregado na esteira dos
destas refere-se ao estudo de ética nas faculdades de me- ensinamentos prévios de ética médica que vieram tam-
dicina, foram encontrados 32 trabalhos de bioética em bém agregados dos ensinamentos hipocráticos da medi-
faculdades de medicina de outros países como Sri Lanka, cina. Portanto nada mais lógico que a relação do médico
por exemplo. Como se trata de um buscador generalista com o campo da bioética também se fizesse, via de regra,
tem pouco valor científico. de uma maneira passiva; contudo a própria natureza da
bioética não permite somente uma visão de um
Na PubMed com "Teaching bioethics on medical schools"
fenômeno e sim visões que a tornam com o enfoque
foram encontrados 131 ítens, a maioria mencionando
pluridisciplinar.
ensino de ética ou humanização. Cerca de 13 trabalhos
A bioética veio da preocupação e da angústia de
referem-se ao ensino de bioética em países, exceto Brasil.
Potter com os acontecimentos tecnológicos, suas
Quando cruzamos "teaching ethics in medical schools" resul-
evoluções, e problemáticas com conseqüências profun-
taram 315 ítens, sendo os 131 da pesquisa acima também
das em futuro próximo, tome-se como exemplo o efeito
mencionados.
estufa em nossa atmosfera.
Achamos somente um trabalho brasileiro indexado
Com isto Potter pretendia retomar um rumo mais
que é referido neste estudo, Siqueira(16) da Faculdade controlado e humano, inculcando no comportamento
de Medicina de Londrina, no Paraná, mesmo assim o socio-cultural reflexões a respeito do futuro tecnológico,
título do trabalho "The teaching of ethics in medical schools", se este não fosse coordenado universalmente, por várias
como o de vários outros direcionam-se ao termo “ética” visões no mesmo problema a ser solucionado, daí a
e “não bioética”. dimensão pluralista, interdisciplinar mencionada. É nesse
No Scirus foram encontrados 37.840 para Teaching momento afirmamos que a Bioética pode resgatar o
Bioethics on Medical Schools. Refinando para Teaching Bioethics tempo perdido pelo avanço tecnológico na tentativa
on Medical School in Brasil, este número cai para 227, se refi- humanizá-lo.
narmos para "medical education" este número diminui para Mesmo Potter quando deu a partida para a discussão
50 artigos e não conseguimos visualizar nenhum rela- da bioética na década de 1970, quando cunhou o nome
cionado com bioética e Faculdade de Medicina no Brasil. bioética, pensou em uma ligação, uma ponte entre a
Portanto, existe um grande número de trabalhos ciência biológica e a ética. E ele relata, em seu discurso
catalogados como ensino da bioética nas faculdades de dirigido ao IV Congresso Mundial de Bioética, que a
medicina, porém dentro do texto é mencionada a ética palavra ponte era usada porque a bioética era vista como
médica como bioética ou como se esta estivesse integra- uma nova disciplina.
da dentro da ética, fato já definido pela maioria. Ora, a palavra disciplina aqui utilizada tem o sentido
Se a disciplina é Ética Médica por que então mencionar a de uma nova ordem que convém ao bom funcionamen-
disciplina como Bioética?(8) to de uma sociedade ou o sentido de um nascimento de
um ramo do conhecimento como matéria de ensino? Ou
Organização do material obtido melhor ainda, teria a dupla função exposta acima? Esta é
uma das questões que me intriga.
Todo material submetido à leitura foi catalogado Como ele cita neste discurso a bioética ponte teve a
uma parte em fichas do software Word Pad com identifi- função de ligar várias disciplinas. E na tradução deste tre-

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Ensino da bioética nas faculdades de medicina do Brasil

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cho do discurso temos como função principal da bio- Atualmente, baseada na filosofia Ocidental, a
ética ponte a sobrevivência da espécie humana, numa bioética tem como propostas duas vertentes próprias de
forma descente e sustentável de civilização, exigindo o suas morais e culturas, que são a americana e a européia.
desenvolvimento e manutenção de um sistema de A americana tem como tendência a tecnização, formu-
ética(32). Até este momento a bioética tinha um caráter lando protocolos que tentam criar ferramentas para
orientador, de criação de um novo comportamento nas facilitar as decisões sobre os casos que vão surgindo
áreas biológicas, de fusão, união, para um direcionamen- no dia a dia da comunidade biológica, quer científica
to dentro dos ditames dignos de uma sociedade cientí- como social. A tendência da cultura americana quanto
fica progressista, porém sem desvios de conduta respei- à presença de normas e protocolos volta-se sempre
tosa para com o futuro. a uma indicação de resultado que tende a uma moraliza-
Aqui notamos um direcionamento da palavra disci- ção da ética.
plina para uma forma de comportamento, para uma nova A bioética européia espelha um compasso menos
ordem no pensar, agir destas ciências biológicas, no sen- técnico, pois os membros que refletem sobre um caso a
tido de evitar agressões, arroubos de egoísmos científicos solucionar compõem um comitê, que difere de uma
que atinjam a ordem maior que é a sobrevivência da comissão, pois seus membros são convidados ou eleitos
humanidade, dentro de um padrão de respeito tanto pelo por um período determinado e não somente convidados
outro como pela natureza que o cerca. Ao sistema aqui para opinar determinado caso. Sendo assim a chance de
mencionado Potter classificou como a bioética global. se tomar atitudes mais direcionadas, mais reflexivas sem
Este sistema tem como função a definição e desenvolvi- dualidade de resultados é maior, proporcionando um
mento em longo prazo de uma ética para sobrevivência caráter mais ético para a casuística final, teoricamente.
humana sustentável(32). Com estes direcionamentos a bioética americana
Assim, temos a necessidade de conhecer os con- caminha para uma Bioética de fundamentação baseada em
ceitos vindos com os alunos ingressantes ao curso de princípios, ou seja: o principialismo de Beauchamp e
Medicina para podermos abrir um leque de discussão Childress, que por dar uma grande ênfase à beneficência,
sobre esses temas para evitar o maniqueísmo e idéias autonomia, justiça e não-maleficência, tem uma aceitação
fixas, que não dão maleabilidade à reflexão ética. Então quase que universal como modelo na prática médica(33).
como devemos entender o ensino da bioética no contex- Porém outros modelos coexistem como o de Engelhart
to de uma faculdade de medicina? (liberalismo), Joonsen e Toulmin (casuístico), Pellegrino e
Seria mais uma disciplina isolada ou uma disciplina Thomasma (virtude), Veatch (contratualista) baseado no
que agregaria outras disciplinas ao seu redor formando relacionamento médico-paciente-sociedade.
um núcleo de pensamentos voltados ao ensino, orien- Já na Europa predomina um modelo baseado em raízes
tação, formação de profissionais que observassem com contemporâneas, objetivando a dignidade do ser humano,
capacitação e respeito, tanto na sua profissão como no colocando-o no centro das atenções, a pessoa torna-se o
seu dia a dia? Como poderemos então, devido à multipli- fundamento metafísico da ordem ética e a antropologia o
cidade de disciplinas envolvidas, aumento progressivo de fundamento da Bioética(14).
novidades tecnológicas com novos casos surgindo diaria- Assim sendo notamos que a bioética se torna ora
mente, protocolar uma ementa de ensino para a bioética? multidisciplinar para alguns autores, ora transdisciplinar
Podemos e devemos orientar valores que, indepen- para outros, portanto com visões múltiplas de um mesmo
dente da situação evolutiva, permitam uma atitude corre- fenômeno, que é a orientação de um padrão ético de traba-
ta, social, progressista, sem acarretar dano ou destruição lho para as ciências e para aqueles que com elas coexistam.
ao ambiente de vida, concepção nossa à junção entre ser humano e Porém esta dicotomia de abordagem de um mesmo
meio ambiente. Talvez neste ponto devemos buscar na fenômeno, já por si só, cria uma linhagem de pensamento
filosofia oriental o elo entre o homem e a natureza que que pode ser entendida como uma divergência no seu
existe de uma forma forte e contundente nesta linha conteúdo e talvez na elaboração da finalização, contudo
filosófica. Partindo desta premissa devemos ter em mente o pensamento bioético permite que se façam conjunturas
que a bioética implica em responsabilidade, tanto pela para ampliar sua reflexão a respeito do fenômeno
pessoa humana como pelos seus valores em virtudes. em questão.

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Quanto ao ensino da bioética, que é dicotomizado de artes e literatura a fim de alcançar objetivos mais
como vimos acima e que conceitos básicos originam-se de ampliados nestas áreas.
diferentes fundamentos filosóficos e que estes possuem No Canadá em todas as escolas médicas é ensinada a
várias correntes de pensamentos, soma-se a esta diversidade matéria de bioética, com isso foi observado que não havia
um aluno que já traz uma moral familiar que difere de professores em número suficiente para tal. Tal necessidade
outras tantas que coexistem na mesma sala de aula e levou à formação de clínicos para suporte na matéria.
ambiente de trabalho. Portanto, como ensinar a bioética como uma disciplina
Mas seria esta a função primordial da Bioética? única como em algumas faculdades, como parte de um
Apresentar os conceitos aos alunos, os casos paradigmáti- todo maior denominado ética médica, fazendo parte de
cos, os países com legislações pertinentes ou não com uma cadeira de humanização médica? Além de que, como
problemas como a liberação do aborto? ensinar bioética? O que ensinar em bioética?
Como o aluno confrontará estes novos conceitos, sua Quando ensinar a bioética no curso médico?
amplitude no seio da sociedade, seus benefícios sociais e de Existe a crença de que a sensibilidade de detectar
saúde, a prioridade de cada reflexão a ser realizadas, ou seja, problemas éticos em casos padronizados é maior nos
como priorizar necessidades? alunos dos últimos anos do que nos ingressantes dos
Como ensinar virtudes? É possível ensiná-las? primeiros anos, porém nos Estados Unidos no Canadá a
Os alunos, como foi dito, apresentam um sentido situação foi detectada inversamente, quando alunos dos
comunitário mais desenvolvido e outros não. Percebe-se últimos anos de graduação achavam normais e rotineiros
foram educados com obediência `a moral da família, às problemas éticos que eram detectados por eles nos
vezes, essa submissão aos pensamentos dos familiares primeiros anos da faculdade(7).
foram acatados sem sequer uma discussão. Portanto,
quando submetidos `a liberdade de escolha em uma situ- Experiência como docente
ação de reflexão, a resposta pode ser o momento de
libertação de toda a moral adquirida, assim como, uma A reflexão da experiência como professor de bioética
demonstração de que o passado fala mais forte nos seus passa pela análise da opinião dos alunos percebida no seu
julgamentos ao trazê-lo à tona. conteúdo explícito e implícito de carga moral e ética na
Trabalhos de abrangência maior nos mostram que respostas dadas no questionários aplicados com os alunos
as faculdades de medicina ainda organizam seus cursos do Curso de Medicina.
na maioria dos casos com a denominação Deontologia, Em agosto de 2003 foi iniciado o curso de medicina
este ainda resquício do início do ensino da Ética Médica em uma Universidade na cidade de São Paulo. Neste iní-
ensinada anteriormente nos cursos de medicina por cio de curso a cadeira de bioética foi programada para ser
mestres como Oscar Freire, Flamínio Fávero e outros. administrada no 4º semestre (2º ano) segundo a ementa
Hoje já temos 26,7% das faculdades de medicina com o aprovada pelo MEC, sendo que no começo de cada
curso denominado Bioética no seu currículo, fato que não primeiro semestre existe um contato com o aluno no sen-
existia há 10 anos passados(8). tido de demonstrar a existência de um diferencial impor-
Escolas de outros continentes ampliam seu espectro de tantíssimo na carreira que estão iniciando e que o nortea-
informação e colocam a bioética juntamente com cuidados mento deste diferencial tem no seu conteúdo um conhe-
humanos em seu currículo nas faculdades de medicina, cimento além do curar/cuidar, que é o respeito pelo
como um programa a ser ministrado para grupos menores outro, a humanização de procedimentos dentro da sua
de alunos, com abordagem de temas como literatura, ciência médica, ou seja, a bioética.
religião, ética, filosofia, história da medicina, antropologia Assim sendo, neste primeiro contato procuramos
cultural e social e jurisprudência, organizando assim o que mostrar que esta carreira escolhida tem uma história
é chamada educação humanizada. milenar e que desde seu início foi pautada por situações
Algumas escolas preconizam que somente ensinar que devem ser vistas como um momento de reflexão,
bioética e cuidados médicos não conseguem passar sendo que neste momento é que entra o conhecimento
ao aluno conceitos de humanização suficiente, da matéria em questão, a vivência do profissional e
sendo necessário acrescentar também conceitos principalmente seu respeito para com o outro.

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Passeamos pela história médica e seus períodos no de vista ao invés de abrir uma discussão a respeito.
tempo, assinalando cada época com seus dilemas e Muitos já trazem uma carga genética forte para a arte
instantes reflexivos, tentando resgatar para o aluno o médica, pois vêm de um lar com pais médicos e portanto
principal do pensamento, ou seja, que em cada momento com um norteador muito forte ou para ser seguido;
histórico, cada descoberta, seja de nova patologia ou nova outros não têm este aparato na sua formação, imaginam a
terapia, leva a uma nova reflexão em relação ao advir desta carreira médica das mais variadas formas possíveis, com
situação. Exatamente como estamos passando agora com forte caráter curativo às vezes e outras com grande pene-
células tronco, transplantes, transgênicos e outros. tração social e ascensão social. Alguns vêm de famílias
Começamos a instigar a necessidade do aprimora- abastadas, outros de famílias que fazem verdadeiro
mento técnico como médico, não só com ênfase de uma malabarismo para custear seus estudos, ou seja o universo
melhoria clinica para seu paciente, de uma diferenciação formado tem uma gama fenomenal de pensamentos.
médica na qualidade profissional, mas de uma necessi- Então como trazer para estes jovens das mais variadas
dade de conhecimento para poder confortá-lo além do formações um pensamento que os faça refletir de uma
curar, sabendo dos limites da medicina atual. maneira mais coletiva possível em relação à carreira
Após este inicio voltamos a nos encontrar no 4º médica, o mundo atual, o respeito pelo outro, ou melhor,
semestre, quando partimos para a introdução da bioética a sua inserção em um mundo que age de uma forma e o
como matéria curricular. cobrará de outra.
Quando nos foi dada a incumbência de ministrar Ao demonstrarmos o início das leis no código de
bioética para os alunos da faculdade de medicina, Hamurabi, notam que desde então existia nítida diferença
começamos a pensar e vivenciar o quão é difícil esta mis- entre ações médicas em escravos e gentios.
são, uma vez que iniciamos a reflexão do ponto de vista Explanando sobre a democracia e Péricles e depois o
do aluno, considerando até onde esta disciplina pode seu final, os alunos observam que apesar do tempo passa-
influenciar suas carreiras. Aí então foi nosso primeiro do, não existe diferença dos tempos atuais. Alguns
impacto com o ensino da bioética: deve o professor inter- indagam o porque dos médicos terem que observar os
ferir no pensamento do aluno e tentar modifica-lo, ou preceitos éticos e outros profissionais nem tanto.
apresentar todas as possibilidades e deixar que ele forme Ao discutirmos "início de vida", marcando o seu princípio
sua opinião para depois conversar o direcionamento da nas mais variadas fases do desenvolvimento embrionário,
questão? Ou então ainda, aproveitar de seu pensamento e nos perguntam por que marcamos o "final da vida" como
daí cultivar as diretrizes da bioética? Aproveitar a moral a morte cerebral, com os ditames de Harvard (protocolo
para direcionar para algo maior,a ética? de morte cerebral) e não marcamos o "início da vida"
A formação social deste aluno, sua cultura, seus quando se completa o sistema nervoso ao redor da
credos, a sua visão da área médica atual, a sua possibilidade décima segunda semana?
econômica de subsistência para sua formação As indagações se avolumam à medida que seus
profissional, tudo isto tentamos discutir com eles para a conhecimentos vão crescendo e que sua moral entra em
verificação da importância na sua escolha profissional. rota de colisão com algo novo e que nunca tinha sido
Estes vêm de lares com uma moral de certa forma já observado daquela forma e que nunca tinham tido a
estabelecida, passam a se reunir com uma série de outros percepção de que neste momento estariam se
alunos que também possuem este tipo de modo de vida, defrontando e tendo que agir, ou opinar sobre o fato.
próprio ou em parte semelhante e que no período de for- Então daremos ao aluno armas para se equilibrarem
mação como ser humano social será submetido a uma na reflexão de um problema.
maratona de matérias, importantíssimas, e que darão rumo Falamos sobre o início da bioética com Potter e suas
à sua vida desde então. Cada um traz dentro de si uma intenções quanto ao futuro da ciência se não houver um
carga de sentimentos, posições sociais, religiosas, políticas norteador para as pessoas que trabalham com ela.
e culturais estabelecidas e vividas no seio da família e, que Introduzimos os conceitos de princípios, não somente a
de certa forma moldou seu caráter até então. Ao mesmo teoria principalista de Beauchamp e Childress, mas
tempo,os alunos encontram-se em uma fase de auto-afir- princípios como utilitarismo, tolerância e outros.
mação importante, por vezes tentando impor seu ponto E então nos pedem coisas mais concretas, e neste

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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momento temos que observar e iniciarmos um trabalho quais a morte de uma pessoa se tornou uma banalidade,
para que eles entendam que existe algo acima do pensa- uma guerra se tornou uma banalidade!
mento material do maniqueísmo do certo e do errado, Como fazer este aluno pensar nisto sem ocasionar
algo que traduz o conhecimento humano com todas uma mudança nos conceitos já embargados?
suas linhas de pensamento e que se chama filosofia, e Até o momento utilizamos estudo em grupo, mesas
com isso a ética. e discussão com outros profissionais das áreas correlatas
Neste momento fazemos a observação de um pen- à ementa de bioética, solicitando a participação ativa,
samento ético universal para que eles compreendam o como em grupos de análise, e estamos obtendo um
que é multidisciplinaridade na chamada "lei de ouro", gratificante retorno de idéias, sentidos e "conceitos" mais
que foi explanada de várias formas, pelos mais variados simplistas, porém com uma grande coerência lógica.
iluminados, de varias partes do mundo e que por sua Mas, mesmo assim,pensamos que devemos encarar a
enorme simplicidade e pela enorme gama de "centris- bioética como uma parte em um todo muito maior, que é
mos" do ser humano, é impossível de ser aplicada "Não o congraçamento entre as disciplinas técnicas, o cuidar
faça ao outro o que não quer que lhe façam", uma simplicidade depois de cessado todas possibilidades terapêuticas, o
que é peculiar à ética, abarca tudo e todos. crescente aumento de conhecimento pelo aluno de sua
Neste momento vemos a dificuldade que existe para imensa responsabilidade social, dando a ele condições de
raciocinarem sem terem sido apresentados às escolas vivência médica, conhecimento em artes, e demais
filosóficas e seus pensamentos ou pensadores, sem dis- cadeiras que são necessárias para a formação profissional.
cussão prévia de problemas sociais como miséria, fome,
final de vida e outros, tanto nas escolas, como no próprio CONSIDERAÇÕES FINAIS
lar. Sem saberem como pensam seus familiares mais
próximos sobre patologias limitantes, prolongamento de Após esta explanação acima, verificamos que desde o
estado vegetativo, pois são tabus difíceis de serem con- início dos pontos citados na ética, como código de
versados sem causarem mal estar ou constrangimento. Hamurabi por exemplo, houve diferenciações nas
Então como poderão conversar com familiares de diversas sociedades em relação à classe social dos
paciente nestas condições? Explicarão somente os dados indivíduos e às suas implicações referentes à conduta
clínicos da patologia e seu desenrolar estatístico, procu- a ser tomada perante fatos similares e julgamentos
rando o não envolvimento com a situação emocional diferenciados. Portanto se os próprios seres humanos
dos envolvidos? diferenciam em alguns mais humanos que outros, como
Temos então o primeiro óbice a transpor, a grande poderemos viabilizar uma regra universal de conduta
quantidade de alunos que chegam, bem ou mal informa- (postura) ética neste caso? nações têm culturas dife-
dos, mas que em poucas vezes durante sua vida rentes, exemplo Estados Unidos e Iraque, que devem ser
acadêmica foi mostrada a importância da sua opinião e compreendidas e respeitadas, discutindo os temas éticos
até onde ela pode acarretar conseqüências importantís- à luz destas premissas.
simas na vida de um outro ser humano, seu semelhante Partindo desta proposição devemos ver o ensino da
em todos aspectos e esperanças. bioética considerando variáveis que se multiplicam dia-a-
Um segundo ponto é tentar mostrar para o aluno a dia, mediante o progresso cientifico-tecnológico, o
importância de observar as alterações ao seu redor e progresso cultural, os novos aspectos religiosos,entre
filtrar aquelas que por ventura possam distorcer sua outras. Associa-se a tudo isto um aluno que chega na
convivência com o outro no seu trabalho, na sua vida faculdade de medicina sabidamente ávido para os
social e mesmo espiritual. conhecimentos médicos e trazendo dentro de si uma
Vivemos em um mundo que diariamente surgem moral que até então foi inculcada durante anos e que
situações conflitantes de interesses, os quais demons- nesse momento vai se defrontar com morais de outros
tram cada vez mais o poder da força e do poder alunos, com regras médicas-legais estabelecidas e codifi-
econômico na vida das pessoas. Avolumam-se fatos nos cadas, e ainda com situações conflitantes com sua moral

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prévia. Portanto mais vários óbices para uma regra de Ética Médica dentro da faculdade de medicina,
universal de ensino. possuindo currículo próprio, história e penetração
Mas não vejo isso como algo desanimador, muito ampliada em relação à ética médica, apresenta uma vida
pelo contrário, penso que seja mais um fator de diferen- pulsante, vibradora e reflexiva que constantemente deve
ciação das escolas médicas entre si. Será, no meu ser reavaliada, em um ir e vir, para ampliarmos
entender, um fator importante na qualificação de uma as fronteiras da aceitação mais abrangente possível para
faculdade, pois o ensino de bioética muito bem dire- fatos novos e situações inusitadas. Em algumas escolas
cionado formará profissionais com uma visão clinico e internacionais a bioética faz parte de um contexto
cuidadora mais moldada às necessidades do ser humano maior, um conjunto de aprendizado que passa pela
em todas as fases da sua vida. filosofia, antropologia social e humana, religião, artes,
Mas como isto poderá ser realizado, se acima foi dito que será literatura, ética
praticamente impossível fazê-lo? A formação do docente é de suma importância,
A resposta está no preparo da ementa do curso de sobretudo quando da constatação de que é praticamente
bioética, a inserção da bioética dentro de um contexto impossível alguém deter todos os conhecimentos
muito maior e não vê-la de uma maneira isolada. necessários para o ensinamento de bioética,uma vez que
Um contexto em que se aplicam outras facetas que se bioética em sua dimensão e pela própria definição é de
tornarão importantíssimas após não haver mais solução caráter interdisciplinar,reafirmado em Potter, ao referir-
técnica para o fato, a ação do cuidar na medicina, a soli- se ao caráter multidisciplinar da bioética, envolvendo em
dariedade no campo social. seu bojo, várias especialidades, como de biólogos, médi-
Outra resposta está na formação do corpo docente cos, filósofos, sociólogos,entre outros. O docente teria
da matéria, seu engajamento com a ética médica, sua que ser um expert em diversas especialidades, o que se
vivência e suas experiências profissionais. O relaciona- caracteriza como praticamente impossível devido à
mento entre o corpo docente, a complementação entre a complexidade de informações em cada especialidade.
técnica e a ética a ser observada. A aplicação da ementa Sob este prisma o docente deve observar o conteú-
deve ser progressiva e embasadora, propiciando ao aluno do programático, a participação dos alunos, pois uma
um constante e enriquecedor alicerce para seu futuro, mesma aula em dois grupos diferentes pode ter um
abrindo um leque maior de conhecimento para suas desfecho mais abrangente em um que outro por sua
reflexões. participação, ampliando com suas indagações e abrindo
Ao planejar um cronograma de bioética propomos novas perspectivas de reflexão. O docente deve manter
mesclar conhecimentos clássicos da bioética aos conhe- um rol de colegas de cadeiras médicas, como não médi-
cimentos que os alunos desejam refletir, assim como cas, que tenham um pensamento em comum em relação
com aqueles que surgem diariamente com o progresso às virtudes contidas na bioética, porém pontos de
científico, na mídia e com o contato com os pacientes, reflexão que dêem uma visão pluralista ao fato em
sem deixar de considerar elementos que permitam questão, pois assim sendo o aluno terá mais uma vertente
introduzir a filosofia, as artes relativas com a especiali- para observar e refletir.
dade e a religião. Mas em que tempo deveria ser ministrada a bioética?
Isto vem de encontro com a proposta da World Neste ponto temos até o momento uma variada gama
Medical Association que recomendou a inclusão da ética de instantes que a ética/bioética é ministrada nos cursos de
médica no currículo das faculdades de medicina, assim medicina como foi demonstrado(8,27). Em alguns países,
criando uma nova cultura na profissão médica. Canadá, a bioética é ministrada desde o primeiro ano do
Neste momento temos algo que é comum, até certo curso de medicina, porém tiveram que ministrar curso de
ponto, no qual em certas escolas o tema ética médica é bioética para outros médicos que se identificaram com a
fundido com o tema bioética, o que não é de se estra- disciplina para suprir professores médicos nestas faculdades.
nhar pois desde a sua concepção a bioética tem para No meu ponto de vista, bioética deveria fazer parte de
alguns a impressão digital da ética com uma roupagem um complexo maior de disciplinas englobadas em um
nova que veio para reavivar esta última. Para outros a bloco, no qual iniciar-se-ia uma estruturação no comporta-
bioética tem um caráter mais especifico dentro da cadeira mento do aluno, aproveitando a moral trazida consigo,

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associando-a a um estudo desde o início do curso até o final tização, que além de podermos observar o conteúdo do
da residência médica, com reciclagem em congressos e fato podemos observar o sentido de criatividade e a força
cursos de atualização da especialidade (não como um curso com que o fato está atingindo o representante. Apesar
somente de bioética). A filosofia e suas correntes principais desta variabilidade de recursos devemos ter sempre em
relacionadas com o pensamento humano e com a medicina, mente que devemos suscitar no aluno a importância de
deontologia e diceologia, para conhecerem os deveres e sua reflexão para o fato em questão, que na maioria das
direitos médicos, deveria ser introduzida e acompanharia o vezes não surge naquele instante, mas que ao se ver na
aluno até o final do curso com ênfase ao que é chamado de situação referida se recorde e aplique de uma maneira
bioética ao lado do leito. As artes, literatura, história da correta o aprendizado reflexivo adquirido. Aí teríamos
medicina, cuidados humanos, antropologia seriam ministra- alcançado nosso objetivo.
dos com especialistas e em formato de mesas redondas Então chegaríamos no ponto mais difícil desta troca
dirimir dúvidas, acrescentando reflexões com novos conhe- de informações entre professor e aluno. Como avaliar
cimentos. O aproveitamento de docentes de outras áreas essa passagem de informações entre os dois?
não aumentaria o ônus da universidade, em vista de que O primeiro desafio é aquele que muitos estudantes,
professores de outras áreas já ministram aulas nestas casas. no início do curso, não dão um devido valor à matéria,
A ementa neste caso pode e deve variar quanto a pois em suas concepções o curso é para formar médicos,
regionalidade da faculdade de medicina, porque os proble- aqueles que irão salvar vidas; para outros uma forma de
mas locais têm uma razão direta de ocorrência com a quali- ascensão social com melhoria de proventos, neste
ficação do local vivido pela sociedade nativa. momento devemos orientá-los que como profissionais
Quanto mais diferenciada economicamente a região devem pensar nesta ascensão como uma conseqüência e
terá diferentes problemas para se resolver, sua sociedade não um objetivo a ser incansavelmente perseguido, pois
responderá diferentemente à fenômenos culturais, raciais para um bom profissional sempre haverá o reconheci-
e outros, do que aquelas menos diferenciadas. Porém os mento pelo outro, paciente e familiar, com conseqüente
tópicos fundamentais devem ser mantidos, como por valor agregado de seu trabalho.
exemplo a história da bioética, os princípios, os casos Como dito anteriormente, na deontologia e confir-
paradigmáticos,e as resoluções e leis que advieram após mado pela maioria dos professores médicos de todo
o aumento das reflexões bioéticas no mundo. Esta pro- o mundo, o comércio não tem local na profissão de
posta de ensino parece ser viável, mas devemos levar em médico(37). Porém, as mudanças comportamentais rela-
consideração as dificuldades administrativas que as facul- cionadas à evolução social fazem com que sejam revistas
dades ou as localidades onde estão situadas as faculdades, as condições sob as quais o comércio deva ser conside-
não ligadas a uma universidade, em conseguir o número rado, relacionando-o, por exemplo, aos preços fixados
de professores necessários. pelo trabalho, às formas de publicidade,entre outros,em
Em algumas localidades o mesmo professor ministra conformidade a um padrão ético-social adequado.
aula de ética médica nas duas faculdades existentes no Outra condição que geralmente ocorre é que a maio-
local(27). Até em países ditos de primeiro mundo para um ria dos alunos é jovem e não tiveram contato ainda com
curso mais próximo do ideal, que acompanhe o aluno pacientes, talvez faz com que dêem valor maior para as
desde o seu ingresso na faculdade de medicina, não cadeiras com enfoque utilitarista, como Anatomia,
existe número suficiente de professores de bioética com Fisiologia, etc., em detrimento a cadeira subjetiva como é
preparo adequado para tal, haja vista o Canadá como a Bioética. Ao passar dos anos e com contatos com
mencionado acima. pacientes e com fatos sabidos de outros colegas que
A forma que deve ser ministrada a bioética é outro tiveram problemas junto aos conselhos de medicina,
ponto a ser muito bem elaborado. procuram objetivar suas atenções para os fatos citados
Hoje contamos com uma vasta gama de recurso para nas aulas de ética/bioética anteriores(27).
ilustração de aulas, desde filmes, diapositivos eletrônicos A avaliação do aprendizado pode ser realizada de
estáticos ou dinâmicos, simpósios via internet, confe- várias formas como por exemplo, seminários, prova
rências simultâneas, até a tradicional aula magistral, com subjetiva, provas objetivas e trabalhos realizados com
seminários, discussão em grupos, chegando até à drama- consulta em biblioteca e via on-line, porém sempre de difí-

