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Paulo Roberto de Almeida

UM CONTRARIANISTA NO LIMBO
ARTIGOS EM VIA POLÍTICA, 2006-2009

Brasília
Edição do Autor
2017
Um Contrarianista no Limbo
Artigos em Via Política, 2006-2009
...................................

Um Contrarianista no Limbo
Artigos em Via Política, 2006-2009

Paulo Roberto de Almeida


Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.

Edição do Autor - 2017

4
Direitos de publicação reservados:
© Paulo Roberto de Almeida
2017

_______________________________________________________

ALMEIDA, Paulo Roberto.


Um contrarianista no limbo: artigos em Via Política, 2006-2009;
Brasília: Edição do Autor, 2017.
247 p.

1. Política brasileira. 2. Relações internacionais.


3. Economia. 4. História. 5. Diplomacia. 6. Economia.
7. Globalização 8. Brasil. 8. América Latina. 10. Título

_______________________________________________________

Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images

Contato com o autor:


www.pralmeida.org
pralmeida@me.com

Esta versão: 26/12/2017

5
Acredito...

Em algumas verdades simples, muito simples:

Que a palavra do homem é uma só,


que todos têm o dever social e individual da verdade; que ela é única e imutável;
que devemos, sim, assumir, nossas responsabilidades pelos cargos que ocupamos,
que não podemos descarregar sobre outros o peso dessas responsabilidades;
que devemos sempre procurar saber o que acontece, em nossa casa ou trabalho;
que não devemos jactar-nos indevidamente por grandes ou pequenas realizações;
que sempre nos beneficiamos do legado dos antepassados, sobretudo em conhecimento;
que nenhuma obra social possui paternidade única e exclusiva, sendo mais bem
coletiva;
que a tentativa de excluir antecessores ou auxiliares é antipática e contraproducente;
que devemos zelar pelo dinheiro público;
que temos o dever de pensar nas próximas gerações, não na situação imediata;
que vaidade é uma coisa muito feia, além de ridícula;
que sensação de poder pode perturbar a capacidade de raciocínio;
que poder concentrado desequilibra o processo decisório;
que ouvir apenas elogios embota o senso da realidade;
que o convívio exclusivo com áulicos perturba a faculdade de julgamento;
que, enfim, não comandamos ao julgamento da história.

Eu também aprendi, que os resultados são sempre mais importantes do que as intenções,
mas que os fins não justificam os meios...

Acredito, para terminar, que coisas simples assim podem ser partilhadas com outros...

Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 25 de setembro de 2006.
“Acredito”, Via Política (Porto Alegre, 30 de setembro de 2006).
Relação de Originais n. 1.699.

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Índice

Apresentação: Resquícios de um quilombo de resistência intelectual 11

O Brasil e os problemas brasileiros


1. Dicionário político dos novos pecados capitais 17
2. Prioridades possíveis em uma administração racional 19
3. Uma verdade inconveniente: pode o Brasil crescer 5% ao ano? 24
4. Reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo 30
5. Pequeno manual prático da decadência 33
6. Prometeu acorrentado: o Brasil amarrado por sua própria vontade 45
7. Algumas coisas simples que deveríamos ter no Brasil 52
8. Como criar uma nação de assistidos 54
9. Duro de crescer: obstáculos políticos ao crescimento no Brasil 57
10. Presença da universidade no desenvolvimento: perspectiva histórica 68
11. O afundamento da educação no Brasil 73
12. O problema da universidade no Brasil: do público ao privado? 81
13. Fim de consenso na diplomacia? 87

O mundo e seus problemas


14. O Brasil no índice dos Estados falidos 91
15. América do Sul: desintegração política e à fragmentação econômica? 97
16. O papel dos BRICs na economia mundial 106
17. Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos 112
18. Socialismo do século XXI?: apenas para os incautos... 123
19. Sete teses impertinentes sobre o Mercosul 127
20. Terrorismo islâmico-fundamentalista: uma quarta guerra mundial? 132
21. Duzentos anos da vinda da família real: o que Portugal nos legou? 136
22. Um outro Fórum Social Mundial é possível… 151
23. O império americano em sete teses rápidas 159
24. O império e sua segurança: quatorze novas teses 164
25. O Brasil e o cenário estratégico mundial: breves considerações 173
26. O legado de Henry Kissinger 177
27. Pequena lição de Realpolitik 182
28. Bric: anatomia de um conceito 187
29. Fórum Surreal Mundial: globalizados contra a globalização 217

9
Apêndices
30. Relação dos artigos publicados em Via Política, 2006-2009 237
31. Livros de Paulo Roberto de Almeida 242
32. Nota sobre o autor 245

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Apresentação
Resquícios de um quilombo de resistência intelectual

Considero os trabalhos reunidos neste volume, que de outra forma poderiam ser
chamados de “crônicas do limbo,” como remanescentes de alguns dos meus quilombos
de resistência intelectual, quando eu estava reduzido a um ostracismo funcional, ou seja,
confinado a uma espécie de limbo institucional por razões que muitos sabem quais
foram, mas que talvez não seja o caso de discutir aqui. Em todo caso, basta informar
que, convidado no início de 2003 a assumir a coordenação do mestrado em diplomacia
do Instituto Rio Branco, fui “desconvidado” logo em seguida, por motivos obscuros
mas que podem ser deduzidos mediante uma simples consulta à lista de minha produção
acumulada desde muitos anos. O fato é que, desde então, e pelos 13 anos seguintes,
permaneci sem qualquer função na Secretaria de Estado, uma travessia do deserto que
apenas foi interrompida com o impeachment de certa senhora. Tudo coincidência, claro.
Enterrado um regime, iniciado um outro, retomei meus trabalhos, não exatamente
na Secretaria de Estado, mas numa função de corte acadêmico, que por acaso coincide
com meus interesses intelectuais. Durante aquele longo período – do início de 2003 a
meados de 2016 –, frequentei, ou criei, vários tipos de “quilombos”, que eu chamei de
“resistência intelectual”, em geral sob a forma de blogs, que eu mantinha e alimentava
com objetivos variados: resenhas de livros, transcrição de escritos alheios, usos tópicos
diversos (por ocasião de eleições presidenciais, por exemplo), e mais frequentemente
para finalidades pessoais (como o DiplomataZ, entre vários outros), ou blogs de caráter
geral, dos quais o mais constante, e até hoje em uso, é o Diplomatizzando.
Num desses quilombos, ou fora deles, a verdade é que eu estava no limbo, o que
até pode parecer anacrônico, uma vez que a Cúria do Vaticano parece ter extinguido
esse “território” muitos anos atrás. Enfim, sempre podem subsistir limbos virtuais. O
limbo, segundo os dicionários, representa, na teologia cristã, uma região próxima do
inferno, um refúgio para as almas dos homens bons, que viveram antes da chegada de
Cristo, e para as almas das crianças falecidas não batizadas. Num sentido civil, pode
aproximar-se de uma espécie de prisão, ou confinamento, o que deve ter sido o meu
caso. No sentido mais comum do termo, seria um lugar ou a condição de negligência
ou de esquecimento aos quais seriam relegadas coisas ou pessoas não desejadas. Estas
são, em todo caso, as definições que retiro do Webster's New Universal Unabridged

11
Dictionary (2nd edition; New York: Simon and Schuster, 1979), p. 1.049. Os muito
curiosos por outras significações, ou por explicações mais detalhadas, podem procurar o
verbete na Wikipédia.
Retomemos o meu caso. Consciente do ostracismo que me foi imposto, por
decisões provavelmente políticas (ainda que não declaradas), continuei a fazer o que
sempre fiz, no decorrer de toda uma vida dedicada a uma atividade fundamental: ler,
refletir, escrever, eventualmente divulgar meus escritos pelos meios disponíveis. Estes
meios não eram muitos; ao início, na verdade, nenhum, uma vez que eu só dispunha, em
2003, de meu próprio site pessoal (www.pralmeida.org), que se destinava unicamente a
divulgar alguns trabalhos acadêmicos, em temas sobre os quais eu era frequentemente
consultado por estudantes, jornalistas ou colegas acadêmicos: integração regional,
política externa brasileira, relações internacionais de modo geral. O site pessoal era um
instrumento passivo, pois nunca fiz dele um instrumento de comunicação, ou plataforma
para qualquer outro objetivo, senão a compilação de trabalhos de natureza intelectual,
que refletiam essa minha produção de tipo acadêmico. A partir de certo momento, para
facilitar o trabalho de carregamento e disponibilização de trabalhos mais curtos, passei a
utilizar a ferramenta dos blogs, o único free lunch real, conhecido sob o capitalismo.
Por inépcia pessoal, incompetência técnica notória, tive vários deles, sucessivos,
até conseguir estabilizar no Diplomatizzando, sem que todos os demais tivessem sido
desativados; foram apenas sendo deixados de lado, para não complicar muito a vida. O
fato é que comecei a postar um volume crescente de materiais suscetíveis de atrair a
atenção de um número maior de leitores, e até de “editores” de ferramentas semelhantes
ou até de instituições de ensino e pesquisa espalhadas pelo Brasil. De várias recebi
convites para colaborar, o que procurei atender na medida de minhas possibilidades e,
sobretudo, interesse no tipo de veículo, seu perfil social e nicho de interesse intelectual.
Um deles foi a revista eletrônica Via Política (Porto Alegre), animada pelos
jornalistas gaúchos Omar Luiz de Barros Filho e Sylvia Bojunga, que me localizaram
em algum momento do início de 2006 e formularam o convite para que eu colaborasse.
Refleti por algum tempo, sobre se deveria aceitar ou não, e resolvi colaborar, tanto
porque havia sido contatado quase simultaneamente por dois outros veículos online de
comunicação, e também porque, desde 2001, já contribuía mensalmente com a revista
digital Espaço Acadêmico, um bem sucedido empreendimento editorial mantido em
condições quase artesanais pelo professor Antonio Ozaí, da Universidade de Maringá,
no Paraná. Depois de ter inaugurado minhas colaborações mensais nessa revista por um
12
texto – “Dez novas regras de diplomacia” – que deve ter sido o mais acessado de toda a
minha produção acadêmica (na verdade diplomática), continuei durante dez anos com
meus artigos provocadores (ao ambiente de gramscismo disseminado), até que o corpo
editorial deve ter se cansado de meus ataques à nossa miséria acadêmica e resolveram
dispensar-me dos colaboradores regulares. Ufa! Poupou-me uma obrigação adicional.
Em Via Política, com total liberdade de colaboração, cheguei até a dispor de uma
coluna dedicada e especial, que reproduzia o título de um dos meus blogs na ocasião – a
“Diplomatizando”; link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando – e mandava
minhas contribuições a intervalos regulares, embora sem uma periodicidade fixa. No
total, salvo engano de registro, contei 87 publicações, mas pelo menos duas delas foram
longos artigos divididos em postagens diferidas ao longo de algumas semanas, como foi
o caso de um ensaio sobre o Brics e uma análise das parvoíces do Fórum “Surreal”
Mundial (que parecem ter desaparecido da paisagem, mais por falta de dinheiro oficial
do que de besteirol à disposição dos incautos).
Nesta minha seleção ilustrativa, escolhi três dezenas de trabalhos, reproduzidos
neste volume de compilação (nem sempre fiel aos textos efetivamente publicados, pois
que buscados nas minhas pastas de “originais”, organizadas ano a ano. Creio que podem
ser considerados os trabalhos mais representativos, e ainda válidos, de minhas reflexões
e de minha produção intelectual nesses anos em que me encontrava afastado de
qualquer atividade funcional na Secretaria de Estado ou de postos no exterior. Depois
da decisão de efetuar o “renascimento” desta colaboração com um blog infelizmente já
desaparecido, comecei a pensar em como intitular esta nova série de trabalhos atinentes
às minhas pesquisas, reflexões e escritos. Diferentes opções estavam à disposição deste
autor: crônicas do deserto, do cerrado, do agreste, ou qualquer outro conceito denotando
uma situação áspera, difícil, de isolamento ou de dificuldade, enfim, algo conforme às
minhas condições naquele período.
Resolvi então adotar o que era mais característico quanto ao autor e sua situação:
um “contrarianista” – ou seja, alguém não absolutamente contrário a tudo o que vê, ou
encontra, mas praticando o que eu sempre chamei de “ceticismo sadio” – ,“no limbo”,
pois esta era, efetivamente, a minha situação naquele momento. Esta foi, pois, a decisão
de deixar registrados trabalhos de uma fase já passada, mas que ainda pode voltar a
ocorrer novamente, pois nunca se sabe que tipo de complicações esses contrarianistas
profissionais podem criar para si mesmos, em termos de projetos de vida, tanto pelo
lado profissional, como pelo lado acadêmico ou pessoal. Acredito que as pessoas são
13
responsáveis, em grande medida, pelo seu próprio destino, na medida em que fazem
escolhas, adotam posturas, assumem atitudes que as colocam em maior ou menor
conformidade com o seu meio social, com o seu ambiente profissional, com o seu
universo de relacionamentos e interações. Sou o resultado de minhas próprias escolhas,
ainda que outros possam ter contribuído, direta ou indiretamente, para minha condição,
em determinados momentos de minha carreira profissional ou itinerário acadêmico.
Não pretendo lamentar nada, ainda que exercícios de autorreflexão e revisões
críticas de trajetórias passadas e presentes sejam sempre desejáveis, na perspectiva de
corrigir o que está errado e impulsionar caminhos mais atrativos, ou interessantes. Ao
refletir sobre esse tipo de situação, em dezembro de 2006, ao confirmar-se o limbo no
qual eu andava metido, escrevi num dos textos pessoais: “Vou estabelecer, neste final
de ano [2006], um plano de trabalho para enfrentar os próximos meses, talvez anos, de
travessia do meu deserto particular”. Não sabia, naquela momento, que o limbo teria a
exata duração de dez anos, durante os quais preferi ficar com minha consciência e em
defesa de certos princípios e valores, do que aderir a um governo que sempre considerei
um desastre no plano econômico, político, institucional, e até ético e moral. Acho que
eu não estava errado a este respeito, como constatamos pelos incontáveis processos,
delações, investigações sendo feitas e casos sendo julgados atualmente no Judiciário.
O Brasil atual, de certo modo, me dá vergonha, pelo aspecto de corrupção impune
a que se assiste. Mas, por outro lado, existem pessoas e instituições lutando para que tal
vergonha seja corrigida, punida, senão eliminada, pelo menos limitada. É isso que eu
sempre procurei fazer através de meus escritos e publicações. Eles não são fortuitos, ou
puramente circunstanciais. Eles traduzem um compromisso com certos princípios de
vida, com certos valores que julgo importantes, para minha geração e as que se seguirão
nas décadas seguintes, agora representadas por meus filhos e netos.
A palavra limbo talvez não é mais adequada à minha situação atual. Ela fica, em
todo caso, como conceito chave destas minhas crônicas de um período especial, hoje
felizmente superado, mas que talvez possa voltar pelo lado de um contrarianismo
sempre presente em meus textos. Nesse caso, eu talvez tenha de escolher algum
substantivo mais apropriado. No momento este é o que me convém para expressar estas
colaborações a um dos muitos veículos com os quais colaborei ao longo dos anos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de dezembro de 2017

14
Primeira Parte

O Brasil e os problemas brasileiros

15
1. Dicionário político dos novos pecados capitais

Brasília, 1543: 26 janeiro 2006, 2 p.


Via Política (Porto Alegre, 23/07/2006)

Como todos sabem, os sete pecados capitais da tradição cristã são, sem ordem
particular de prioridade, os seguintes:
1) inveja;
2) avareza;
3) cobiça;
4) orgulho (ou soberba);
5) preguiça;
6) luxúria;
7) gula.

Sobre eles não precisamos nos alongar indevidamente, tendo em vista toda a
exegese já registrada na história, a começar por São Tomás de Aquino até exemplos
mais recentes na literatura. Pode-se questionar, inclusive se esses “pecados” continuam
sendo “capitais” ou se a sua presença na vida diária já não vem sendo admitida com
alguma tolerância pelos mais diversos personagens da vida pública. Afinal de contas,
todos eles, com alguma discrição para a luxúria, vêm sendo exibidos por esses
personagens, até mesmo com certa desfaçatez, sem que autoridades morais ou religiosas
venham a público condenar atos e atores com a veemência que seria de se esperar.
Deixando de lado esses pecados da velha tradição, proponho-me agora listar
alguns novos pecados da moderna vida política, da brasileira em particular. Os políticos,
em geral, exibem uma penca deles, não todos os políticos, em bloco, nem todos os
pecados, ao mesmo tempo, mas vários desses personagens da vida pública ostentam
alguns de forma cumulativa e, o que é pior, de maneira reincidente.
Não vou deter-me agora sobre casos concretos da vida pública brasileira, tanto
porque eles estão sendo expostos de maneira recorrente, nas comissões parlamentares
de inquérito e nas páginas da imprensa e em outros meios de comunicação.
Parafraseando uma frase famosa, pode-se dizer que nunca, tantos podres da vida
pública foram assumidos de forma tão aberta, para o conhecimento de tantos cidadãos,
estupefatos. Assistimos, desde vários meses, a uma enxurrada de denúncias, várias delas
já substanciadas por provas contundentes, sem que se tenha visto, até aqui, nenhuma
condenação moral, ou qualquer condenação de fato. Resta saber se velhos e novos
pecados serão, de alguma forma, julgados e condenados no futuro previsível.
17
Esperando que chegue o “dia do julgamento final”, proponho-me, assim, a
apresentar alguns novos pecados da vida política brasileira que, numa lista não
exaustiva, poderiam ser identificados com os seguintes:
1) corrupção
2) hipocrisia
3) fraude
4) desfaçatez
5) volubilidade
6) inconstância
7) mentira
8) mediocridade
9) transferência de encargos para terceiros
10) ignorância deliberada de fatos de sua competência
11) irresponsabilidade quanto ao desempenho de funções
12) pretensão
13) eleitoralismo desenfreado
14) propaganda indireta, com meios públicos
15) uso da máquina estatal para fins particulares
16) populismo (velho e novo)
17) demagogia (aparentemente, uma segunda natureza)
18) arrogância
19) clientelismo
20) fisiologia
21) nepotismo
22) fuga da realidade (autismo político)
23) esquizofrenia (defesa de objetivos conflitantes na vida política)
24) ofensa à inteligência alheia (“eu não sei”, “eu não vi”, “não estou sabendo”...)

Paro provisoriamente por aqui, e não pretendo, no momento, elaborar sobre cada
um desses novos pecados, esperando ao menos que eles sejam autoexplicativos. Os
fatos que poderiam substanciar cada um desses verbetes do novo dicionário de costumes
políticos da vida brasileira são conhecidos de todos e não requerem nova descrição.
Termino parafraseando Dante Alighieri (1265-1321), o poeta italiano, autor de A
divina comédia, que em uma de suas frases memoráveis disse o seguinte:
“Não menos do que saber, me agrada duvidar.”

Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 26 de janeiro de 2006
Postado no Blog “Cousas Diplomáticas” (link:
http://diplomaticas.blogspot.com/2006/01/190-dicionrio-poltico-brasileiro-dos.html).
Postado no blog Diplomatizzando em 2/11/2014; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/dicionario-politico-dos-novos-
pecados.html.

18
2. Prioridades possíveis em uma administração racional

Brasília, 1635: 9 julho 2006, 5 p.


Via Politica (16/07/2006)

Todo mundo tem a sua pequena lista de tarefas urgentes e inadiáveis a serem
feitas no Brasil: se consultarmos os representantes do povo, eleitos para isso mesmo,
eles já têm pronta uma lista enorme de projetos a serem implementados com a máxima
urgência possível, com a particularidade de que são todos nas respectivas circunscrições
eleitorais, obviamente. Se perguntarmos a um conclave de universitários, reunidos, por
exemplo, numa dessas conferências anuais da SBPC, eles também terão a sua lista de
prioridades, geralmente vinculadas à ciência e tecnologia, ao investimento em educação,
incentivo à pesquisa, aumento de salário aos professores – notoriamente defasados –,
financiamento às universidades e coisas do gênero. Se falarmos com os industriais, ou
aos agricultores ou, ainda, aos simples trabalhadores do campo e da cidade, cada uma
dessas categorias terá uma lista de medidas urgentes a serem tomadas pelo governo, sob
risco de desemprego, insuficiência alimentar, deterioração das condições de vida ou
sabe-se lá o que mais.
Recursos orçamentários são, por definição, escassos, como mais de um governo
“comprometido com o povo” descobriu no dia ou nas semanas seguintes à vitória nas
eleições. Não dá, obviamente, para fazer tudo ao mesmo tempo ou sequer no tempo
total do mandato. Como já disse alguém, “não espere que eu faça em quatro anos aquilo
que não foi feito nos últimos 500 anos”. Elementar, não é mesmo?
O problema é que as pressões emergem de todo lado, cada grupo de interesses,
cada categoria social berrando pela sua fatia do orçamento e os políticos estão aí para
isso mesmo: para fazer chantagem com o governo de plantão, só dando o seu voto
depois de ter assegurado o financiamento para o seu projeto particular. O resultado é o
pior possível, com a fragmentação total do orçamento público em uma miríade de
pequenos projetos, quando não, o esquartejamento puro e simples dos recursos escassos
em uma variedade de pequenos gastos, que não resolvem qualquer dos grandes
problemas sociais do país, e mantém intactos os pequenos problemas com sua resolução
parcial mediante uma parte da verba originalmente pedida.
Pois bem, a intenção do presente exercício é outra. Seria a de tentar concentrar
os recursos disponíveis mediante sua focalização nos melhores projetos disponíveis. O
19
critério básico é o de encontrar as prioridades sociais efetivas, isto é, aquelas ações que
redundam no maior efeito social possível, alcançando o maior volume de pessoas que
exibem carências detectáveis que redundam em perdas sociais mensuráveis. A aplicação
dos recursos disponíveis – por definição, escassos, como sempre – tem de ser feita com
a melhor eficácia possível no dispêndio, o que os economistas usualmente chamam de
custo-benefício, ou seja, o maior retorno alcançável pelo dinheiro aplicado. Por fim, a
ação visada precisa apresentar eficiência; em outras palavras, estender benefícios ao
maior número com efeitos permanentes de bem-estar, contribuindo para a elevação dos
índices de produtividade social (direta ou indiretamente).
Com base nessa trilogia – prioridades efetivas, custo-eficácia e eficiência –
podemos traçar uma escala de ações prioritárias que poderiam ser implementadas por
um governo interessado em corrigir as distorções mais gritantes existentes na sociedade
brasileira, quais sejam, a desigualdade, a má educação, a infraestrutura precária e uma
baixa produtividade geral no sistema produtivo.
Não consideremos, aqui, demandas de grupos ou, mesmo, a escassez de
recursos. Vamos simplesmente supor que temos um volume de recursos dado, mas que
precisamos escolher apenas as ações mais prioritárias dentre as prioridades
governamentais, deixando para depois as menos prioritárias. Numa segunda etapa,
pode-se discutir a disponibilidade de recursos. Não vamos, tampouco, considerar o
sistema político, mas sim uma organização a mais racional possível, que aja com base
na já mencionada eficácia e eficiência máximas dos investimentos feitos.

Escala de prioridades com o máximo de retorno social e econômico

1) Melhoria da qualidade da educação com gerenciamento eficiente dos recursos


(a) alcançar a cobertura máxima de crianças escolarizáveis, entre 2 e 17 anos, o que
implica ampliar a pré-escola e redimensionar a rede escolar espacialmente;
concentrar recursos no básico (fundamental e médio) e no técnico-profissional;
(b) ampliar a permanência escolar no ciclo fundamental público, estendendo o
período de estudo efetivo na escola; vincular programas do tipo bolsa-escola aos
programas de assistência social;
(c) aperfeiçoar a formação dos professores dos ciclos infantil, fundamental, médio e
técnico-profissional públicos, com incentivos financeiros segundo o desempenho,
medido pelo aproveitamento efetivo do estudante (abolido o critério da aprovação
automática); recursos de tecnologia de informação devem estar concentrados no
professor e nos centros de documentação e bibliotecas das escolas;
(d) mudanças curriculares de molde a reforçar o núcleo básico de estudos (língua
nacional, ciências, matemáticas e estudos sociais), com opções de disciplinas
suplementares disponíveis segundo os recursos apresentados, e decisão a ser
20
tomada de forma descentralizada pelos conselhos de educação em nível municipal
e associações de pais e mestres nos diversos centros escolares;
(e) eficiência na gestão escolar, com estímulos financeiros e funcionais em função da
melhoria no desempenho (mais em escala relativa do que absoluta).

2) Melhoria dos padrões de saúde da população mais carente


(a) ampliar a rede de serviços básicos de saúde, num sentido preventivo e educativo;
integração dos serviços de saneamento básico para prevenir doenças
infectocontagiosas e prover água de qualidade a todas as comunidades;
(b) programa nacional de nutrição e alimentação, com seguimento das crianças,
integrado aos serviços escolares; formação de recursos humanos em economia
doméstica e produção local de alimentos;
(c) rede integrada de saúde familiar e de hospitais comunitários; equipes volantes
permanentes para o controle das doenças transmissíveis e contagiosas; vigilância
integrada das gestantes e crianças na primeira idade;
(d) programas permanentes de riscos de gravidez – com ampla oferta de meios
preventivos – e seguimento integral em casos de parto não desejado; programas
integrados de abrigo e adoção de crianças;
(e) melhoria da gestão das redes de saúde e hospitalar, para reduzir a corrupção e os
desvios e aumentar a eficiência dos recursos disponibilizados; transparência total
das despesas efetuadas, com seguimento integral das operações financeiras e
transferências de recursos via Siafi, aberto ao nível das unidades.

3) Eficiência na gestão estatal, com redução da carga fiscal


(a) Reforma tributária para a redução da carga total sobre o sistema produtivo,
segundo programa progressivo em dez anos, com redução de dez pontos do PIB,
sendo meio ponto a cada semestre;
(b) Combate à corrupção no sistema público, por meio de redução ampla da
mediação dos recursos pela via política e ampliação da transparência dos gastos
públicos, com seguimento integral pela internet; elaboração e execução
orçamentárias igualmente disponíveis na internet;
(c) ampliação do sistema de parcerias público-privadas (PPPs), para o maior número
possível de setores envolvidos nos serviços públicos (que não necessitam ser
estatais); privatização de atividades que não sejam tipicamente estatais ou
públicas;
(d) consolidação da independência da autoridade monetária como guardiã exclusiva
da estabilidade da moeda e da defesa do poder de compra da população;
(e) ampliação e aprofundamento da legislação sobre responsabilidade fiscal, com
desdobramento dos mecanismos preventivos de controle de desequilíbrios
potenciais;
(f) reforma administrativa com diminuição do número de ministérios, redução dos
gastos com os corpos legislativos federal, estaduais e municipais e da própria
representação política, hoje superdimensionada; atribuição de diversas funções
estatais a novas agências reguladoras independentes; início progressivo do fim da
estabilidade no serviço público, com exceção de algumas carreiras de Estado,
estritamente definidas; reforma do sistema judiciário para melhoria de sua
eficiência.

21
4) Reformas microeconômicas para a melhoria do ambiente de negócios
(a) ampla reforma trabalhista num sentido mais contratualista do que com base no
diploma legal; eliminação do imposto sindical e da justiça trabalhista, com amplo
recurso ao sistema arbitral e criação de varas especializadas na justiça comum;
(b) redução da informalidade empresarial e trabalhista mediante reformas tributária,
regulatória e burocrática; redução dos custos de transação impostos pelo Estado;
(c) descentralização dos sistemas de compras públicas, com uso ampliado dos
mecanismos eletrônicos de oferta, aquisição e controle dos gastos efetuados;
(d) eliminação dos tratamentos diferenciados entre setores, de maneira a eliminar
distorções e competição fiscal danosa aos orçamentos públicos e aos regimes
tributários;
(e) ampliação da competição interna e externa, com eliminação de cartéis e setores
oligopolizados, redução do protecionismo alfandegário e maior integração à
economia mundial, com abertura ampliada aos investimentos estrangeiros.

5) Segurança pública
(a) reformulação dos aparelhos policial, penitenciário e de justiça, num sentido
preventivo, repressivo e restaurativo;
(b) diminuição da idade de imputabilidade legal;
(c) redução dos casos de prescrição de pena e ampliação dos prazos;
(d) integração do sistema preventivo com os mecanismos de assistência social e de
incorporação escolar, para diminuir a delinquência juvenil e a criminalidade
envolvendo crianças.

Creio que bastam esses cinco conjuntos de tarefas como indicativo de um


esforço concentrado numa agenda transformadora, pois eles me parecem cobrir o
essencial dos problemas mais prementes do Brasil atual. Obviamente que se está
falando em concentrar a maior parte dos recursos nesses programas, exatamente
definidos como “prioridades prioritárias”, sem querer ser redundante. Se isso é verdade,
obviamente será preciso deslocar recursos de outros programas, que passam então a ser
prioridades secundárias ou “terciárias”. Alguns critérios simples para operar essa
“separação” entre “urgências relativas” podem ser usados, como por exemplo:
1) preferir investimentos nos jovens (ou seja, escola e formação) do que nos “velhos”
(isto é, a previdência);
2) preferir investimentos na formação básica, média e técnico-profissional, do que
gastar sempre mais recursos com o ensino universitário, até agora privilegiado;
3) priorizar a infraestrutura – e dentro dela as possíveis PPPs – do que políticas setoriais
que redundem em dar créditos e facilidades para setores já privilegiados, como os
industriais ou a agricultura capitalista;
4) priorizar o investimento na pesquisa tecnológica vinculada ao sistema produtivo;
5) reduzir, sempre, os gastos com as atividades-meio – inclusive as de natureza política,
já superdimensionada – e concentrar os recursos nas atividades diretamente
finalísticas;
6) adotar o perfil competitivo para definir ofertas de serviços “públicos” nos mais
diversos setores, inclusive fazendo o Estado funcionar com mecanismos similares
aos de mercado.
22
Estes são alguns dos critérios funcionais e operacionais que poderiam ser
mobilizados para estabelecer, e depois implementar, um conjunto bastante restrito, isto
é, extremamente seletivo, de políticas públicas a serem detalhadas em programas,
projetos e medidas dotadas de continuidade e de sustentação política durante mais de
uma gestão presidencial (se possível, estendendo-se por pelo menos dois PPAs, ou
mais), de maneira a produzir efeitos transformadores permanentes. Como esses
procedimentos envolvem ganhos e perdas para grupos sociais específicos, recomenda-se
trabalhar primeiro com um grupo restrito de “tecnocratas” com vistas ao “desenho”
global das medidas, para depois levar os temas à discussão pública, com exposição clara
quanto aos custos e benefícios de cada uma delas e o sentido político que se pretende
imprimir a cada uma.
Como disse ao início deste trabalho, aliás, no próprio título, trata-se de escolher
prioridades num sentido absolutamente racional, visando ao melhor custo-benefício de
cada uma delas e seu maior efeito social possível. Custos e benefícios podem ser
medidos e discutidos de maneira racional, como convém a um governo inteligente e a
uma sociedade consciente de seus problemas e desejosa de encontrar as melhores
soluções possíveis, em bases igualmente racionais.
Por certo a política nem sempre é racional, uma vez que feita de emoções e de
apelos aos sentimentos humanos. Mas é dever do estadista liberar-se das contingências
do momento e das pressões dos grupos particularistas para ver a sociedade da
perspectiva da próxima geração. A pergunta a se fazer é muito simples: como eu
gostaria que a geração passada tivesse me entregue o país? As respostas fluirão
naturalmente...

Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 9 de julho de 2006.
Divulgado no blog Diplomatizzando (11/01/2016; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/prioridades-possiveis-em-uma.html).

23
3. Uma verdade inconveniente: pode o Brasil crescer 5% ao ano?

Brasília, 1685: 12 de novembro de 2006.


Via Política (12/11/ 2006)

Durante a campanha presidencial de 2006, e nos dias que se seguiram à vitória


do presidente-candidato, muito se falou sobre a intenção de fazer o Brasil crescer mais,
isto é, de ser acelerado o crescimento econômico. Chegou-se a citar a cifra – não se sabe
se mágica, ou apenas anódina, em vista de taxas maiores nos demais emergentes – de
5% anual como índice aceitável, ou até mesmo necessário, para o crescimento do PIB.
Com todo o respeito por promessas eleitorais ou por projetos de governo, uma
verdade inconveniente precisaria ser afirmada: o Brasil, caso único entre os países
emergentes, atende aos requisitos para, justamente, NÃO crescer. A intenção deste
breve ensaio é a de demonstrar como e por que o Brasil não pode atender aos objetivos
proclamados de uma taxa mais rápida de crescimento econômico, por uma razão
simples: ele NÃO consegue crescer e a causa está nos níveis das despesas públicas.
Em economia não existem certezas absolutas, apenas relações matemáticas que
podem apresentar algum grau de correlação com a realidade, ou seja, mesmo não sendo
verdades científicas, elas podem ser comprovadas empiricamente. Entre essas
correlações encontram-se as conexões entre taxas de investimento e taxas de
crescimento, a relação capital-produto (que varia muito setorialmente), os vínculos entre
a competitividade das exportações e a taxa de câmbio, efeitos inflacionários da paridade
cambial, aqueles sobre a demanda agregada derivados das políticas monetária, fiscal e
tributária, bem como variações nos níveis de emprego em função de encargos laborais
compulsórios ou outras medidas (inclusive a taxação sobre o lucro das empresas e a
renda dos agentes privados).
Não se sabe bem de onde foi tirada a cifra “mágica” de 5% de crescimento, mas
o que pode, sim, ser afirmado, é que, com uma taxa de investimento anual inferior a
20% do PIB, é virtualmente impossível fazer a economia brasileira crescer mais do que
3% ao ano. Se o Brasil deseja crescer mais do que isso, vai ter de aumentar
consideravelmente o nível dos investimentos, o que não quer dizer, necessariamente, a
poupança doméstica – pois esta pode ser suplementada pela poupança externa, ou até
aumentar no bojo do próprio processo de crescimento –, mas o certo é que o País

24
precisaria diminuir, muito e rapidamente, o nível da “despoupança” estatal, que
consome os recursos dos particulares no estéril jogo das despesas públicas.
Uma das evidências mais notórias da política econômica nas últimas décadas, tal
como demonstrada por exercícios feitos a partir de estatísticas dos países da OCDE, é a
que vincula o nível das despesas públicas nacionais com as taxas de crescimento anual.
Em estudo sobre as causas dos diferenciais de crescimento entre as economias da
OCDE ao longo de 36 anos a partir de 1960, o economista James Gwartney, da Florida
State University (https://www.cato.org/people/james-gwartney), demonstra a existência
de uma correlação direta entre crescimento econômico e carga tributária. A explicação
para esse fenômeno é tão simples quanto corriqueira: quanto maior o nível da punção
fiscal sobre a sociedade, menor é o incentivo para que os agentes econômicos se
disponham a oferecer uma contribuição positiva para a sociedade; em contrapartida,
quanto mais alta a carga tributária, mais e mais recursos fluem dos setores produtivos
para o aparato do governo.
Para aqueles ainda não convencidos por esta simples correlação matemática, ou
meramente empírica, recomenda-se uma consulta a este trabalho de Gwartney, junto
com J. Holcombe e R. Lawson: “The Scope of Government and the Wealth of Nations”,
The Cato Journal (Washington: vol. 18, nr. 2, outono de 1998, p. 163-190; link:
https://object.cato.org/sites/cato.org/files/serials/files/cato-journal/1998/11/cj18n2-
1.pdf). A figura 2, à p. 171, contém a evidência da correlação apontada: a taxa média
anual de crescimento do PIB, entre 1960 e 1996, para os países de carga fiscal inferior a
25% do PIB foi de 6,6%, ao passo que o mesmo índice para os países com carga
superior a 60% do PIB foi de 1,6%.
Recentemente, o economista Jeffrey Sachs, da Columbia University, enfatizou
as supostas virtudes do “modelo escandinavo” de desenvolvimento: em um curto artigo,
quase uma nota, “The Social Welfare State, beyond Ideology” (Scientific American,
11/2006; link: https://www.scientificamerican.com/article/the-social-welfare-state/), ele
afirma expressamente que “Friedrich von Hayek was wrong” e que o modelo nórdico,
baseado na forte presença do Estado, é superior ao modelo anglo-saxão (que produz
mais crescimento do que o modelo econômico adotado na Europa continental). Ele já
tinha sido desmentido previamente por um trio de belgas, Martin De Vlieghere, Paul
Vreymans e Willy De Wit, que assinaram conjuntamente o artigo “The Myth of the
Scandinavian Model”, publicado no The Brussels Journal (25/11/2005; link:
http://www.brusselsjournal.com/node/510).
25
Uma consulta à página do site da instituição que patrocinou o estudo que
fundamenta o referido artigo de imprensa, o think tank belga Work for All, traz
comprovações irrecusáveis sobre o sucesso do modelo irlandês de crescimento
econômico – baseado, justamente, em baixas taxas governamentais sobre o lucro das
empresas e sobre o trabalho –, em contraste com o medíocre desempenho das
economias escandinavas ou continentais, todas apresentando altos níveis de despesas.
Ou seja, a existência de um grande Estado indutor e de redes generosas de proteção
social estão, de fato, contribuindo para o lento declínio dessas sociedades, outrora bem
mais prósperas.
A explosão de crescimento na Irlanda, a uma taxa superior a 5% ao ano nas duas
últimas décadas, continuou sustentada, mesmo quando o desempenho econômico geral
da UE começou a diminuir ao longo dos anos 1990. Alguns argumentos tendem a fazer
crer que as altas taxas de crescimento experimentadas pela Irlanda, ou pela Espanha, em
determinados períodos, são devidas aos abundantes subsídios comunitários, que
irrigaram essas economias com pesados investimentos em infraestrutura ou diretamente
em setores produtivos. As evidências, porém, demonstram que a Irlanda – que
efetivamente recebeu transferências de Bruxelas a partir de seu ingresso na então
Comunidade Europeia, em 1972, já que o país ostentava então metade da renda per
capita da média comunitária – começou a crescer apenas a partir de 1985, quando ela
reformou inteiramente sua estrutura tributária, no sentido de aliviar a carga sobre as
empresas e o trabalho, e quando, justamente, os subsídios europeus começaram a
diminuir.
Outras regiões deprimidas da Europa, como a Valônia belga, ou a Grécia,
receberam igualmente, subsídios generosos, com efeitos muito limitados sobre as taxas
de crescimento, em virtude, justamente, de aspectos negativos em outras vertentes, entre
eles o nível das despesas governamentais. Um eloquente gráfico comparativo entre o
desempenho da Bélgica e da Irlanda, inserido no site do think tank, ilustra à perfeição
que a elevação da taxa de crescimento da Irlanda começou, precisamente, em 1985,
quando o país reduziu sua carga fiscal.
Como evidenciado nesses trabalhos de pesquisa empírica, a conclusão de que
governos desmesurados prejudicam o crescimento e que altas alíquotas tributárias sobre
a renda e o trabalho são os impostos mais distorcivos de todos – em oposição aos
impostos sobre o consumo – não está apoiada apenas na comparação entre dois únicos
países, mas deriva de análises científicas de regressão múltipla com muitos países (link:
26
http://workforall.net/Tax_policy_and_Growth_differentials_in_Europe.pdf; resumo
aqui: http://workforall.net/EN_Tax_policy_for_growth_and_jobs.html).
No caso do Brasil, infelizmente, todos sabem dos níveis anormalmente elevados
da carga fiscal e das despesas públicas, que nos colocam, inevitavelmente, na faixa dos
países impossibilitados de crescer mais de 3% ao ano. Como vem demonstrando, desde
longa data, o economista Ricardo Bergamini, o Brasil vive um verdadeiro “manicômio
tributário”, com uma profusão de impostos atingindo justamente os setores produtivos.
Adicionalmente, uma parte significativa da renda dos não tributados diretamente, isto é,
as faixas dos cidadãos mais pobres, também é extraída compulsoriamente pelo Estado
sob a forma de impostos sobre os produtos e serviços, em níveis muito elevados no
Brasil, em comparação com outros países. Como resume esse economista, o Brasil
amargou sucessivas quedas no crescimento, desde as fases de alta expansão do PIB, nos
anos 1950 a 1980, até os anos de relativa estagnação no período recente, como se pode
verificar na tabela abaixo:

Taxa média anual de crescimento do PIB, 1952-2005 (%)


Períodos 1952/63 1964/84 1985/89 1990/94 1995/02 2003/05
média-ano 6,99 6,22 4,39 1,18 2,33 2,60
Fonte: IBGE (elaboração Ricardo Bergamini)

Evidências adicionais sobre os problemas fiscais, tributários e de má alocação


dos recursos coletados pelo Estado brasileiro junto aos únicos produtores de riqueza do
país, que são os agentes econômicos privados – empregadores e trabalhadores –, estão
contidas num livro que acaba de ser publicado sob a coordenação do economista
Marcos Mendes: Gasto Público Eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do
Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, Instituto Fernand Braudel, 2006). O capítulo 2 desse
livro, assinado pelos economistas Cláudio D. Shikida e Ari Francisco de Araújo Jr. (do
Ibmec-MG) – “Por que o estado cresce e qual seria o tamanho ótimo do estado
brasileiro?” –, demonstra como o Estado vem crescendo exageradamente nos últimos
vinte anos, no Brasil, um período de apenas 2,5% de crescimento médio anual do PIB (e
de 1% de crescimento do PIB per capita). Durante o mesmo período, a maior economia
do planeta, os EUA – que saíram de um PIB de 3 ou 4 trilhões de dólares para alcançar
a casa dos 13 trilhões de dólares –, mantiveram-se, com algumas variações, em torno do
mesmo patamar de carga fiscal, de aproximadamente 29% do PIB (contando ainda com

27
encargos reduzidos sobre a folha de salários das empresas). A tabela abaixo resume
alguns dos dados apresentados nesse trabalho:

Carga Tributária sobre o PIB, EUA e Brasil


(anos selecionados, % do PIB)
Anos EUA Brasil
1964 27 17
1970 30 26
1980 30 24
1985 30 24
1988 31 22
1990 31 29
1993 30 26
1995 32 29
1998 30 33
2000 34 33
2002 30 36
2004 29 36
Fontes: EUA: Tax Foundation (2004); Brasil: diversas,
in Shikida-Araujo Jr., Gasto Público Eficiente (op. cit.)

Com base nas evidências disponíveis, Shikida e Araújo Jr. chegam à conclusão
de que o ponto “ideal” da carga fiscal, nas condições brasileiras, não deveria ser
superior a 32% do PIB. Registre-se, apenas, que a média para os países emergentes
situa-se em 28% do PIB, sendo que países de maior crescimento ostentam taxas de 17%
(China) ou de 18% (Chile) do PIB, ao passo que os ricos países europeus, que crescem
abaixo de 3%, estão na faixa de 38% do PIB (que é a ostentada atualmente pelo Brasil,
mas com tendência a um crescimento ainda maior), com picos acima de 50% para os já
referidos escandinavos (estes, que saíram de altos patamares de renda per capita, veem
declinando lentamente, alinhando-se com as médias “normais” dos países da OCDE).
Em síntese, a única conclusão possível a ser retirada dessa abundância de dados
quantitativos e de análises qualitativas sobre as condições objetivas e os requerimentos
do crescimento econômico seria mesmo esta: o Brasil é um país excepcionalmente bem
preparado para NÃO CRESCER. Verdades inconvenientes como estas merecem ser
repetidas, até que os principais decisores e a própria população tomem consciência dos
fatores impeditivos ao crescimento brasileiro e resolvam contribuir para a construção de
um consenso que se torna cada vez mais necessário para a definição de uma agenda de
desenvolvimento nacional: ou o Brasil diminui o peso excessivo do Estado sobre os

28
cidadãos ativos e as empresas, ou o Estado continuará a pesar sobre a taxa de
crescimento do país. Não há como escapar a essa verdade inconveniente...

Postado no blog Diplomatizzando


(https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2006/11/637-uma-verdade-
inconveniente_11.html).

29
4. Reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo

Brasília, 1693: 2 dezembro 2006, 3 p.