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cil quantificação pois é de caráter subjetivo muitas das minoria que não teve sua opinião aceita como a decisão
ações bioéticas até o momento, como por exemplo final, sempre é de difícil aceitação desta realidade.
caracterizar com exatidão o início da vida, mas algumas Principalmente quando esta lei vai de encontro à
outras ações são objetivas, como a morte encefálica de nossa moral e ditames da nossa profissão, como a
um paciente, conforme os critérios de Harvard. discriminização do aborto.
Certa feita realizamos um trabalho em grupo com 50 Portanto falar em universalização da bioética, emen-
alunos do 4º semestre da faculdade de medicina, ta única de ensino, ensiná-la como outra matéria do
dividindo-os em 5 grupos de 10 alunos e solicitando para currículo médico, sem observar fatores como a regionali-
que eles refletissem, cada grupo, a respeito de que zação da faculdade, sem observar a moral dos alunos e
momento, desde a concepção até o nascimento, haveria compreende-la, sem a observância do período contínuo
vida no ser humano.
do 1º ao 6º ano do curso, assim como na pós-graduação,
Posteriormente cada grupo traria sua classificação e
devem ser muito bem estruturadas estas ações, pois não
nomearia um representante do grupo que faria a
somente existe o ato de ensinar, mas existe também o ato
exposição dos motivos que levaram o grupo àquela
escolha. Feito isso observamos como seria esperada uma de aprender com o aluno, o que foi muito divulgado na
variação de respostas para o mesmo fato, inicio de vida. obra de pedagogia conscientizadora de Paulo Freire.
Após as explanações pedimos que os 5 represen- Nosso intuito maior é abrir um espaço dentro de
tantes se reunissem e deliberassem um momento para o toda a enxurrada de informações médicas que são expos-
inicio de vida, que seria tido como uma lei para aquela tos estes alunos para uma ilha, onde poderão encontrar
turma em relação aos demais fatos que pudessem vir algo que os apóie e conforte nos momentos mais impor-
após a concepção como os embriões excedentes, por tantes de sua carreira profissional: Curar sempre que
exemplo. Nesse momento eles observaram como são possível, lembrar que sempre é possível cuidar e fazê-los
feitas as leis, como é difícil fazê-las para satisfazer a todos sempre com respeito e conhecimento, ou seja a arte de
e o que também é muito difícil, cumprí-las, pois aquela ser médico.

“Bioética nada mais é do que os deveres do ser humano para com


outro ser humano e de todos para com a humanidade”.

(André Comte-Sponville)

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Movendo-se entre o desejo


e a prática da beneficência
Moving from the desire to the practice of beneficence
Marcha desde el deseo a la práctica del la beneficencia

Heloisa Wey Berti*


Eliana Mara Braga**
Ilda de Godoy***
Wilza Carla Spiri****
Silvia Cristina Mangini Bocchi*****

RESUMO: O estudo enfocou o referencial da beneficência e sua observância por enfermeiros recém formados que se encontram trabalhando em
um hospital público estadual. Teve os objetivos de apreender como os enfermeiros participantes do estudo interpretam a realidade da sua prática;
identificar e problematizar aspectos da prática assistencial frente à observância dos referenciais bioéticos de beneficência e não-maleficência e
apontar caminhos para a superação dos problemas identificados. O método foi qualitativo, utilizando-se a técnica de grupo focal para coleta de dados.
A organização dos dados registrados e análise foi feita à luz da Grounded Theory. Foram identificados dois fenômenos: Convivendo com situações
que impedem a prática da beneficência e Movendo-se em direção à observância da beneficência. O inter-relacionamento desses dois fenômenos fez
emergir a categoria central - Movendo-se entre o desejo e a prática da beneficência. Este estudo evidenciou alguns fatores que impedem os
enfermeiros de praticar a beneficência, seus envolvimentos e suas atitudes de resistência. Os movimentos em direção à beneficência, embora ainda
tímidos, tendem a se tornar mais eficientes à medida que forem criadas oportunidades para problematização da prática profissional.
PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem. Bioética. Beneficência.

ABSTRACT: This study examined beneficence references and its practice as followed by newly graduated nurses that work in a State hospital. It
aimed to show how participating nurses interpret the reality of their practice; it also identified and problematized aspects of social practice
regarding the bioethical principles of beneficence and nonmaleficence and pointed out paths for overcoming the identified problems. A qualitative
analysis method was used, and the focal group technique was the tool chosen for collecting data. Grounded Theory was the method used for data organ-
ization and analysis. Two different phenomena were observed: 1 - Dealing with situations that frustrate the practice of beneficence and 2 - Moving
towards the observance of beneficence. The association of the two phenomena raised the central category - Moving from the desire to the
practice of beneficence. This study brought up some factors that hold back nurses efforts to practice beneficence, their involvement and resistance
attitudes. Actions towards beneficence, however timid, tend to become more efficient as opportunities regarding the discussion of professional
practice and studies arise.
KEYWORDS: Nursing. Bioethics. Beneficence.

RESUMEN: Se estudiaran referencias de la beneficencia y su práctica según enfermeros recién-graduados que trabajan en un hospital del Estado.
Pretende demostrar cómo los enfermeros participantes interpretan la realidad de su práctica; también identificó y problematizó aspectos de la
práctica social respecto a los principios bioéticos de la beneficencia y de la non-maleficencia y precisó las trayectorias para superar los problemas
identificados. Se utilizó un método cualitativo de análisis, y la técnica del grupo focal fue la herramienta elegida para recoger datos. La Grounded Theory
fue el método usado para la organización y el análisis de los datos. Se observaran dos fenómenos fueron observados: 1 - El ocuparse de las situa-
ciones que frustran la práctica de la beneficencia y 2 - Marchar hacia la observancia de la beneficencia. La asociación de los dos fenómenos levan-
tó la categoría central - marchando desde el deseo a la práctica de la beneficencia. Este estudio revela algunos factores que perjudican los esfuerzos
de los enfermeros en practicar la beneficencia, su involucración y sus actitudes de resistencia. Las acciones hacia la beneficencia, aunque tímida, tien-
den a ser más eficientes mientras que se crean oportunidades respecto a la discusión de la práctica y de los estudios profesionales.
PALABRAS LLAVE: Enfermería. Bioética. Beneficencia.

* Professora Assistente Doutora, Departamento de Enfermagem. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP. E-mail: weybe@uol.com.br
** Professora Assistente Doutora, Departamento de Enfermagem. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
*** Professora Assistente Doutora, Departamento de Enfermagem. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
**** Professora Assistente Doutora, Departamento de Enfermagem. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
***** Professora Assistente Doutora, Departamento de Enfermagem. Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
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INTRODUÇÃO Neste estudo, Exploratório, transversal e qualitativo,


utilizou-se a técnica de grupo focal para coleta de dados.
Os referenciais bioéticos têm sido instrumentos Grupo focal é um grupo de discussão informal, de
importantes para análise de dilemas e conflitos morais tamanho reduzido, com o propósito de obter infor-
que surgem no cotidiano dos profissionais de saúde(1). mações de caráter qualitativo e em profundidade, reve-
Neste estudo, o enfoque será dado ao referencial da lando as percepções dos participantes sobre os tópicos
beneficência e sua observância por enfermeiros recém- em discussão. O registro da discussão foi feito por
formados que se encontram trabalhando em um hospital escrito pelos observadores e por meio de gravação em
público estadual. fitas cassete(6,7).
O referencial bioético da beneficência diz respeito ao Foram seguidas as seguintes etapas: encaminhamen-
bem comum e à solidariedade humana que, segundo to do projeto ao diretor do hospital, solicitando e
Engelhardt(2), "é a base do que se poderia chamar de obtendo autorização para o desenvolvimento do estudo;
moralidade de assistência social e solidariedade" (p. 160). encaminhamento do projeto ao Comitê de Ética em
A origem do princípio da não-maleficência encontra- Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu -
se em Hipócrates: "cria o hábito de duas coisas: socorrer UNESP, tendo sido aprovada sua execução.
ou, ao menos, não causar danos". Socorrer ou cuidar, de
acordo com Boff(3), significa atenção, desvelo, solicitude, Procedimentos Metodológicos
bom trato. A atitude de cuidado pode provocar "preocu-
pação, inquietação e sentido de responsabilidade"(p. 91). Adotou-se a abordagem metodológica qualitativa
Os códigos de ética que orientam o agir dos profis- indutiva de exploração, decisão e descoberta(8).
sionais de saúde contêm grande número de prescrições Os participantes selecionados para comporem o
referentes à promoção de benefícios e prevenção de grupo foram 15 enfermeiros que se encontravam atuan-
danos à saúde. Embora esses códigos destaquem o com- do em diferentes áreas da instituição e que concordaram
promisso dos profissionais com a transformação da em participar da pesquisa, assinando o Termo de
realidade, ainda persiste uma ética alienada, que nem Consen-timento Livre e Esclarecido. Foram obedecidas
sempre questiona a ordem estabelecida, e uma ética utili- as seguintes etapas: a) após as apresentações dos partici-
tarista, que prevê o alívio dos sofrimentos, até com o pantes, dos objetivos do estudo e dos referenciais da
objetivo de alcançar a própria salvação(4). Bioética, o grupo foi convidado e estimulado a falar
Entendendo a vida como um valor ético, o qual não sobre sua prática assistencial e suas experiências na insti-
permite equivalente, sendo ela, a vida, fim em si mesma tuição e em seguida a refletir sobre essa prática, utilizan-
e não meio, cujo valor íntimo é a dignidade, conside- do os referenciais bioéticos da beneficência e não-
ramos que os profissionais devam se pautar por práticas maleficência; b) os autores se reuniram para transcrição
responsáveis e solidárias, respeitando diversidades, maxi- dos diálogos, organização dos dados registrados e
mizando benefícios e minimizando prejuízos(5). análise, à luz da Grounded Theory; c) foi apresentado o
Entendendo que o exercício da enfermagem deve relatório do estudo aos participantes e discutido o tema:
fazer uso dos referenciais bioéticos nas reflexões sobre sua "Caminhos para a superação dos problemas evidenciados".
prática, as autoras deste estudo propõem a apropriação
destes por enfermeiros de um Hospital Estadual para Convivendo com situações que impedem a prática
análise problematizadora da sua prática assistencial. da beneficência. Movendo-se em direção à
A finalidade deste trabalho foi a de criar espaços comu- observância da beneficência
nicativos e de reflexão ética sobre a beneficência e não-
maleficência no exercício profissional. Apreender como os Foi possível a identificação de dois fenômenos: 1 -
enfermeiros participantes do estudo interpretam a reali- Convivendo com situações que impedem a prática da
dade da sua prática; identificar e problematizar aspectos da beneficência e 2 - Movendo-se em direção à observância da
prática assistencial frente à observância dos referenciais beneficência.
bioéticos de beneficência e não-maleficência e apontar Os temas que compõem o fenômeno - Convivendo com
caminhos para a superação dos problemas identificados. situações que impedem a prática da beneficência - serão apre-

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sentados a seguir nas letras "A", "B", "C" e "D" e respectivas "[...]para muitos pacientes seria possível tomar algumas
categorias. medidas preventivas, mas a gente não consegue colocá-
las em prática[...]"
A - Impedimentos à beneficência "[...]por exemplo, a úlcera de decúbito poderia ser pre-
venida se houvesse colchão de ar para todos os que
Percebendo dificuldades decorrentes da desorga- necessitam, mas não há".
nização do sistema "[...]então será necessário fazer uma escolha de pacientes
A falta de diversos especialistas em serviços de pronto- e isto não vai atender a todos os que necessitam"
socorro gera complicações maiores no estado de saúde dos
pacientes, os quais são internados já apresentando compro- Constatando que as ausências de funcionários ao
metimentos devido ao atendimento inadequado. O trabalho e escassez de pessoal dificultam a assistên-
encaminhamento desses pacientes para serviços com mais cia e impedem a beneficência
recursos nem sempre é possível, não contribuindo, com isso, A falta de funcionários gera a necessidade de se esta-
para a beneficência. belecer prioridades para as decisões relacionadas à
"[...]é freqüente a gente receber paciente enfartado proce- assistência, sendo que as escolhas feitas em benefício de
dente do PS sem uso de medicação específica já tendo desen- um paciente poderão ser em detrimento da atenção a
volvido complicações, causando malefícios". outro paciente. Com isso, a beneficência fica compro-
"[...]o médico plantonista do PS era de outra especialidade metida, suscitando críticas pelos familiares que percebem
sem experiência no diagnóstico de enfarto[...]" a relação entre as necessidades dos pacientes e a falta de
"[...]se houvesse o especialista o atendimento seria adequado pessoal.
e erros seriam evitados". "[...]a ausência de funcionários no plantão dificulta a
"Muitas vezes o melhor seria o encaminhamento dos pacientes para assis-tência aos pacientes, impedindo a realização de
serviços com mais recursos, porém nem sempre existe esta possibilidade". todas as atividades necessárias".
"[...]com a falta de pessoal preciso estabelecer prioridades
Refletindo sobre a incompatibilidade entre número de para tomada de decisão sobre o cuidado".
leitos e número de funcionários "[...]qualquer escolha que eu faça poderá beneficiar um
Abrir leitos extras sem o número de funcionários paciente em detrimento de outro, e isso é que é o pior".
necessários para os cuidados impede a prestação de assistên- "[...]nossa principal dificuldade é a escassez de pessoal de
cia adequada, como mudanças de decúbito, auxílio ao enfermagem porque impede a assistência adequada".
paciente nas deambulações, sendo necessário, muitas vezes, o "[...]a família observa a necessidade do paciente e nos
adiamento de alguns cuidados, com prejuízos para os critica porque não podemos dar conta em razão do
pacientes. reduzido número de funcionários".
"[...]existem ainda as situações onde se abrem leitos extras Observando a falta de comprometimento de funcio-
sem o aumento de funcionários e isso impossibilita a nários com a assistência
adequada assistência". Há dificuldades para a prestação de assistência devido
"Quando abrem leitos extras a gente não consegue fazer as à falta de responsabilidade por vezes observada entre o
mudanças de decúbito conforme as necessidades dos pacientes". pessoal auxiliar. O enfermeiro convive muitas vezes com
"A gente prioriza os cuidados, mas isso pode não contemplar todos funcionários indiferentes e displicentes, que não conside-
os necessários". ram as necessidades de cuidados de seus pacientes, que
"Nessas situações de excesso de pacientes e falta de pessoal de enfer- faltam ao serviço e tiram licenças freqüentes.
magem há também prejuízos do ponto de vista psicológico". "Temos, ainda, dificuldades para prestar assistência pela falta de
responsabilidade por parte de certos funcionários".
Percebendo que a falta de material impede a adoção "Temos funcionários que são indiferentes ao trabalho[...]"
de medidas de prevenção aos agravos "Também há funcionários displicentes que não consi-deram que os
O número insuficiente de alguns materiais leva o pacientes necessitam de cuidados[...]"
enfermeiro a ter que escolher qual o paciente será bene- "São muito freqüentes as faltas e licenças de funcionários e isso tem
ficiado pelo usodesses materiais. prejudicado a assistência".

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Percebendo a dependência que o médico tem do B - Envolvimentos do enfermeiro com a não


enfermeiro e suas implicações observância da beneficência
Há médicos que exigem a presença constante e nem
sempre necessária do enfermeiro ao seu lado, dificul- Delegando o cuidado do paciente a outro membro
tando o trabalho desse enfermeiro que, com freqüência, da equipe por não poder fazê-lo, mas sentindo-se
opta por atender o médico para não gerar conflitos. em conflito consigo mesmo
"Existem médicos que exigem minha presença permanente ao seu Ao serem solicitados a realizar múltiplas atividades
lado e isso dificulta meu trabalho, até porque minha presença e tendo que resolver problemas burocráticos diversos,
nem sempre é necessária". os enfermeiros acabam delegando a assistência aos téc-
"Caso eu me recuse a permanecer ao lado do médico quando ele nicos e auxiliares de enfermagem, sentindo-se, com
me solicita, vai gerar um grande conflito, então, para evitar isso, isso, em conflito.
deixo de fazer outras coisas para atendê-lo". "[...]desejando oferecer alimentação para o paciente ou
"[...]às vezes o médico me pede que o ajude em tarefas minimamente conhecer se este tem condições para se
burocráticas que são dele". alimentar, acabei solicitando aos funcionários da equipe
"[...]mesmo que a gente explique que está fazendo outra de enfermagem para darem a assistência porque eu não
atividade há insistência por parte dele (médico) em ser poderia fazê-lo"
atendido". "[...]esta é uma situação que nos deixa em conflito, pois
se assumirmos o cuidado direto da alimentação do
paciente deixaremos de atuar em uma outra situação
Observando desperdício de material e implicações
problemá-tica para a qual estamos sendo solicitados".
para a beneficência
"[...]como enfermeiros temos que realizar múltiplas
Situações de imperícia profissional levam ao des-
atividades: assistência, resolução de problemas, buroc-
perdício de materiais, podendo trazer prejuízos ao
racia".
paciente. "[...]somos muito solicitados a resolver os mais diversos
"Outro dia, três conjuntos de materiais para uso em respiradores problemas, especialmente os burocráticos, e acabamos
foram abertos e não puderam ser usados, causando prejuízo ao delegando as atividades assistenciais para auxiliares e
paciente pela demora do atendimento e prejuízos para o hospi- técnicos de enfermagem".
tal". Tendo que estabelecer prioridades nas unidades
"[...]um médico utilizou para o procedimento de mais complexas, entendem certas situações como
entubação sete cânulas". desumanas.
"[...]essas coisas acontecem por imperícia do profis- Em Unidades mais complexas, como as UTIs, verifi-
sional e comprometem a assistência". cam que são estabelecidas prioridades de cuidados.
Muitas vezes, devido a essas prioridades, certos cuida-
Percebendo que rotinas estabelecidas impedem a dos são adiados e isso não beneficiará o paciente,
prática da beneficência e invertem prioridades
podendo caracterizar uma situação desumana e malefi-
Os enfermeiros são cobrados por atividades admi-
cente.
nistrativas e burocráticas, entendidas pela instituição
"[...]a UTI tem pacientes complexos e é necessário esta-
como prioritárias, abdicando o enfermeiro do contato
direto com o paciente. belecer prioridades para os cuidados"[...]entre mudar de
"Sou cobrada para realizar atividades consideradas prioritárias decúbito e introduzir sonda para alimentação a priori-
pela instituição". dade é a sondagem".
"Muitas vezes, as rotinas estabelecidas nos impedem de praticar "A rotina na UTI estabelece que o banho deve ser no plantão
a beneficência e isso pode causar sofrimento ao paciente". noturno e isso é ruim para o paciente".
"Deixo de realizar atividades de contato direto com o paciente "Às vezes, os banhos são dados na UTI depois da meia- noite
para fazer outras coisas que consideram mais importantes". em situação difícil porque o paciente está apresentando dor".
"[...]temos que desempenhar muitas atividades adminis- "Muitas vezes temos que priorizar o banho diurno para os
trativas/burocráticas". pacientes conscientes e o noturno para os pacientes entubados e
"[...]o cuidado acaba sendo é deixado de lado". isto é desumano"[...]

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Percebendo o envolvimento do profissional com o "[...]a confiança vai depender de se sentir seguro na insti-
seu trabalho como condição para a beneficência e tuição".
para sua própria satisfação Percebendo-se angustiado quando não pode
Entendem que o envolvimento do profissional com a fazer o bem
sua profissão tem uma dimensão ética. Percebem que é Angústia, frustração, revolta e impotência são senti-
preciso gostar do que se faz para se estar mais envolvido mentos decorrentes das impossibilidades de no dia-a-dia
e compromissado com a profissão, o que possibilita uma fazer o bem. Percebem que esse estado emocional acaba
percepção ampliada das necessidades do paciente. tendo reflexos nos seus relacionamentos familiares e/ou
Pessoas que optaram pela enfermagem como profissão sociais.
pela facilidade de se conseguir emprego envolvem-se mais "A gente, rotineiramente, não fazer o bem, apenas o mínimo, fica
com as atividades burocráticas. muito angustiada".
"Vocação é uma questão ética pois quando se faz aquilo que a gente "[...]não é reconhecida a beneficência quando se faz o
gosta o benefício é maior, no entanto, há profissionais sem envolvi- mínimo".
mento com a profissão". "Tem muitas situações do nosso cotidiano profissional que impedem
"[...]existem diferentes métodos de trabalho, porém sem- o benefício aos pacientes com conseqüente angústia, frustração e
pre há como melhorar e não apenas realizar uma obri- revolta da gente".
gação". "A gente se sente impotente e isso vai ter reflexo no nosso relaciona-
"A falta de envolvimento com o trabalho e com o paciente leva à mento pessoal e familiar".
falta de percepção".
"[...]o gostar do que se faz permite ampliar a percepção D - Atitudes de resistência do enfermeiro
das necessidades do paciente". e enfrentamento de julgamentos
"É a empregabilidade no setor da enfermagem que conduz pessoas
a esta profissão". Percebendo que alterando rotinas pré-estabelecidas em
"Os profissionais que têm esta visão só do emprego não se preocu- benefício dos pacientes, o enfermeiro não é bem visto
pam com o atendimento das necessidades bio-psico-sócio-espirituais Enfermeiros ficam "mal vistos" em situações de que-
dos pacientes, mas apenas com as atividades burocráticas". bra de rotinas ou normas da instituição em favor de
pacientes.
C - Sentimentos expressados pelos enfermeiros, "Sou tida como chata por permitir a entrada de vários membros da
decorrentes do seu envolvimento em práticas família para a visita, contrariando normas do hospital".
que não observam a beneficência "Os pacientes internados na minha unidade incomodam outras pes-
soas de outras unidades porque têm mais liberdade".
Questionando escolhas e prioridades que lhes são O fenômeno - movendo-se em direção à observância da
impostas beneficência - é apresentado no tema "A" e suas cate-
Os conflitos que surgem entre escolher participar de gorias, a seguir:
uma reunião para a qual foram convocados, ficando
sujeitos a certos julgamentos caso não compareçam, e A - Movimento do enfermeiro em direção à
passar visitas aos pacientes internados para avaliar beneficência e não maleficência
necessidades de cuidados têm a ver com a segurança da
permanência do profissional na instituição. Percebendo a necessidade de cobrar de outros
"Como coordenadora de unidade, preciso escolher entre participar profissionais o cumprimento de suas obrigações e
de reuniões ou visitar os pacientes, quando estou sozinha. Se a suas limitações profissionais
escolha for não comparecer a reu-nião, serei considerada não partic- O enfermeiro cobra dos outros profissionais da
ipativa e se a escolha for deixar a assistência haverá problemas com equipe de saúde o cumprimento de atribuições, mas isso
a minha consciência". gera importante consumo de tempo. Exercem um papel
"[...]tenho conflitos sobre o que fazer para contribuir fiscalizador, porém necessário ao benefício do paciente,
mais com a assistência, quando tenho que optar"[...] mas sentem-se impotentes quando o profissional soli-
"[...]a gente tem dificuldades para se sentir confiante citado não considera seus pedidos e observações.