Via Política (3/12/2006)

As relações entre funcionários de carreira do Estado e os governos em vigor são


sempre delicadas, uma vez que governos costumam solicitar adesões imediatas, em
geral incondicionais, ao passo que Estados são entidades impessoais, aparentemente
desprovidas de vontade própria, ainda que pautando-se por normas constitucionais mais
ou menos permanentes. Os governos passam, o Estado fica, mas ele pode ser
transformado pelo governo em vigor, se este último imprime uma ação de
transformação estrutural das condições existentes ao início de seu mandato.
Funcionários de Estado devem ater-se, antes de mais nada, às normas
constitucionais, tendo como diretrizes adicionais as leis gerais e os estatutos particulares
que regem sua categoria ou profissão. Geralmente, mas nem sempre, os governos
respeitam os estatutos próprios e os princípios que devem enquadrar as diferentes
categorias de servidores do Estado, estabelecendo determinações que incidem mais
sobre a conjuntura do que sobre a estrutura. Em alguns casos, governos pretendem não
apenas transformar estruturalmente o Estado e a sociedade, mas também os
regulamentos e as formas de atuação do Estado.
Desde que respaldado nas normas constitucionais em vigor e na vontade
legítima da sociedade, tal como expressa pela via democrática das eleições, essa
vontade transformista pode concorrer para a melhoria das condições de bem-estar da
sociedade, pois se supõe que o governo encarna aquilo que em linguagem rousseauniana
se chamaria “vontade geral”. A “vontade geral” é, contudo, algo tão difícil de ser
definido quanto o chamado “interesse nacional”, suscetível de receber diferentes
interpretações, tantas são as correntes políticas, os grupos sociais, os partidos em
disputa pelo poder e outras configurações sociais que gravitam em torno do poder. Sim,
antes de qualquer outra coisa, “vontade geral” e “interesse nacional” são basicamente
definidos por quem detém o poder, não necessariamente em conclaves abertos ao
conjunto da sociedade.
O moderno Estado democrático deveria ostentar um sistema de freios e
contrapesos que impeça – ou pelo menos dificulte – sua manipulação por minorias
partidárias que pretendem agir com base em “interesses peculiares” ou com base na
30
“vontade particular” do grupo que ocasionalmente ocupa o governo. Tais são os papéis
respectivos do parlamento e dos tribunais constitucionais, segundo o velho sistema do
“equilíbrio de poderes”, ou segundo o moderno sistema – de inspiração anglo-saxã –
dos checks and balances, que transformam toda vontade de alteração institucional um
delicado jogo de pressões e contrapressões. Há que se atentar, também, para a
necessária continuidade da ação do Estado, que poderia ficar comprometida caso a ação
de um grupo detendo o poder temporariamente – isto é, exercendo o governo de forma
legítima – busque alterar radicalmente políticas e orientações estabelecidas através de
consensos anteriormente alcançados.
Pode-se dizer que as democracias modernas funcionam quase sempre segundo
essa visão gradualista, qual seja, a de uma custosa negociação entre os grupos políticos
representados no parlamento, seguida de uma lenta implementação das decisões
alcançadas. A construção de consensos é típica dos regimes parlamentaristas, baseados
numa maioria mais ampla do corpo político e social, mas é menos típica nos regimes
puramente presidencialistas, onde tendem a se desenvolver comportamentos cesaristas
ou bonapartistas (isto é, com um apelo direto às massas). Neste caso, o carisma do líder
político pode resultar num canal de comunicação direta deste com os eleitores, por cima
e acima dos demais poderes, que encontram dificuldades para participar do processo
decisório em bases rotineiras.
Tal tipo de situação também pode colocar desafios não convencionais aos
funcionários de Estado, que podem ser chamados a implementar decisões que resultem,
não de um processo gradual de consensus building, mas de uma decisão solitária do
líder cesarista. Velhas normas e antigas tradições podem ser contestadas ou postas à
prova nesse novo roteiro, o que coloca esses funcionários ante o dilema de aderir
simplesmente à vontade do governo ou buscar respaldo nas formas mais convencionais
de atuação do Estado.
Não há uma resposta simples a esse dilema, pois ele implica em que o
funcionário possa aferir se o processo decisório que conduziu a uma determinada
tomada de decisão política está seguindo os canais institucionais consagrados ou se os
novos procedimentos estão atropelando as normas e procedimentos do Estado. Em
geral, a resposta é dada pela linha de menor resistência, que passa pela afirmação dos
conhecidos princípios da hierarquia e da disciplina. Do funcionário de Estado se pede
obediência aos ditames do governo, não necessariamente uma reflexão pessoal sobre os
fundamentos da ação do governo. Esta última atitude é própria dos agentes políticos,
31
não dos funcionários de carreira, aos se requer obediência e aquiescências às ordens e
determinações superiores. A rigor, do funcionário não se pede reflexão, mas acatamento
de decisão já tomada.
Quando o próprio funcionário é convertido em agente político, pode surgir
algum conflito de consciência entre a antiga forma de procedimento coletivo – as
burocracias estatais são sempre construções coletivas – e as novas condições de
trabalho, que impõem adesão incontida e total ao poder do qual emana o seu novo
cargo. Dele se espera, então, equilíbrio e ponderação na forma de conduzir sua ação.
Em que condições, nessas circunstâncias, pode o funcionário de Estado
continuar a exibir independência de pensamento – e uma certa faculdade na propositura
de novos cursos de ação – quando a autoridade legítima requer adesão pura e simples a
decisões emanadas de uma fonte cesarista de poder? Não há respostas teóricas a esta
questão, que exige uma reflexão de ordem essencialmente prática, em função das
relações sociais, modos de atuação e poder de barganha respectivos dos agentes de
Estado e de governo envolvidos num determinado processo decisório.
Minha própria ordem de prioridades tenderia a colocar esse processo decisório
numa escala de preferências que vem da Nação, passa pelo Estado e desemboca no
governo, mas tendo também a reconhecer que os dois primeiros conceitos – assim como
os de “vontade geral” e de “interesse nacional” – são suficientemente vagos e arbitrários
para abrigar todo tipo de postura em face de determinações governamentais. Em última
instância tende a prevalecer o bom senso e uma certa capacidade de avaliação racional
dos custos de oportunidade envolvidos em cada uma das decisões governamentais com
que o funcionário de Estado possa ser confrontado.
Quero crer que a construção de um Estado “racional-legal” e a consolidação de
uma democracia efetiva no Brasil já avançaram o suficiente como para permitir que
funcionários de Estado como o que aqui escreve possa contribuir, de forma mais ou
menos institucionalizada, para a tomada de decisões em sua esfera de atuação,
independentemente de posturas mais ou menos marcadas pela vontade momentânea de
alguma autoridade governamental. Ou estarei enganado?

Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 2 de dezembro de 2006
Postado no blog Diplomatizzando (28/05/2011; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/05/uma-reflexao-pessoal-sobre-as-
relacoes.html).

32
5. Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter
preventivo...)

Brasília, 1707: 31 janeiro 2007, 11 p.


Via Política (15/04/2007)

O conceito de decadência está histórica e usualmente associado às imagens – e


também às realidades – de declínio econômico, de disfuncionalidade política, de
regressão social, de queda relativa nos padrões de vida, de desordem institucional, de
involução moral, quando não ao caos gerador de conflitos exacerbados e possível
elemento-motor (“gatilho”) do colapso de toda uma sociedade. No plano histórico, é
costume citar os precedentes dos impérios romano, bizantino, chinês, otomano ou
britânico como exemplos ilustrativos de decadência – processos que, por vezes, se
arrastaram durante décadas, quando não séculos –, levando essas sociedades a fases de
crise sistêmica ou de estagnação total, precipitando-as em “colapsos” mais ou menos
prolongados e ao seu desaparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e
empreendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citados que tinham
brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente, costuma-se citar a Grã-
Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial e pós-Segunda Guerra, e até mesmo a
Argentina pós-1930 como exemplos reais e acabados de processos lentos e agônicos de
decadência econômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos eloquentes de
decadência certamente não faltam nos livros de história.
No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as sociedades referidas
em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, os povos e protagonistas
contemporâneos dos processos gerais descritos sumariamente acima. Muitas vezes, o
declínio econômico e a decadência política se dão em meio a extraordinários surtos de
vigor artístico e de fervor intelectual, com intensos debates e mobilização social
perpassando todas as categorias e classes da sociedade em questão. O estado de
“regressão” nem é percebido como tal, uma vez que: a economia consegue ainda
produzir em condições quase “normais”; as trocas materiais e os intercâmbios
intelectuais se fazem ainda pelos canais habituais; os indicadores objetivos de padrões
de vida continuam a apresentar traços de “progresso” – ainda que de recuo relativo na
perspectiva internacional ou regional – e que a sociedade ainda não soçobrou na

33
“anomia” e na “desorganização”, a que são normalmente associados essas noções de
decadência ou de declínio.
O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos esses processos
citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos próprios integrantes da
sociedade em questão. O sentimento geral dos cidadãos pode ser, simplesmente, de um
certo malaise, de um mal-estar vago e indefinido, partilhado por diferentes estratos
sociais e percebido como tal por intelectuais, mas raramente expresso de forma direta e
cabal nos discursos das autoridades ou traduzidos nas propostas de ação por candidatos
alternativos ao poder político. “Entra-se” em decadência muitas vezes sem o saber,
como aquele personagem de Molière que fazia prosa involuntariamente.
Proponho-me, neste curto ensaio analítico, traçar os elementos principais de uma
pequena radiografia da decadência, de maneira a subsidiar, talvez, diagnósticos mais
precisos de situações concretas que possam preocupar os leitores eventuais deste
“manual” de identificação dos sinais precursores de uma decadência anunciada (não
necessariamente percebida). Assim, pode-se saber que um país, ou uma sociedade, está
em decadência quando:

1. O sentimento de mal-estar se torna generalizado na sociedade, ainda que possa ser


difuso.
2. Os avanços econômicos são lentos, ou menores, em relação a outros povos e
sociedades.
3. Os progressos sociais são igualmente lentos ou repartidos de maneira desigual.
4. A lei passa a não ser mais respeitada pelos cidadãos ou pelos próprios agentes
públicos.
5. As elites se tornam autocentradas, focadas exclusivamente no seu benefício próprio.
6. A corrupção é disseminada nos diversos canais de intermediação dos intercâmbios
sociais.
7. Há uma desafeição pelas causas nacionais, com ascensão de corporatismos e
particularismos.
8. A cultura da integração na corrente nacional é substituída por reivindicações
exclusivistas.
9. A geração corrente não se preocupa com a seguinte, nos planos fiscal, ambiental ou
outros.
10. Ocorre a degradação moral ou ética nos costumes, a despeito mesmo de “avanços”
materiais.

Algumas considerações rápidas sobre cada um dos elementos listados,


sumariamente, acima são necessárias, se quisermos que este “minitratado” da
decadência possa ser efetivamente utilizado como uma espécie de manual para sua
prevenção ou para a eventual correção de curso. Serei, tanto quanto possível, conciso,
34
sem ater-me a exemplos conhecidos em processos concretos, mais ou menos
identificados pelo leitor ocasional.

1. Malaise generalizado e difuso na sociedade.


Na verdade, o mal-estar que costuma atingir sociedades e povos em decadência
efetiva é mais um resultado dos próprios processos de “involução” já em curso, do que
um sinal precursor desse itinerário “regressista”. De fato, o sentimento de incerteza
quanto ao futuro costuma perpassar de maneira difusa os diferentes estratos sociais
mobilizados nas atividades correntes da sociedade em questão. A literatura consegue
captar, antes mesmo de diagnósticos “sociológicos”, essa sensação de desconforto em
relação aos padrões vigentes, que é também vista e interpretada nas artes em geral, por
meio de peças e demonstrações de “ruptura” em relação às normas sociais comumente
aceitas e “consumidas” pelos estratos sociais incluídos nas transações correntes. O
sentimento de fin d’une époque, ou de esgotamento de um “ciclo”, é geralmente
percebido pelos espíritos mais argutos, mas o desconforto com o “estado reinante” das
coisas se dissemina de modo generalizado em camadas mais amplas da sociedade.
Ocorre uma desafeição em relação à cultura predominante, mas não se consegue propor
ou viabilizar padrões ou modelos alternativos que sejam eficientes ou implementáveis.
Os custos da transição para “algo mais racional” são considerados por todos como
muito elevados, em vista dos pactos vigentes, e a sociedade se acomoda na resignação e
no déjà vu.

2. Avanços econômicos lentos, em perspectiva comparada.


A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico absoluto ou
mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da organização social da
produção. Ao contrário, podem até ocorrer avanços tecnológicos, progressos científicos
e melhoras nos padrões vigentes de produção, tendo em vista capacidades técnicas e
habilidades gerenciais já acumuladas pela sociedade. Uma sociedade pode avançar, em
suas próprias realizações, e mesmo assim ser ultrapassada relativamente por outras,
mais dinâmicas, empreendedoras e inovadoras. O declínio relativo é geralmente o
resultado de uma queda nos índices de produtividade, a perda progressiva de
competitividade, um recuo nos espaços anteriormente ocupados no âmbito internacional
e um lento movimento para escalões inferiores em rankings setoriais de classificação de
países.
35
Os processos de divergência entre os povos e sociedades resultam, geralmente,
de longas fases de crescimento (ou falta de), mais do que de altas taxas ocasionais de
expansão do produto. O desenvolvimento pode ocorrer pari-passu a baixas taxas – mas
sustentadas – de crescimento econômico, sendo que expansões rápidas podem ser
contrarrestadas por surtos inflacionários ou crises sistêmicas que produzem perdas do
produto social e erosão do poder de compra da moeda nacional. O elemento propulsor
do processo de desenvolvimento são os ganhos de produtividade, que produzem, no
registro histórico, os fenômenos de convergência ou de divergência entre os povos e
economias nacionais. As sociedades humanas progrediram muito lentamente durante os
milhares de anos de revolução agrícola neolítica e civilizacional-urbana, para conhecer,
dois séculos e meio de rápidos progressos nos indicadores de bem-estar a partir da
primeira e da segunda revolução industrial. A partir desta, os progressos se tornaram
contínuos, autogerados e induzidos pelo próprio avanço científico-tecnológico anterior,
configurando aquilo que, em termos marxistas, poderia ser chamado de “modo
inventivo de produção”. Este foi, antes de qualquer outra, uma peculiaridade das
sociedades ditas “ocidentais”, mas tende a se disseminar ao conjunto do planeta, com o
término dos obstáculos políticos ao processo de globalização.
Nem todas as sociedades conseguem replicar ou reproduzir, mesmo por
mimetismo, o padrão de progresso tecnológico do Ocidente desenvolvido. Mas todas
elas se encontram, hoje, medianamente dotadas de condições mínimas para fazê-lo, a
partir dos progressos dos meios de comunicação e de difusão dos conhecimentos
científicos (amplamente disponíveis nos veículos existentes, à diferença do know-how e
da tecnologia proprietária, estes bem mais restritos). O fato de uma sociedade recuar
economicamente, ainda que de modo relativo, pode ser explicado, tão simplesmente,
por sua incapacidade em dotar os seus cidadãos dos requisitos mínimos de ensino
formal e de educação elementar, suscetíveis de os converterem em “absorvedores” do
saber técnico já disponível universalmente nos canais abertos de difusão de
conhecimento. Não se trata aqui, necessariamente, de padrões de ensino pós-graduado
ou especializado, mas basicamente da existência de ensino fundamental de boa
qualidade para o conjunto dos cidadãos.

3. Distribuição desigual dos lentos progressos sociais alcançados.


Comportamentos “rentistas”, isto é, apropriação de bens públicos por grupos
organizados que têm acesso aos canais oficiais de distribuição de recursos, geram um
36
desestímulo à inovação e à produção pelos agentes econômicos privados. Isso pode
ocorrer, e geralmente ocorre, no caso da disponibilidade de abundantes recursos naturais
– terras, minérios, commodities primárias – que passam a ser explorados por via de
algum tipo de organização estatal, mesmo indireta. Fala-se da “maldição do petróleo”,
por exemplo, como um caso típico de ganhos fáceis apropriados de maneira desigual
por elites que se organizam para “redistribuir” esses recursos abundantes, o que desvia a
atenção dos agentes privados de investimentos em atividades alternativas: toda a
atenção passa a ser focada na “captura” da renda disponível na economia nacional.
Mesmo na ausência de uma fonte abundante de recursos naturais,
comportamentos rentistas podem disseminar entre os estratos dominantes – ou
dirigentes – na sociedade, se a regulação institucional é feita mais por via estatal do que
por meio da própria sociedade. O Estado sempre constituiu um poderoso meio de
redistribuição da riqueza social para os grupos que o controlam e manipulam em seu
favor. Não há aqui nenhuma prevenção a priori contra o Estado, uma vez que ele é
necessário mesmo para criar o laissez-faire, ou seja, lutar contra os trusts e cartéis,
assegurar a competição, garantir o cumprimento dos contratos e, de forma geral,
defender os direitos de propriedade. Ocorre, porém, que o Estado é também um forte
indutor de redistributivismo regressivo, isto é, o recolhimento compulsório de recursos
de todos os cidadãos, produtores e consumidores, e o seu “redirecionamento” segundo
critérios políticos determinados.
Em todos os casos de declínio conhecidos, o Estado serviu precisamente para
esse tipo de redistribuição perversa dos recursos públicos, gerando o fenômeno
conhecido pelos economistas como “crowding-out”, isto é, a captura da poupança
privada pelo próprio Estado e pelos rentistas profissionais e sua apropriação pelo
próprio Estado (e seus amigos), o que provoca deseconomias de escala e erosão do
investimento produtivo. Os grupos politicamente mais bem articulados conseguem
acesso aos planejadores e legisladores do orçamento público, deixando ao relento os
setores menos organizados. Isso geralmente implica em concentração de renda e
ausência de um mercado interno dinâmico. Os exemplos de declínio e de estagnação
coincidem, justamente, com o que Veblen chamaria de “consumo conspícuo” das elites,
em total indiferença em relação ao conjunto dos cidadãos.
Não se pense, por fim, que tudo se faz em benefício do “grande capital
monopolista” e em detrimento da “classe trabalhadora”. Sindicatos são máquinas
organizadas para criar escassez de mão-de-obra e para produzir desemprego, atuando
37
em perfeita sincronia – nem sempre funcional, é verdade – com os sindicatos de patrões,
com vistas a extorquir recursos do resto da sociedade desorganizada. Viceja, nos casos
típicos de declínio econômico prolongado, uma espécie de “pacto perverso”, pelo qual
ambos sindicatos entram em conluio – algumas vezes de forma involuntária ou até
inconsciente – em favor de seus ganhos respectivos, repassando os custos para o resto
da sociedade. A desigualdade distributiva nem sempre é “aristocrática”...