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"Perco muito tempo correndo atrás do médico e do serviço de fazer o bem e agir de forma correta podem, em diversas
nutrição para que prescrevam, para que corrijam etc.[...]". situações ou condições do cotidiano profissional, serem
"Acho que resolver o que não ficou adequado é minha função, dificultadas e até mesmo inviabilizadas.
porém é função das pessoas realizar suas atividades corretamente". Nesta pesquisa, a desorganização do sistema de saúde
"[...]muitos consideram isto como fiscalização do traba- regional, as carências de recursos humanos e materiais, o
lho deles". despreparo e a falta de compromisso social e ético de
"[...]entendo que muitas vezes necessito exercer este alguns profissionais foram fatores apontados como
papel fiscalizador, pois eles se esquecem de tomar suas responsáveis pelos impedimentos à beneficência.
condutas". Atuando nesse cenário, os enfermeiros vão se envol-
"[...]e a gente ainda se sente impotente quando não consi- vendo com a não observância do princípio da beneficên-
deram as informações e pedidos que estamos fazendo cia. Delegam suas atribuições ligadas ao cuidado do
pelo paciente". doente para outros membros da equipe de enfermagem
sem o mesmo preparo e estabelecem certas prioridades
Avaliando criticamente a instituição onde trabalham para dispensar sua atenção, as quais eles mesmos ques-
Há a necessidade de uma reorganização administrati- tionam. A angústia em ter que fazer sua escolha entre
va da instituição, atribuindo-se funções burocráticas a um as opções que lhes são apresentadas surge do conflito
oficial administrativo e não ao enfermeiro. A instituição íntimo entre proporcionar o bem ou omití-lo, podendo
está muito atenta à aquisição de equipamentos de alto causar prejuízos ao doente. Em tais circunstâncias, agem
custo, que são importantes para a assistência, porém essa de maneira ambígua, temendo atitudes mais coerentes,
preocupação não é percebida em relação aos materiais de mas que poderão ter conseqüências nefastas para o seu
uso mais rotineiro para o cuidado, os quais são de custos futuro na instituição, escolhendo a opção mais próxima
bem menores. Existe demora excessiva para consertos de dos centros de poder.
materiais e equipamentos, atrasando o tratamento e a Ao mesmo tempo em que se percebem tímidos em
recuperação do doente. suas atitudes, executam movimentos em direção à bene-
"A gente nota que nesta instituição há mais organização, porém no ficência, advogando em favor do doente ao exigirem
aspecto burocrático precisa haver uma reor-ganização". dos demais profissionais envolvidos com a assistência
"Muitas atividades poderiam ser feitas pelo oficial administrativo para que cumpram com seus deveres e obrigações
ou mesmo por outro membro da equipe como receber documentos, perante o doente. Nessas situações assumem seu papel
atender telefone, receber recados[...], não pelo enfermeiro". de coordenador do processo de cuidar que, de acordo
"Nesta instituição existem equipamentos de alta tecno-logia e de com Ide(9), pode ser conceituado como"seqüência
alto custo, porém, equipamentos mais simples para a prestação de dinâmica e sistematizada de ações necessárias e sufi-
cuidados de enfermagem estão sempre em falta". cientes para a construção, desempenho e validação do
"[...]por outro lado, existem equipamentos para catete- trabalho em equipe de enfermagem, agregando inter-
rismo cardíaco que quebram e necessitam aguardar um venções específicas (cuidar dual), ações complementares
período prolongado para o conserto causando demora e e interdependentes do conjunto multiprofissional (assis-
adiamento da cirurgia". tir-cuidar) desenvolvidas em contextos institucionais
peculiares." (p. 159).
Discutindo a temática Porém, em outras situações, os enfermeiros compor-
A identificação desses dois fenômenos e seu inter-rela- tam-se passivamente, inclusive alienando-se do seu obje-
cionamento fez emergir a categoria central - movendo-se to - o cuidado. Isto faz emergir sentimentos de impotên-
entre o desejo e a prática da beneficência. cia, frustração e culpa pelo não realizado, explicados pelas
Os profissionais de saúde de maneira geral, com certa dificuldades com o trabalho em equipe multiprofissional
freqüência, em determinadas situações, se sentem impo- e pelo seu reduzido espaço de governabilidade.
tentes para praticar o bem e impedir o que se considera A situação de baixa auto-estima e essa posição subal-
mau para o doente sob seus cuidados. terna na equipe multiprofissional, na qual muitos enfermeiros
A observância das regras morais sobre o agir profis- com certa freqüência se percebem, aponta não apenas para
sional estabelecidas nos códigos de ética, a disposição para uma condição profissional frágil, mas também para uma

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cidadania comprometida, ou seja, para uma condição de CONCLUSÃO


cidadãos submissos a uma dada realidade. Estes não se
vêem como sujeitos de processos de mudanças, ao con- Este estudo possibilitou-nos compreender a expe-
trário, sentem-se excluídos do sistema e submetidos a uma riência de enfermeiros frente à observância do referen-
ordem estabelecida. cial da beneficência, evidenciou fatores que impedem os
Nesta realidade, na qual a vontade humana se submete, enfermeiros de praticá-la, seus envolvimentos e suas
acabam por se envolver com práticas que ferem a moral e a atitudes de resistência. Seus movimentos em direção à
dignidade.
beneficência, embora ainda tímidos, tendem a se tornar
O poder de resistência dos enfermeiros se mostra ainda
mais eficientes à medida que forem criadas oportuni-
pequeno e estes se sentem em desvantagem em relação a
dades para problematização da sua prática, passo impor-
outros membros da equipe e às instâncias administrativas
tante para a superação das dificuldades. Nesse sentido, a
superiores da instituição, embora sejam capazes de avaliá-
los criticamente. Por outro lado, não se descarta que os estratégia de grupo focal, por nós utilizada, se revelou
demais membros da equipe de saúde e a administração bastante eficiente para a criação de espaços comunica-
sintam-se desamparados sem a atuação cuidadosa e tivos e de reflexão.
preparada do enfermeiro. Como docentes de um curso de graduação em enfer-
Observa-se, assim, a vulnerabilidade de todos: insti- magem, este estudo nos trouxe como contribuição o
tuição hospitalar, profissionais de saúde e doentes hospita- despertar para a necessidade de fortalecer ainda mais,
lizados. Essa vulnerabilidade, se compartilhada, poderá durante toda a fase de formação do enfermeiro, sua auto-
encorajá-los a buscar condições adequadas para otimizar a estima, seu senso de cidadania e de poder, por meio do
beneficência do cuidado a todos os doentes e a promover a desenvolvimento de sua força moral e das competências
integridade e dignidade do doente, da instituição e dos necessárias à atuação profissional centrada na coorde-
profissionais que nela atuam. nação do processo de cuidar.

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REFERÊNCIAS

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2. Engelhardt Jr HT. 3 Boff Fundamentos da bioética. São Paulo: Loyola; 1998. 518p. L. Saber cuidar. 7ª ed. Petrópolis:
Vozes;2001.199p.
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6. Leopardi MT, Beck, MLC, Nietsche, E A. Metodologia da pesquisa na saúde. Santa Maria: Palotti; 2001.
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um novo estilo de cuidar. São Paulo: Atheneu; 2001.

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Bioética - ponte para a liberdade


Bioethics - a bridge to freedom
Bioética - un puente para la libertad

William Saad Hossne*

RESUMO: A liberdade na bioética, embora não absoluta, é uma liberdade categorizada especial, porque tem como fator limitante apenas a ética,
que por essência, exige liberdade, e também porque é uma liberdade para opção, opção de valores. Esta é a beleza e a especificidade da liberdade,
que tem a bioética como ponte.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética-referenciais. Bioética-liberdade. Bioética-libertação.

ABSTRACT: Freedom in bioethics knowledge, although not absolute, is a special categorizing freedom, because it has as a limiting factor only ethics,
which by definition demands freedom, and also because it is a freedom for opting in terms of values. This is freedom's beauty and specificity, which
has bioethics as a bridge.
KEYWORDS: Bioethics-guidelines. Bioethics-freedom. Bioethics-liberation.

RESUMEN: La libertad en el conocimiento bioético, aunque es no absoluta, es una libertad organizadora especial, porque tiene solamente la ética
como factor limitador, y esta por definición exige la libertad, y también porque es una libertad para optar en términos de valores. Ésta es la belleza
y la especificidad de la libertad, que tiene la bioética como puente.
PALABRAS LLAVE: Bioética-pautas. Bioética-libertad. Bioética-libertación.

* Médico. Professor emérito da Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista, UNESP, Botucatu. Membro do Comitê internacional de bioética da
UNESCO, Coordenador do programa de mestrado em bioética do Centro Universitário São Camilo, São Paulo.
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INTRODUÇÃO dade, pode ser entendida, também, como forma de


poder, poder agir. Este poder agir, porém, tem condicio-
Creio que, além de ser ponte para o futuro, como nantes, pois "liberdade é poder agir", na seio de uma
preconizava Potter (1971)(1), a bioética é uma ponte para sociedade organizada, segundo a própria determinação
a liberdade e para a libertação, começando por uma, por (novamente, temos aqui, a autodeterminação), dentro
outra, ou por ambas (liberdade e libertação) ao mesmo dos limites impostos por normas definidas".
tempo. A liberdade permite exercer um poder, mas este
poder, digamos, não é absoluto, tem limites e condicio-
1.1 Liberdade e libertação - Generalidade nantes "normas definidas".
Prosseguindo nesta linha, o dicionarista assinala,
Libertação e liberdade estão, obviamente, intima- ainda, que liberdade pode ser entendida como faculdade
mente associadas, mas têm significado próprio. de praticar tudo quanto não é proibido por lei. Aqui,
Libertação é o ato ou efeito de libertar-se, e libertar liberdade traz associadas faculdade e poder efetivo
significa "dar liberdade a, tornar livre"; livrar(se); (praticar...), mas estabelece limitações ao conceito de
livrar(se) da influência de(2). absoluto, pois é faculdade para praticar, não tudo, mas o
que não é proibido por lei fator limitante.
Ao passo que liberdade é uma faculdade - faculdade
O dicionarista dá, ainda, outra acepção para liber-
de cada um se decidir ou agir segundo a própria determi-
dade, agora não pela afirmação "positiva", mas pela
nação. É evidente que para se ter liberdade é preciso
"negativa", pois liberdade é apresentada como
libertar-se. Com a libertação pode-se vir a ter a faculdade
"supressão ou ausência de toda a opressão considerada
da liberdade.
anormal, ilegítima, imoral".
Em outras palavras, quando não se tem liberdade é
Mesmo aqui, pela negativa, se verifica que a liberdade
preciso, antes de mais nada, libertar-se. Contudo quando
também não é absoluta, na medida em que tem limitação
se consegue a libertação é preciso ter condições para
"anormal", "ilegítima", "imoral", sem entrarmos na
exercer a liberdade, conseqüente à libertação. avaliação de cada um destes termos.
A bioética pode ser ponte para se obter liberdade por De acordo com o dicionário, a expressão liberdade,
meio da libertação e pode ser a ponte para o exercício da no sentido filosófico, significa: "caráter ou condição de,
liberdade já existente ou conquistada pela libertação. um ser que não está impedido de expressar, ou que
Para tornar mais explícita a proposição, analisemos, efetivamente expressa, algum aspecto de sua essência ou
ainda que de passagem, alguns aspectos relativos à liber- natureza", e continua: "quanto à liberdade humana, o
dade. problema consiste quer na determinação dos limites...
Quando se fala de liberdade, faz-se, de imediato, quer na definição das potencialidades". A liberdade
associação com a idéia de ser livre. Mas livre para o quê? aparece, aqui, como condição, mas que, vale enfatizar,
Dissemos, repetindo os dicionaristas(2), que liber- implica "estabelecer limites".
dade é uma faculdade para decidir ou agir segundo a Por essa rápida intromissão no campo do diciona-
própria determinação. Neste sentido, liberdade seria rista, verificamos que liberdade está associada à noção de
equivalente a autodeterminação. Mas, de acordo com o "faculdade, condição, poder, prática, determinação e
dicionário, autodeterminação seria "princípio segundo o autodeterminação), mas sempre com alguns limites, isto
qual um Estado tem o direito de escolher sua própria é, ela nunca é tida como "absoluta" (que não depende de
forma de governo ou ideologia". Pelo uso comum, esten- outrem ou de uma coisa, independente).
deu-se este princípio para o indivíduo que goza de liber- Bertrand Russel(3), em seu livro "Caminhos para a liber-
dade. dade", cria outro qualificativo para liberdade - a liberdade
Esta acepção será retomada mais adiante ao falarmos é um bem, bem político. Contudo, mesmo nessa
de bioética, mas desde já fica assinalada a expressão condição a liberdade tem limitantes, pois, segundo ele: "o
"autodeterminação". governo e o direito, em sua própria essência, consistem
Continuando a utilizar como ponto de referência o em restrições à liberdade" e continua "e a liberdade é o
dicionarista, vemos que liberdade, assinalada como facul- maior dos bens políticos".

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Não é, pois, sem razão que a expressão liberdade é ou de Locke, hão de convir que a noção de liberdade
quase sempre adjetivada ou seguida das expressões "de" embutida nas idéias desses autores é também acom-
e/ou "para". panhada, sempre, de limitantes ou condicionantes, sejam
Assim, "liberdade provisória", "liberdade vigiada", de natureza contratual, legal ou moral.
"liberdade didática", "liberdade comercial", "liberdade A esta altura, vale indagar se liberdade, além de
financeira" e o mais comum: "liberdade de pensamen- faculdade, poder de agir, prática, condição, bem, é
to, liberdade de crença, liberdade de imprensa, liber- também um direito.
dade de linguagem, liberdade de religião, liberdade da Tomemos como ponto de referência a Declaração
associação e não raramente, o "de" é substituído ou Universal dos Direitos Humanos, 1948(5). A Declaração
sub-entendido como "para" (liberdade para falar, liber- Universal dos Direitos Humanos faz várias referências
dade para viajar). A liberdade não é absoluta, é liber- explícitas quanto a liberdade.
dade para algo ou alguma esfera. Em seu preâmbulo, afirma o "advento de um
É verdade que, em cada uma dessas esferas ou áreas mundo em que os homens gozem de liberdade de
determinadas pelo adjetivo ou pelas expressões "de" e palavra, de crença e de liberdade de viverem a salvo do
"para", a liberdade pode ser plena, total ou restrita, par- temor e da necessidade. Mais adiante, ainda no
cial, reduzida. Vale repetir, não é absoluta. Prêambulo, fala em "liberdades fundamentais do
E, ao que tudo indica, sempre foi assim, desde o homem".
surgimento do ser humano. Em seu artigo 1º, não aparece a palavra liberdade,
Em Gênesis 1 (1-3)(4), disse Deus: "Façamos o mas afirma-se que "todos os homens nascem livres"; a
homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança; idéia aqui contida é melhor explicitada no artigo 4º, ao
tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves estipular "Ninguém será mantido em escravidão ou
dos céus, sobre os animais domésticos, sobre a terra e servidão".
sobre todos os répteis que rastejam pela terra". No artigo 2º, é colocado que "todo homem tem
Assim, o homem surge dotado de domínio (vale capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabe-
dizer, de liberdade) imenso, porém não absoluto, pois lecidas nesta Declaração.
em Gênesis 2 (2:17)(4), Deus disse: "A toda árvore do No artigo 14, se expressa o direito à liberdade de
jardim comerás livremente, mas da árvore do conheci- locomoção e residência.
mento do bem e do mal não comerás". Há, pois, um No artigo 18, se expressa o direito à liberdade de
limite ao domínio (à liberdade). pensamento, consciência e religião.
Cometido o pecado de Adão e Eva, ao homem foi No artigo 19, liberdade de opinião e expressão, e no
ainda concedida uma liberdade enorme, ampla, impor- artigo 20, liberdade de reunião e associação pacíficas.
tante-a do livre-arbítrio. Mas também sem caráter abso- Já o artigo 29 reza que "no exercício de seus direitos
luto, com limitações. Ai estão, para ilustrar, os 10 man- e liberdades, todo homem estará sujeito apenas (grifo
damentos que, de certa forma são disposições limi- meu)? às limitações determinadas pela lei, exclusiva-
tantes ou condicionantes da liberdade. mente com o fim de assegurar o devido reconhecimen-
Note-se, ainda que, dos 10 mandamentos 8 são to e respeito dos direitos e liberdades de outrem".
absolutamente restritivos ou proibitivos, e sua enun- Finalmente no artigo 30 se estabelece que "Estado,
ciação se inicia com NÃO. grupo ou pessoa não pode praticar qualquer ato destina-
Vale assinalar, ainda, o caráter nitidamente restriti- do à destruição de qualquer direito e liberdade aqui esta-
vo, não apenas pelo NÃO mas pelo uso do verbo no belecidas".
tempo futuro. Assim, o mandamento não seria somente Em suma, a Declaração dos Direitos Humanos
imperativo (ou mesmo recomendativo) se o verbo fosse estabelece: a) a existência de liberdades fundamen-
colocado no presente (não mates, não roubes). Ele é tais do ser humano; b) liberdades estas que seriam:
taxativo: não matarás, não roubarás... - de locomoção;
Portanto a liberdade concedida por Deus ao homem, - de residência;
criatura à imagem de Deus, não é absoluta. - de pensamento;
Os adeptos das idéias, seja de Rousseau, de Hobbes - de consciência;

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- de religião; nada, como condição sine qua non, liberdade como


- de opinião; direito, condição, faculdade, poder.
- de expressão;
- de reunião e de associação. Mas liberdade para o quê?
c) essas liberdades são amplas, mas estão
sujeitas a limitação; d) esta limitação é apenas restri- Liberdade para se poder, livremente, fazer opção.
ta àquelas determinadas pela lei e exclusivamente A ética (e a bioética) não admite restrição à liberdade de
para o fim de assegurar o devido reconhecimento às opção. A ética (e a bioética) não admitem coação, coerção
liberdades (o direito) de outrem; e) em vários arti- e/ou falsidade. Sem liberdade não há, pois, nem ética, nem
gos, ao se referir à liberdade de pensamento, de bioética.
locomoção, de crença etc. Diante de situações de conflito entre valores, fazer
A Declaração é clara, expressando a liberdade como opção, isto é, exercitar ética, é muito mais complexo do que
direito, mas sempre vinculado à determinada área e, por- simplesmente obedecer a Códigos de moral e/ou a dis-
tanto, não absoluta. posições legais segundo padrões já estabelecidos.
Em suma, liberdade pode ser entendida como facul- Assim, não se pode confundir ética (e bioética) com
dade, condição, poder, prática, bem, direito, mas sempre códigos moralistas, estatutos de direitos e deveres (deon-
seguida de algum fator ou condição limitante. tologia).
Pode ser plena, total, completa ou pode ser restrita A ética (e a bioética) é livre, exige liberdade e; de novo:
(mesmo após limites), parcial ou reduzida. Mas não é liberdade, para o quê?
absoluta, mesmo porque a liberdade de um pode inter- Para se poder, livremente, fazer opção, vale repetir.
ferir na liberdade do outro. E a liberdade é "de" ou Fazer opção entre valores tem, porém, uma contrapartida: a
"para". liberdade se acompanha de "angústia" e de responsabili-
dade.
Liberdade e libertação - bioética como ponte A angústia da opção, à qual se soma a angústia da
responsabilidade, é, porém, diferente da antigamente
E o que tudo isso tem a ver com Bioética e como denominada "neurose de angustia" freudiana.
Bioética pode ser ponte para liberdade e libertação? A "angústia da opção", longe de ser camuflada,
Antes de mais nada há que, se não definir, ao escamoteada, deve ser "elaborada", trabalhada.
menos caracterizar a bioética, no que se refere à sua Esta elaboração obriga a revisão e reflexão crítica de
essência, além do seu campo de atuação. valores, levando cada um de nós a "mergulhar" para dentro
Em sua essência, bioética é ética e, como tal, dis- e para fora de si, para poder equacionar os conflitos de val-
tingue-se de moral. Moral e ética têm em comum o ores que estão em jogo e ao fim realizar a opção".
fato de lidarem com valores. Mas valores morais são Não se deve em nome da angústia (repita-se, salutar)
valores consagrados pelos usos e costumes. Não são abrir-se mão da liberdade. Pelo contrário, aprender a elabo-
"escolhidos" individualmente e sim pela sociedade, rar essa "angústia" é um processo de libertação.
cabendo a cada um de nós, enquanto cidadão daquela Por outro lado, o juízo e/ou a reflexão crítica, próprias
sociedade, acatá-los. São valores que devem ser intro- da ética (bioética), exigem algumas condições importantes
jetados. para o devido processo de avaliação e opção.
Ao passo que ética, e daí bioética, constitui um Em primeiro lugar, no exercício da bioética, é indispen-
processo de reflexão e de juízo crítico sobre situações, sável, antes de mais nada, que cada um de nós, no exame do
em que valores podem estar em conflito. conflito de valores, procure se despir, tanto quanto for
Na ética, o "valor" é extrojetado, cabendo a humanamente possível, de qualquer preconceito.
"escolha" a cada um de nós. Em outras palavras, ética É incompatível a liberdade de opção, em determinada
implica avaliação, reflexão crítica, juízo de valores, situação, se a mesma é examinada, avaliada e/ou anali-sada
levando à opção e não à obediência pura e simples de com juízo pré-concebido, "preconceitual" e/ou "precon-
normas de moralidade. ceituoso".
O exercício da bioética pressupõe, antes de mais A expressão pré-conceito deve aqui ser entendida em

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Bioética: ponte para a liberdade

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suas diversas acepções. 1: idéia pré concebida; suspeita, não seja ético. Isso, também, é um processo e/ou mecanis-
intolerância, aversão a outras raças, credos, religiões etc. mo de libertação.
A expressão se aplica pois ao preconceito no sentido O exercício da bioética nos leva constante e continua-
pejorativo de intolerância, como também à qualquer mente a nos "revermos", a rever valores e daí à busca de
idéia de opção, ainda que não tenha caráter pejorativo, mais "sabedoria", como libertação.
pré-concebida. A bioética é, pois, sem dúvida, uma ponte para liber-
Neste último sentido, creio válido incluir uma outra tação.
forma de preconceito, o "parti-pris". Mas libertação para quê?
Sem dúvida, têm papel relevante na ética as correntes Para, como já referido no início do texto, conquistar
do utilitarismo, do pragmatismo, do utopismo, do indivi- liberdade. Qual liberdade. Liberdade "de" ou "para" o quê?
dualismo, do comunitarismo e outras tantas. Contudo, anali- Liberdade para opção, lidando com valores
sar, do ponto de vista bioético, conflito de valores com a humanos. É uma liberdade especial, esta da bioética.
idéia preconcebida ("parti pris") de que o equacionamento Esta liberdade, diferentemente do que foi dito a
deverá, a priori, ser exclusivamente elaborado à luz do utili- respeito das outras formas de liberdade, seria, no caso,
tarismo, do pragmatismo ou do individualismo ou do absoluta?
comunitarismo etc. Não deixa de ser uma espécie de pré- Também esta liberdade não é absoluta. Mas deve
conceito; abre-se mão, a priori, da liberdade de opção. ser liberdade ampla, plena.
É o "porti pris" atuando como fator limitante, como Por que não é absoluta?
condicionamento prévio, como opinião fechada. O que lhe tira esse caráter?
Ora, o processo de desprendimento ou despojamento Existem condicionantes ou elementos limi-
do pré conceito, seja qual for o significado da palavra, é um tantes?
processo de libertação. Existem e, por isso, ela não é absoluta.
A meu ver, a bioética exige, também, o respeito ao plu-
ralismo e, em conseqüência, respeito ao outro e à opinião Que condicionantes e limitantes existem?
do outro, antes de mais nada. É preciso ter-se humildade De que natureza são?
para respeitar e levar em conta, em nossa opção, a opinião
do outro e obviamente o outro. São todos de natureza e de essência ética (e bioéti-
Como força de expressão, pode-se parodiar ca). Pode soar como paradoxal tal afirmação.
Descartes, dizendo que em matéria de bioética deve-se A liberdade da ética também tem limitantes, "li-
adotar a máxima "Penso, logo, o outro existe". mitantes éticos"; parece um jogo de palavras, mas não
O respeito judicioso ao pluralismo e a outro são tam- é. Os condicionantes e os limitantes não são para a
bém outros processos ou mecanismos fundamentais de bioética em si, porque dela fazem parte, mas podem
libertação. ser "limitantes", melhor "condicionantes", para a
Além disso, a ética (e a bioética) pressupõe outra opção.
condição essencial, a alteração da opção se a mesma se evi- Na verdade, os limitantes ou condicionantes" são
denciar equivocada ou a menos adequada. os "fundamentos", "princípios" ou "referenciais con-
A bioética, pois, prevê "grandeza" por parte de cada ceituais e doutrinários da própria bioética".
um de nós para refazer e reconhecer a inadequação da Assim, a opção de valores deve levar em conta a
opção realizada. Aprender e desenvolver tal preceito da autonomia (autodeterminação) do ser humano, a não
"grandeza" é um bom processo de libertação. maleficência, a beneficência, a eqüidade, a justiça, o
Além do mais, o juízo de valor, isto é, o exercício ético, estado de vulnerabilidade, a prudência, a soli-
não pode subordinar-se a questões espúrias, tais como dariedade, a austeridade.
agradar ou desagradar a quem quer que seja, este preceito é Assim posta a questão, verifica-se que tais "condi-
forte fator para libertação. cionantes" são, na verdade, os elementos guias, por
A opção não pode, por outro lado, estar vinculada isso mesmo preferimos denominá-los de referenci-
e/ou subordinada a "conclaves", a ideologias partidárias e ais(6) e não de princípios, para o equacionamento de
nem pode servir de instrumento a qualquer outro fim que conflitos de, levando à opção.

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A liberdade na bioética, embora não absoluta é uma liber- aquilo, ela é uma liberdade sublime, a liberdade para
dade, digamos, de categoria especial. Especial porque tem opção, opção de valores.
como fator limitante apenas a ética (que, por essência, exige Esta é a beleza e a especificidade da liberdade que
liberdade) e é especial porque é uma liberdade para opção. tem a bioética como ponte. A bioética é, pois, ponte para
Ela é muito mais do que liberdade para isso ou para libertação e ponte para a verdadeira liberdade.

REFERÊNCIAS

1. PotterVR. Bioetics: bridge to the future. USA: Prentice, Hall;1971.


2. Ferreira ABH. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Nova Fronteira; 1986.
3. Russel B. Caminhos para a liberdade.São Paulo: Martins Fontes;2005. p.101.
4. Miles J. Deus, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras;1995. p.41-43.
5. Direitos Humanos no Cotidiano. São Paulo: Editora Ministério da Justiça/ Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos/UNESCO/Universidade de São Paulo;1998.
6. Hossne WS. Bioética: Princípios ou referenciais? O Mundo da Saúde 2006; 30:673-676.

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Bioética e espiritualidade
Bioethics and spirituality
Bioética y espiritualidad

Júlio Cesar Massonetto*

RESUMO: O autor faz uma análise reflexiva sobre bioética e espiritualidade, seus conceitos e aspectos filosóficos. Descreve brevemente alguns
aspectos históricos da bioética e aborda casos reais do exercício da profissão médica e a ficção do cinema para ilustrar conflitos vividos por profis-
sionais de saúde frente aos conceitos bioéticos e aos valores de sua própria espiritualidade, como pacientes que apresentam indicações juridicamente
legais de interrupção da gestação, ou procedimentos médicos desnecessários como cesárea a pedido. Aborda também reflexões sobre como a bioéti-
ca pode auxiliar na evolução da ciência e nortear os profissionais envolvidos em pesquisas com células- tronco e fertilização assistida.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Espiritualidade. Ética médica.

ABSTRACT: In the essay, the author makes a reflective analysis on concepts and philosophical aspects involving bioethics and spirituality. He briefly
describes some of bioethics historical aspects and approaches real cases in the exercise of the medical profession tracing a parallel between them
and the fiction in the movies to illustrate conflicts faced by health professionals when confronted with bioethical concepts and spirituality's own
values, as patients present legal arguments to interrupt pregnancy or plead to undergo unnecessary medical procedures such as pre-arranged
C-sections. He also approaches reflections on how bioethics can help in the evolution of science and lead professionals dealing with stem cell
researches and assisted fertilization.
KEYWORDS: Bioethics. Spirituality. Medical clinic.

RESUMEN: En el ensayo, el autor refleja en los conceptos y los aspectos filosóficos que implican la bioética y espiritualidad. Describe brevemente
algunos de los aspectos históricos de la bioética y acerca a casos verdaderos en el ejercicio de la profesión médica y a ejemplos de la ficción de cine
para ilustrar los conflictos de los profesionales de salud cuando están enfrentados con conceptos bioéticos y a valores de su propia espiritualidad,
como son las actuales indicaciones jurídicas de interrupción del embarazo o procedimientos médicos innecesarios tales como cesarianas concer-
tadas. Hace también reflexiones acerca de cómo la bioética puede ayudar en la evolución de la ciencia y los profesionales que se ocupan de las célu-
las-tronco y de la fertilización asistida.
PALABRAS LLAVE: Bioética. Espiritualidad. Clínica médica.

* Doutor em Medicina pela UNIFESP - Escola Paulista de Medicina. Coordenador adjunto do Curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo.

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INTRODUÇÃO A importância da Bioética está patente em seu


enorme sucesso mundial com pouco mais de 30 anos de
Segundo dicionários, espiritualidade significa quali- vida(7) e reflete a necessidade urgente das sociedades
dade do que ou de quem é espiritual. Podemos dizer que quan- atuais de discutirem e imporem limites para o comporta-
do agimos ou pensamos com base em conceitos har- mento e desenvolvimento humanos, para a preservação
mônicos de respeito ao ser humano, seus direitos e nos- de nossa própria espécie.
sos limites ("trate os outros da mesma maneira que você Em 1978, Beauchamp e Childress consagram em seu
gostaria de ser tratado"), estamos vivendo a espirituali- livro*(8) o uso de quatro princípios na abordagem de dile-
dade. mas e problemas éticos: a autonomia, a beneficência, a
O espiritualismo é uma doutrina que nos remete à não maleficência e a justiça. A esta chamamos de teoria
origem grega da filosofia, que consiste na afirmação da principialista.
existência de Deus e na realidade substancial do espírito, O princípio da autonomia refere-se ao direito que
e de sua autonomia, diferença e preponderância em toda pessoa tem de decidir por si própria ou o que
relação ao corpo material. Nos pensamentos modernos, deseja ou não para si. No exercício da Medicina contem-
como no bergsonismo, sua essência e seus atributos, tais porânea, teve como conseqüência funesta a criação de
como a liberdade e o pensamento, são distintos e autorização de qualquer procedimento pelo paciente ou
incondicionados em relação ao caráter mecânico da seu responsável, com o objetivo de proteger as equipes
matéria exterior, pois ao contrário das suposições mate- médicas de potenciais processos judiciais, caso a opção
rialistas, a alma não pode ser reduzida a um mero do paciente resultasse em resultado negativo (como
epifenômeno do corpo. óbito).
Como marco conceitual, o neologismo bioética foi O princípio da beneficência refere-se à obrigação
cunhado pela primeira vez em 1970, em artigo publicado ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. O
pelo médico e cientista norte-americano Van Rensselaer profissional deve ter a maior convicção e informação
Potter(1). Nascido em 1911, Potter pensava que a sobre- técnica possíveis que assegurem ser o ato médico
vivência de grande parte da espécie humana, numa civi- benéfico ao paciente (ação que faz o bem). Como valioso
lização decente e sustentável, dependia do desenvolvi- referencial moderno, as condutas médicas empregadas
mento e manutenção de um sistema ético, chamando devem estar sempre baseadas nas melhores evidências
assim a bioética de "ciência da sobrevivência humana". científicas.
Em 1971, publicou o livro Bioethics: bridge to the future, Como o princípio da beneficência proíbe causar dano
onde escreve na introdução: deliberado, esse fato é destacado pelo princípio da não
"Se existem duas culturas que parecem incapazes de maleficência, que estabelece que a ação do médico sem-
dialogar - as ciências e as humanidades - e se isto se apre- pre deve causar o menor prejuízo ou agravos à saúde do
senta como uma razão pela qual o futuro se apresenta duvi- paciente e é universalmente consagrado através do
doso, então, possivelmente, poderíamos construir uma aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não
ponte para o futuro construindo a bioética como uma prejudicar).
ponte entre as duas culturas" O princípio da justiça estabelece como condição fun-
(Potter, 1971)(2). damental a eqüidade; conseqüentemente nos remete ao
Há diversos conceitos descritos para a bioética; porém, célebre filósofo alemão Immanuel Kant(9), para quem o
nenhum com unanimidade, seja por serem parciais, seja ser humano tem obrigação de ser ético, por ser racional .
por serem vastos demais(3). Na visão de Duran, ninguém Assim, os profissionais de saúde devem tratar cada
está habilitado como autoridade a definir o que é bioéti- indivíduo conforme o que é moralmente correto e
ca(4). Uma das definições mais abrangentes é a da adequado, de dar a cada um o que lhe é devido. Devemos
Encyclopedia of Byoethics(5), que define a bioética como o atuar com imparcialidade, evitando ao máximo que
estudo sistemático das dimensões morais, das ciências da aspectos sociais, culturais, religiosos, financeiros ou
vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias outros interfiram na relação médico-paciente.
éticas num contexto interdisciplinar. Na visão de Kemp A Bioética reconhece a pluralidade de opções morais
bioética é o cuidado das formas de vida em seu ambiente(6). presentes nas sociedades e propõe o estabelecimento de

* Beauchamp TL & Childress JF. Princípios da ética biomédica. Tradução da 4th edição americana, publicada sob o título Principles of biomedical ethics.
New York; Oxford University Press, 1994.
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Bioética e espiritualidade

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mínimos acordos. Como exemplos de conflitos moder- dade? É possível aplicar os princípios da beneficência e
nos, citamos a clonagem humana, a fertilização assistida, da não maleficência frente a uma jovem adolescente com
a interrupção de gestação, a manutenção da vida e a retardo mental severo e deficiência auditiva, grávida por
ortotanásia, a engenharia genética. Os procedimentos ter sido vítima de violência sexual dentro da própria
que permitam decisões consensuais têm uma importân- família? Como ser justo e escolher uma entre duas vidas
cia fundamental. Quando não há este acordo, o Direito quando esta escolha for necessária?
deverá estabelecer os limites para o que é permitido(10). O princípio, teoria, ou doutrina do duplo efeito é
Em uma de suas entrevistas, o Marco Segre,(11) con- uma regra ética que se refere à permissibilidade de ações
sagrado bioeticista brasileiro, reflete que a visão prag- das quais dois efeitos seguem-se simultaneamente, sendo
mática da autonomia (quase sempre utilizada pelos um bom e outro mau. Logo, são ações que possuem
profissionais de saúde), descrita por Beauchamp e 'duplo efeito'. Este princípio tem sua origem na Summa
Childress, vem "de fora". Um médico psiquiatra, um Theologiae de São Tomás de Aquino(12). Geralmente, exigi-
sociólogo ou uma psicóloga analisam e concluem se um se quatro condições necessárias para a sua aplicação:
paciente é capaz de tomar decisões em relação à sua vida a) que o ato em si deva ser moralmente bom ou ao
ou sua saúde e lhe conferem, ou não, a condição de menos indiferente; b) que o efeito bom, e não o efeito
ser autônomo. Já a visão filosófica de autonomia é mau, deva ser objeto da intenção; c) que ambos os efeitos
indefinível, vem "de dentro" ("eu posso tomar uma devam fluir simultaneamente (na ordem da causalidade,
decisão, eu quero tomar esta decisão"). mas não necessariamente da temporalidade), ou seja, que
No filme Forrest Gump, o contador de histórias, o efeito bom não deva ser produzido por meio do efeito
tenente Dan passa grande parte de sua vida revoltado e mau; d) que haja uma razão proporcionalmente grave
inconformado pelo fato do soldado Forrest tê-lo salvo para a permissão do efeito mau, ou seja, que o efeito
no Vietnã, após um sangrento combate entre eles e os bom deva compensar o efeito mau que o acompanha.
vietnamitas, e ter que viver sem suas duas pernas, perdi- Ao diagnosticar uma gravidez na trompa de uma
das neste episódio. Na visão do tenente, Forrest não mulher, a conduta é a interrupção desta gestação, com
havia respeitado sua autonomia quando ele, ferido no objetivo único de preservar a vida materna (que pode
campo de batalha, implorou a Forrest para que o deixas- estar em risco, caso esta trompa sofra uma rotura e cause
se morrer lá. uma grande hemorragia abdominal). Embora estejamos
Porém, os conceitos profundamente enraizados por interrompendo uma vida, a conduta médica segue os
Forrest através de sua educação materna e dos ensina- princípios descritos e não deveria criar conflito com
mentos do Exército nortearam sua ação no salvamento nossa espiritualidade.
do tenente, independente da autonomia do tenente. Anos O princípio do duplo efeito é proposto e defendido
após, já utilizando duas modernas próteses de membros pela Santa Sé(13) que, embora condene a eutanásia,
inferiores, o tenente Dan emocionadamente agradece a admite a utilização de medicação com o efeito de mini-
Forrest por ter salvo sua vida no Vietnã. mizar a dor e o sofrimento, mesmo que a conseqüência
Refiro-me a este episódio para ilustrar a teoria da possa ser a morte do ser humano. Destaca a importância
reflexão autônoma a que o prof. Marcos Segre se refere fre- da intenção da ação e que necessariamente não deve
qüentemente e que nos coloca em situações clínicas con- haver vínculo causal entre o processo de minimização da
flituosas no exercício da medicina, como o paciente dor e a morte.
Testemunha de Jeová que não aceita a transfusão de Tal tese funda-se na Ética das Virtudes e é referen-
sangue em situações críticas, mesmo correndo risco de cial para a grande maioria dos estudiosos que defendem
morte. Com base nesta reflexão, podemos dizer que a a ortotanásia, que significa a morte digna, no tempo e
autonomia do paciente é limitada e deve ser confrontada lugar corretos. É o encerramento de uma vida plena, que
com evidências científicas e até mesmo com nossa se dá de forma digna e humana. Sob esta perspectiva, a
espiritualidade e nossos códigos de éticas profissionais. morte é parte integrante da vida, motivo pelo qual não
Como aplicar os princípios básicos da bioética na deve ser acelerada ou provocada (eutanásia), nem evitada
vida diária pessoal e profissional? Até onde vai a autono- a todo o custo (distanásia)(3). Já em 1957, o Papa Pio XII
mia de um paciente sem ferir nossa própria espirituali- declara a aceitação do uso de medicação para dores

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consideradas insuportáveis ao ser humano, afirmando são elevadíssimos e refletem uma perversão da
que a redução da dor pode levar a morte, mas não deve assistência obstétrica brasileira. Na Europa, variam de
ser a sua causa. 7 a 12%; nos Estados Unidos, de 15 a 25% e no Brasil
Os profissionais de saúde que trabalham diariamente aproximam-se dos 40% (média nacional entre serviços
com o ser humano fragilizado pela doença, de forma públicos e privados, pois em maternidades privadas de
aguda ou crônica, muitas vezes sem perspectiva de cura, São Paulo atingem 90%). Por que esta perversão se
com alguma freqüência estarão de frente a situações, no praticamos no país obstetrícia de altíssima qualidade
mínimo, reflexivas. Como médico, com experiência na (uma das melhores do mundo), com recursos humanos
área da gestação de alto risco e medicina fetal, vivenciei e tecnológicos da mais alta expressão?
diversas situações onde, à primeira vista, eu os demais A cesárea é uma cirurgia indicada quando o parto
profissionais de saúde nos sentimos dentro de conflitos normal não é possível por razões maternas ou quando
indissolúveis. Após reflexões, leituras e trocas de há risco de vida ou agravo à saúde fetal; assim, é um
experiências, estes conflitos iniciais foram resolvidos e proce-dimento de extrema valia, quando necessário, e
transformados em soluções para outras pessoas em não pode ser banalizada e seus riscos e consequências
oportunidades futuras. serem subestimados. Por causa da ansiedade e medo
Um pouco desta experiência pessoal e alguns confli- da dor associados ao trabalho de parto, muitas
tos vividos pela ciência procurei trazer para esta leitura mulheres optam pela cesárea, incentivadas ou não por
(os nomes citados não são reais). seus médicos. Com as modernas técnicas de analgesia
de parto e com os avanços na monitorização do bem
A Mulher sem passagem estar do feto durante o trabalho de parto, não há por
que temer este momento. Além disso, o trabalho de
Começo de carreira, interrogatório no plantão a uma parto e o parto normal completam, de maneira incom-
gestante com dor: parável, a maternidade e a feminilidade, sob seu amplo
- Dna. Márcia, a senhora já tem filhos? aspecto psíquico. Em nome da autonomia da paciente,
- Tenho dois. como alguns médicos alegam, teríamos o direito de
- Partos normais ou cesareanas? submetê-la a "cesárea a pedido"? Acredito que não, e
- Duas cesáreas. evoco de forma simples e objetiva o princípio da não
- A senhora sabe por que? maleficência, resguardando a paciente de qualquer
- No primeiro, foi porque eu não tinha "passagem"; risco desnecessário. Há evidências científicas sufi-
o segundo, não sei! cientes na literatura médica demonstrando que as com-
plicações da cesárea são maiores que as que ocorrem
Comecei a observar que muitas pacientes submetidas à cesárea após um parto normal; sendo assim, submeter as
anteriormente não tinham "passagem". Por que não tinham "pas- mulheres a este risco sem uma indicação técnica pre-
sagem" ? Será que o que eu tinha aprendido estava errado? Ia mais cisa fere severamente o princípio da não maleficência.
a fundo em meu interrogatório: Eduardo Gaspar Siebold (15), historiador de
- Dna. Tânia, a senhora foi operada no primeiro parto porque obstetrícia, escreveu que "...o grau de civilização e
não tinha passagem. Mas a senhora entrou em trabalho de parto? moral de um povo é refletido pela obstetrícia, pois
- Não, o médico do Pré-Natal disse que, dificilmente, eu teria revela o zelo que se tributa à mãe e ao futuro
parto normal e marcou a Cesárea. cidadão...". Acredito que o Brasil caminha, a passos
largos, para a melhoria social e cultural. Nossa obstetrí-
Eu havia aprendido sobre a tal "prova de trabalho de cia deve acompanhar esta direção e transformar o
parto" a que toda paciente deveria ser submetida se nunca modelo existente de assistência ao parto centrada no
tivesse dado à luz. Se a Dna. Tânia não entrou em trabalho obstetra privado para trabalho de equipes multiprofis-
de parto, como o médico poderia saber que ela não "teria sionais (com médicos e enfermeiras obstetrizes) ade-
passagem" para um parto normal? quadamente remunerados, trabalhando com protoco-
Não existe índice considerado normal de partos los de atendimento bem definidos e desenvolvimento
resolvidos por cesáreas, mas certamente nossos números profissional permanente.

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Bioética e espiritualidade

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A Interrupção da gestação da jovem adolescente como qualquer outro que nasceu naquele dia. Sabíamos
que aquele procedimento técnico era um alívio para dona
Também começo de carreira: Maria e provavelmente para Renata também; mas nossa
- Dona Maria, a Renata está grávida. espiritualidade estava em conflito. Transpondo este
- Como grávida, ela tem apenas 13 anos, não fala, não escu- caso para hoje e tendo como base os atuais princípios
ta, tem retardo mental, como está grávida? bioéticos, também estaríamos tranqüilos e confortáveis
em nossa conduta. Mas, em todas as situações seme-
Dona Maria era funcionária do serviço de higiene e lhantes pelas quais passamos, este conflito com nossa
limpeza do Hospital, uma pessoa humilde e trabalhadora espiritualidade foi revivido.
que, como tantos outros brasileiros, deixava Renata sendo
cuidada por uma moça em sua casa. Renata, apesar de A Redução embrionária na fertilização assistida
pouca comunicação com as pessoas a seu redor, realmente
estava grávida (depois viemos a saber que foi de um tio Com alguns anos de carreira:
que freqüentava a casa esporadicamente). - Olha colega, após a coleta de oócitos de Dna. Francisca e
E a situação estava caracterizada como violência preparação do esperma do Sr. Paulo, fizemos a fertilização "in
vitro" e foram gerados oito embriões. Iremos implantar cinco no
sexual, devido ao retardo mental severo e à sua idade.
útero da Dna. Francisca, pois estatisticamente sua chance de
O código penal brasileiro, em seu artigo 128,
gravidez irá aumentar.
considera o aborto impunível em apenas duas situações:
- E se houver uma gravidez com mais de dois embriões?
quando não há outro meio de salvar a vida da mãe (como
- Pode-se fazer a redução embrionária.
em algumas pacientes com doença cardíaca grave) e
- E como se faz?
quando a gravidez resulta de estupro. A pedido de dona
- Provoca-se a morte dos dois embriões mais próximos da
Maria, iniciamos todos os procedimentos técnicos e jurídi-
agulha de punção para preservar os outros dois. OK.
cos para a interrupção daquela gestação. Após alguns dias,
Eu ainda não conhecia os princípios bioéticos descritos
a gestação foi interrompida por uma microcesárea, pois acima, mas respeitei a decisão do casal quando optaram
Renata já se encontrava entre o 4º e o 5º mês de gestação. pela redução embrionária ao estarem grávidos de quatro
Por mais experiente e frio que fosse o cirurgião (meu chefe embriões. Sem dúvida, foi uma decisão dificílima para o
e professor) que liderou todo o processo e a cirurgia, ficará casal e tentei causar certa resistência, mesmo com dúvida se
para sempre em minha memória seu semblante ao retirar estava tendo uma atitude correta. Mas, levando-se em con-
aquele feto do útero materno, cobrí-lo com uma compres- sideração a angústia de poder perder a vida dos quatro, o
sa e pedir licença para deixar o procedimento, enquanto casal optou por aumentar a chance de dois dos embriões.
seus auxiliares terminamos a cirurgia. Com base nesta conduta, milhares de embriões
Nesta época a que me refiro, os conceitos bioéticos humanos têm sido "gerados" nos laboratórios de fertiliza-
atuais ainda não existiam em nosso meio. Porém, trazendo ção assistida e depois "retirados" nas clínicas especializadas
este caso para os nossos dias, nos baseamos no princípio em medicina fetal ao longo dos últimos vinte anos. Para
da autonomia (no caso, da responsável pela Renata) coibir esta conduta, o Conselho Federal de Medicina(16),
para justificarmos nossa conduta de interrupção. publicou em Diário Oficial a resolução 1.358, de 11 de
Além disso, ao reconhecermos o valor moral de Novembro de 1992, sobre as Normas Éticas para a utilização
Renata, procurando maximizar o bem destinado a ela e, das Técnicas de reprodução assistida. Nesta, entre outros princí-
por conseguinte, reduzir o mal a ela causado, podemos pios, normatizou que "o número ideal de oócitos e pré-
evocar o princípio da beneficência. Poderíamos, ainda, embriões a serem transferidos para a receptora não devem
referir-nos ao princípio da não maleficência para justificar- ser superior a quatro, com o intuito de não aumentar os
mos a interrupção daquela gestação para evitarmos todos riscos já existentes de multiparidade" (gravidez múltipla) e
os danos sociais e psicológicos previsíveis à Renata e dona que em caso de gravidez múltipla decorrente do uso das
Maria. técnicas de reprodução assistida, é proibida a utilização de
Embora estivéssemos interrompendo uma vida sem procedimentos que visem à redução embrionária.
transgredir o código penal brasileiro, aquele feto era Apesar desta resolução, não há fiscalização suficiente

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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e sabemos que diversos profissionais ainda não respeitam potencialmente úteis em tratamentos de combate a
o mais elementar dos princípios éticos: o respeito à vida. doenças cardiovasculares neurodegenerativas, diabetes
Porém, há outra questão a ser refletida: com tanta insulino dependente (tipo 1), acidentes vasculares cere-
informação disponível atualmente, os "clientes" que brais, doenças hematológicas, traumas da medula
procuram estas clínicas conhecem as técnicas, seus riscos, espinhal e nefropatias.
sua chance de gravidez e as potenciais complicações dos O principal objetivo das pesquisas com células-tron-
procedimentos, entre eles a gravidez múltipla, que ocorre co é usá-las para recuperar tecidos danificados por essas
atualmente em pelo menos 25% dos casos de fertilização doenças e traumas. São encontradas em células embrio-
assistida(17). Mesmo assim, permitem a implantação de nárias e em vários locais do corpo, como no cordão
mais de quatro embriões para "aumentar a chance de umbilical, medula óssea, no sangue, no fígado e na
gravidez", muitas vezes esgotados física e psicologica- placenta.
mente por já terem sido submetidos a outras tentativas No atual governo republicano dos EUA, país que
de gravidez. Até onde pode chegar a autonomia do ser mais investe em pesquisa no mundo, sempre houve uma
humano? Aplicar a redução embrionária com o posição conservadora em relação aos atuais assuntos
argumento de salvaguardar a vida dos outros embriões científicos; o governo George W. Bush ofereceu
conflita com os resultados práticos em nossas mater- resistência à pesquisa com células-tronco, à clonagem e
nidades (mesmo nas públicas), onde se consegue preser- à fertilização assistida, por exemplo. Em Julho de 2006,
var a vida de recém-nascidos com mais de 750g em mais o presidente norte-americano George W. Bush vetou um
de 80% das vezes. Existe então justiça quando se escolhe projeto de lei que permitiria o uso de verbas públicas
entre os embriões quais serão "sacrificados" e quais federais para pesquisa com células-tronco. A grande
permanecerão vivos? Definitivamente, não. discussão é que os tipos mais úteis de células-tronco
Felizmente, nos últimos anos os cientistas desen- até agora descobertas eram originárias de embriões
volveram técnicas que aumentam a chance de gravidez humanos especialmente criados para isso, mas a prática
com a implantação de apenas um embrião, eliminando o gerou temores de ordem ética porque eles eram destruí-
risco da gestação múltipla e a potencial redução dos no processo.
embrionária(18), embora ainda seja conduta controversa Mas todo o mundo não diz que estas células-tronco
entre os especialistas. serão a futura cura para as doenças degenerativas (como
Porém, enquanto estas questões não forem discuti- a doença de Parkinson e o mal de Alzheimer), para
das com a sociedade e diretamente com os pais nas clíni- pacientes com lesão de tecidos como traumas na medula
cas de fertilização assistida, princípios bioéticos estarão espinhal ou infarto do miocárdio? Então por que criar
sendo omitidos ou utilizados de maneira distorcida justi- barreiras à evolução da ciência?
ficar tais procedimentos "científicos". O veto obrigou os cientistas a correrem atrás do
prejuízo. Nos primeiros dias de 2007, pesquisadores da
O uso de células-tronco Escola de Medicina da Universidade de Wake Forest, no
Estado americano da Carolina do Norte, conseguiram
É muito saudável o equilíbrio entre espiritualistas, extrair as células do líquido amniótico que envolve o feto
cientistas e conservadores republicanos. Se não fosse por no útero de mulheres grávidas e cultivaram-nas em labo-
isso, alguns cientistas já teriam clonado humanos aos ratório. Em artigo na publicação Nature Biotechnology(19),
milhares. Uma das maiores descobertas da ciência na os descrevem que extraíram estas células de amostras do
última década foi o uso terapêutico das células tronco. líquido retirado como parte de exames regulares feitos
As células-tronco, também conhecidas como células-mãe durante a gravidez e fizeram uma cultura em laboratório.
ou células estaminais, são células que possuem a capaci- Após constatarem seu potencial de transformação em
dade de se dividir dando origem a células semelhantes às ampla variedade de células, transplantaram-nas para ratos
progenitoras e de se transformar (num processo também de laboratório e realizaram mais testes para observarem
conhecido por diferenciação celular) em outros tecidos como reagiam quando incorporadas a um ser vivo.
do corpo, como ossos, nervos, músculos e sangue. Os resultados foram encorajadores, pois as células-tron-
Devido a essa característica, as células-tronco são co se propagaram e começaram a produzir substâncias

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Bioética e espiritualidade

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importantes no cérebro e fígado. Estas células se na medida em que não dá grande valor ao gozo dos
mostraram tão boas quanto as embrionárias! Pronto, não prazeres, acentuando privilegiadamente os deveres.
precisaremos mais nos preocupar com a morte dos A ciência não pode parar de evoluir, porém os aspec-
embriões para conseguirmos o tratamento de tantas tos éticos e espirituais não podem deixar de ser discuti-
doenças no futuro. Os milhares de embriões congelados dos e referenciados. A felicidade de que Kant fala é a da
nas clínicas de fertilização assistida do mundo poderão consciência do dever cumprido; por isso, a necessidade
descansar em "paz",pelo menos até a próxima descober- de que tenhamos compaixão (nos coloquemos sempre
ta científica que utilizem embriões. no lugar do paciente). E ao falar também na busca dos
Então, novos Bushs terão assumido cargos de bens materiais, é porque considera que ser feliz é um
presidência para novos vetos! dever do homem, uma vez que um homem frustrado faz
mal a si e aos outros. Temos, pois, até a obrigação de
CONCLUSÃO tudo fazermos para ser felizes, desde que seja tudo o que
possa ser universal, dentro do respeito aos demais.
Os profissionais que trabalham nas unidades de Todos os profissionais de saúde devem viver a
terapia intensiva e nos pronto socorros vivenciam diaria- espiritualidade em sua vida pessoal e no exercício da
mente dramas semelhantes e conhecem, na prática, a profissão, a fim de realmente contribuir para melhorar a
dificuldade de se utilizar os princípios bioéticos em todas saúde das pessoas. Que tenhamos a sabedoria de usar
as situações. A teoria principialista abordada anterior- estes referenciais no dia a dia com nossos pacientes.
mente não tem unanimidade, mas pode ser um grande "A religião e a ciência hão de preservar sua autonomia e seu
referencial para nossas vidas. Apesar de ter sido escrita há caráter distintos...cada uma possui seus próprios princípios, suas
pouco mais de duzentos anos, a ética kantiana é extrema- formas de proceder, sua diversidade de interpretação e suas próprias
mente moderna(13). Sua ética do dever é moderna porque conclusões. Cada uma pode e deve ajudar a outra com uma dimen-
confia no homem, na sua razão e na sua liberdade. são diferente de uma mesma cultura humana e nenhuma deve
É a ética do homem empreendedor, e nisto coincide assumir que constitui premissa necessária para a outra. A oportu-
com o surgimento e a ascensão da sociedade industrial e nidade que temos hoje é a de uma relação interativa comum".
capitalista. Porém, é estranha ao capitalismo consumista, Papa João Paulo II, 1988

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ARTIGO DE REVISÃO/ REVIEW ARTICLE/ DISCUSSIÓN CRÍTICA

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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Que finalidade unifica a bioética?


What Purpose Unifies Bioethics?
¿Qué Propósito Unifica la Bioética?

Hubert Lepargneur *

RESUMO: A bioética apresenta-se vinculada não apenas com os progressos das ciências e das técnicas, com a tolerância que presta atenção real às
ações, explicações e justificações ideológicas, empíricas ou morais dos outros, mas também com uma solidariedade vivenciada até economicamente,
que torna a competição não um estéril duelo, mas um verdadeiro benefício para cada pessoa e para a coletividade.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Solidariedade. Dignidade humana.

ABSTRACT: Bioethics concerns not only sciences advances and techniques, tolerance - that gives a real attention to actions and ideological, empiri-
cal or moral explanations and justifications of others, but also a deeply lived solidarity, even economically, that turns competition not in a barren
duel, but a true benefit for each person and community.
KEYWORDS: Bioethics. Solidarity. Human dignity.

RESUMEN: La bioética se refiere no solamente a avances y técnicas de las ciencias, a la tolerancia que da una atención verdadera a las acciones y a
las explicaciones y las justificaciones ideológicas, empíricas o morales de los otros, pero también una solidaridad profunda incluso económicamente
vivida, que convierte la competición no en un duelo estéril, pero en una ventaja verdadera para cada persona y la comunidad.
PALABRAS LLAVE: Bioética. Solidaridad. Dignidad humana.

* Teólogo moralista. Doutor em Direito.


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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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INTRODUÇÃO na evolução cósmica. O universo ético, que caracteriza a


espécie humana, provém do dinamismo da finalidade
Com o recuo da história percebemos que a bioética mais alta ou mais globalizante, e consagra nossa respon-
integra a globalização que estreita as relações e vínculos sabilidade. Qualquer que seja nossa explicação do fenô-
dos habitantes desta terra: nesta conhecida evolução, o meno, o lugar do sentido está na cabeça humana e se
processo da bioética como lugar de trocas de comporta- chama finalidade.
mentos e de idéias no campo da biomedicina era não Práticas e reflexões éticas deram aos poucos
apenas previsível mas inevitável. No entanto isto supon- emergência à bioética que mobiliza um vasto leque de
ha preparações, isto é, avanços nas situações em que os disciplinas; sendo ética, não pode desprezar a finalidade,
seres vivos apresentam dificuldades como no pluralismo característica do ser humano. Esta finalidade constitui a
das soluções propostas, muitas das quais levantando invisível força de aglutinação de disciplinas em torno de
interrogações éticas. As deontologias clássicas não ti- valores que, cedo ou tarde, reclamam a consciência e a
nham respostas adequadas para inúmeras destas situ- justificação de sua própria função. Além de serem
ações. Trata-se de processos, mas aconteceram rápidos e indemonstráveis, os princípios têm a propensão de susci-
complexos, tanto mais que os instrumentos de conheci- tar mais oposições do que os valores, em qualquer área
que seja. Os próprios valores exprimem um dinamismo
mento e de ação eficaz cresceram por seu lado com uma
espiritual que, cedo ou tarde, deve buscar sua finalidade;
velocidade que ainda não diminuiu. O interior do corpo
qual seria?
humano e os mecanismos de suas muitas funções são
Como meta-ética, a bioética se propõe visar o bem
muito melhor conhecidos, ainda que não totalmente.
do ser humano, individual e coletivo, escolhendo entre as
A própria complexidade das situações, inseridas em
alternativas de meios que cada situação deixa entrever.
regiões e culturas bastante diversas, legitima as trocas de
Esta visão de conjunto reclama algumas precisões
saberes, de experiências e das avaliações humanitárias
porque o inevitável conflito dos valores, em jogo em cada
que lhe dizem respeito. A priori todos os agentes são
caso, exige uma certa hierarquização, espontânea ou
bem intencionados para adotar as melhores soluções em refletida, o que implica a referência a alguma finalização
cada caso: esta é a finalidade principal e específica da prevalente.
bioética. O conceito de ciência que progride independen- Como a ética, a bioética não passa de um esforço que
temente de toda ética não é mais aceitável após o proces- nunca tocará sua meta final, a plena e feliz coerência do
so de Nuremberg. Do outro lado inexiste uma autoridade gênero humano numa terra respeitada, pacífica, entretida,
cujo veredicto se imporia sem muita dificuldade no própria a alimentar e suportar a indefinível seqüência das
mundo inteiro; nem a Organização Mundial da Saúde gerações humanas. Reparamos algumas das inúmeras
sonha com tal meta e a diversidade das crenças religiosas incoerências persistentes. Os nove bilhões de dólares
sempre constituirá uma barreira instransponível para gastos nos Estados Unidos, anualmente, em produtos
unificar as soluções sobre alguns pontos delicados. Isto cosméticos, representam uma soma superior ao custo
significa que o papel e a finalidade da bioética não são que exigiria o acesso ao ensino de todas as crianças do
destinados a cedo acabar, após ter desempenhado feliz- mundo.
mente uma honrável função crítica e mediadora. Os vários presos, no sul do Brasil, aprisionados por
furto de um real, ainda não julgados após dois anos,
Por que uma finalidade? custam mais de 2.000 reais cada um ao tesouro público.
Não deixa de ser estranho para um cientista mate- No seu livro "Como temos arruinado nossos filhos",
rialista que o cosmo, no qual ele recusa suspeitar uma Artus e Virard(1) salientam a incoerência francesa de mul-
finalidade natural, provoque a emergência de uma finali- tiplicar para os descendentes uma dívida que cedo ou
dade como consciência básica do ser humano. Quando tarde explodirá, não se sabendo como. Sendo harmoniza-
se passa do mundo natural ao mundo humano, a ção racional, a bioética não pode admitir este gênero de
finalidade, consciente ou inconsciente, não pode ser multiplicação indefinível da hipoteca que muitos países
menosprezada: seu papel é fundamental na evolução estão egoisticamente engrossando, por deficiência de
cultural de nossa espécie, que repercute incessantemente sadia e corajosa gestão dos políticos. Mas, afinal, em

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Que finalidade unifica a bioética?