4. Não acatamento da lei pelos cidadãos e pelos próprios agentes públicos.


A decadência, como já afirmado, nem sempre se traduz em pobreza material, ao
contrário, pois sociedades decadentes são, igualmente, sistemas de relativa abundância,
pelo menos para os privilegiados. Mas, a decadência verdadeira sempre implica em
miséria moral, a começar por um sistemático, no começo sutil, depois disseminado,
desrespeito à lei e às boas normas de convivência. Uma sociedade não começa a decair
com o aumento da delinquência comum e com a expansão da criminalidade de baixa
extração, mas justamente com o desprezo pela lei por parte dos poderosos e dos
próprios encarregados de manter a ordem. Sociedades patrimonialistas são naturalmente
mais propensas a esse tipo de corrupção moral, como evidenciado na trajetória do
império otomano, mas nem mesmo sistemas “tecnocráticos” estão imunes a esse tipo de
evolução involutiva, se é possível este tipo de trajetória. O império chinês, com seu
imenso corpo de mandarins bem treinados, talvez tenha conhecido itinerário
semelhante, antes mesmo de o país ser invadido e humilhado pelos imperialistas
ocidentais (e depois japoneses).
O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por parte dos
poderosos, constituem o traço mais visível do declínio moral de uma sociedade. Quando
as suas elites, em especial o seu corpo dirigente, recorrem a expedientes escusos,
quando não a práticas claramente criminosas, para extrair benefícios para si, pode-se
constatar que a sociedade caminha célere para a sua decadência. Não se deve, porém,
confundir, artifícios ilegais, ou no limite da legalidade, empregados por algumas elites
econômicas – como caixa dois, elisão ou evasão fiscal ou ainda pagamentos por fora –
como representando necessariamente sinônimo de decadência. O setor produtivo pode
ser especialmente competitivo e gerencialmente capaz, apenas que penalizado por um
Estado voraz, por dirigentes políticos de comportamento predatório, sendo levado a
utilizar-se do recurso a esse tipo de expediente como uma forma de “defesa
patrimonial”. É, aliás, o que fazem a maioria dos cidadãos que buscam evadir o fisco,
38
uma vez que adquiriram a consciência de que os impostos pagos diretamente e os
tributos recolhidos indiretamente não retornam proporcionalmente sob a forma de
serviços públicos.
A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte em uma
“segunda natureza” do cidadão comum e do empresário: ninguém se “arrisca” a ser
totalmente honesto, uma vez que isto representaria a inviabilidade do seu negócio ou a
“extração compulsória” seria demais onerosa no plano das rendas individuais. Pouco a
pouco, a corrupção e a contravenção se instalam em todos os poros da sociedade e ela,
sem perceber, caminha rapidamente para o que chamamos de decadência.

5. Elites distantes da sociedade e focadas no seu benefício próprio.


Esta é uma outra manifestação do mesmo comportamento descrito acima, apenas
que os meios são absolutamente legais, ainda que ilegítimos, e redundam quase sempre
nos mesmos efeitos já referenciados no rentismo perverso e no redistributivismo
desigual. Responsáveis políticos se ocupam não tanto de legislar para a sociedade, mas
em causa própria. Os meios passam a absorver uma proporção crescente dos recursos
voltados para determinados fins. Isto geralmente se dá no setor legislativo, mas pode
perfeitamente ocorrer nos meios judiciários e, igualmente, em corporações de ofício que
se organizam burocraticamente no âmbito do poder executivo. A representação política
deixa de constituir um mandato conferido pela sociedade para o desempenho das
funções que lhe são próprias para converter-se em um fim em si mesmo.
Esses traços de comportamento não são exclusivos da representação política,
embora eles sempre se reproduzam no estamento político. Elites rentistas, de modo
geral, desenvolvem essa indiferença em relação à sociedade, cuja simbologia mais
famosa – ainda que provavelmente equivocada – é historicamente representada pela
frase de Maria Antonieta sobre os brioches que o povo deveria comer, no lugar do pão
comum. Elites aristocráticas do ancien Régime, na França e na Rússia czarista, foram
em grande medida responsáveis pela desafeição do povo em relação às suas elites,
contribuindo para a derrocada dos respectivos regimes políticos ao se operar um claro
divórcio entre suas concepções do mundo. O apartheid social, mais até no plano mental
do que no âmbito material, costuma ser construído por minorias ativas, nem todas elas
privilegiadas, mas sempre elitistas em relação à massa da sociedade.
Por vezes, uma elite “subversiva” se apossa do poder e passa a exibir os mesmos
traços de comportamento que o das elites antes privilegiadas, numa típica reprodução da
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fábula contida em Animal Farm, segundo a qual “todos são iguais, mas alguns são mais
iguais do que outros”.

6. Corrupção disseminada nas transações sociais de maneira geral.


O cimento mais poderoso em todas as sociedades organizadas é a confiança: não
só na palavra dada, no plano individual, mas também na moeda, na observância da lei
em caráter impessoal, no cumprimento dos contratos e, sobretudo, na certeza da punição
em caso de ações “desviantes”. O que mantém o poder de compra de uma moeda, por
exemplo, não é tanto a força absoluta de uma economia, mas a confiança de que seu
valor de face não será abalado por atos arbitrários das autoridades emissoras, medidas
intervencionistas que afetem a liquidez ou alguma ameaça de confisco, mesmo indireto.
A incerteza jurídica – por vezes dos próprios juízes, que não se contentam em
interpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocá-la a serviço de alguma causa “social” –
está na origem do desrespeito aos contratos e, portanto, no aumento dos custos de
transação. Setores da sociedade passam a desenvolver formas próprias, geralmente
informais, de intercâmbio, que podem englobar um volume crescente de atividades.
Sociedades decadentes são, geralmente, sociedades nas quais a informalidade recobre
grande parte da população economicamente ativa e uma fração significativa do produto
social. Um Estado “extrator” pode também ser o responsável direto pela “expulsão” do
mercado formal de agentes econômicos privados que não encontram nenhuma
vantagem em se colocar à margem da legalidade, mas que não conseguem se enquadrar
nas regras existentes. Na verdade um cipoal de regulamentos estabelecido justamente
para vigiar o cumprimento de uma legislação barroca no plano regulatório.
A sociedade como um todo passa a se acostumar com a modalidade informal de
se completarem as transações e, ao fim e ao cabo, os intercâmbios legais passam a
cobrir uma fração cada vez menor do conjunto das trocas sociais. A sociedade de
“desconfiança” afeta a todos os participantes do mercado, gerando graus crescentes de
anomia e de deterioração dos costumes básicos. A sociedade em questão está “pronta”
para aprofundar seu processo de decadência.

7. Avanço dos corporatismos e particularismos, em detrimento das “causas


nacionais”.
A fragmentação da representação política e social nos diversos corpos
constitutivos da sociedade cria uma colcha de retalhos de difícil administração
40
institucional. Para que grandes reformas estruturais se façam – e toda sociedade requer,
periodicamente, adaptação às novas condições ambientais externas e às suas próprias
transformações internas, demográficas e outras –, as diferentes partes da sociedade
precisam estabelecer um pacto de convivência, no qual todos cedem um pouco para que
as mudanças possam ser implementadas. A perseguição de objetivos particularistas por
grupos sociais organizados, geralmente com vistas a se alcançar metas setoriais e
exclusivas, inviabiliza qualquer “projeto nacional” digno desse nome (ainda que essa
figura seja antes um mito do que uma realidade, pois “projetos” bem executados
geralmente resultam da ação decisiva de uma pequena elite de “iluminados”, quando
não de um líder carismático atuando como estadista).
O fato é que os processos de decadência também são caracterizados pela
existência de “projetos fragmentários”, condizentes com o perfil já fortemente
sindicalizado dessa sociedade. Não é incomum a representação política passar da
dominância de próceres cosmopolitas, da elite, mas dotados de uma visão do mundo não
provinciana, para “delegados de categoria”, eleitos por um grupo de interesse restrito
(de caráter sindical, setorial ou religioso). O processo legislativo se divide então em
uma miríade de demandas particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e
transformam o planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas.
Congela-se a possibilidade de atuar nas grandes causas, pois o mercado político
converte-se num bazar de compra e venda de projetos setoriais e fragmentários. Um
indicador fiável dessa tendência é dada por meio de consulta a um calendário-agenda: a
sociedade estará tão mais próxima da decadência quanto mais dias do ano são dedicados
a homenagear categorias profissionais...

8. Grupos sociais particulares pretendem distinguir-se do conjunto da sociedade.


A chamada “identidade nacional” – um conceito difuso e frequentemente mal
interpretado – constitui um dos traços mais conspícuos da psicologia de massas. Uma
sociedade dinâmica ostenta um forte sentimento de inclusividade e de identificação com
os símbolos nacionais, sejam eles realidades históricas tangíveis, sejam eles simples
mitos criados para fortalecer o processo de Nation building. Em qualquer hipótese, o
sentimento de pertencimento – status de appartenance ou membership – a um corpo
social ou humano relativamente homogêneo é um poderoso cimento da identidade
nacional, o que não impede, obviamente, particularidades regionais, traços étnicos ou
especificidades culturais próprias a sociedades complexas, racialmente diversas e
41
dotadas de origens “multinacionais”. O ideal de toda sociedade integrada e orgulhosa de
sê-lo é, justamente, conseguir passar do estágio simplesmente “multinacional” para o de
“sociedade multirracial”, o que deveria ser o objetivo de toda comunidade inclusiva,
uma vez que tal característica destrói as próprias bases de qualquer manifestação de
racismo ou apartheid.
A desafeição em relação à fusão dos particularismos raciais ou culturais no
mainstream social e humano nacional enfraquece a noção de identidade nacional e
reforça a noção artificial de aparteísmo. Este tipo de divisor precisa ser construído
politicamente, uma vez que se adota como suposto básico a unidade fundamental do
gênero humano. A divisão é, geralmente, obra de ativistas e militantes de uma causa que
se julga legítima, cujas raízes encontram fundamentação histórica em opressões
seculares, que se pretende transplantar para o presente, como forma de preservar antigas
particularidades raciais, linguísticas ou religiosas, que já estavam prontas a se fundir no
poderoso molde nacional. A conformação política de uma cultura distinta da nacional
reforça manifestações de racismo ao contrário, pois que as propostas são geralmente
feitas para eliminar supostos focos de “racismo”. O apartheid também pode ser
construído por minorias...

9. Irresponsabilidade intergeracional, nos terrenos fiscal ou ambiental, entre


outros.
O desejo de preservar o status quo, ou a inconsciência quanto à constante
necessidade de ajustes e adaptações às condições “ambientais”, nacionais ou
internacionais, sempre cambiantes, fazem com que gerações do presente eventualmente
atuem de maneira irresponsável em relação àquelas que as sucederão. Historicamente, o
problema sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e à extinção de
espécies animais, alterando o equilíbrio natural e ameaçando a sustentabilidade de
sistemas econômicos inteiros. Contemporaneamente, a questão tende a se revestir de
características econômicas bem marcadas, tendo a ver com a trajetória avassaladora do
Estado moderno e sua voracidade fiscal, não em benefício próprio, obviamente, uma
vez que o Estado é uma entidade impessoal, mas em favor de grupos ou categorias
dispondo de condições de acesso e de manipulação dos mecanismos de intervenção
pública.
Nos casos mais graves, o conjunto da sociedade pode atuar de maneira
irresponsável, ao sustentar escolhas que representam uma clara preferência pelo bem-
42
estar presente, em detrimento do amanhã. Seja nos esquemas de previdência social, seja
nas instituições educacionais, ou ainda em matéria de déficits orçamentários e dívida
pública, opções erradas e a visão imediatista dos responsáveis políticos, sustentados
pela inconsciência da maioria, criam pesadas hipotecas de médio e longo prazo que
deverão, em algum momento, ser resgatadas pelos sucessores, aqui entendidos como o
conjunto da sociedade de uma ou duas gerações mais à frente. O declínio pode até não
ser visível no próprio momento das decisões, mas o que se está fazendo, na verdade, é
“contratar” a decadência futura.

10. Degradação ética e moral, independentemente de “progressos” técnicos.


Edward Gibbon, em seu justamente celebrado História do Declínio e Queda do
Império Romano, tende a ver a decadência de Roma como o resultado da perda de
“valores cívicos” por parte dos cidadãos do império, a começar pelos patrícios, que
delegaram aos bárbaros tarefas que eles deveriam ter assumido diretamente. Ele
também atacou a influência do cristianismo, como possível fator de afastamento do
antigo espírito marcial e guerreiro, que tinha feito, no início, o sucesso da república e do
império. Seja como for, a perda de objetivos claros quanto ao futuro, certa resignação
em face das dificuldades do presente e a busca de prazeres imediatos em lugar da
frugalidade produtiva e empreendedora podem ser sinais precursores da decadência.
Curiosamente, nenhum dos exemplos históricos tidos como ilustrativos ou
emblemáticos desse tipo de processo pode ser considerado um insucesso absoluto na
cultura ou nas artes. O vigor da produção cultural continua a todo vapor no momento
mesmo em que essas sociedades passam a enfrentar problemas na economia e na
inovação. Não há um elemento singular ou único que “anuncie” a decadência, mas um
conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica forte deterioração da
solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da
sociedade. A falta de confiança nas instituições políticas e a forte desconfiança das
motivações de outros grupos sociais fazem com que líderes e liderados não mais se
sintam comprometidos com o mesmo conjunto de valores, passando a ocorrer
manifestações de introversão e de egoísmo que logo superam a identificação com a
pátria e a nação.

Em síntese, existe um “espírito” de decadência quando os setores produtivos, em


especial os empresários mais politicamente ativos, se mostram resignados ante a
43
presença avassaladora do Estado, que lhes tolhe os movimentos, impõe regras e lhes
retira a substância da atividade econômica, que é o lucro e os excedentes para investir.
Existe decadência quando os intelectuais e os universitários, de uma forma geral, se
conformam ante o culto à ignorância exibido por certos grupos sociais ou líderes
supostamente carismáticos ou “salvacionistas”. Existe decadência quando autoridades
nacionais, a começar pelos encarregados da preservação da ordem jurídica e
institucional, deixam de lado suas obrigações profissionais para cuidar de prosaicos
interesses pessoais, pecuniários antes de tudo. Existe decadência quando o cidadão
comum não vê qualquer motivo para preservar o patrimônio coletivo, demonstrando
total inconsciência quanto ao dever de respeitar a herança das gerações precedentes e a
necessidade de repassar às que seguirão a sua própria um ambiente melhor do que
aquele recebido dos ancestrais.
Em suma, os sinais materiais, ou externos, da decadência nem sempre são os que
contam na avaliação dos “progressos” dessa inacreditável marcha para trás na jornada
das sociedades. A insensatez quanto aos rumos da história também se manifesta, antes
de tudo, por uma pura e simples inconsciência. Manuais práticos de decadência podem
ser um preventivo útil na inversão da trajetória. Basta saber consultá-los...

Colaboração a número especial da revista Digesto Econômico


Revista da Associação Comercial de São Paulo.
(ano 62, n. 441, jan.-fev. 2007, p. 38-47; ISSN: 0101-4218); Postado no blog
Diplomatizzando (11/04/2013; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/pequeno-manual-de-decadencia-para-
uso.html).

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6. Prometeu acorrentado: o Brasil amarrado por sua própria vontade

Brasília, 1752: 20 maio 2007, 6 p.


Via Política (20/05/2007)

Como definir o Brasil?


O Brasil é um país de muitas facetas, algumas mais vistosas do que outras,
dependendo da perspectiva adotada ou do grau de aproximação que um observador
isento – digamos um viajante estrangeiro ou um “alienígena”, o mais possível objetivo e
externo aos temas que possamos aqui discutir – possa ter em relação a alguns dos seus
problemas mais evidentes. Por “problemas mais evidentes”, que são as facetas diversas
aludidas acima, eu quero basicamente dizer que o Brasil não é um país pobre, ou
desprovido de riquezas, mas ele é certamente um país com muitos pobres, como um
presidente-sociólogo já observou certa vez. O Brasil tampouco é um país desprovido de
recursos humanos de qualidade ou de capacitação industrial e científica, ainda que esses
insumos e recursos valiosos para seu desenvolvimento econômico e social estejam mal
distribuídos, socialmente e regionalmente.
O Brasil é um país razoavelmente democrático, ainda que sua democracia seja
de baixa qualidade, tendo em vista os inúmeros problemas de representação política, de
corrupção institucional, de mau funcionamento dos órgãos públicos. Ele é também uma
nação que aspira realizar valores positivos de solidariedade social e de inclusão dos
mais pobres – como revelado pela educação gratuita em todos os níveis (ainda que
integrando progressivamente pouca gente), pela cobertura extensiva da Previdência
(mesmo sem contribuições prévias), pelo Sistema Único de Saúde e pelo tratamento
exemplar dado às vítimas da Aids, por exemplo –, mesmo se os dados revelam
inúmeros obstáculos à realização efetiva da “solidariedade” proclamada. Enfim, o Brasil
é um país contraditório, como muitos observadores já perceberam, e como a visão
“alienígena” poderia confirmar. Vejamos o que poderia ser dito desse Brasil
contraditório.

Aproximações sucessivas ao Brasil, a partir do espaço...


De uma perspectiva totalmente “estratosférica”, isto é, visto a quilômetros de
distância, o Brasil aparece como uma grande massa verde ou marrom escura ao
observador do espaço, revelando enormes recursos naturais num imenso território
45
cobrindo várias “latitudes” e “longitudes”. Chegando mais próximo, digamos no espaço
aéreo nacional, nosso visitante “extraterrestre” constataria que essa vasta massa de
muitas cores abrange áreas extremamente ricas em biodiversidade, territórios ainda mais
vastos deixados indevassados ou aparentemente intocados pela mão do homem, grandes
extensões cultivadas – geometricamente delimitadas –, uma rede de comunicações
certamente insuficiente para cobrir essas vastidões parcialmente habitadas, além de
grandes e pequenas cidades nas quais sobressaem edifícios vistosos, casas modestas e
algumas “aglomerações” indefiníveis.
Chegando ainda mais perto, nosso “alienígena” descobriria, no interior, grandes
fazendas tecnologicamente bem dotadas ao lado de minifúndios familiares e, mais além,
assentamentos inviabilizados pelo desconhecimento técnico e precariedade de meios de
seus “proprietários”; nas cidades, ele veria fábricas e escritórios modernos, edifícios
luxuosos de apartamentos familiares, ao lado de construções bizarras, vulgarmente
chamadas de “favelas”. Descendo nessa altura, ele então poderia contemplar carros
vistosos sendo abordados nos semáforos por pessoas de aspectos variados, alguns
andrajosos, outros nem tanto, algumas crianças exploradas, outros meliantes à procura
de alguma oportunidade de “negócio” com a propriedade alheia. Precisamente, o que o
surpreenderia no Brasil, seria a convivência contraditória da riqueza de muitos
indivíduos, escandalosamente ostensiva, com a mais abjeta pobreza de grande parte da
população, nas cidades e nos campos. Essa desigualdade é aqui levada ao extremo,
como em poucos países da atualidade, salvo em alguns Estados “falidos” de certos
continentes. O que caracteriza o Brasil, exatamente, é a dupla existência de muita
riqueza, potencial e real, e de muita pobreza, material e “espiritual”, ou seja, muitos
indivíduos analfabetos funcionais ou incapazes de compreender textos elementares ou
de fazer operações aritméticas simples.
Se nosso visitante estrangeiro, a partir daí, penetrar nos escritórios das fábricas,
no seio de pequenas empresas familiares, nas salas de aula das escolas públicas, nos
corredores e gabinetes do Congresso, no recesso de alguns funcionários públicos e
responsáveis governamentais, o que ele veria certamente reduziria em muito qualquer
visão otimista que ele pudesse ter acumulado a partir da sua perspectiva “aérea”, com
respeito à pujança da economia, da enorme diversidade de recursos naturais, da
modernidade das fazendas agrícolas e da infraestrutura urbana. Enfim, o quadro
favorável que ele teria desvendado de longe logo se inverteria para um espetáculo pouco
recomendável, feito de aspectos essencialmente negativos da estrutura social do Brasil,
46
de sua organização governamental e das muitas dificuldades hoje interpostas no seu
caminho para o desenvolvimento econômico e social.
O novo quadro, bem mais negativo, contemplaria: evasão e elisão fiscais por
parte das empresas e dos indivíduos; informalidade completa em muitos
empreendimentos familiares ou pessoais, aliás, obrigatória, por obra de um Estado
tributariamente voraz e insaciável; negociatas e falcatruas generalizadas, a partir das
licitações públicas e da contratação viciada de gastos governamentais, em função,
precisamente, da centralização excessiva de serviços “públicos” que poderiam ser
prestados em bases de mercado; corrupção ativa dentro dos aparelhos encarregados,
paradoxalmente, da prevenção e da repressão de atos ilícitos nos meios judiciários e
policiais; deterioração visível da qualidade do ensino em quase todos os níveis das
instituições públicas do setor; desalento generalizado na população em virtude do baixo
crescimento generalizado nas últimas duas décadas, com poucas oportunidades criadas
para os ingressantes no mercado de trabalho; sentimento de desesperança que se reflete
nos números continuamente altos de candidatos à emigração a países mais favoráveis ao
trabalho honesto e dedicado.

Prometeu na sua rocha, com o previsível abutre...


Numa imagem alegórica, retomando a tradição dos mitos gregos, poder-se-ia
dizer que o Brasil se apresenta, hoje, como uma espécie de Prometeu acorrentado, um
gigante razoavelmente bem constituído, de aparência saudável e inteligência atilada,
mas acorrentado a uma rocha por sólidos grilhões, tendo sido condenado a responder
pela sua impetuosidade, a ter o fígado bicado por um abutre voraz, que o debilita
continuamente, sem perspectiva de um fim a seus tormentos. No papel do abutre
devorador, creio que muitos concordariam comigo em colocar uma identidade precisa
nesse personagem incontornável do cenário político-constitucional de nossa época: ele
se chama Estado e, no caso brasileiro, poderia também assumir outras configurações
“naturalistas”, como a dos sanguessugas, esses invertebrados hematófagos, ou a dos
parasitas vegetais, que consomem a seiva dos corpos nos quais se enredam. Não por
acaso uma das diligências policiais que envolveram políticos e “empresários” em um
vasto esquema de corrupção com dinheiro público na atualidade brasileira foi batizada
pela Polícia Federal de “Operação Sanguessuga”.
Esse Prometeu acorrentado da modernidade brasileira é, infelizmente, uma
realidade presente no cotidiano da maior parte dos cidadãos que precisam ganhar seus
47
meios para uma vida decente e uma existência digna exclusivamente pelo trabalho e que
não são rentistas dos títulos públicos nem funcionários privilegiados por regras que eles
mesmos criaram para transferir renda do conjunto dos cidadãos, via Estado obviamente,
para seus salários nababescos ou gratificações escandalosas previstas em regulamentos
incógnitos do resto da população. O Brasil hoje é um país claramente sufocado em seu
crescimento econômico e em seu desenvolvimento social por um Estado
reconhecidamente disfuncional, excessivamente perdulário nos seus gastos correntes e
insuficientemente instrumental para fins de investimento produtivo e gastos
educacionais. O nível atingido pelos gastos públicos o condena a figurar
indefinidamente na faixa de baixo crescimento e de dinamismo insuficiente para
enfrentar os desafios da modernidade globalizada que distingue grande parte do mundo,
hoje caracterizado por taxas de crescimento relativamente inéditas para os padrões
conhecidos da história econômica do capitalismo. Com a unificação de mercados e os
intensos fluxos de capitais e de investimentos diretos, o mundo passou a confrontar
diretamente países e economias antes separados pelas barreiras comerciais e
regulatórias. Nesse cenário de velhas economias agora consolidadas na sociedade do
conhecimento e de novos emergentes voltados para os setores mais dinâmicos dos
intercâmbios internacionais – as tecnologias de informação e de comunicação, os novos
materiais compósitos, as inovações da biotecnologia e da nanotecnologia que compõem
o âmago da quarta revolução industrial, atualmente em curso –, o Brasil aparece como
singularmente pouco preparado para enfrentar os desafios da modernidade.
Eu estaria exagerando muito pouco se dissesse que o principal fator a travar o
processo de desenvolvimento brasileiro é hoje constituído pelo mesmo personagem que,
num passado não muito distante, foi o responsável por surtos de progresso e de
impulsos industrializantes que puderam colocar o país no caminho da modernidade
tecnológica: esse personagem se converteu no abutre estatal da atualidade e ele não
apenas consome forças vitais do Prometeu acorrentado, como também inviabiliza seus
movimentos pelos muitos grilhões tributários e regulatórios que o deixam parado no
mesmo lugar, vendo concorrentes se distanciarem cada vez mais.
Um diagnóstico da situação presente teria de partir de uma análise realista das
condições institucionais que são em grande medida responsáveis pelo atual quadro de
baixo crescimento econômico, pela disseminação de comportamentos “desviantes” no
setor formal da economia, pela enorme informalidade existente nos mercados de
trabalho, pela corrupção generalizada em órgãos públicos e pelo sentimento de
48
desalento que se percebe nos meios empresariais e entre os muitos jovens que preferem
a segurança dos concursos públicos ou tentar a vida em arriscadas operações de
imigração ilegal. Essas condições institucionais poderiam ser esclarecidas por meio de
uma radiografia da economia política da Constituição de 1988, que certamente criou a
maior parte das amarras hoje existentes na economia. O quadro deveria ser completado
pelo exame do meandro de dispositivos infraconstitucionais que atuam como ventosas
sobre o corpo econômico da sociedade, seja na sua configuração diretamente tributária,
seja ainda pela imensa burocracia criada para “vigiar e punir” os responsáveis por
infrações fiscais ou regulatórias, e que acabam criando, justamente, os incentivos para o
espetáculo de corrupção generalizada que se constata por um exame perfunctório, de
nível jornalístico, da atualidade corrente. Não creio que este exame pessimista da
realidade brasileira atual seja desprovido de fundamentos sólidos.

Alguma reforma em vista?


Qualquer pessoa medianamente bem informada e provida de dados
comparativos com outros países e situações, pode constatar o atraso relativo do Brasil e
as enormes dificuldades que hoje confrontam todos aqueles que decidem se iniciar
como empresários ou como simples assalariados de empresas normalmente constituídas.
A rede de regulamentos a serem observados, o peso desmesurado dos tributos, taxas e
contribuições, nos diversos níveis da federação e em todos os setores da economia, e a
carga de dificuldades de toda sorte que enfrenta o cidadão comum na sua luta cotidiana
– para não mencionar o quadro de violência civil e a insegurança reinante nas grandes
metrópoles – constituem motivos para real desalento dos cidadãos.
Paradoxalmente, esses mesmos cidadãos não parecem ter se dado conta, ainda,
do peso do Estado em suas vidas e insistem em cobrar mais serviços e prestações desse
mesmo Estado, sem imaginar que aquilo que lhes é concedido com uma mão é, quase
no mesmo movimento, subtraído com a outra, sob a forma de mais impostos e
contribuições excessivas. Muitos aspiram a cargos públicos, na política ou no
funcionalismo, pois esta parece ser a via da realização fácil na vida e dos ganhos
garantidos, sem as contrariedades da vida empresarial ou do puro regime salarial. Quase
todos esperam que o Estado resolva problemas corriqueiros da vida em sociedade e
todos invariavelmente apelam para as autoridades em face de dificuldades locais ou
comunitárias.

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O Brasil padece de centralismo excessivo e concebe o sistema democrático
apenas como um regime político, não como um sistema autorregulado de organização
social que deveria, em princípio, começar pelo próprio ordenamento da vida
comunitária. O “abutre”, ou seja, o Estado adquiriu poderes extraordinários, que o
habilitam a ir buscar recursos diretamente no bolso dos cidadãos e no caixa das
empresas, mediante um sistema de captação extensiva – e preventiva, em muitos casos –
que deixam todos e qualquer atividade à mercê do sanguessuga institucional. O mais
dramático é que proporções crescentemente maiores desses recursos são canalizadas
para os próprios gastos correntes do Estado, não para atividades produtivas ou
investimentos de mais longa maturação, como podem ser as despesas com educação e
saúde.
Tendo em vista a nítida imbricação dos regulamentos existentes, a selva de
dispositivos constitucionalizados, a solidez dos interesses constituídos e dos privilégios
legalizados, ademais da dificuldade notória que consiste em reformar aspectos
importantes da vida nacional – sistema político, regime tributário, legislação trabalhista,
instituições educacionais e outros mais – parece claro que será muito difícil ao
“Prometeu brasileiro” livrar-se do atual “abutre estatal”, inclusive porque o mais
importante, que seria a reforma das mentalidades, ainda precisa ser feito. Não tenho
nenhuma ilusão de que o Brasil empreenderá o conjunto de reformas que seria
necessário no horizonte previsível. O mais provável é que ele continue a se arrastar
lentamente em direção da modernidade – uma vez que, como dizia Mário de Andrade,
“o progresso também é uma fatalidade” – e que seu declínio não seja irresistível e
catastrófico, apenas relativo e tendencial. Ou seja, estamos progressivamente nos
afastando dos países mais dinâmicos e das economias mais empreendedoras. Não
haverá um colapso generalizado da sociedade e da economia como um todo – tanto
porque os elementos de modernidade e de espírito empreendedor presentes na sociedade
são suficientemente fortes para garantir alguma adequação criativa aos desafios da
globalização –, mas os esforços desses fatores dinâmicos não serão suficientes para
fazer o Brasil galgar novos patamares de modernidade inclusiva e de justiça social.
Em outros termos, o “Prometeu” continuará acorrentado por muito mais tempo,
pelo menos até que a sociedade se convença de que precisa se livrar do abutre
explorador e libertar o personagem principal dos grilhões que o prendem, ainda, à
miséria e à ignorância, mediante um esforço de auto-organização da sua vida cotidiana e
de liberação a mais completa possível das iniciativas individuais. Conhecendo as
50
limitações existentes no quadro institucional brasileiro da atualidade, não tenho a menor
ilusão de que essa liberação ocorra no futuro previsível. Se ouso resumir meu
pensamento sobre a questão, eu diria simplesmente que o Brasil não está condenado
obrigatoriamente à derrocada no seu esforço social-desenvolvimentista, mas ele exibe
notórias dificuldades para reformar-se a si mesmo.
Continuaremos a progredir lentamente, talvez muito lentamente para o ritmo
atual da globalização. A escolha é nossa...