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nome de qual princípio ou valor estamos chocados por mente da atuação humana. "Quando a China e a Coréia
tais ocorrências? do Sul o decidirão, o regime do Norte desmoronará".
Um dos benefícios das religiões é de apontar finali- As intersolidariedades são um dado, antes de consti-
dades tanto para o crente individual quanto para a tuir um princípio ou um valor.
humanidade. Mas isso exige uma fé religiosa compartil-
hada socialmente , numa extensão que não mais existe, se Que finalidade escolher para a bioética?
jamais existiu para a humanidade. A globalização acelera Vimos que a finalidade capaz de englobar os
o individualismo e a segmentação entre regiões: nem esforços bioéticos reside mais num valor do que num
tanto em nome da raça ou da nacionalidade quanto em princípio, e a forte necessidade não muda nada disso.
razão da posse econômica e portanto política dos Aliás um valor pode fundamentar vários princípios,
cidadãos mais bem sucedidos. como um princípio pode justificar várias normas. A força
Neste sentido o filósofo Luc Ferry(2), agnóstico, em de um valor reside na percepção de seus agentes conven-
"Vencer os medos", propõe uma "doutrina de salvação cidos e na força de sua atração. O cientista Nicolas
sem deus". Na sua procura do enfrentamento do mal e Hulot(3), assim resumiu o desafio global: "Nenhuma
da morte, como da construção de um novo humanismo, democracia, nenhum projeto social, nenhuma economia
sua resposta aponta "uma sabedoria do amor". Neste poderá resistir à combinação do esgotamento dos recur-
livro o autor, ex-ministro da educação, denuncia (talvez sos naturais, das convulsões climáticas e da pobreza.
com certo otimismo) "uma sociedade cheia de moral, A espiral resultante escapará provavelmente à
mas carente de sentido". É precisamente a finalidade que humanidade". Verifica-se a sentença de A. Einstein:
cria o sentido. Isto valida certa passagem da problemáti- "Nossa época se caracteriza pela profusão dos meios e
ca de princípios indemonstráveis para valores compartil- a confusão das intenções." Em toda pendência bioéti-
hados pelo coração de multidões, nesta " inteligência do ca podemos distinguir uma intenção imediata que, na
coração" valorizada por Pascal. Afinal sabemos que a reflexão, pode se coordenar com outras intenções ime-
Bioética procura mais convergências de normas, de diatas para se fundir ou convergir na própria finalidade
maneiras de agir, do que de justificações teóricas da bioética.
repousando sobre filosofias, ideologias ou religiões Não saímos do contexto de uma bioética ampla-
inconciliáveis. "Não carecemos de ética, mas de espiritu- mente considerada: tudo isso está a serviço da vida,
alidade" repete o livre-pensador Luc Ferry. Isto não especial e prioritariamente da vida humana. A própria
significa que terminou a tarefa da bioética, mas que a moral já está a serviço da vida humana situada no seu
estrada de sua caminhada está livre, em princípio. Como contexto ambiental social, natural e histórico, isto é,
a ética, a Bioética tenta resolver os problemas existenci- cultural. Não é a desigualdade que cria problema em si:
ais que a concernem, no dia a dia, mas sem responder a não apenas ela é universalmente natural, sempre existiu
desafios tais como o sentido da velhice, da decrepitude e sempre existirá, a serviço da própria dinâmica dos
individual, das guerras inúteis, ou da morte. seres históricos. Seriamente problemático é o excesso,
Como super e abrangente ética, a bioética está à atual e progressivo, da concentração dos recursos de
procura de um valor que lhe sirva de farol e meta, de todo tipo, basicamente financeiros, que asfixia a per-
porto de salvação , de incentivo e ânimo. A fraqueza ou centagem crescente da população mundial que carece
o esvaziamento da maioria das religiões tradicionais dos meios de sobrevivência. O agravamento da
(mesmo no Japão) não está preenchida pela multiplicação situação, que não pode escapar a uma percepção
de seitas evanescentes, e menos ainda pelos adeptos de global da bioética, se origina na última evolução do
um secularismo que recusa toda afiliação religiosa institu- liberalismo capitalista que confere um crescente poder
cional que lhe imporia soluções pré-fabricadas. econômico e, portanto, político aos acionistas agrupa-
Multiplicam-se indícios da urgência em fixar uma dos nos maiores Fundos de investimento, sejam eles de
meta clara à bioética, na área da defesa e promoção da pura especulação ou de aposentadoria, completada por
vida. De fato trata-se essencialmente da vida humana, um poder excessivo dos maiores dirigentes das
não obstante o valor, relativo, dos outros seres vivos transnacionais na auto-determinação de seus proventos
neste planeta, cuja maioria depende direta ou indireta- e privilégios de toda sorte.

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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O cultivo universal do melhoramento da vida não muito ideologizada, clausurada num conceito de liber-
pode prescindir de suas bases econômicas. tação que tem de deixar clara a visão dos inimigos ou
A bioética constitui uma plataforma de escolha para obstáculos de que ela se esforça de se livrar. A bioética
promover mais vida saudável, em benefício do maior nos parece antes essencialmente construtiva e não na
número possível de pessoas. Nisso está inscrito sua defensiva, combatendo inimigos verdadeiros ou supos-
relação com a ecologia e com a economia, para não dizer tos, sem dispensar a necessidade de classificar a pericu-
com a justiça, isto é, a ética tout-court. Como exprimir este losidade dos inimigos de que se deve defender, segundo
dinamismo para o bem vital? Existem várias proposições. uma ordem de urgência adaptada a nossos meios e
Ao negligenciar drásticas reformas que se afigurariam necessidades vitais.
como necessárias, peritos prevêem o que nos espera no A abrangência da bioética, que temos também
fim do século: quatro bilhões de seres humanos com chamado de super-ética, pedindo ajuda de muitas disci-
falta de água, sobretudo potável, liquefação das geleiras, plinas conexas, sugere a expressão da "bioética de
elevação perigosa do nível dos mares e da temperatura, reflexão autônoma", mas criando equívocos. Toda
eliminação de povos. A elevação do nível de CO² e da pesquisa científica, (como toda obra de arte) deve ser
temperatura parece inexorável. Isto não significa que seja autônoma no espaço de sua competência, mas o estatu-
fácil conciliar a luta pelo meio ambiente, a urgência social to próprio da bioética lhe atribui o encargo de debates
e sanitária e o crescimento econômico sustentável. entre proposições incompatíveis, todas bioéticas; então,
O valor-fim procurado deveria servir para hierar- são autônomas cada uma das contribuições e não tanto a
quizar tais necessidades vitais individuais e comunitárias, própria bioética.
mas a experiência parece confirmar que toda hierarquiza- Falar em "bioética feminina" é privilegiar um ponto
ção de valores é problemática. Enfrentamos de fato de vista que ninguém julgará auto-suficiente e suficiente-
várias proposições. mente abrangente. Constituiria uma proposição ao lado
de outras, na discussão global. Se não, arriscamos ver
Sugestões para definir a Bioética bioéticas racistas ou declaradamente machistas, em
Nosso preâmbulo significa que estamos procurando contra-ataque. Se a bioética é divina, não é seguro que a
uma definição da bioética que expresse ao mesmo tempo divindade seja uma mulher.
sua essência e sua finalidade, que temos demonstrado Ponto de vista mais abrangente seria falar em "bioéti-
solidárias. Por isso achamos insuficientes certas qualifi- ca de referências éticas": a expressão é incontestável, mas
cações pouco exaustivas, porque ressaltam um aspecto, não define nem sua essência nem sua finalidade. Por que,
ocultando outros não menos importantes, isto é, sem afinal, acumular referências éticas?
atender à globalidade desta disciplina, ou apontam uma Parece mais razoável incluir, na expressão sintética
subdivisão excludente de outras. Assim a bioética pode que desejamos, a referência fundamental ao ser humano
ser laica ou religiosa, mas ficamos aqui no terreno secu- que é pessoa, centro real da preocupação em questão,
lar, sem prejudicar aportes de crenças minoritárias, por salientando a superação de um individualismo estreito,
importantes e legítimas que sejam. evocando por isso a solidariedade que nos afeta e une.
Se o perito achar que há muito para reformar no Se houver entre nós uma preferência, que ela seja
campo bioético do momento, ele pode falar em "bioéti- eticamente dirigida para compensar as desigualdades
ca de intervenção" ("bioética dura" que deve precisar sociais excessivas e cuidar com empenho do caso dos
ainda a direção geral de seu voluntarismo proclamado). menos privilegiados. Trata-se de operar as melhores
Se sua sensibilidade o leva a acentuar a proteção aos seres escolhas para cuidar da saúde de todos, sem omitir as
mais vulneráveis, o perito pode falar em "Biologia de necessárias pesquisas suscetíveis de melhorar nossa
proteção", mas uma porção de intervenções escapam saúde e a das gerações futuras.
deste temário e são suscetíveis de melhorar a condição
humana; de qualquer maneira, este bioeticista deverá Nossa opção: o personalismo solidário
precisar quem ele entende proteger e de que perigos. Com o personalismo está realçada a dignidade da
Na esteira da teologia da libertação, podemos falar pessoa humana que, mais do que um título honorífico,
em "bioética de libertação", mas tal temática parece deve ser um princípio de ação, do qual nenhum ser

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Que finalidade unifica a bioética?

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):113-117

humano deveria ser excluído. O ser humano é o ser vivo bioética é levada a tratar repousam sobre dados factuais
mais importante do planeta e, apesar das importantes de nossa história, situações reais de crise ou de alternati-
desigualdades, do regime político vigente, das omissões vas embaraçosas e complexas, trazendo dilemas que
políticas ou sociológicas, a bioética constitui um instru- exigem extrema atenção aos dados e fatos. A avaliação
mento para tentar recuperar os excluídos salváveis. requerida da atuação mais conveniente neste contexto
Em muitos países substanciais progressos foram faz apelo a juízos de valor, cultural e moralmente con-
realizados; resta muito por fazer. Nenhum outro animal fiáveis. Como os desafios são concretos, exigem quadros
merece tanta consideração e cuidados, notadamente de avaliação que a cultura providencia ou, na sua falta,
porque nenhum desfruta de tanta consciência e assume
que o pesquisador deve montar, normas expressivas dos
tanta responsabilidade.
valores que, no caso, mais exigem respeito e atendimen-
A moral é disciplina humana, como também a bioéti-
to. Por fim, lembramos que as construções normativas,
ca. Nunca o ser humano pode deixar de ser solidário
na bioética como no direito, já incluídas no biodireito já
com seu ambiente e sobretudo com as comunidades às
quais pertence; por isso o personalismo implicado na constituído ou em formação, têm por fim o bem comum,
bioética deve ressaltar explicitamente sua dimensão de que inclui as condições de vida humana dos cidadãos
solidariedade, tanto factual quanto normativa. menos providos.
Vale conferir esta proposição com a teoria tridimen- A tais normas da sociedade civil, sabemos que as
sional do jurista Miguel Reale. Toda instituição do religiões institucionalizadas acrescentam normas às quais
Estado, repetia este eminente sábio, deve aliciar-se sobre aderem ou deveriam aderir os crentes de tais denomi-
três pontos básicos, sem excluir nenhum deles: fatos, nações, cuja explicitação não entra nesta exposição de
valores e normas. Todas as pendências com as quais a bioética secular, que permanece aberta.

REFERÊNCIAS

1. Artus P. Virard, MP. Comment nous avons ruiné nos enfants? Paris: La Découverte; 2006.
2. Ferry L.Vaincre les peurs. Paris: Odile Jacob; 2006.
3. Hulot N. Le Nouvel Observateur de 20 dez 2006.

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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Cooperar para el bien común:


¿Responsabilidad social de la enfermería?1
Cooperate for the common good: social responsibility of nursing?
Cooperar para o bem comum: responsabilidade social da enfermagem?

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli*

RESUMEN: Ética social es la aplicación crítica del razonamiento ético a los problemas sociales. Este artículo trae un análisis de los servicios de salud
bajo la óptica de la ética social. Enfoca el rol y la responsabilidad social de los profesionales y de las organizaciones sanitarias en la construcción de
un sistema de salud justo, equitativo, que respete los derechos humanos y los derechos de los enfermos. Los cambios en la forma de organizar y de
estructurar los servicios de salud no alteran las expectativas sociales acerca de los profesionales de salud. Enfermería y medicina son respuestas
humanas y éticas a la vulnerabilidad de la persona enferma. El enfermo, como un ser humano necesitado de ayuda, impone al hospital el compro-
miso moral de construir una imagen ética para la organización que incluya como su responsabilidad moral suprema el bien del enfermo. La prácti-
ca de la enfermería ha sido siempre marcada por el cuidado a las personas. Cuidar es el más poderoso símbolo de la enfermería en el fundamentar
de su ética. Las enfermeras deben tomar en serio el reto de aplicar sus conocimientos de expertas de manera a contribuir para el bien estar común
de la sociedad, pues deben cuidar a las personas. El ideal de profesionalismo de las enfermeras debe contemplar la búsqueda del bien de la comu-
nidad por acciones cooperativas y solidarias.
PALABRAS LLAVE: Bioética. Ética Institucional. Responsabilidad social.

ABSTRACT: Social ethics is the critical application of ethical reasoning to social problems. The present paper brings an analysis of health services
from the perspective, focusing on the role and the social responsibility of professionals and medical organizations on the construction of a fair and
equitable health system that respect human rights and the rights of sick people. The changes in the ways of organizing and structuring health serv-
ices do not change social expectations about health professionals. Nursing and medicine are human and ethical responses to sick people vulnera-
bility. Sick people as human beings needing help requires from hospitals the moral compromise of creating an ethical character for the organiza-
tion that includes as its supreme moral responsibility the well-being of sick people. Nursing practice has always been characterized by caring for
people. Caring is the most powerful symbol of nursing as the basis of its ethics. Nurses must take seriously the challenge of applying their expert
knowledge to contribute for the common well-being of society, for they have to care for people. Nurses' professional ideal must consider the search
for community well-being through actions marked by cooperation and solidarity.
KEYWORDS: Bioethics. Institutional ethics. Social responsibility.

RESUMO: Ética social é a aplicação do equacionamento ético aos problemas sociais. Este artigo faz uma análise dos serviços de saúde sob a ótica
da ética social. Enfoca o papel e a responsabilidade social dos profissionais e das organizações de saúde na construção de um sistema sanitário justo,
eqüitativo, que respeite os direitos humanos e os direitos dos usuários. As transformações na forma de organizar e na estruturação dos serviços de
saúde não modificaram as expectativas sociais em relação aos profissionais de saúde. A enfermagem e a medicina seguem sendo respostas humanas
e éticas à vulnerabilidade da pessoa enferma. O paciente, como um ser humano necessitado de ajuda, impõe ao hospital o compromisso ético de
construir uma imagem ética para a organização que tenha como sua responsabilidade suprema o bem de seus usuários. A prática da enfermagem
tem sido marcada pelo cuidado às pessoas. Cuidar é o símbolo mais poderoso no fundamento de sua ética. As enfermeiras devem levar a sério o
desafio de aplicar seus conhecimentos de expertas de forma a contribuir para o bem estar comum da sociedade, pois devem cuidado às pessoas. O
ideal de profissionalismo da enfermagem tem de contemplar a busca do bem comum da comunidade por meio de ações cooperativas e solidárias.
PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Ética Institucional. Responsabilidade social.

1 - Conferencia proferida no III Encuentro Latinoamericano de Ética y Bioética en Enfermería, Congreso de Ética y Bioética de profesionales de salud - realizado
nos dias 28, 29 e 30 de setembro e 01 de outubro de 1999 e promovido pela Escola de Enfermagem e Faculdade de Medicina da Universidade do Chile.
* Enfermeira. Doutora em Saúde Pública pela USP. Professora Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São
Paulo. Vice-presidente de Bioética (2005-2007). Membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética (2003-2007) (2007-2010). E-mail: elma@usp.br

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Cooperar para el bien común: ¿Responsabilidad social de la enfermería?

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Por ética social comprendemos la reflexión sistemáti- de salud nuevas preocupaciones como lucro, eficiencia,
ca acerca de las dimensiones morales de las estructuras y calidad y satisfacción del cliente(2).
de los sistemas sociales. La ética social puede ser pensa- El rol socialmente aceptado del hospital es el de
da como una rama de la ética aplicada, es la aplicación del cuidar a los enfermos, pues no obstante todos los cam-
razonamiento ético a los problemas sociales. bios y trasformaciones por las cuales esta instituición
Entre los temas ubicados como retos de la ética tiene pasado, su elemento fundamental y constante es el
social encontramos la pobreza, la investigación con suje- ser humano que sufre y que clama por cuidados.
tos humanos, los derechos de los animales, la eutanasia, A primera vista los conceptos que acompañam las
el aborto, la discriminación, los crímines y las puniciones, preocupaciones con eficacia y eficiencia parecen
la guerra y la paz. Aun podríamos incluir en esta extensa oponerse a este rol social, interfiriendo en la relación de
relación el sistema de salud y las cuestiones como el acce- cuidados que se establece entre los profesionales de salud
so a la asistencia médico-sanitaria o el impacto para la y las personas que sufren.
salud de una población o una comunidad de las Historicamente las actividades que tienen como reto
decisones tomadas por los gestores. ganar dinero parecen tener una relación conflictuosa con
Pero la ética social no se resume a la aplicación la ética y esto no ocurre solo en el mundo de la salud, en
automática de la teoría a determinados problemas lo cual este conflicto gana proporciones aun más grandes
sociales en particular. Sus tareas abarcan: por la misión y finalidad social del hospital. ¿Como
- examinar las condiciones sociales, determinando garantizar la sobrevivencia económico-financiera de la
cuales de ellas son problemáticas a la luz de la justicia o organización sanitaria y al mismo tiempo adoptar
de la equidad; principios y valores éticos?
- analisar las acciones posibles que podrían alterar las Es bien verdad que algunas veces las decisiones
condiciones entendidas como problemáticas y administrativas pueden estar en conflicto con aquellas
- prescribir soluciones basadas en el exámen de los del personal sanitario. Sin embargo, la relación de los
problemas y en el análisis de los cursos de acciones profesionales de salud con los enfermos, hoy día, no
posibles(1). ocurre fuera de una instituición, o sea es mediada por
En este momento vamos a detenernos en el análisis este complejo con caracteristicas empresariales y por los
de los problemas del sistema sanitario y de los servicios actos administrativos en lo cual se han trasformado los
de salud bajo la óptica de la ética social. Vamos también servicios de salud. Hay una línea demarcadora que pone
intentar enfocar el rol y la responsabilidad social de los de un lado los que cuidan directamente a los enfermos y
profesionales de salud como agentes activos para la con- del otro los que dan el apoyo administrativo o proveen
strucción de un sistema de salud justo, equitativo y que los servicios de infraestructura.
respete los derechos humanos y especialmente los dere- Actualmente el hospital y demás organizaciones
chos de los enfermos. En este sentido será dispensada sanitarias son instituiciones de servicios con una impor-
una especial atención al rol de la administración sanitária, tante función social y características técnicas, administra-
su relación con los profesionales de salud y el impacto tivas y económicas generales própias de los negocios y
que las decisiones administrativas pueden ejercer en las como tal, necesitan de la dirección de personas califi-
actividades asistenciales. cadas para su administración. Pero no se puede olvidar
Para esta discusión no se puede olvidar que el hospi- que es justamente la función social del hospital que es
tal al cambiar de abrigo para pobres y viajeros a centro de determinada por sus orígenes y por su mision que hace
diagnóstico y tratamiento de alta tecnología necesita cada esencial el planteamiento de la ética social en los servi-
vez más recursos para su financiamiento y exige cambios cios de salud.
en su organización administrativa con la introducción Las decisiones tomadas en los límites de la estructura
de la forma empresarial de organizar y estructurar el de cualquier organización no afectan solamente su vida.
trabajo y la incorporación de profesionales con forma- Afectan también a la vida de todos sus participantes:
ción en administración y economía en sus actividades de los trabajadores, los consumidores, los inversores y los
apoyo administrativo o mismo en su dirección y gestión. ciudadanos. Esto es especialmente importante en las
Este cambio trae para la cotidianidad de los servicios organizaciones hospitalarias, pues no se puede olvidar

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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que ellas lidan con los limiares críticos y preciosos: la vida La finalidad del trabajo del administrador hospita-
y la muerte de las personas. Así, las decisiones de los lario es alcanzar resultados positivos no sólo en el senti-
administradores que actuan en el área de la salud son do económico, pero principalmente en los aspectos
actos de naturaleza ética, diversificados en razón de la médico-asistenciales o sea en el nivel de salud y calidad
posición que este profesional ocupa en la instituición(3). de vida de la población. La mayor aspiración de la
Un administrador ético es aquel que se conduce eti- administración sanitaria debe ser el desarrollo de un
camente todo el tiempo y no solamente cuando le con- servicio eficaz, con todos sus componentes funcionando
viene. Sin embargo, a pesar de todo el movimiento por la como un equipo para atender primeramente a las necesi-
ética en los negocios, muchos administradores, mismo dades de salud de la comunidad, en segundo lugar a las
aquellos que actuan en el campo de la salud, alegando necesidades de la organización y sólo después a
que hay una imensa área gris entre lo que es cierto o erra- las necesidades individuales de los empleados, de la
do, no se preocupan con la ética. Transfieren la atención enfermera, del médico y del administrador. Cuando esta
de los dilemas éticos para los problemas administrativos, ordenación se invierte, los hospitales pierden su objetivo
olvindandose que muchas veces la toma de decisiones social y se tornan poco efectivos. Es triste observar que
exige el analisis de una serie de factores que van allá de hoy día el hospital y muchos de los profesionales que los
los números por más exactos que estos sean. No se dirigen o de los que trabajan en estos servicios no están
espera que ignoren las consideraciones materiales sino conscientes de sus responsabilidades humanas, sociales y
que subordinen los ganos financieros a valores más comunitarias y tampoco evaluan el impacto que sus
nobles como la responsabilidad con la vida de los enfer- actividades ejercen en la sociedad y en la salud o en la
mos y la responsabilidad con la salud de la comunidad. calidad de vida de la población. Por lo tanto lo que se
debe buscar es el desarrollo de un servicio de salud
En America Latina esta cuestión adquiere un sentido eficaz que atienda primeramente a las necessidades de las
especial, pues en la mayoria de los países de este conti- personas, sea individual o colectivamente, bajo el riesgo
nente el sector de salud se vio obligado a reflexionar y de él perder su función social.
cambiar el modelo de "beneficencia-caridad" que los
hospitales traían desde su inicio. Para hacer frente a las El hospital que actua como un organismo ético es
dificultades financieras, a la mala calidad, a la falta de aquel que persigue inteligentemente sus metas y al
equidad y a la ineficiencia, el sector salud viene implan- mismo tiempo respeta los valores y los derechos compar-
tando la propuesta del hospital como una empresa social tidos por la comunidad a que sirve. La impaciencia y la
de salud, haciendo imposible conceber su desarrollo prisa para llegar a los objetivos y a las metas trazadas
institucional y su gestión de manera aislada del enfoque constituyen factores para la negligencia en el trato de las
empresarial. Este hecho impone a los profesionales de cuestiones éticas dentro de estas organizaciones.
salud dilemas éticos, que los desafia a lograr retos de Esto pone en riesgo la satisfacción de todos: de los
justicia y equidad y los lleva a cuestionar cuales son las profesionales de salud, de los enfermos y consecuente-
responsabilidades sociales de su profesionalismo. mente de la comunidad. Es en este momento que se
instala en el servicio de salud lo que se conoce como la
La palabra administración se origina del latín y perversidad moral de la organización. Es cuando él se
significa aquel que hace servicios a otro. Administrar es retrae de su razón de ser y de lo que es esperado para su
el arte de pensar, de decidir, de actuar, de hacer aconte- tipo de actividad. Es cuando el hospital que tiene la mis-
cer y de obtener resultados. Administrar un hospital no ión social específica de curar en la practica se desvia en la
es tarea fácil. El hospital abarca un universo de recursos dirección opuesta o se distancia de esta misión y sólo cura
y elementos variados que se articulan en una acción coor- cuando el curar representa un negocio rentable(4).
dinada y hacen de esta organización una de las más com- Los cambios en la forma de organizar y de estruc-
plejas de la sociedad actual. Esto exige una dirección bien turar los servicios de salud no modifican las expectativas
preparada, con gran capacidad de liderazgo, habilidosa, de la sociedad acerca de los profesionales de salud. Ellos
activa, con autoridad, sensata, íntegra y que actue basada siguen teniendo la misma obligación moral de siempre:
en principios y valores éticos. buscar la excelencia, tender hacia ella. Lo que cambia es

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Cooperar para el bien común: ¿Responsabilidad social de la enfermería?