Revista Espaço Acadêmico


(ano 7, n. 73, junho 2007; ISSN: 1519-6186); republicado na
Revista Acadêmica Espaço da Sophia
(ano I, n. 4, junho 2007; ISSN: 1981-318X).

51
7. Algumas coisas simples que deveríamos ter no Brasil

Brasília, 1758: 16 junho 2007, 2 p.


Via Política (18/06/2007)

Toda pessoa de bom senso concordaria em que um cenário ideal, para o Brasil,
seria contar com um regime democrático seguro, estável e aberto, caracterizado por
amplas liberdades individuais, a maior liberdade econômica possível – isto é, espaços
garantidos para a iniciativa privada, no quadro de uma regulação amigável aos negócios
e pouco “extratora” no plano dos tributos –, direitos iguais para os cidadãos, tolerância
mútua no terreno cultural e religioso, sufrágio universal sob um regime representativo
equilibrado e respeitador das minorias e um governo responsável (accountable) que
funcionasse segundo normas institucionais impessoais (rule of law), sem qualquer tipo
de patrimonialismo, fisiologismo ou desvio de função dos poderes constituídos.
A essa estrutura política formal, correspondendo, grosso modo, a uma
democracia liberal, muitos agregariam elementos de social democracia inclusiva, ou
seja, a atribuição de um papel qualquer ao Estado no sentido de construir um regime de
equidade social, o que representa ajudar os mais necessitados e tentar evitar
disparidades gritantes de renda e riqueza. Não há exatamente concordância quanto aos
meios de ser cumprido este papel distributivo por parte do Estado, pois muitos
prefeririam que a repartição se fizesse sobre fluxos sempre crescentes de renda – teoria
do crescimento do “bolo” – ao passo que outros privilegiariam o esforço contributivo
dos mais ricos a partir dos estoques existentes de riqueza disponível (canalização da
renda “excedentária” via tributos progressivos).
Qualquer que seja o julgamento que se tenha sobre a natureza do regime
democrático que se pretenda ter no Brasil – se mais formal, ou “burguês”, ou se mais
igualitário e inclusivo e, portanto, social-democrático –, uma coisa é certa: estamos
bem longe do cenário ideal traçado acima. Nosso regime democrático pode até ser
estável – atualmente –, mas ele é certamente de baixa qualidade, uma vez que persistem
deficiências notórias no sistema representativo, disfunções visíveis no sistema
partidário, uma regulação excessivamente intrusiva na vida das empresas por um Estado
famélico por mais e crescentes tributos, o que conduz, por outro lado, a uma evasão e
uma informalidade generalizadas na vida econômica, agregando ao quadro bem
conhecido de corrupção disseminada nos mais diversos poderes do Estado.
52
Pois bem: o que impede, hoje, a sociedade brasileira de aproximar-se daquele
ideal (seria ele idealizado)? Observando-se a dinâmica social brasileira, com uma classe
empresarial bastante ativa nos seus esforços de modernização, uma universidade que
acompanha grosso modo os progressos do espírito científico no mundo, uma população
trabalhadora, cordial e ordeira, o que se poderia constatar é que os principais obstáculos
à consecução de um sistema democrático funcional e à realização de um ritmo de
crescimento satisfatório no plano econômico está todos do lado do sistema político, ou
mais propriamente estatal.
Pensando bem, é o Estado que não faz sua parte em obras de infraestrutura e de
fornecimento energético, de logística de transportes, de regulação amigável dos
negócios e de tributação adequada das atividades produtivas, deixando assim de criar as
condições para uma taxa mais elevada de crescimento econômico. É o Estado que, ao
concentrar volume exagerado de recursos em suas mãos, abre espaço a todos os tipos de
corrupção e de desvio do dinheiro público. É o Estado quem deixa de investir na
educação e em ciência e tecnologia, que torna a Justiça excessivamente lenta para os
necessitados e excessivamente leniente para os criminosos com canais privilegiados nos
foros judiciais. É o Estado quem produz inflação ou desequilíbrio fiscal, ameaçando
assim a boa gestão das contas públicas e comprometendo a renda das futuras gerações.
Chega a ser surpreendente que, em face desse quadro de anomalias bem visíveis, os
cidadãos brasileiros não procurem corrigi-las atacando a fonte do “mal”, que é o próprio
Estado, mas concordem em soluções que implicam sempre em mais Estado (agora para
“vigiar e punir” os responsáveis pelas anomalias). Parece bizarro que, com tanto
dinheiro público sendo desviado para bolsos indevidos, as pessoas não pensem,
simplesmente, em cortar o mal pela raiz, isto é, retirando ou diminuindo o montante de
recursos da sociedade que são canalizados pelo Estado, mas busquem, ao contrário,
paliativos ou mecanismos de “controle” que custam bem mais do que produzem ou
apenas desviam o foco da atenção que se deve dar à própria forma de conduzir os
negócios públicos.
Uma sociedade mais auto-organizada, um Estado mais contido em suas funções,
estas me parecem ser receitas simples para construir uma sociedade mais inclusiva e um
sistema político mais condizente com os ideais de democracia traçados acima.

Blog Diplomatizzando (14.02.2010; link:


http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1348-algumas-coisas-simples-que.html).

53
8. Como criar uma nação de assistidos

Brasília, 1789: 25 agosto 2007, 3 p.


Via Política (26/08/2007)

Segundo anúncios recentemente feitos por quem de direito, o Brasil comporta,


em seu programa oficial de assistência social, mais de 11,1 milhões de famílias
inscritas, ou perto de 46 milhões de pessoas, formalmente dependentes da ajuda
governamental. A primeira formatação do programa, nos idos de 2003, era de que se
tratava de um “fome zero”, ou seja, existia um número enorme de brasileiros que não
dispunham de recursos para se alimentar decentemente. Ninguém duvida que o Brasil
exibisse um volume anormalmente grande de pobres e miseráveis, mas o que não se
sabia, ao certo, era que esses pobres e miseráveis estavam morrendo de fome.
Dito assim, de chofre, seria difícil que alguém se opusesse a uma iniciativa que
visava, ao que parece, aplacar a fome desse imenso contingente de miseráveis. Muitos
desses eram visíveis, nos semáforos das grandes cidades, nas favelas das metrópoles,
nos arrabaldes das aglomerações menores e, sobretudo, nas regiões rurais do imenso
interior do país. Mas, salvo engano, não se tinha a impressão, de que estivessem todos
morrendo de fome, inclusive porque o instinto de sobrevivência parece inato no homem,
como entre os animais diga-se de passagem. Esses pobres, andrajosos que fossem,
pareciam aplacar a sua fome mediante estratégias diversas: xepa nas feiras das cidades,
pequena produção de subsistência nas zonas rurais, trabalhos precários aqui e ali, enfim,
não se tinha notícia de que pessoas estivessem morrendo de fome nas cidades e nos
campos do Brasil. Sempre havia o problema da insegurança e da carência alimentar,
mas mesmo os mais pobres deviam ter estratégias de sobrevivência, pois os registros
disponíveis não indicam um morticínio muito grande pela privação alimentar, salvo
casos localizados em fases de desequilíbrio climatológico em certas regiões do país.
Como é que se pôde chegar, então, a esse número preciso de 11,1 milhões de
famílias carentes que necessitavam absolutamente da ajuda governamental? Suspeito
que por cálculos aproximados quanto à renda disponível dos cidadãos, renda essa que é
sempre subestimada para as faixas inferiores de rendimentos. Seja como for, se montou
no Brasil um imenso programa de ajuda oficial que talvez não encontre paralelo no
mundo: trata-se, afinal de contas, de toda uma “Argentina” vivendo no cartão
magnético, segundo um cadastro que é conduzido pelos prefeitos e pelos órgãos oficiais
54
(federais e locais) de assistência pública. Acredito, pessoalmente, que a tentação de
superestimar o número de necessitados é enorme, nas diversas pontas do processo:
políticos que queiram constituir uma clientela eleitoral, intermediários que queiram
incluir o maior número de “necessitados” para demonstrar “produtividade” e os próprios
interessados, enfim, pessoas pobres que não teriam nada contra receber mensalmente 50
ou 80 reais, um maná dos céus em face da sua pobreza real, independentemente de a
quanto se eleve a sua pobreza efetiva (ou falta de renda). Devem existir, claro, aqueles
que não são exatamente “sem renda”, mas aos quais não falta a cara de pau de se
inscrever num programa absolutamente generoso de distribuição de verbas públicas,
aparentemente quase sem contrapartidas: basta ser pobre e cai aquela verba no final
todo mês, apta a comprar o trivial costumeiro no empório da esquina.
Em condições normais, presumo que a massa de novos consumidores –
desobrigados, ao que parece, de lutar pelo seu próprio alimento – poderia provocar certa
inflação sobre os preços dos alimentos, pois o movimento corresponderia a uma
elevação da demanda por esses bens de primeira necessidade sem que os próprios
interessados estivessem participando do processo produtivo (uma vez que suspeito que,
mesmo a agricultura familiar de subsistência, ficaria “prejudicada”, dispondo-se da
alternativa de compra direta dos alimentos no empório da aldeia). Não parece ter
ocorrido essa pressão inflacionista, uma vez que a oferta alimentar no Brasil permanece
abundante, graças, em grande medida, à pujança da agricultura de mercado.
Mas, entendo, com meus modestos conhecimentos de economia, que a pressão
sobre os mercados de trabalho já estejam se exercendo com toda uma sinalização
negativa para a demanda de trabalho não especializado. Colhedores de algodão, de cana,
de café podem se tornar arredios a um trabalho vil e mal pago, o que obrigará os
produtores – capitalistas gananciosos, por certo – seja a elevar os salários pagos, seja
empreender um movimento que redundará na mecanização ampliada de suas culturas,
elevando, portanto, as cifras de desemprego (se é verdade que os contemplados do
programa de ajuda frequentam essas listas, do que duvido). As consequências serão, de
todo modo, igualmente nefastas no plano da previdência social, pois um contingente
enorme de trabalhadores que poderia ser formalizado no mercado de trabalho
permanecerá à margem dos registros oficiais, sem deixar, contudo, de se bater às portas
da previdência, quando a ocasião se apresentar. Já nos níveis mais baixos de salário isso
ocorre com grande intensidade: por que contribuir agora sobre um salário mínimo –
diminuindo a renda pessoal em 10%, aproximadamente – se a aposentadoria virá
55
inevitavelmente, no futuro, exatamente no mesmo valor da remuneração de base? Os
pobres podem não ter educação formal, mas não deixam de ser espertos...
Em qualquer hipótese, um programa como esse parece fácil de ser criado, mas
deve ser uma das coisas mais difíceis de terminar, ou diminuir. Ainda que os pobres não
tenham acesso aos meios de comunicação e não costumam vir a Brasília reclamar
“direitos”, eles votam, pelo menos a cada dois anos, e esse fator é um poderoso indutor
político para a continuidade, e até a ampliação, de programas desse tipo. Finalmente,
não se pode desprezar um contingente de algo como 20 milhões de votos, segundo
calculo, incluindo ai os organizadores e os que capitalizam em cima da ajuda que eles
não recebem, mas que ajudam a prestar.
Independentemente da existência de pobres e muito pobres no Brasil, o que não
nego, tenho por mim que estamos criando um exército de assistidos que se constituirá
em fator bastante negativo na conformação futura das políticas públicas, sobretudo
setoriais. A nação está sendo dividida em “pagadores” e “recebedores” e isso não me
parece bom no plano dos “costumes” sociais. Sempre achei que o trabalho deveria
merecer remuneração adequada e que as pessoas devem encontrar uma forma de
sustento pelo seu próprio trabalho, não pela benemerência pública, à exceção,
obviamente, dos incapazes e necessitados absolutos. O país está assistindo à lenta
elaboração de um novo tipo de apartheid, os do Bolsa-Família – um quarto, ao que
parece, da população – e todos os demais, alguns até pobres, mas que não tiveram a
“sorte” de entrar no programa oficial (mas que fariam algum esforço para entrar,
suspeito, aumentando a pressão para a continuidade e a expansão do programa, a partir
de seus níveis atuais).
Tenho por mim que ainda se aplica aquele antigo versinho de um nordestino
também saído de uma região muito pobre, mas que se fez pelo seu esforço na grande
cidade:
“Meu sinhô, uma esmola, para um pobre que é são,
Ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão...”

Brasília, 25 de agosto de 2007


Postado no blog Diplomatizzando em 11/01/2016 (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/como-criar-uma-nacao-de-
assistidos.html).

56
9. Duro de crescer: obstáculos políticos ao crescimento econômico do
Brasil

Brasília, 1794: 2 setembro 2007, 10 p.