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):118-123

la vía para lograrla que es distinta de épocas anteriores, y dades. Hay muy pocas personas que piensan que debería
que pasa no solo por la búsqueda del beneficio del ser de otro modo. Sin embargo, si alguien necesitando de
paciente, sino también por la gestión eficaz, eficiente y cuidados de salud que valen el precio de muchos coches
efectiva de los recursos(5). nuevos llega al hospital sin un peso y pide para ser
Es el enfermo como un ser humano necesitado de atendido, sólo debe esperar ser atendido, y la mayoria de
ayuda quien impone al hospital la obligación de comprom- la sociedad argumentará que ésta no solo es la mejor sino
eterse moralmente. Es necesario construir una imagen ética la única solución posible.
de la organización hospitalaria, pues la enfermería y la Los profesionales de salud han siempre buscado su
medicina son respuestas humanas y éticas a la vulnerabilidad identidad profesional por la vía de la excelencia. Cuando
de la persona enferma. La responsabilidad moral suprema el gestor desconoce esto las consecuencias en la moral de
del hospital es con el enfermo. los profesionales son desastrosas. La enorme dureza de
El hospital no puede correr el riesgo de ser visto como la actividad asistencial requiere que los profesionales de
una organización que interpone sus preocupaciones salud puedan contar con un soporte institucional que
económicas como impedimento para la excelencia del promueva la excelencia. En caso contrario, los servicios
actuar de los profesionales de salud. Debe darse justo el de salud funcionan mal o no funcionan.
contrario, la imagen cultivada debe transparentar una actitud Los cambios por los cuales tienen pasado el área
de celo en la defensa de las personas con problemas de sanitaria con la incorporación de la tecnología trae
salud. muchos nuevos dilemas para los profesionales. La
Los dilemas morales enfrentados en la cotidianidad de elevación de los costes es tal que una decisión en la asis-
los servicios de salud no son ni pocos ni sencillos. tencia envolucra grandes cantidades de dinero. Así como
Posiblemente el más fundamental de estes dilemas sea el los gastos aumentan y los recursos son finitos es
relacionado con su identidad y misión. ¿El hospital es una inevitable hablar de la racionalización de los costes en
instituición social destinada a atender las necesidades de salud. Se impone de esta forma un conflicto de intereses
salud de la comunidad? ¿O es un negocio como otro para los profesionales de salud por las amenazas al canon
cualquier que cuando se vincula al segmento privado se de lealtad - estos pueden ver su lealtad dividida entre el
somete a las presiones del mercado y primeramente se enfermo y la exigencia de ahorrar.
motiva por los lucros y incentivos financieros, económicos Para la enfermería este conflicto adquiere un sentido
o comerciales? especial. La práctica de la enfermería ha sido siempre
Estas tensiones entre el rol de servidor de la comunidad marcada por el cuidado a las personas. Cuidar es el más
y el de negocio son constantes para el hospital, principal- poderoso símbolo de la enfermería. Se confunde con
mente para los que pertenecen al sector privado de la salud. ella. La representa. Fundamenta su ética. El bien interno
Al adoptaren algunas practicas propias de los negocios tanto de la enfermería es el cuidado a las personas, sea
los hospitales con ánimo de lucro como aquellos sin ánimo previniendo alguna enfermedad o asistiendo a las per-
de lucro tienen perjudicado la imagen de benevolencia que sonas que ya se encuentran enfermas. A cada día la
la sociedad espera para este tipo de organización social. enfermería es más reconocida como proveedora de
Hay una insatisfacción que surge de la expectativa social cuidados a la salud de las personas(6). El cuidado es toda
de que estas organizaciones no deben comportarse como la acción que contribuye para promover y desarollar lo
negocios comunes, pues tienen una propuesta superior. que hace viver las personas y la comunidad.
Esto porque los hospitales lidan con beneficios singulares El cuidado es todo que contribuye para promover y
como la salud/ enfermedad y la vida/muerte de las fomentar la vida y la salud. El primer objetivo de la
personas, y la sociedad siente estes beneficios como algo enfermera tiene que seguir siendo el cuidado al paciente
entre un derecho y una obligación. y no el ahorro. Pedir a la enfermera que abandone el reto
Veamos un ejemplo - alguien que aparezca en un del cuidado, de la beneficencia equivale a pedirle para que
salón de demostración de una tienda de coches sin un se olvide del bien interno de su profesión, equivale a
peso y pide por un nuevo coche, será conducido hacia la pedirle para que deje de lado su identidad profesional.
puerta de salida, no importa cuales sean las razones Este conflicto de intereses tiende a aumentar con la
porque quiere un nuevo coche o cuales sean sus necesi- introducción del managed care o medicina gestionada,

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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pues esta forma de gestionar el sistema de salud trae enfermería, pero usted debe mirar más allá y cumplir
nuevos elementos para este debate. La medicina gestio- integralmente con las obligaciones extraordinarias de
nada envolucra un sistema de atención a la salud que cuidados que tiene con sus pacientes y con la sociedad.
administra los recursos, la calidad y el acceso a los servi- En otras palabras la cuestión es como conciliar los
cios de salud. reclamos de la economia y las demandas de la ética. En
Los recursos son controlados por via de la influencia una situación conflictuosa la ética tiene precedencia
en los actos asistenciales, sean estos practicados por las sobre la economia, pero no puede olvidarla. Esto porque
enfermeras, los médicos o los demás profesionales de ella posibilita a la sociedad lograr las propuestas
salud. Se supone la conversión de ellos en gestores de deseadas con eficiencia por la vía del mejor uso de los
recursos. Se le pide a la enfermera que incluya el criterio recursos.
de asignación de recursos entre los objetivos de la
asistencia de enfermería. Aquí es donde aparece la posi- Sin embargo, la economia no debe determinar los
ble perversión moral de este sistema. fines y los objetivos de las vidas de las personas y de las
Parece obvio que la enfermera debe preocuparse en sociedades ni tampoco debe determinar si estes fines y
usar bien los recursos disponibles, pues si ahorra cuando objetivos son morales o imorales. Bajo la presión y la
no debe hacerlo o despilfarra sin necessidad, entonces tensión de la probabilidad de un desastre económico que
está faltando a la confianza que el paciente, la instituición puede ser provocado por el constante aumento de los
y la sociedad pusieron en ella. Sin embargo, como ya costes con la atención a la salud se corre el riesgo de
dijimos el primer objetivo a ser perseguido por la enfer- permitir que la economia, los negocios y el comercio
mera debe ser el mayor bien del paciente y no el ahorro. dirijam el sistema de salud. Los efectos más deletéreos de
Hay muchos tipos distintos de managed care y no esto van a ser sentidos donde ellos deberían ser más
todos merecen el mismo juicio moral. Su moralidad va a benéficos: junto a la cama de la persona enferma.
depender de los objetivos propuestos y de los medios El managed care es más agresivo y peligroso en las
usados para conseguirlos. Las metas pueden incluir la instituiciones con ánimo de lucro, pues la racionalización
calidad de la asistencia a un paciente individualmente, de la asistencia a la salud basada solamente en los costes
el beneficio personal del paciente, la contención de los limita el acceso a algunos procedimientos que pueden ser
costes, el bien de la sociedad o la ganancia en el negocio. benéficos para el paciente. Así el managed care es moral
Algunos de estes objetivos son moralmente solamente si persigue el reto de servir a las necesidades
sostenibles y otros son imorales. Lo que sí parece nece- de salud de la sociedad y especialmente de las personas
sario es organizar el sistema de tal manera que no se que ya se encuentran enfermas. Es sumamente impor-
premie directamente el ahorro económico que el tante no imponer el peso moral del managed care exclu-
profesional logre para el sistema sino su correcto ejerci- sivamente a la conciencia individual de los profesionales
cio profesional. de salud. La sociedad debe trazar políticas públicas
determinando unos estándares mínimos para la con-
La ética del managed care está en la posibilidad de ducta moral del managed care.
conciliarse la búsqueda del mejor bien para el paciente Esto porque si de un lado tenemos el problema de
con la realidad de perseguir cada último procedimiento los costes crescientes de otro tenemos el problema del
disponibilizado por la tecnología. Si el imperativo ético acceso a la asistencia a la salud. Estamos delante de la
de actuar en el mejor bien del paciente fuera interpreta- paradoja del exceso y de la privación. Costes incontro-
do en su literalidad puede llevar a esfuerzos y tentativas lables y personas sin ningún tipo de atención a la la salud.
costosas, poco específicas y que traen un pequeño Un sistema de managed care que no plantee conjun-
beneficio a un gran coste. Sin duda, contrabalancear la tamente estas dos cuestiones impone sacrificios sin la
eficiencia en el uso de los recursos con las considera- promisa de más equidad en cambio. Se olvida que una de
ciones acerca de las consecuencias, los derechos, el las pocas justificativas éticas para la racionalización
respeto a las personas y a la justicia conforman un costo/beneficio en los servicios de salud es la justicia
mensaje conflictuoso para la enfermera: Mira, usted debe distributiva. Así parece claro que los problemas de coste
ser competente para bajar los costes con la asistencia de y acceso deben ser tratados de manera conjunta. En caso

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Cooperar para el bien común: ¿Responsabilidad social de la enfermería?

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contrario no sólo se puede esperar que muchos sigan ética social para los servicios de salud, para el sistema
teniendo el futil antes que haga el esencial para todos, sanitario y para los profesionales de salud debe colaborar
como muchos de los que hoy tienen el esencial pueden para la promoción de la autonomia de las personas
contar con la probabilidad de tener menos en el futuro(6). permitiendo que ellas desarrollen sus capacidades, pues
Las barreras para el acceso a la asistencia a la salud los seres humanos solo pueden reconocer y realizar su
son aún muchas y para los ciudadanos que son los exclu- potencial completo en la vida comunitaria.
idos hablar de un sistema de salud justo es como hablar Como enfermeras debemos tomar en serio el reto de
de algo irreal y muy distante. La justicia es necesaria para
aplicar nuestros conocimientos de expertas de manera a
proteger a las personas como sujetos autónomos que
contribuir para el bien estar comun de la sociedad, pues
son, capaces de decidir acerca de su propia vida y su
debemos cuidar a las personas. Nuestro ideal de profe-
salud. Pero es igualmente indispensable la solidariedad.
La justicia postula la igualdad en el respeto y en los sionalismo debe incluir la búsqueda del bien de la comu-
derechos de las personas. La solidariedad exige preocu- nidad actuando con una relación más cooperativa y
pación con el bien estar del prójimo(8). La actitud solidaria. Debemos cultivar la solidariedad para que
solidaria ocurre cuando las personas sienten que pasemos del deber de hacer el bien para el placer de
comparten la vida en todos sus aspectos, cuando senti- hacerlo. Debemos cultivar la solidariedad para que pase-
mos que somos responsables unos por otros. Para hacer mos de la obligación de cuidar, para el placer del
frente a la realidad en que vivimos en America Latina, la cuidado.

REFERÊNCIAS

1. Welch DD. Social ethics, overview In: Chadwick R.(editor). Encyclopedia of applied ethics. San Diego: Academic
Press;1998,4: 143-151.
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Facultad de Filosofía para obtención del grado de Magíster en Bioética]
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Madrid:McGraw-Hill;1993.
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de Chile;(199-). [material didático del Ciclo de Bioética Clínica del I Magíster en Bioética de la Universidade de Chile y del
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8. Cortina A. Ética sin moral. 3ª ed. Madrid:Tecnos;1995.

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):124-131

Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação


em enfermagem sobre temas emergentes em bioética1
Evaluation of nursing undergraduate students about emergent subjects in bioethics
Evaluación del conocimiento de estudiantes de pregrado en enfermera sobre temas emergentes en la bioética
Pollyana Lira*
Maria Angela Reppetto**

RESUMO: A bioética é um tema de intensa discussão nas mais variadas áreas do saber e de suma importância no ensino superior. Os três princí-
pios éticos que formam a trindade bioética são: autonomia, beneficência e justiça. Após refletirmos sobre o conceito de bioética, seus princípios e
aplicações na prática do enfermeiro, abordaremos os seguintes temas emergentes em bioética: células-tronco, eutanásia e aborto. Este estudo tipo
descritivo teve como objetivos: identificar o conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem, sobre temas emergentes em bioética, especi-
ficamente células-tronco, eutanásia e aborto; descrever o entendimento dos alunos sobre bioética, sua importância e seus princípios de autonomia,
beneficência e justiça; e averiguar o tipo de meio de comunicação utilizado pelos alunos para adquirir informação sobre os temas relacionados. Após
a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa e aceitação dos alunos para participar do estudo, preenchendo o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, foi realizada a coleta de dados, por meio de questionários, aplicados aos discentes do 4º ao 6º semestres de um
curso de enfermagem, totalizando 53 acadêmicos. Após a análise dos dados, concluímos que: existe pouco conhecimento dos alunos sobre temas
emergentes em bioética, já que a maioria das respostas obtidas foram inadequadas ou em branco, somando 72% sobre eutanásia, 79% sobre célu-
las-tronco e 77% sobre aborto; existe um bom entendimento por parte dos alunos por bioética, pois (68%) responderam que têm importância na
atitude ético-profissional do enfermeiro, considerando desde o comportamento do enfermeiro, suas atitudes, até o conhecimento das leis para tal
atuação. Porém, a respeito dos princípios de autonomia, beneficência e justiça, foi predominante as respostas inadequadas e em branco, obtendo
respectivamente 68% , 72% e 75%. O meio de comunicação mais citado foi a internet - 47%, seguida de revista e revista científica.
PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem. Bioética. Ensino.

ABSTRACT: Bioethics is subject of an intense argument in the most diversified areas of knowledge and it is of utmost importance in superior edu-
cation. The three ethical principles that form the bioethical trinity are autonomy, beneficence and justice. After reflecting on the concept of
bioethics, its principles and applications in nursing practice, we will approach the following emergent subjects in bioethics: stem-cells, euthanasia
and abortion. This descriptive study had as its aim to identify the knowledge nursing undergraduate students have about emergent subjects in
bioethics, specifically about stem-cells, euthanasia and abortion; to describe how students understand bioethics, its importance and its principles of
autonomy, beneficence and justice; and to inquire about the type of media used by students to get information on the said subjects. After the
approval of the project by the Ethics in Research Committee and the acceptance of participation in the study by students, who filled and signed
the Term of Free and Informed Consent, we collected data by means of questionnaires, applied to 53 4th to 6th semester nursing students. After
data analysis, we conclude that students know very little about emergent subjects in bioethics, since most either gave wrong answers or simply did
not answer - 72% on euthanasia, 79% on stem-cells and 77% on abortion. A good knowledge by students about bioethics exists, for 68% answered
that it has importance in nurse's ethical-professional attitude, considering nurses behavior, their attitudes and the knowledge of laws regulating pro-
fessional practice. However, regarding the principles of autonomy, beneficence and justice, we observed a predominance of inadequate answers
and no answers: 68%, 72% and 75% respectively. The most cited media for getting information was the Internet - 47%-, followed by magazines
and scientific journals.
KEYWORDS: Nursing. Bioethics. Teaching.

RESUMEN: La bioética es tema de discusiones intensas en diversificadas áreas del conocimiento y es de importancia extrema en la educación supe-
rior. Los tres principios éticos que forman la trinidad bioética son la autonomía, la beneficencia y la justicia. Después de reflejar sobre el concepto
de la bioética, sus principios y usos en la práctica de enfermería, nosotros acercamos a los siguientes temas emergentes en la bioética: células tron-
cales, eutanasia y aborto. Este estudio de tipo descriptivo tenía como meta identificar el conocimiento que tienen estudiantes de enfermería sobre
temas emergentes en la bioética, específicamente sobre las células troncales, la eutanasia y el aborto; describir cómo los estudiantes entienden la
bioética, su importancia y sus principios de autonomía, beneficencia y justicia; y investigar el tipo de medios usados por los estudiantes para con-
seguir informaciones sobre dichos temas. Después de la aprobación del proyecto por el Comité de Ética de Investigación y de la aceptación de la
participación en el estudio por los estudiantes, que llenaron y firmaron el Término del Consentimiento Libre e Informado, recogimos datos por
medio de cuestionarios, aplicados a 53 estudiantes de enfermería del cuarto e el sexto semestre de curso. Después de la análisis de los datos, con-
cluimos que los estudiantes saben muy poco sobre temas emergentes en la bioética, puesto que la mayoría de los estudiantes o dieron respuestas
incorrectas o simplemente no contestaran: 72% acerca de la eutanasia, 79% acerca de las células troncales y 77% acerca del aborto; existe un buen
conocimiento de los estudiantes sobre la bioética, porque 68% contestaran que la bioética tiene importancia en la actitud ético-profesional de los
enfermeros, considerando su comportamiento, sus actitudes y también el conocimiento de las leyes que regulan la práctica profesional. Sin embar-
go, respecto a los principios de la autonomía, de la beneficencia y de la justicia, observamos un predominio de respuestas inadecuadas y de ningu-
nas respuestas: 68%, 72% y 75% respectivamente. Lo medio más citado para conseguir informaciones fue la Internet - 47% -, seguido por las revis-
tas y los periódicos científicos.
PALABRAS LLAVE: Enfermería. Bioética. Educación.

1 - Artigo resultante do trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Enfermagem. (Escola de Enfermagem da Irmandade da Santa Casa de São Camilo.
* Enfermeira. Graduada na FCMSCSP. Docente da Escola de Enfermagem da Irmandade da Santa Casa de São Paulo.
** Enfermeira. Doutora em Ciências. Professor Adjunto do Curso de Graduação em Enfermagem - FCMSCSP.

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Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas emergentes em bioética

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):124-131

INTRODUÇÃO Belmont* (1978), reforça a idéia da beneficência com


caridade (citado por Pessini)(6). Ainda, Pessini(6) refere
Diante dos conflitos éticos que vivemos na atuali- que a partir disso foram desenvolvidas duas regras:
dade em resposta aos avanços científicos, a bioética pas- 1ª) não causar dano; 2ª) maximizar os benefícios e mini-
sou a ser tema de intensa discussão nas mais variadas mizar os possíveis riscos.
áreas do saber e de suma importância no ensino superi- Para Zoboli(7), por beneficência entende-se "fazer o
or. E, como não poderia deixar de ser, também na bem", "cuidar da saúde", "favorecer a qualidade de vida",
graduação em enfermagem, pois reflete diretamente no enfim, dilatar os benefícios, evitar ou, ao menos, minorar
exercício profissional do enfermeiro. os danos. A autora completa, ainda, que no escopo do
Segundo Segre(1) "[...] bioética é a parte da ética, princípio da beneficência encontra-se um conjunto de
ramo da filosofia, que enfoca as questões referentes à regras morais mais específicas, como proteger e
vida humana (e, portanto à saúde)". defender o direito dos outros; prevenir danos que
Garrafa(2) refere que, no sentido amplo do conceito possam ocorrer a outros; eliminar condições que
que se pretende dar a bioética, seus verdadeiros funda- causarão danos a outros; ajudar pessoas com incapaci-
mentos somente podem ser encontrados por meio de dades e resgatar pessoas em perigo.
O princípio da justiça, segundo o Informe Belmont*
uma ação multidisciplinar que inclua, além das ciências
(1978), é definido como a imparcialidade na distribuição
médicas e biológicas, também a filosofia, o direito, a
dos riscos e benefícios, ou seja, os iguais devem ser trata-
teologia, a antropologia, a ciência política, a sociologia, a
dos igualmente.
economia. Assim, o estudo da bioética não pode ser
O enfermeiro tem posse de um poder não institu-
minimizado às ciências biológicas, pois todas as ciências,
cional que lhe é conferido pela sua proximidade com o
como as sociais, econômicas, humanas e outras, estão
paciente e/ou sua família. Seu poder é, na verdade, insti-
envolvidas nestas questões.
tuído, sendo assim, o enfermeiro vivencia o conflito
Para Drane, Pessini(3), nenhum outro campo de estu-
entre beneficência (médico) e autonomia (paciente),
do reflete a época contemporânea mais fielmente do que permitindo ao último ter consciência de seus direitos
a bioética, um estudo sistemático da conduta moral das enquanto ser humano e paciente, fortalecendo-o e possi-
ciências da vida e na medicina. A bioética une numa bilitando-lhe o exercício de sua autonomia(8).
única disciplina os dilemas éticos associados com a Após refletirmos sobre o conceito de bioética, seus
pesquisa biocientífica contemporânea e sua aplicação na princípios e aplicações na prática do enfermeiro, abor-
medicina. daremos e conceituaremos os seguintes temas emer-
Ao refletirmos sobre as diferentes áreas do saber gentes em bioética: células-tronco, eutanásia e aborto.
comprometidas com a bioética, enxergamos o ser São temas presentes na atuação profissional do
humano como um ser bio-psico-socio-político-espiritual enfermeiro, e sua reflexão norteia a tomada de decisão
no universo e a riqueza dessa relação de áreas tão diver- tanto do usuário do serviço de saúde como do enfer-
sas, tão próximas e tão dinâmicas inerentes a ele. Sempre meiro. Alonso(9), acredita que, para o que se afirma em
com o objetivo, segundo Siqueira(4), de alcançar no ética possa ser levado à prática no exercício profissional,
campo da bioética um discurso que aspire ser o mais é preciso levar em consideração todos os aspectos da
universal e conseqüente possível. vida profissional relevantes para orientar as decisões,
Os três princípios éticos que formam a trindade assim a fundamentação das afirmações éticas e o que
bioética são: autonomia, beneficência e justiça. Para acontece com a ética quando ela é levada à prática são as
Massarolo et al(5), autonomia é um termo derivado do duas pedras de toque tanto da ética pensada como da
grego autos (próprio) e nomós (lei, regra, norma) e refere- moral vivida, é necessário estar atento com o que
se ao poder da pessoa de tomar decisões que afetam sua acontece com os princípios quando eles são aplicados.
vida, sua saúde e seu bem-estar, mediante valores, Neri(10) sabiamente refere que o problema da bioéti-
crenças, expectativas e prioridades, de forma livre e ca começa quando as divergências morais que as pessoas
esclarecida, dentre as alternativas a ela apresentadas. razoáveis podem manifestar sobre várias temáticas se
O princípio da beneficência, segundo o Informe tornam uma questão pública que exige uma solução.

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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E, como freqüentemente essas divergências nascem cipadamente ao nascimento, as características do seu


de crenças morais e religiosas mais profundas, a tarefa de filho, queira negar-lhe a possibilidade de eliminar um
encontrar uma solução não é, certamente fácil. A questão filho indesejado. Posição essa questionável do ponto de
da pesquisa com células-tronco é um exemplo disso, mas vista ético, pois o fato da mãe saber das características do
não o único. seu filho previamente, não justifica moralmente a elimi-
Antes de discutir qualquer dilema ético relacionado nação de sua vida.
ao tema das células-tronco é necessário conceituá-las. Reconhece-se, atualmente, na sociedade, uma forte
Células-tronco embrionárias são aquelas prove- tendência à aceitação da descriminação do aborto em
nientes da massa celular interna do embrião (blastocisto). situações específicas. Já nossa Lei Penal, de 1940, não
São chamadas de células-tronco embrionárias humanas prevê punição para o aborto praticado quando não haja
porque provém do embrião e porque são as células-mãe outro meio para salvar a vida da mãe, ou quando a
do ser humano. Para se usar essas células, que constituem gravidez tenha ocorrido de estupro(14).
a massa interna do blastocisto, é destruído o embrião. As Nós, no curso superior, temos a oportunidade de
células-tronco adultas são aquelas encontradas em todos conhecer fontes de informações seguras e até temos
os órgãos e em maior quantidade na medula óssea subsídios para ter entendimento crítico das notícias que
(tutano do osso) e no cordão-umbilical-placenta. No chegam a nós. Mas a pergunta é: será que os graduandos
tutano dos ossos tem-se a produção de milhões de célu- buscam os meios fidedignos para se informarem sobre
las por dia, que substituem as que morrem diariamente temas de bioética? É um questionamento que fazemos,
no sangue(11). pois, na faculdade, percebemos que freqüentemente
Com relação à eutanásia, Drane, Pessini(12) referem erramos ao tomar como corretas informações de
que esse termo é relativamente novo em seu sentido qualquer fonte, por serem de mais fácil acesso e normal-
presente. Sua etimologia é simples. Eu em grego signifi- mente persuasivas. Entretanto, como formadores de
ca "bem" ou "bom". Thanatos significa "morte". Eu opinião, não podemos nos permitir tal erro, pois o nosso
Thanatos tem o sentido de "boa morte" ou "morte fácil". papel é esclarecer a comunidade da qual fazemos parte e,
Os autores continuam afirmando que o termo eutanásia se não interferirmos não estaremos cumprindo de forma
pode ser relativamente novo (séc XVII), mas não as ética o nosso papel na sociedade. Existe a preocupação
práticas de apressar e de causar a morte. A aceitabilidade de estudar essas questões, realizando estudos com vistas
moral dessa prática dependeu de crenças religiosas e dos a identificar qual o preparo que os graduandos de enfer-
costumes das comunidades que evoluíram com o passar magem estão tendo em seus cursos para lidar, na prática,
dos anos. As crenças, as atitudes e os costumes culturais com dilemas bioéticos(15).
passaram por evoluções e o mesmo ocorreu, por con- Para Germano(16), a temática a ser abordada nos
següinte, com o sentido do termo eutanásia. cursos de ética, não somente na enfermagem, mas na
Etimologicamente, aborto, do latim abortus, significa saúde como um todo, precisa ultrapassar os muros do
"privação" de nascimento porque vem de ab, que quer corporativismo (muito bem representado nos códigos e
dizer privação, e ortus, nascimento. Distingui-se aborto leis) e apontar para questões cruciais que limitam o ser
espontâneo, quele que acontece por causas naturais; e humano e lhe roubam a vida. Neste caso, continua
aborto provocado ou induzido, aquele que acontece por Germano(16), são muitos os autores cujas publicações
intervenção especial do homem(13). vêm contribuindo com uma nova dimensão do tema
Segre(14), refere que contra uma eventual liberação incluindo, diferentes concepções filosóficas acerca da
do aborto há os que falam no risco de esterilidade da mãe ética, o porquê de agir moralmente e assuntos polêmicos
após a prática abortiva, ou então, retornando-se a uma (como aborto, eutanásia, morte, contracepção, entre tan-
justificativa ideológica, na perda do senso de responsa- tos outros temas da atualidade).
bilidade da mulher ao entreter uma relação sexual, em Simino, Boemer(17) citam que a enfermagem possui
decorrência da qual, ela sabe, poderá engravidar. periódicos de grande contribuição para o estímulo e
Ainda cita o autor que a respeito da liberação (ou divulgação de sua produção científica. No entanto, não
não) do aborto, soa como extremamente traiçoeiro que existe um periódico de enfermagem especificamente
uma sociedade que oferece à mãe os meios de saber ante- para temas bioéticos. É importante ressaltar tais periódi-

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Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas emergentes em bioética

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cos e, também, tal observação das autoras, pois são CONSIDERANDO OS DADOS LEVANTADOS
muitos os meios de comunicação usados pelos estu-
dantes de enfermagem para adquirir informação sobre o Neste estudo foi realizada a análise descritiva dos
assunto, porém muitos desses meios utilizados não são dados e calculadas as freqüências absoluta e relativa.
fidedignos e acabam por desinformar. Para as questões fechadas, os resultados serão apre-
Nesse trabalho, será abordado, portanto, o conheci- sentados na forma de gráficos, seguidos da discussão.
mento dos alunos sobre temas emergentes em bioética, Para as questões abertas, os resultados foram apre-
especificamente células-tronco, aborto e eutanásia, serão sentados de forma descritiva. Num total de 53 (cinqüen-
também o que os alunos compreendem por bioética e sua ta e três) alunos, sendo 17 (dezessete) do 4º semestre, 25
importância, bem como os princípios de autonomia, (vinte e cinco) do 5º semestre e 11 (onze) do 6º semes-
beneficência e justiça. Por fim, será verificado o tipo de tre.
meio de comunicação usado pelos alunos para obter Sobre o conhecimento dos alunos questionados a
informação sobre os temas relacionados. respeito dos temas emergentes em bioética, obteve-se
Zanatta, Boemer(15) acreditam que estudos dessa maior número as respostas inadequadas e em branco,
natureza possam ser realizados nas diferentes regiões do sendo que somadas tais respostas, obtivemos a respeito
país, por diferentes pesquisadores, de forma a podermos ter
da eutanásia 38 (trinta e oito) alunos, equivalente a 72%:
um diagnóstico da inserção da bioética nos cursos de
ou não responderam ou deram respostas incoerentes; a
graduação em enfermagem.
respeito de células-tronco, 42 alunos, 79%; e a respeito de
Este estudo teve por objetivo identificar o conhecimen-
aborto 41 alunos, 77%.
to dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas
Nessa questão foi solicitada a descrição dos conceitos
emergentes em bioética, especificamente células-tronco,
de eutanásia, células-tronco e aborto a partir da influência
eutanásia e aborto; descre-ver o entendimento dos alunos
do ensino da ética no curso de enfermagem. Segue alguns
sobre bioética, sua importância e seus princípios de autono-
exemplos de respostas incoerentes para melhor ilustrar a
mia, beneficência e justiça; averiguar o tipo de meio de
comunicação utilizado pelos alunos para adquirir infor- discussão:
mação sobre os temas relacionados. 4º semestre: - sobre eutanásia: "proibida, mas realizada",
"é essencial no curso de enfermagem"; sobre células-tronco: "o
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS problema é ter uma sobrevida muito curta", "polêmica"; e sobre
aborto: "proibido", "preconceitos acabados".
O estudo foi do tipo survey descritivo/exploratório e 5º semestre: - sobre eutanásia: "não concordo", "básico";
foi realizado numa faculdade de enfermagem localizada na sobre células-tronco: "só trás confusão, pois muitas vezes tal
região central da cidade de São Paulo. avanço fica estagnado por questões éticas", "total"; sobre aborto:
A amostra foi constituída por alunos da graduação de "a partir de princípios religiosos", "parcial".
enfermagem, cursando 4º, 5º e 6º semestres, num total de 6º semestre: - sobre eutanásia: "total", "importante";
53 (cinqüenta e três) alunos (presentes na sala de aula no dia sobre células-tronco: "estudo e administração em humano",
da coleta de dados) que responderam ao questionário, com- "pouquíssimo", sobre aborto: "grande", "média".
posto por sete questões abertas e quatro questões fechadas. Algumas hipóteses podem ser consideradas ao anali-
sobre o conhecimento de bioética, dos temas emergentes de sarmos tais resultados, uma delas é a não compreensão da
bioética e sua importância para a enfermagem, sendo que a questão por parte dos alunos, o que nos encaminha à apli-
população inicial era de 75 (setenta e cindo) alunos. cação de um instrumento piloto numa próxima pesquisa.
O projeto foi encaminhado à Comissão Científica, após Outra hipótese, é a falta do exercício/prática de reflexão
sua aprovação, para autorização da Diretoria do Curso e em filosófica dos alunos no momento que se deparam com o
seguida para o Comitê de Ética em Pesquisa - CEP. Após a ato, que nos remete mais uma vez à premissa de que o
aprovação do CEP, os questionários foram aplicados em ensino de bioética deve ser transdisciplinar ou pelo menos
sala de aula, pelas próprias autoras, nos alunos que interdisciplinar. Outra hipótese, ainda a ser considerada, é
aceitaram participar do estudo e após preencherem o a falta de motivação dos alunos em responder questões
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. filosóficas de um questionário para uma pesquisa.

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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"Na elaboração geral de cursos e currículos, a multi- Gráfico 2


disciplinaridade é a forma mais simples e freqüentemente
usada em qualquer parte do mundo. A interdiscilplinari- DISTRIBUIÇÃO DA OPINIÃO DOS ALUNOS DO
CURSO D E GRADUAÇÃO E M E NFERMAGEM SOBRE
dade, por sua vez, é um pouco mais difícil, porém
O CONHECIMENTO D E BIOÉTICA. E M PORC E N TAGEM.
é a marca de certas áreas do saber, como a biologia,
SÃO PAU LO, SP, 2006.
química, geologia, física etc. A transdisciplinaridade é
considerada extremamente difícil de ser alcançada, devi-
do à ausência de conhecimentos profundos em mais de
uma disciplina prevista para a integração. É oportuno
acentuar que toda essa dificuldade decorre, exatamente,
da tradição histórica de produzir e transmitir conheci-
mento em pacotes chamados disciplinas, os quais
descaracterizam a unidade existente na ciência"(19).

Gráfico 1

DISTRIBUIÇÃO DA OPINIÃO DOS ALUNOS DO


4º AO 6º SEMESTRE DO CURSO D E GRADUAÇÃO E M
E NFERMAGEM SOBRE A EXISTÊNCIA DA RELAÇÃO
E N T R E OS AVANÇOS TECNOLÓGICOS E OS PROBLEMAS
ÉTICOS N A ÁREA DA SAÚDE. SÃO PAU LO, SP, 2006.
Sobre o conhecimento de bioética, 53 (100%) alunos
questionados tiveram algum contato com a bioética,
todos já ouviram falar. Sem dúvida nos mostra o quanto
é uma área atual e emergente. Pessini e Barchifontaine(18)
citam que há pouco mais de trinta anos surgiu a bioética
como uma "nova área de conhecimento", é o olhar sobre
novas questões, mas é também o olhar sobre questões já
existentes. Azevedo(19) afirma que o ensino da bioética
tornou-se uma nova experiência sem modelo didático
definido, a qual traz desafios de ordem acadêmica.
Oguisso(20) afirma que se espera que os enfermeiros
e demais membros da equipe de enfermagem possam
compreender efetivamente a dimensão do trabalho que
No que diz respeito à existência de relação entre os executam e, assim, consciente e responsavelmente a
avanços tecnológicos e os problemas éticos na área da competência profissional que a formação universitária e
saúde, a maior parte dos alunos questionados (51 - técnica lhes outorga.
96,22%) afirmaram existir essa. Assim podemos perce- Referente ao papel da bioética na formação profis-
ber pelo número de respostas positivas que os alunos sional pessoal dos alunos questionados, 36 (68%)
demonstraram entender a relação entre avanços tecnoló- responderam que tem importância na atitude ético-
gicos e problemas éticos como problemática da bioética. profissional do enfermeiro, considerando desde o
Pessini e Barchifontaine(18) cita que a bioética surgiu comportamento do enfermeiro, suas atitudes, até ao
há pouco mais de trinta anos e que guarda forte relação conhecimento das leis para tal atuação.
com o avanço científico. Afirmam, ainda, que a bioética Já na questão que pedia para descrever o conceito de
se preocupa com os problemas dos avanços, e também bioética a partir da influência do ensino da ética no curso
com os problemas já existentes, ou seja, com os "emer- de enfermagem, 35 alunos (66%) deram respostas inade-
gentes" e os "persistentes". quadas ou não responderam.

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Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas emergentes em bioética

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Gráfico 3 A questão pedia para descrever os conceitos citados a


partir da influência do ensino da ética no curso de enfer-
DISTRIBUIÇÃO DA OPINIÃO DOS ALUNOS DO magem (questão 7 do instrumento de coleta). Segue alguns
4º AO 6º SEMESTRE DO CURSO D E GRADUAÇÃO
exemplos de respostas inadequadas para ilustrar a discussão:
E M E NFERMAGEM SOBRE O MEIO D E COMUNICAÇÃO
N O QUAL ADQUIRIRAM PRIMEIRAMENTE INFORMAÇÃO
4º semestre: - sobre autonomia: "influente", "muito impor-
SOBRE BIOÉTICA. SÃO PAU LO, SP, 2006 tante e deve ser levado em conta"; sobre beneficência: "muito
importante e deve ser levado em conta", "empatia profissional";
sobre justiça: "muito importante e deve ser levado em conta", "influ-
ente".
5º semestre: - sobre autonomia: "moderada", "influência
total"; sobre beneficência: "entendi na graduação", "parcial";
sobre justiça: "fundamentada na vazão e na ética", "importante".
6º semestre: - sobre autonomia: "a importância", "impor-
tante", sobre beneficência: "parcial", "grande", sobre justiça:
"grande", "muito".
As mesmas hipóteses que foram consideradas na
análise das respostas a respeito dos temas emergentes serão
abordadas aqui, pois é a mesma questão.
Sobre a relação entre o conhecimento de bioética e Fica nítida a necessidade da aplicação de um instru-
os dilemas da vida profissional, 51 (cinqüenta e um) mento piloto numa próxima pesquisa, mas não é descarta-
(96,22%) alunos responderam que há relação, enquanto 2 da, por isso, a hipótese que falta exercício/prática de
(dois) (3,78%) alunos referiram não existir relação. reflexão filosófica dos alunos e discutir bioética e seus
Neves(21) afirma que a euforia inebriadora de um princípios sem o exercício de reflexão filosófica é incom-
poder aparentemente infinito conquistado pelo homem patível.
por meio dos desenvolvimentos tecnológicos, cedeu Neves(21) cita que só a fundamentação antropológica
lugar a um sentimento de angústia pela sua manifesta da bioética lhe permitirá desenvolver harmoniosamente
impotência perante às situações produzidas, sendo, então, enquanto reflexão e prática.
desse ambiente marcado por grandes evoluções e senti-
mentos contraditórios que emerge a bioética como novo Gráfico 4
domínio da reflexão e da prática.
DISTRIBUIÇÃO DA OPINIÃO DOS ALUNOS DO
Schramm(22) afirma que o foco da bioética é a quali-
4º AO 6º SEMESTRE DO CURSO D E GRADUAÇÃO
dade das práticas humanas sobre os fenômenos da vida. E M E NFERMAGEM SOBRE O MEIO D E COMUNICAÇÃO
Freitas(23) cita que não basta ter exímio tecnicamente, N O QUAL ADQUIRIRAM PRIMEIRAMENTE INFORMAÇÃO
porém é imprescindível que os profissionais estejam SOBRE BIOÉTICA. SÃO PAU LO, SP, 2006
em constante atualização sobre os aspectos éticos,
legais e técnicos, norteando suas condutas, posicio-
nando-se de forma crítica e reflexiva diante dos
dilemas éticos e morais que permeiam seu cotidiano.
Em relação ao entendimento dos alunos questiona-
dos sobre os princípios de autonomia, beneficência e
justiça, obteve-se a maioria de respostas incoerentes e
respostas em branco, sendo que, somadas tais respostas,
tivemos a respeito do conceito de autonomia 36 alunos
(68%) que ou não responderam ou deram respostas
incoerentes; a respeito da beneficência, 38 alunos (72%); Faculd
ade Televisão Palestra Médio Jorna
l
Revista m coerênc
ia Outros
Ensino Se
e a respeito da justiça, 40 alunos (75%).

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COMUNICAÇÕES/ COMMUNICATIONS/ NOTICIAS

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A respeito do meio de comunicação da primeira na atualidade referente a temas de bioética não observamos
informação sobre bioética, a faculdade foi o mais citado, reportagens seguram em meios não-científicos.
29 alunos (vinte e nove), equivalente a 55%. É impor-
tante observar tal dado, pois ilustra a afirmação de Silva, CONSIDERAÇÕES FINAIS
Silva(24) de que a construção da consciência profissional
da(o) enfermeira(o) é intensamente influenciada pelo Nesse trabalho concluímos que existe pouco con-
órgão formador, as escolas de enfermagem. hecimento dos alunos sobre temas emergentes em
bioética, já que a maioria das respostas obtidas foram
incoerentes ou em branco, somando 72% (38) sobre
Tabela 1 eutanásia, 79% (42) sobre células-tronco e 77% (41)
DISTRIBUIÇÃO DA OPINIÃO DOS ALUNOS DO sobre aborto; que existe um bom entendimento por
4ºAO 6º SEMESTRE DO CURSO D E GRADUAÇÃO E M parte dos alunos por bioética, já que 68% responderam
E NFERMAGEM SEGUNDO A SEGURIDADE DAS que tem importância na atitude ético-profissional do
FONTES D E INFORMAÇÕES UTILIZADAS PARA enfermeiro, considerando desde o comportamento do
ADQUIRIR CONHECIMENTO SOBRE BIOÉTICA. enfermeiro, suas atitudes, até ao conhecimento das leis
SÃO PAU LO, SP, 2006. para tal atuação. Porém, a respeito dos princípios de
autonomia, beneficência e justiça, foi predominante as
Sim Não respostas incoerentes e em branco, obtendo respectiva-
Fonte de informação mente 68% (36); 72% (38) e 75% (40).
N % N %
Quanto aos meios de comunicação utilizados pelos
Internet 16 30 9 17 alunos, a internet foi o meio mais citado 47% (25);
Revista 14 26 6 11 38% (20) dos alunos citaram a revista; e 19% (10)
referiram utilizar a revista; científica como fonte de
Revista Científica 10 19 0 0 informação.
Outros* 7 13 - - Esse trabalho nos conduziu a realizar nova
Jornal 4 7 4 7 pesquisa com os alunos de 7º semestre da faculdade,
pois além de terem vivenciado mais estágios, já estão
Livro 3 6 2 4 cursando a disciplina de exercício de Enfermagem II, a
Televisão 3 6 12 23 qual conduz a reflexões éticas da prática profissional,
com isso trazem temas para discussões de situações
* Indicações do professor, palestras, sem respostas, sem opinião, "não leio".
vivenciadas desde o 3º semestre. Então, será feita uma
nova pesquisa, com objetivos semelhantes com os
Quanto à seguridade dos meios de comunicação utiliza- alunos do 7º semestre do curso de graduação em enfer-
dos pelos alunos, a internet foi o meio mais citado como magem da mesma faculdade, com o uso de instrumen-
seguro 30% (16), enquanto 17% (9) referiram como meio to piloto para o questionário aplicado. Outro ponto a
não seguro; 26% (14) dos alunos citaram a revista como ser colocado é a proposta pedagógica de elaboração
meio seguro, 11% (6) como não seguro; 19% (10) referiram geral do curso e do currículo, pois para acontecer o
utilizar a revista científica como fonte de informação segura. entendimento do aluno, em bioética, é necessário
Espera-se que na graduação o aluno utilize como fonte existir um ensino, ao menos interdisciplinar, assim, o
de informação meios mais seguros e fidedignos, como graduando vivencia em estágios práticos questões éti-
a revista científica, e tenha mais cautela em meios como cas que precisam ser discutidas no momento da ocor-
a internet e a revista, pois, na prática, esses não têm rência dessa. Assim, acreditamos ser desenvolvido o
sido meios seguros. pensamento filosófico reflexivo, porém o que ocorre é
Miguel(25) diz que se destaca a presença entre os códigos o ensino multidisciplinar e tais questões são discutidas
de conduta do jornalista termos como "verdade dos fatos" somente no momento da disciplina específica
como compromisso fundamental do profissional e sem ela o (Exercício de Enfermagem), tornando distante a for-
jornalista passaria longe de seu papel social. Mas infelizmente mação de atitude reflexiva para uma ética relacional.

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Avaliação do conhecimento dos alunos de graduação em enfermagem sobre temas emergentes em bioética

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):124-131

Também relevante comentar a importância da ati- saúde e a equipe multiprofissional) e centro da prática
tude reflexiva e a busca de fontes seguras pelo enfer- assistencial.
meiro, pois as mudanças na área são contínuas e influen- A atitude reflexiva de uma ética relacional é a base
ciam diretamente a prática profissional do enfermeiro. que conduz a tomada de decisão frente aos temas
Para finalizar, enfatizamos o modelo teórico basea- emergentes pautada na tríade justiça, beneficência e
do em Barbosa(26), que coloca o sujeito como autor da autonomia, envolvendo eficiência, confiança e partilha
história (considera-se sujeito o usuário do serviço de respectivamente.

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ESTUDO DE CASO/ CASE STUDY/ ESTUDIO DE CASO

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):132-137

Bioética - e agora, o que fazer?


Bioethics: what are we to do now?
Bioética: ¿ que hacer ahora?
William Saad Hossne (coordenador)*
Colaboradores:
Gláucia Rita Tittanegro
Sueli Gandolfi Dallari
Débora Sanches Pedrolo
Renata Santinelli

(Caso enviado pela mestranda Beatriz Carneiro F. Fernandes; adaptado do caso apresentado
no Congresso de Cardiologia do E.S.P. - maio de 2006)

CNS. Feminina, 16 anos, gestante de oito semanas, portadora de miocardiopatia grave, de causa congênita,
cuja principal manifestação clínica é cianose. Segundo o cardiologista há alto risco de mortalidade, tanto para a mãe,
quanto para o feto.
Diante do fato, o médico cardiologista indicou a interrupção da gestação. A paciente, porém, se recusa a ser
submetida ao abortamento terapêutico, apesar da insistência dos pais e do próprio médico.
Qual a conduta do cardiologista? O que fazer?

Comentário 1 Muito se fala na tomada de decisão livre de qualquer


influência externa. Porém, deve-se sempre lembrar que
A pessoa enquanto passa pela vida, encontra-se toda pessoa está suscetível a qualquer situação que
diante de inúmeras situações que trazem certa angústia implique na escolha do momento da decisão.
e inconformismo, principalmente, em situação de Por isso, a escolha deve ser feita, não sem influência
desumanidade. A pessoa, ao mesmo tempo, que se externa, mas de acordo com a cultura, a espiritualidade,
define como um ser especial diante da natureza, da a formação da pessoa, e o acesso da mesma à informação
criação, do mundo, quer sejam as razões: religiosas, a respeito da situação a qual se submete a decisão, visan-
filosóficas, culturais, sociológicas, acabam por, muitas do sempre o bem - estar de um modo geral, sem se ater
vezes não se verem respeitadas em seus direitos básicos. a modelos heróicos ou paternalistas.
Por qualquer razão, busca-se olhar o outro e reconhecer Assim, tomar decisões em questões que estão direta-
nele, pois tem-se a preocupação com a dignidade mente ligadas ao bem-estar, à dignidade humana, à
humana, como busca de garantir a integridade do outro. beneficência, à autonomia e à justiça, são questões
Desse modo, aprender sobre bioética contempla bioéticas que devem ser tratadas de modo diferenciado
necessariamente duas dimensões: campo teórico e práti- na reflexão. Ou seja, refletir sobre os pontos positivos e
co. Exercer a bioética é uma atitude viva e desejosa de negativos, sobre os riscos e benefícios ao ser determina-
responsabilidade, de passar do campo teórico para o do certo procedimento. Bioética é um sempre movimen-
campo prático. to de reflexão, uma sempre busca pela dignidade do ser
No campo prático, a tomada de decisão sempre foi nas grandes situações da vida.
um dilema nas discussões nos momentos de grande O caso relatado trata-se de um caso comum dos
sofrimento, principalmente quando esta decisão é feita a corredores hospitalares. Seja, uma gestante de oito
partir da doença, momento onde todos os próximos ao semanas, jovem é portadora de uma enfermidade
enfermo sentem-se vulneráveis e desprovidos de cardíaca grave, gerando alto risco de mortalidade para
condições para deliberar sobre qualquer assunto. ambos: mãe e feto. O procedimento recomendado é a

* Médico. Professor emérito da UNESP, Botucatu. Docente e Coordenador do Programa de Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo.
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Bioética - e agora, o que fazer?

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):132-137

interrupção da gravidez, incentivado pelo médico e pelos mulheres de 16 anos hoje já assumiram suas responsa-
pais da gestante, porém, a mesma se recusa a tal proce- bilidades e tomaram as rédeas de suas próprias vidas
dimento. completamente independentes dos pais. Não existe a
O que fazer? Grande dilema a ser discutido sob informação se a paciente é casada ou não, o que teria
vários aspectos. também implicação com um terceiro, o pai biológico da
Quanto ao médico deverá ele construir um laudo criança, portanto o caso requer alguns desmembramen-
técnico, detalhado, deixando claro os riscos desta tos para depois sugerir uma solução que melhor traduza
gravidez e os benefícios da interrupção prematura da a aplicação dos referenciais da bioética: beneficência,
gravidez. Este laudo servirá de base para que os pais da não-maleficência, autonomia e justiça.
gestante possam ingressar judicialmente, solicitando do Nenhum dos princípios, porém tem o peso
juiz competente uma liminar para o procedimento, suficiente para decidir prioritariamente em todos os
sugerindo, inclusive a urgência do feito. Cabe aos pais o conflitos morais. O princípio da beneficência tenta, num
ingresso da ação por tratar-se a gestante de menor, rela- primeiro momento, a promoção da saúde e a prevenção
tivamente incapaz devido sua idade (16 anos). da doença de forma teleológica. A beneficência cria
Do ponto de vista jurídico este é o procedimento dupla obrigação, primeiramente de não causar danos e,
mais acertado para que se preserve a vida da gestante. em segundo lugar, a de maximizar o número possível de
Além disso, a gestante de jovem idade poderá num benefícios e minimizar os prejuízos. A beneficência tem
futuro buscar outras formas de suprir seu desejo de seus limites. O princípio da não-maleficência, o primeiro
maternidade. dos quais seria a dignidade individual intrínseca de todo
Já na questão ética, o que se pode observar? ser humano. É devido a todas as pessoas e envolve
A reestruturação da dignidade desta jovem, buscan- abstenção, não tem caráter absoluto e nem sempre
do não o melhor de um ponto de vista externo, mas o terá prioridade em todos os conflitos. A prudência é a
melhor do ponto de vista de preservar sua saúde para virtude que facilita a escolha dos meios certos para um
que possa ter vida em abundância, superando este bom resultado. Ela pauta pelo princípio da busca do que
momento de sua história e construindo através deste ver- é bom e pela recusa do que é mau. A aplicação correta dos
dadeiro aprendizado para o futuro. princípios da beneficência e da não-maleficência é o
resultado do exercício da prudência, que sempre deveria
Renata Santinelli acompanhar toda atividade e decisão do profissional da
Bacharel em Direito. Mestre em Bioética pelo Centro saúde.
Universitário São Camilo. Professora de Ética na Faculdade de Autonomia (auto=próprio e nomos=lei, regra) auto-
Direito e membro da comissão de ética do Instituto Machadense governo, autodeterminação para tomar decisões que afe-
de Ensino Superior. tam sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica,
suas relações sociais. Refere-se à capacidade do ser
humano decidir "o que é bom" ou "o que é seu bem-
Comentário 2 estar". A pessoa autônoma é aquela que tem liberdade de
pensamentos, é livre de coações internas e externas para
No presente caso não é possível tratar apenas a escolher entre as alternativas que lhe são apresentadas,
doença, mas sim voltar os olhos para a pessoa, grávida, propedêuticas e terapêuticas, e o seu direito sobre a
com problemas cardíacos, com suas crenças e valores, informação sobre o diagnóstico, prognóstico, os riscos e
que não podem ser ignorados. É preciso avaliar entre objetivos, o constrangimento da vítima deixa de ser
outras coisas, a maturidade dos envolvidos (indepen- crime em função do risco de morte.
dente da idade), a espiritualidade e/ou religiosidade bem A constituição garante ao cidadão o direito à vida,
como o vínculo dos envolvidos. mas não sobre a vida: ele tem plena autonomia para
O fato de ser pai e mãe biológicos não quer dizer que viver, mas não para morrer. "Todo ser humano na vida
sejam presentes na vida uns dos outros a ponto de adulta e com a mente sã tem o direito de determinar o
decidir ou não pela antecipação terapêutica. Muitas que deve ser feito com seu próprio corpo. "O consenti-

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ESTUDO DE CASO/ CASE STUDY/ ESTUDIO DE CASO

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):132-137

mento só moralmente aceitável quando está fundamen- Portando, a realização da antecipação terapêutica do
tado em quatro elementos: informação, competência, parto, traz como benefício a salvaguarda da vida da
entendimento e voluntariedade. À manifestação autôno- gestante; de não malefício profissional-paciente, além da
ma da sua vontade, devidamente esclarecida pelo profis- redução dos riscos de morte da gestante e do feto com a
sional de saúde, cabe a decisão final em cada procedi- manutenção da gravidez; evita que seja feito a redução
mento. Ressalve-se que todos esses princípios não são fetal em outra oportunidade, ou seja, quando o feto já
absolutos e, portanto, admitem condutas de exceção. estiver mais desenvolvido e com isto, as 'seqüelas'
No Brasil, a informação e a autonomia do cidadão poderão ser maiores, inclusive aumentando o risco de
fica de lado, em detrimento de interesse dos "poderosos". esterilidade da menor; com relação ao custo, também
Torna-se necessário, então, o exercício da pluralidade, da reduz significativamente o custo do seu tratamento
tolerância, da legitimidade, da justiça e da responsabili- (cardiopatia) assim como do controle desta gravidez;
dade. Dessa forma apresentando alternativas, dando haverá, talvez um desrespeito à autonomia da menor,
direito a escolhas, a bioética, portanto, prima pela integri- porém, em razão desta ser relativamente capaz, e
dade física, a dignidade humana e principalmente pela seus pais serem favoráveis ao aborto, este desrespeito
defesa do cidadão no que diz respeito à saúde. deve ser visto com ressalvas, e, por último, observando
É preciso aprender a tomar decisões de caráter que todos os atos possuem guarida legal e moral,
profissional e moral em situações de incerteza. Há uma alcança-se assim a tão sonhada justiça.
série de situações na prática médica nas quais o princípio
da beneficência deve ser aplicado com cautela para não Ana Paula Pacheco Clemente
prejudicar o paciente ou as pessoas com ele relacionadas. Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo
No caso de recusa do tratamento pelo paciente, deve
o médico intervir quando conseqüências serão mortais
para o paciente desde que tenha dado ao mesmo direito Comentário 3
de escolha. A beneficência deveria tentar esgotar todos
os recursos, entre outros a troca de médico e o uso de A situação proposta deverá ser examinada, em suas
outras medidas terapêuticas. repercussões jurídicas, sob vários ângulos, todos, igual-
À luz do nosso ordenamento jurídico deve-se mente importantes. Basicamente, deve-se notar que a
ressaltar a idade da gestante, 16 anos, e, segundo artigo 4º dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da
do Código Civil, ela é relativamente incapaz a certos atos, Constituição da República Federativa do Brasil (art. 1º),
ou à maneira de os exercer, portanto a vontade dos pais que consagra entre as garantias de direitos fundamentais,
passa a ter um peso maior na hora de solucionar o a garantia da inviolabilidade do direito à vida e à liber-
conflito. Porém, faz-se necessário saber qual é o vínculo dade, entre outros valores igualmente protegidos (C.F.art.
ou o grau de envolvimento desses com a paciente. 5º, caput). Em conseqüência, a organização do Estado
O tempo de gestação também influi já que o aborto implica que toda a legislação infra-constitucional proteja
nesse caso, traz menos riscos à gestante que com maior os valores abrigados na Constituição. Assim, os grandes
tempo de gravidez. Deve-se oferecer aos envolvidos, códigos, tanto civil como penal, devem esclarecer os
gestante e familiares, a oportunidade de conversar com a meios e os modos de proteção daqueles valores e, de
assistente social, ou mesmo ter um acompanhamento fato, é isso o que acontece.
emocional que possa ser um facilitador nas decisões. Na situação em exame, então, é preciso, primeira-
Em relação ao médico esse tem resguardado pelo mente, reconhecer que a sociedade brasileira considera
Código de Ética Médica a realização de procedimentos justo que, na hipótese de haver risco de morte da ges-
que julgar necessários para salvar a vida dos pacientes, tante, o médico proceda à interrupção da gravidez. Desse
já que o caso é de "risco de vida". Mas a relação hoje ângulo de observação, portanto, o comportamento do
profissional paciente está muito mais embasada na médico encontra respaldo na legislação nacional, pois
co-responsabilidade o que facilita o processo para todos conforme dispõe o Código Penal Brasileiro, "não se pune
os envolvidos. o aborto praticado por médico, se não há outro meio de

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Bioética - e agora, o que fazer?

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):132-137

salvar a vida da gestante" (art.128, I). Seria necessária, o caso de os pais de CNS exigirem que ela se submeta ao
apenas, a constatação - médica - de que a interrupção aborto em nome da obediência devida? Não me parece,
da gravidez é o meio mais eficiente para salvar a vida uma vez que a gestante pode invocar, em defesa de sua
de CNS. escolha, a garantia de que ninguém poderá ser cons-
Ainda na ótica do médico, importa recordar que trangido a submeter-se a intervenção cirúrgica, expressa
nossa sociedade preza sobremaneira o valor liberdade de no art. 15 do Código Civil Brasileiro. Assim, a adequada
formação e manifestação da vontade. Ela considera que compreensão da disciplina jurídica da relação entre os
as pessoas devem ser livres para manifestar sua vontade pais e os filhos, cujas idades variam entre dezesseis e
e que qualquer negócio jurídico deverá respeitar a von- dezoito anos, implica orientar-lhes sobre as possíveis
tade livremente manifestada, mesmo quando a lin- conseqüências emocionais, sociais e legais de suas esco-
guagem expressar coisa diferente da intenção (C.C. arts. lhas e ampará-los enquanto eles, os filhos, realizam os
107,110 e 112). Desse modo, a situação exige que o atos decorrentes dessa opção. Os pais não podem,
médico respeite a escolha de CNS até o limite em que portanto, impor suas vontades aos filhos, mas, apenas,
possa ser caracterizada a situação de omissão de socorro ajudá-los a compreender todas as implicações dos seus
(C.P. art. 135). Considerando, contudo, que toda essa atos. Mais especificamente, no caso em exame, os pais
situação - se for necessário ser apreciada pelo sistema não poderiam legalmente impor a CNS a realização da
judicial - depende de prova, seria prudente e conveniente intervenção cirúrgica destinada a interromper a gestação,
que o médico obtivesse a participação de mais colegas como também, não poderiam impedi-la.
seus (pelo menos mais dois especialistas) que confir- Por outro lado, a introdução da preocupação ética, na
massem o quadro clínico e certificassem a inequívoca situação proposta, em nada invalida a avaliação jurídica
manifestação de CNS. realizada. Isso porque toda a disciplina legal em questão
Sob outro prisma, deve-se considerar a própria está diretamente baseada na discussão ética a respeito dos
situação da gestante: trata-se de uma pessoa relativa- comportamentos que mais adequadamente permitem o
mente incapaz (Código Civil Brasileiro, art.4º, I). Aqui, império do valor dignidade humana na sociedade brasileira.
também, é preciso lembrar que a sociedade brasileira Assim, portanto, para responder imediatamente à pergun-
julgou conveniente dar uma proteção especial para as ta formulada, creio que o car-diologista deveria obter a par-
pessoas maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. ticipação de mais dois colegas seus, para que eles confir-
Com efeito, visando evitar que o despreparo natural para massem o quadro clínico e certificassem que CNS, devi-
certos atos da vida civil, que decorre exclusivamente da damente esclarecida sobre todas as implicações médicas,
inexperiência, pudesse causar prejuízos a essas pessoas, emocionais e sociais do prosseguimento da gravidez, man-
dispôs o legislador nacional que seus pais devem ifestou, de modo inequívoco, sua não concordância com a
assisti-los nos atos da vida civil (C.C. art. 1634, V). Isso adoção do procedimento de interrupção da gestação.
significa que a decisão de CNS deve ser respeitada, ainda
que contra a vontade de seus pais, uma vez que estes só Sueli Gandolfi Dallari
podem "assisti-la", ou seja, eles podem - e devem - Professora titular, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de
esclarecer a gestante sobre todas as implicações emo- São Paulo.Livre-docente em Direito Sanitário,Universidade de São
cionais e sociais que a decisão de manter a gestação Paulo.Diretora do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito
contém, mas estão legalmente obrigados a respeitar Sanitário.
a escolha de sua filha.
Enfocando, ainda, o relacionamento de CNS com
seus pais, é importante notar que a sociedade brasileira Comentário 4
quis proteger a autoridade dos pais sobre os filhos
menores de dezoito anos ao declarar, expressamente que Como sabemos, os avanços da Medicina permitem um
compete aos pais exigir que os filhos menores "lhes maior cuidado com o paciente. É parte deste cuidado refle-
prestem obediência, respeito e os serviços próprios de tir sobre os direitos do paciente e, sobretudo, acerca da
sua idade e condição" (C.C. art. 1.634, VII). Seria, então, melhor forma de salvaguardá-los.

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ESTUDO DE CASO/ CASE STUDY/ ESTUDIO DE CASO

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O caso de CNS, que tem apenas dezesseis anos e demos que este deve convocar os profissionais que
está grávida de oito semanas, e é portadora de uma possam auxiliar no esclarecimento da situação. Ao explo-
miocardiopatia congênita, seria indiscutível a alguns rar todas as nuances do caso, ou seja, ao tomar o tempo
anos atrás. A conduta seria clara: CNS é menor de idade necessário para que as questões sejam colocadas e para
e a vontade dos responsáveis legais deve prevalecer. que se busque respostas a estas questões, respostas estas
Assim, com o suposto consentimento dos pais ou que esclareçam e auxiliem na decisão, os profissionais
responsáveis, o aborto terapêutico, indicado pelo estão propiciando a autonomia dos sujeitos envolvidos
cardiologista, seria realizado, apesar da discordância da na ação.
paciente. Em persistindo a recusa do paciente em se submeter
A reflexão bioética parte de um profundo respeito ao abortamento terapêutico, entendemos que a sua
pela pessoa humana. E é este respeito que nos faz decisão deve ser acolhida pelos profissionais, os quais
hesitar diante desta posição. Ainda que não tenhamos devem auxiliar os familiares na aceitação da decisão da
um consenso sobre a questão da maioridade ou, melhor paciente.
dizendo, da maturidade para tomar decisões, o debate O respeito da autonomia é um desafio que se impõe
nos comitês de ética, sobretudo no âmbito da pesquisa sempre mais aos profissionais de saúde. Às vezes ele
com seres humanos, acabou nos apresentando uma situ- pode ser entendido como um "lavar as mãos" diante do
ação nova, isto é, a maioridade sanitária. problema do outro. Outras vezes, ele aparece como a
Mas é preciso olhar um pouco mais deperto as várias impotência do profissional diante da vontade do Outro.
possibilidades que este caso nos oferece. Mas o verdadeiro ato do respeito da autonomia é uma
Em primeiro lugar, temos um leque de questões que acolhida e uma assistência ao Outro. Trata-se de oferecer
envolvem a interdisciplinaridade, pois seria oportuno suporte aos familiares ou àqueles que estão envolvidos
chamar para o seio da discussão a figura do obstetra. na questão do paciente. Trata-se de esclarecer sem
Qual seria a indicação deste profissional? A interdis- induzir, de instruir sem manipular, de viver o peso da
ciplinaridade não ajudaria a perceber melhor quais seri- decisão do Outro e, ao mesmo tempo, de colocar-se em
am os riscos efetivos para a paciente? Os avanços da paz. O respeito da autonomia é um profundo respeito ao
medicina nos âmbitos da ginecologia e da obstetrícia Outro, uma profunda Hospitalidade.
continuam apontando este caso como um risco de morte
ou haveria momentos mais difíceis da gestação que Gláucia Rita Tittanegro
poderiam ser contornados no esforço conjunto entre os Doutora em Filosofia.Coordenadora do Curso de Filosofia do
profissionais em torno da paciente? Quais seriam estes Centro Universitário São Camilo
momentos mais críticos e que conduta tomar?
É preciso também verificar quais seriam os riscos
para a criança, pois, se os momentos mais críticos para a Comentário 5
gestante pudessem ser contornados pela interação das
especialidades médicas, não seria possível que esta O caso apresentado demonstra duas situações
mesma interação auxiliasse também o bebê? extremas: por um lado o direito de uma mãe em
Por último, seria preciso analisar até que ponto, a prosseguir com sua gestação, e por outro lado, a cons-
indicação de um aborto terapêutico não se tornaria tam- tatação de uma gestação de risco, com a conseguinte
bém um risco para a paciente, posto que a mesma não se orientação médica de possível interrupção da gestação,
encontra, segundo o relato, com sangramento, por exem- pensando na saúde materna.
plo, o aborto terapêutico deveria, neste caso, ser induzi- De forma geral, a humanização dos cuidados em
do? Quais seriam os riscos desta indução? saúde pressupõe, considerar a essência do ser, o respeito
Entendemos que estas questões deveriam ser discu- à individualidade, e que a pessoa vulnerabilizada enfrente
tidas entre os vários atores desta cena: o cardiologista, o positivamente os seus desafios.
obstetra, a paciente e os familiares. Assim, para respon- A dificuldade no caso apresentado, em auxiliar que
der a questão sobre a conduta do cardiologista, enten- essa mãe vivencie essa experiência de forma positiva,

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Bioética - e agora, o que fazer?

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encontra-se na questão principal do risco de morte. Se portanto, é considerada "incapaz" para tomar tais
essa gestante for informada de sua situação de risco, e decisões, a responsabilidade recai sobre seus familiares
optar em manter sua gestação em benefício de seu filho (legalmente responsáveis) ou um procurador legal, ou
passará por um período de extrema angústia. na ausência destes o médico passa a ser o responsável
Se falecer, como será a sobrevivência de seu filho? por tomar as decisões.
Quem cuidará dessa criança? Seus pais? O pai biológico?
Portanto, seguindo o princípio da autonomia, se for
Será que seu filho poderá nascer com alguma deficiência
vontade dos pais escolher a interrupção da gestação
ou seqüela?
Além das inseguranças citadas e vivenciadas pela pensando na sobrevivência de sua filha, está interrupção
gestante deve ser ressaltada a questão da autonomia. poderá ser realizada, por outro lado, se essa menor pode
O termo autonomia refere-se à condição de quem é engravidar, deve ser tratada não como incapaz ou em
autor de sua própria lei. O respeito pela autonomia do situação de autonomia reduzida, mas sim como mulher,
indivíduo deve considerar que cada um possui pontos de com vontade própria, como capaz de se auto-governar, e
vista e expectativas próprias quanto ao seu destino, e que de tomar decisões próprias, sem a interferência dos pais.
cada um deve tomar suas decisões baseadas em suas Acredito que a melhor decisão a ser tomada estaria
crenças, aspirações e valores próprios. baseada em: consultar outros especialistas, verificar
De forma geral, o doente adulto, com capacidade
a situação real da gestante, oferecer o atendimento
mental preservada, deve decidir o que será feito com o seu
pré-natal adequado, e acima de tudo, respeitar a vontade
corpo, possui o direito de receber uma segunda opinião
médica, pode consentir ou não para a realização de não apenas de uma menor, mas de uma mulher que pre-
procedimentos diagnósticos e terapêuticos, entre outros. fere abrir mão de sua vida em prol de seu filho.
Porém, essas decisões cabem apenas ao doente adulto
e sem complicações psiquiátricas, ou seja, no caso apre- Débora Sanches Pedrolo
sentado por se tratar de uma menor de 16 anos, que, Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo

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NOTÍCIAS DO PROGRAMA DE MESTRADO EM BIOÉTICA

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):138-139

Notícias do programa de Mestrado em Bioética


A note about the master graduate program in bioethics
Informacíon acerca del programa de maestría en bioética

Dissertações defendidas:
Programa de Mestrado stricto sensu em Bioética
do Centro Universitário São Camilo (agosto 2004/junho 2007)

Adriana Aparecida de Faria Lima Júlio César Batista Santana


"Sofrimento e contradição: o significado da morte, do morrer e da "Dilemas éticos vivenciados por acadêmicos de Enfermagem em
humanização para enfermeiros que trabalham no processo de Unidades de Terapia Intensiva".
doação de órgãos para transplante".
Maria de Lourdes Neves Fonseca Azevedo
Marcelo da Silva Sechinato "Opinião dos profissionais de saúde de uma instituição privada
"Opinião de um grupo de professores de Medicina de uma facul- sobre processo seletivo: uma aproximação com a Bioética".
dade privada de Minas Gerais sobre o respeito à autonomia do
paciente". Tânia Heloísa Anderman Silva Barison
"Liderança em enfermagem: a justiça como horizonte ético nas
Renata Santinelli relações interpessoais entre o enfermeiro líder e os colaboradores".
"A relevância do conceito de dignidade para a Bioética".
Mônica Hussni Messetti
José Marques Filho "Análise das Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (1995 -
"A pena máxima: cassação do exercício profissional médico. 2005) sob a perspectiva da Bioética".
Análise, sob o olhar da Bioética, dos processos de cassação do
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo". Raul Marino Júnior
"Avaliação de métodos confirmatórios e complementares no
Ana Paula Pacheco Clemente diagnóstico da morte encefálica".
"Uso de embriões humanos excedentes de fertilização in vitro como
fonte de células-tronco: diálogo entre Bioética, Biossegurança e Karina Dias Guedes
Direito". "O profissional de saúde na Unidade de Terapia Intensiva frente
ao paciente fora de possibilidades terapêuticas: um olhar da
Daiane Fiorina Spalvieri bioética".
"Distrofia Muscular de Duchenne: opinião de mães sobre a inter-
rupção da gravidez". Conceição Alice Volkart Boueri
"Conflitos éticos vivenciados por pais de crianças portadoras de sín-
João Carlos Silva de Ledo dromes com prognóstico de vida limitante".
"Questões Bioéticas suscitadas pela Nanotecnologia".
José Raimundo Evangelista da Costa
Adriana Amaral Haas "Respeito à autonomia do doente mental no atendimento de
"O direito à saúde nas constituições de 1967 e 1988: uma reflexão auxiliares e técnicos em Enfermagem: um estudo bioético em
a partir do referencial ético da justiça distributiva". clínica psiquiátrica".

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Dissertações defendidas: Programa de Mestrado strictosensu em Bioética do Centro Universitário São Camilo

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):138-139

Beatriz Carneiro Ferreira Fernandes Viviane Hanshkov


"Quando começa a vida? A incoerência da legislação brasileira ao "Pesquisa Clínica no Brasil: da Bioética à responsabilidade civil".
tratar da matéria".

Elvira Barbosa Miranda Homero Januário Caramico


"Perfil de publicações científicas (ano 2005) referentes às pesquisas "O ensino de Bioética nas faculdades de medicina do Brasil".
clínicas (fase III) à luz da Bioética".
Fernanda Maria Ferreira Carvalho
Carlos Luis Benites Canhada
"Bioética ambiental: falta de autonomia sobre o ar respirado
"O entendimento dos responsáveis técnicos de enfermagem sobre a
aplicação da Bioética na prática profissional". na cidade de São Paulo - a poluição atmosférica como fator
determinante para a diminuição da qualidade de vida da
Débora Gomes população".
"Reflexões bioéticas da atuação da fisioterapia em Cuidados
Paliativos".
Débora Sanches Pedrolo
Valdomiro Barbosa da Rosa "Estudo qualitativo com pacientes vítimas de trauma raqui medu-
"Ser ou não ser: eis o embrião". lar cervical: perda da autonomia associada a seqüelas físicas".

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ORIENTAÇÕES PARA COLABORADORES

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):140-143

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES Pesquisas envolvendo seres vivos: quando a


investigação envolver sujeitos humanos, os autores
BIOETHIKOS é um periódico semestral voltado à deverão apresentar uma Declaração de que foi obtido o
veiculação de estudos e pesquisas na área bioética. Consentimento dos sujeitos por escrito (Consentimento
Objetiva contribuir na reflexão dos problemas, Livre e Esclarecido), anexado de cópia da aprovação do
sobretudo emergentes, relacionados à existência e à Comitê de Ética que considerou a pesquisa.
convivência do ser humano, considerando os avanços
tecnocientíficos e as questões ético-ambientais do tempo CATEGORIAS DOS MANUSCRITOS
presente; promover a disseminação do conhecimento Bioethikos caracteriza-se por ser uma publicação
científico da bioética por meio de estudos e pesquisas científica que veicula trabalhos arbitrados relacionados às
que contribuam para a expansão e consolidação desta seguintes seções:
área no país e na América Latina; e estimular a reflexão z artigos originais: contribuições destinadas a divulgar
por parte dos especialistas e profissionais de diversas resultados de pesquisa original, inédita, provenientes de
áreas do conhecimento que interagem fundamental- investigação experimental, documental ou conceitual
mente com a bioética. relacionado a um tema pertinente ao campo da bioética
e afins. Sua extensão deve de ser no máximo 17 páginas,
CARACTERÍSTICAS incluindo possíveis gráficos, tabelas, imagens etc.
As orientações de Bioethikos baseiam-se nas normas z artigos de revisão: contribuições resultantes de ava-
propostas de Vancouver elaboradas pelo International liação crítica sistematizada da literatura ou reflexão sobre
Committee of Medical Journal Editors, traduzidas sob o títu- determinado assunto, devendo conter os procedimentos
lo "Requisitos uniformes para manuscritos apresentados adotados ao desenvolvimento do tema, bem como sua
aos periódicos biomédicos". Consultar no site: delimitação. Sua extensão limita-se a 15 páginas.
www.scamilo.edu.br z artigos de atualização e relatos de experiência:
Os manuscritos devem destinar-se exclusivamente à trabalhos descritivos e interpretativos, com fundamen-
Revista Bioethikos, não sendo permitida sua apresentação tação sobre a situação em que se encontra determinado
simultânea a outro periódico, parcial ou integralmente. assunto investigado. Sua extensão limita-se a 5 páginas.
Os conceitos emitidos nos manuscritos são de inteira z comunicações e relatos de caso: estudos avalia-
responsabilidade do(s) autor(es), não refletindo obrigatoria- tivos, originais ou notas prévias de pesquisa, contendo
mente a opinião do Conselho Editorial e da chefia de Editoria. dados inéditos e relevantes para a bioética. A apresen-
A publicação dos manuscritos dependerá da observân- tação deve seguir as mesmas normas para artigos
cia das normas da Revista e da apreciação do Conselho originais, limitando-se a 5 páginas.
Editorial e chefia de Editoria que dispõem de plena autori-
dade para decidir sobre sua aceitação, podendo apresentar SOBRE A PREPARAÇÃO E
sugestões ao(s) autor(es) para as alterações necessárias. ENCAMINHAMENTO DE MANUSCRITOS
Neste caso,o referido trabalho será reavaliado pelo Página de identificação: esta página deverá conter:
Conselho Editorial e Editores. Destaca-se que os nomes dos titulo do artigo e subtítulo(se houver) em português,
pareceristas permanecerão em sigilo, da mesma forma que inglês e espanhol; nome(s) do(s) autor(es) por extenso,
o(s) nome(s) do(s) autor(es) com relação aos avaliadores. com indicação na nota de rodapé da qualificação de
Os manuscritos deverão ser enviados juntamente com a cada autor(titulação da graduação e atual,filiação institu-
documentação necessária: 1. Declaração de responsabili- cional,incluindo o departamento/ setor, cargo/ função
dade e 2. Transferência de Direitos Autorais. que exerce e endereço de correspondência e eletrônico).
Para obtê-los acessar o site www.scamilo.edu.br/publi- Resumo: deverá conter até 250 palavras, mencionando
cações/bioethikos. objetivos da pesquisa, procedimentos adotados, resulta-
O encaminhamento dos manuscritos e documen- dos e conclusões, com destaque para com os pontos
tação poderá ser on-line ou via correio, desde que mais importantes do estudo. Os resumos deverão ser
anexados texto em CD-Rom e duas vias impressas. apresentados em português, inglês e espanhol.

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ORIENTAÇÕES PARA COLABORADORES

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):140-143

Palavras-chave: mencionar três palavras-chave como de Vancouver elaboradas pelo International Committee of
referência à indexação do artigo. Para a atribuição das Medical Journal Editors, traduzidas sob o título "requisitos
palavras-chave consultar a listagem dos Descritores em uniformes para manuscritos apresentados aos periódicos
Ciências da Saúde - DECS / LILACS, elaborada pela biomédicos".
Bireme e/ou pelo Medical Subject Heading - Comprehensive Agradecimentos: ao final do manuscrito podem ser
Medline. mencionados os agradecimentos destacando as con-
Corpo do texto: o manuscrito a ser submetido deve tribuições de profissionais por orientações técnicas e/ou
apresentar as seguintes características técnicas: apoio financeiro ou material, especificando a sua
a) texto redigido preferencialmente em português, ou natureza.
em língua inglesa ou espanhola (no caso de autores
estrangeiros),com extensão máxima de 17 páginas,para AUTORIA
artigos originais, e 15 páginas para artigos de revisão, O conceito de autoria está consubstanciado na
incluindo possíveis gráficos, tabelas etc.; b)texto digitado contribuição de cada uma das pessoas mencionadas
em Times New Roman 12, com espaço duplo e possibi- como autores no manuscrito enviado. Manuscritos com
lidade de impressão em folha de papel A4, formatado mais de cinco autores devem seacompanhados por
em Word for Windows. declaração certificando explicitamente a contribuição de
A estrutura do manuscrito deve basicamente conter: cada um dos autores elencados.
introdução, procedimentos metodológicos, análise dos PROCESSO DE APRECIAÇÃO DOS MANUSCRITOS
resultados,discussão e conclusão.
Os critérios de veiculação estabelecidos pela Revista
Em relação às referências bibliográficas, recomenda-
Bioethikos visam garantir a qualidade das publicações.
se o limite de até 15 citações, porém com previsão de
Os manuscritos serão considerados inicialmente pela
flexibilidade.
chefia editorial quanto à pertinência e natureza de con-
Quando da inclusão de depoimentos de sujeitos de
tribuição de cada obra para a área em questão e o público
pesquisa apresentar as falas em itálico, com fonte 10, na
leitor. Só então encaminhará cada obra a dois pareceristas
seqüência do texto.
que procederão a avaliação com base em informações em
Quando da transcrição direta do autor (apresentação
instrumento elaborado pela Assessoria editorial e aprova-
ipsis litteris) utilizar aspas e inserir na seqüência do texto.
do pela editoria. O processo constitui-se sigiloso com total
Tabelas, quadros, figuras e ilustrações: devem ser
isenção de identificação de autor e revisor.
numerados seguindo ordem seqüencial de apresentação,
Diante dos pareceres emitidos pelos avaliadores, os
com algarismos arábicos e título conciso. No caso de haver
editores responsáveis tomam ciência dos relatórios e
notas explicativas estas deverão ser apresentadas no rodapé
indicam à assessoria editorial os procedimentos em
das tabelas e ou quadros e não junto ao título. Figuras, enten-
relação aos encaminhamentos relacionados à aceitação do
didas como desenhos, fotografias etc, devem ser desenhadas
artigo, necessidade de reformulação ou recusa justificada.
por profissionais,apresentadas em ordem seqüencial com Os autores de manuscritos recusados para publicação
algarismos arábicos e legendadas. serão notificados e devolvidos pela assessoria editorial.
Ilustrações: devem ser enviadas somente mediante a per-
missão, por escrito, dos autores (7.5cm -largura correspon- Encaminhamento dos originais:
dente à coluna do texto). Centro Universitário São Camilo
Notas de rodapé: indicadas por asterisco e apresentadas Setor de Publicações - at. Assessoria editorial
restritivamente como forma complementar e/ou explica- Avenida Nazaré, 1501
tiva à citação enunciada no texto. CEP:04263-200 - São Paulo-SP.Brasil
Referências bibliográficas: apresentadas numérica e e-mail: publica@scamilo.edu.br
consecutivamente à ordem de citação no texto. As Para mais informações:
citações no texto devem ser identificadas com números Fale com a Assessoria Editorial
arábicos entre parêntesis e sobrescritas. As normas Tel: 55 0**11- 61694045
específicas às referências bibliográficas têm como base as 55 0**11- 61694066

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INSTRUCTIONS FOR CONTRIBUTORS

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):140-143

INSTRUCTIONS FOR CONTRIBUTORS Research Involving Living Beings: when research


BIOETHIKOS is a Journal publishing every involves living beings, authors must send a Statement
six months bioethical studies and researches. Bioethikos that a written Consent form was signed by research sub-
aims to contribute for reflecting on problems, mainly jects (Free and Informed Consent form), as well as a
newly emerging ones, associated with human beings' copy of the Ethics Committee approval document of
existence and conviviality, taking into account techno- the Institution where research was done.
scientific advances and current ethical-environmental
MANUSCRIPT CATEGORIES
questions; to promote the dissemination of scientific
knowledge in bioethics by means of studies and BIOETHIKOS publish peer-reviewed scientific papers
researches that contribute for broadening and consoli- distributed in the following categories:
z Original papers: contributions aiming to show
dating bioethics in Brazil and Latin America; and
encouraging reflections by experts and professionals results of original, non-published research stemming
from the different knowledge fields that fundamentally from scientific experiments and/or documental or
interact with bioethics. conceptual studies about themes related to bioethics or
associated fields. They must have a maximum 17 pages,
CHARACTERISTICS including graphs, tables, images etc.
BIOETHIKOS follows Vancouver editorial rules z Review articles: contributions stemming from critical

elaborated by the International Committee of Medical evaluations of the literature or reflections on some topic,
Journal Editors, such as translated in the document and must present procedures regarding theme development
"requisitos uniformes para manuscritos apresentados aos and delimitation. They must have a maximum 15 pages.
periódicos biomédicos". (See www.scamilo.edu.br.). z Updating papers and reports of experiences:

Manuscripts must be submitted only to Bioethikos, and descriptive and/or interpretative papers about the state-
simultaneous submission of a manuscript or part of it to of-the art condition of some studied problem. They
other publications is not allowed. must have a maximum 5 pages.
Authors are responsible for their opinions and z Communications and Case Reports: evaluative and

statements, and publication in the Journal do not in original studies or working papers about ongoing
any way reflect an endorsement by the Editorial Board research, containing non-published and relevant data
or the Editor(s). regarding bioethics. They must follow rules for original
Publication is contingent on following the papers except that they must have a maximum 5 pages.
Journal rules and the evaluation of the Editorial
Board and the Editor(s), that have full authority RULES FOR MANUSCRIPT PRESENTATION
for deciding on manuscript publication and may AND SUBMISSION
make suggestions to authors should alterations be Identification Page: this page should carry the following
necessary. In these cases, manuscripts will be resubmitted information: the title of the article and subtitle, if any, in
to the Editorial Board and the Editor(s). In no Portuguese, English and Spanish; full authors' names and
circumstances will peer reviewers have their identity a footnote with academic degrees (undergraduate and the
disclosed, nor will author names be disclosed to highest one), institutional affiliations, including depart-
reviewers. ment/sector, position and mailing and ameial address.
Manuscripts must be submitted together with Abstract: up to 250 words, it should mention objectives
the following documents: a Statement of Author of the research, methods and conclusions, emphasizing
Responsibility and a Copyright Cession form of submi- the most important points of the study. Abstracts must
tted manuscripts. (For getting them, please see be in Portuguese, English and Spanish.
www.scamilo.edu.br/publicações/bioethikos.) Keywords: three keywords for manuscript indexation.
Manuscripts and the said documents may be sent Please see Descritores em Ciências da Saúde - DECS /
online or by conventional mail; in this last case, a CD- LILACS, by Bireme, or the Medical Subject Heading -
Rom copy and two printed copies are mandatory. Comprehensive Medline.

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INSTRUCTIONS FOR CONTRIBUTORS

- Centro Universitário São Camilo - 2007;1(1):140-143

Body Text:manuscripts must be prepared according sionals regarding technical instructions and material and
to the following rules: a) text written in Portuguese, in financial support. Authors must specify their character.
the case of Brazilian authors, or English or Spanish (for
foreign authors). See the descriptions of the sections of AUTHORSHIP
the Journal above for number of pages, which include
eventual tables, graphs etc.; b) Times New Roman 12 Authorship is determined by the contribution of
font, double space, A4 paper format using Word for each person presented as authors of some manuscript.
Windows.
Manuscripts having more than 5 authors must present
Manuscripts must present basically introduction,
a statement explaining clearly what each author
methods, results, discussion and conclusion.
contribution was.
References must preferentially be no more than 15, but
there may be exceptions.
Research subjects' speech must be quoted in italics, MANUSCRIPT EVALUATION
10 font size, in the text sequence.
Authors' quotations (ipsis litteris quoting) must be indi- Bioethikos have criteria established for assuring the
cated by quotation marks and inserted in the text good quality of published papers. Submitted manu-
sequence. scripts will have a first evaluation by the Editor regarding
Tables, charts, figures, graphs, illustrations: tables their relevance and the nature of their contribution both
and charts must be numbered by order of presentation for the field and the readers. Latter, the chosen manu-
with Arabic numerals and concise titles. Notes must be scripts will be sent to reviewers for evaluation according
presented after the table or chart they refer to and not as to an instrument created by the Editorial Consultancy
part of the title. Figures, meaning drawings, photographs and approved by the Editor. No authors or reviewers are
etc., must be done by professionals, presented in Arabic identified to each other. Reviewers' evaluations are sent
numbers in order of appearance and have legends. to the Editor, who instructs the Editorial Consultancy
Illustrations: should only be sent with written permis- about procedures for accepted manuscripts, manuscripts
sion of their authors (they must up to be 7.5 cm wide to needing reformulations for being accepted and justifiably
fit the Journal columns). refused manuscripts. The authors of refused manu-
Footnotes: indicated by asterisks and only presented
scripts are informed and the manuscripts are sent back.
when really necessary for supplementing and/or
explained something quoted in the text.
Manuscripts must be sent to:
References: must be presented in Arabic numerals in
the order of presentation in the text. Body text quota- Centro Universitário São Camilo
tions must have references indicated by Arabic numerals Setor de Publicações - at. Assessoria editorial
inside parenthesis and superscript. For specific rules see Avenida Nazaré, 1501
"Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to CEP: 04263-200 - São Paulo-SP.Brasil
Biomedical Journals: Writing and Editing for Biomedical e-mail: publica@scamilo.edu.br
Publications" (Vancouver), by the International For more information, contact
Committee of Medical Journal Editors. the Editorial Consultancy staff:
Acknowledgments: they may be presented at the end of Phone: 55 0**11- 61694045
the manuscript and may include contributions of profes- 55 0**11- 61694066

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