Via Política (1a. parte, 9/09/2007; 2a. parte: 16/09/2007; 3a. parte: 23/09/2007)

Em outubro 1988, ao saudar a promulgação da nova carta constitucional – a


sétima ou oitava desde a independência, dependendo de como se considera a Emenda
Constitucional de 1969 à Carta de 1967 – , o deputado Ulysses Guimarães, então seu
pai putativo, apelidou-a de “Constituição cidadã”. Será mesmo?
A julgar pelos efeitos provocados por ela na economia real do país, nos últimos
vinte anos, ela mereceria talvez a alcunha de “Constituição madrasta”, uma vez que ela
coloca obstáculos ponderáveis a um processo sustentado de crescimento econômico. Ou
quem sabe, então, “Constituição corporativa”, tendo em vista os inúmeros arranjos
feitos em favor de grupos especiais de cidadãos? O que distingue o Brasil, hoje, no
contexto das economias emergentes, é precisamente o fato de que estamos crescendo
menos da metade da média mundial e três vezes menos do que as mais dinâmicas
economias emergentes.
Vejamos alguns dados recentes. Nos últimos anos, o Brasil conheceu uma
formidável vitória na luta contra a inflação e na preservação de um dos pilares
fundamentais do processo de estabilização macroeconômica iniciado com o Plano Real
(1994). A elevação dos preços ao consumidor, que ameaçou esse processo ainda em
2002 e 2003, como conseqüência dos temores despertados com a disputa eleitoral
naquele primeiro ano, despencou de mais de 16% para menos de 4% atualmente. Já o
índice de risco-Brasil – medido pelo spread sobre a taxa básica dos títulos do Tesouro
americano – caiu de 24 pontos para menos de 2 atualmente, o que é uma formidável
inversão. Esta redução se deve, essencialmente, à política monetária do Banco Central,
algo que foi difícil de aceitar em certos setores do pensamento econômico universitário,
que passaram os últimos cinco anos condenando a autonomia de fato concedida ao
Copom.
Esses dados são eminentemente positivos, sobretudo porque eles confirmam que
o Brasil caminha para converter-se em um país “normal”, isto é, uma economia que
apresenta taxas de inflação razoavelmente alinhadas com as médias mundiais, pelos
menos para países emergentes, algo que não exibimos no último meio século, pelo
57
menos. Em compensação, na frente do crescimento econômico, nosso desempenho é
menos que brilhante, praticamente pífio, com uma taxa média de crescimento do PIB de
menos de 3% ao ano desde o início dos anos 1990, em face de robustos 9% para a
economia chinesa, de cerca de 6,5% para a economia indiana e de mais de 5% para a
Coréia do Sul, não considerando os 7% da Irlanda.
A tendência declinante do crescimento econômico no Brasil não é de hoje,
infelizmente, como sabem todos aqueles que convivem com as estatísticas do IBGE. Se
convertermos o comportamento errático das taxas de aumento anual do PIB em uma
linha tendência, veremos que sua inclinação é constantemente para baixo, desde o final
dos anos 1970, quando ela deixa a casa dos 5% anuais, ostentados durante a maior parte
do pós-guerra, para cifras inferiores à metade desse valor nos anos recentes.
De modo geral, dos anos 1940 aos anos 1980, o Brasil crescia a taxas superiores
à média mundial, passando a exibir, a partir daí, um comportamento inferior ao do
crescimento do PIB mundial. Em termos per capita, que é o que vale, finalmente, na
vida das pessoas, as médias do período recente são extremamente preocupantes, uma
vez que a taxa efetiva é próxima de 1,5% ao ano, o que significa que a renda per capita
só dobraria em 75 anos, ou seja, o espaço de três gerações. Apenas para fins de
comparação, a taxa do crescimento per capita atual da China, de cerca de 7,6% real ao
ano, entre 1995 e 2004, significa que a renda dos chineses dobra em 17 anos, ou menos
de uma geração. A continuar nesse ritmo, a China fará o Brasil passar a vergonha de ter
a sua renda per capita ultrapassada por um país manifestamente pobre, ou dispondo,
pelo menos de muitos pobres (algo como 300 ou 400 milhões de chineses, ainda).
A tabela abaixo reproduz o comportamento recente de algumas dessas
economias:

Crescimento do PIB per capita, 1995 a 2004, taxas médias anuais


PIB per capita de países US$ 1.000 PPP Crescimento
selecionados 1995 2004 anual %
Estados Unidos 31,6 38,6 2,3
Alemanha 25,7 28,4 1,1
Coréia do Sul 15,5 20,8 3,7
Chile 8,5 10,7 2,6
Rússia 6,9 9,9 4,1
Brasil 7,2 8,2 1,5
China 2,9 5,5 7,6
Índia 2,1 3,0 4,1
Fonte: Banco Mundial.

58
Como se pode constatar, o Brasil foi a economia que menos cresceu em termos
reais per capita, de todos os países em desenvolvimento, ficando até mesmo atrás de
alguns desenvolvidos, como os Estados Unidos, só ganhando da Alemanha, que numa
certa época já foi chamada de “a economia enferma da Europa”. Alguma razão deve
existir para esse desempenho medíocre.

Os economistas do desenvolvimento costumam identificar um conjunto de


fatores qualitativos, como constituindo requisitos necessários, mas não suficientes, para
um processo sustentado de crescimento econômico (não confundir com
“desenvolvimento”, que requer um processo sustentado de crescimento, com
transformações estruturais no sistema produtivo, isto é, ganhos de produtividade, e
distribuição social dos benefícios do crescimento). Estes requisitos podem ser
resumidos nos elementos seguintes:
Requisitos para o crescimento:
1) Estabilidade macroeconômica
2) Microeconomia competitiva
3) Capacidade institucional
4) Qualidade dos recursos humanos
5) Abertura ao comércio internacional e aos investimentos diretos
estrangeiros

Vejamos, rapidamente, cada um deles e como o Brasil tem se comportado em


face desses elementos macro e microeconômicos.

1) Estabilidade macroeconômica
Desde o Plano real, o Brasil tem apresentado políticas macroeconômicas
relativamente sólidas, com uma inflação baixa, contas nacionais razoáveis, isto é,
tendentes ao equilíbrio, mas ainda caracterizadas por desequilíbrios setoriais
(previdenciários, sobretudo) ameaçadores, e, desde 1999, uma taxa de câmbio
competitiva, a despeito da valorização observada no período recente (e entre 1995 e
1999), o que, de toda forma, induz a ganhos de produtividade e ajuda a combater a
inflação. Mas, a despeito de ter superado o histórico problema da vulnerabilidade
financeira externa, o Brasil ainda sofre de grande fragilidade no comportamento futuro
de suas finanças públicas, marcadas, como se sabe, por gastos exagerados em relação ao
crescimento do PIB. Com efeito, os gastos públicos têm crescido duas vezes mais do
que o PIB e do que a inflação, acarretando enorme pressão sobre o orçamento e,

59
consequentemente, sobre a dívida. Uma projeção das tendências atuais indica,
infelizmente, o crescimento contínuo das despesas públicas, sendo que a Constituição é
em grande medida responsável por “gastos encomendados”.

2) Microeconomia competitiva
Uma microeconomia competitiva significa uma estrutura de mercados aberta e
desprovida de barreiras a novos negócios, que devem ser o mais possíveis
concorrenciais, ou seja, com a defesa efetiva da competição pelas autoridades
governamentais encarregadas institucionalmente do setor, a ausência quase completa de
cartéis e oligopólios setoriais e um mercado de capitais amplo e de fácil acesso.
Infelizmente, o Brasil conhece diversos oligopólios setoriais e o ambiente de negócios é
próximo do horroroso, se considerarmos a estrutura tributária, não apenas extremamente
pesada, mas sobretudo ineficiente e altamente burocratizada. Conhecendo-se as
tendências predominantes no Estado brasileiro, parece pouco provável que esse
ambiente venha a mudar substancialmente no futuro previsível.

3) Capacidade institucional
Uma governança eficiente significa, em princípio, a remoção de incertezas
políticas e a mudança no quadro de instabilidade legal que desestimulam os
investimentos e prejudicam o crescimento. O Brasil conhece, indubitavelmente, uma
situação de democracia estável, ainda que caracterizada por sua baixa qualidade
institucional, com comportamentos rentistas inaceitáveis por parte de políticos e altos
burocratas do Estado. A capacitação institucional de muitos quadros da burocracia
pública apresenta deficiências preocupantes. Determinados serviços públicos
apresentam uma situação deplorável de ineficiências e desvio de funções. A situação é
tanto mais preocupante que o Brasil, no contexto dos países em desenvolvimento – e
aqui cabe reconhecer o legado da era militar –, havia conseguido construir um Estado
relativamente eficiente, dotado de uma burocracia bem organizada e “produtiva” (para
os padrões desses países).

4) Qualidade dos recursos humanos


A qualidade da mão-de-obra, como sabem todos os economistas, é essencial
para ganhos de produtividade. No Brasil, existe uma boa capacitação científica e
gerencial, mas o ambiente legal deixa muito a desejar. A despeito do maior acesso
60
educacional nos últimos dez anos, continuam a existir muitas diferenças regionais e
sociais nos resultados de desempenhos exibidos nos diferentes ciclos da educação
pública. Não é preciso lembrar que estamos muito atrasados na educação de massa e
que a universalização foi seguida da baixa qualidade nos padrões. O Brasil tem desafios
imensos nessa frente, uma vez que nossa mão-de-obra ostenta poucos anos de estudo –
cerca de 5,5 anos, em média, comparados aos 11 anos, ou mais, dos trabalhadores da
Coréia do Sul – e os resultados dos exames internacionais de desempenho escolar nos
colocam nos últimos lugares da lista. Nossa educação pública é calamitosa!

5) Abertura ao comércio internacional e aos investimentos diretos estrangeiros


Como sabem também os economistas, o desempenho econômico de um país –
isto é, os seus ganhos de produtividade – responde rapidamente ao maior incremento
tecnológico de sua base produtiva e a uma maior inserção no intercâmbio global de
mercadorias. Nesse particular, os progressos nessas áreas têm sido muito lentos, com a
persistência de baixa inserção internacional no comércio de produtos mais demandados
no mercado mundial. Atraimos poucos investimentos relativamente ao tamanho de
nossa economia, realizamos, basicamente, exportação competitiva de commodities – e,
futuramente, energia renovável – mas somos fracos nas manufaturas mais dinâmicas.

Numa palavra, como o Brasil se apresenta, hoje, no cenário mundial? O Brasil


aparece, hoje, no âmbito da nova economia globalizada, como o país emergente menos
preparado para crescer e exercer um papel mundial de relevo, com exceção, talvez, no
campo das energias renováveis (biomassa, isto é, etanol e biodiesel, com ênfase no
primeiro). O curioso de ser constatado é que nenhum dos problemas brasileiros
comumente identificados – problemas nas contas públicas, má qualidade da educação,
corrupção, ineficiência do Estado, ausência de competição no seu sistema econômico,
baixo desempenho tecnológico – deriva da globalização; todos ele são “made in
Brazil”…
Nos últimos vinte e cinco anos de história econômica mundial, tivemos países
que podem ser chamados de “convergentes” – isto é, economias que melhoraram o seu
desempenho e que se aproximaram dos padrões econômicos conhecidos na OCDE; são
elas as da Ásia Pacífico, da Ásia do Sul e países europeus que demandaram ingresso na
UE – e países que claramente podem ser identificados como “divergentes”: eles estão na
África, na América Latina e no Oriente Médio e são economias que permaneceram
61
estagnadas ou retrocederam, relativamente (alguns em decorrência de choques externos
(peso da dívida, por exemplo) ou até mesmo absolutamente (é o caso do fenômeno
conhecido como falência política – failed States –, com diversos exemplos africanos e,
no caso da América Latina, do Haiti).
No caso do Brasil, não chegamos a esses extremos, mas pode-se, deve-se,
reconhecer que nosso desempenho caminhou abaixo das possibilidades. Basta lembrar,
por exemplo, que no ínicio dos anos 1960, o Brasil exibia o dobro da renda per capita da
Coréia do Sul – grosso modo, cerca de 600 dólares, contra menos de 300 –, ao passo
que, quarenta anos depois ela nos supera por um fator de 3 (quase 20 mil dólares em
paridade de poder de compra, contra menos de sete para o nosso caso). Deve haver
razões para esse desempenho pífio em termos de crescimento. De fato, no período
recente, a taxa de crescimento anual do PIB brasileiro tem sido a metade da taxa
mundial, enquanto o valor correspondente para os demais países emergentes representa
1,5 vezes aquela taxa. O Brasil é o “lanterna” dos emergentes e não há indicações que
este comportamento possa ser alterado no futuro previsível.

As razões do não-crescimento e da inércia, no caso brasileiro, podem ser: (a)


episódicas, ou seja, conjunturais, isto é, derivadas da inflação, da desorganização, ou até
da instabilidade econômica, o que, sinceramente, não parece ser o caso, pelo menos
desde o Plano Real, ou, então, desde a mudança de regime cambial em 1999 (com a
introdução da flutuação); ou, então, essas causas podem ser: (b) sistêmicas, ou
estruturais, o que provavelmente é o caso. O que o sistema político tem a ver com isto?
Comecemos pela Constituição “cidadã”. Ela tem estas particularidades: em seu
texto, a palavra “direito” aparece 76 vezes; já a palavra “dever” aparece apenas 4 vezes;
o conceito de “produtividade” comparece duas vezes, tão somente e “eficiência” uma
única e solitária vez (apud: José Pastore, “O trem da alegria”, OESP, 21.08.07, p. B-2).
Devem existir fortes razões para esta disparidade conceitual. Ao ver de alguns
observadores, esta situação apresenta alguma coincidência com o fato de a elaboração
constitucional ter ocorrido antes da queda doo muro de Berlim e da derrocada final do
sistema socialista.
Pode ser: em todo caso, não deveria ser para nós motivo de orgulho especial
verificar que o governo anuncia, até com certa euforia, que o programa “Bolsa-Família”
atende a 11,1 milhões de famílias, um entre quatro brasileiros, ou seja, 25% da
população total. Teria isto algo a ver, em outra vertente, com o fato de que a nossa
62
“Carga de impostos é a maior da história” (Folha de S. Paulo, 22.08.07)? De fato,
apesar da promessa do governo Lula de não elevar a carga tributária, os brasileiros
pagaram, em 2006, o equivalente a 34,23% do PIB em impostos, contribuições e taxas.
Todos os economistas conhecem a correlação empírica existente entre gastos públicos
elevados e baixo crescimento do produto. Não se trata aqui de opinião, mas de fatos
observáveis com uma simples consulta às estatísticas nacionais dos principais países.
Os problemas brasileiros podem ser resumidos como segue: (a) uma
institucionalidade precária, ou seja, um Estado predador, caracterizado por gastos
públicos excessivos, na média dos países mais ricos (38% do PIB), para uma renda per
capita seis vezes menor; (b) uma burocracia intrusiva, inimiga dos negócios e
facilmente capturada por grupos e pessoas representando “interesses especiais”
(geralmente apresentados como “estratégicos”); (c) elites políticas autocentradas, dotada
de atitudes rentistas, o que inevitavelmente resulta em altos custos de transação,
diminuindo o PIB potencial.
Todos esses fatores, combinados, provocam informalidade (que no Brasil supera
50% da população economicamente ativa e algo como 40% do PIB, para uma média
mundial de 32%) e baixa produtividade do trabalho humano. Para inverter essa
tendência, o governo precisaria eliminar as barreiras à produtividade, o que exige
medidas de política econômica e social.
Resumindo: o Brasil aparece, no atual contexto mundial, como um país
totalmente preparado para “não crescer”, em virtude de seus impedimentos estruturais
ou sistêmicos (ou seja, a sua baixa produtividade do trabalho) e de fatores não
estruturais (em outros termos, derivados de políticas do governo). Esses dois conjuntos
de elementos se combinam para manter o Brasil em baixos níveis de crescimento, agora
e no futuro previsível.

Traçando uma lista dos obstáculos políticos ao crescimento econômico no


Brasil, eles poderiam ser resumidos nos seguintes elementos:
1. Constituição detalhista, intrusiva, concedendo muitos “direitos” e demandando
poucas obrigações;
2. Estado extenso, também intrusivo, perdulário, gastador, “burrocrático” e gigantesco;
3. Regulação microeconômica hostil aos negócios e ao trabalho, dando pouco espaço às
relações autoreguladas e diretamente contratuais;
4. Monopólios em excesso: cartéis e restrições de mercado, pouca competição e muitas
barreiras a novos ofertantes de bens e serviços;

63
5. Reduzida abertura externa, seja para comércio, investimentos ou fluxos de capitais,
criando ineficiências, altos custos e preços, ausência de competição e de inovação;
6. Sistemas legal e judicial atrasados, permitindo manobras processuais que atrasam a
solução das disputas e que aumentam os custos de transação.

Se ouso apresentar uma lista de reformas políticas, elas poderiam ser expressas
nos elementos seguintes:
1. Política (partidos e regime eleitoral);
2. Tributária (difícil, por causa da organização federativa);
3. Educacional (que será obstaculizada pelas corporações existentes);
4. Seguridade social (que se choca com privilégios remanescentes no setor público);
5. Trabalhista (uma das mais duras, pois o Brasil converteu-se numa República
sindical);
6. Governança (ainda mais difícil, em vista do perfil da representação política).

Em todo caso, apresentando os principais elementos de uma agenda de reformas,


e sem nenhuma ilusão quanto à sua factibilidade, o esforço poderia ser dirigido a:

1. Reforma Política:
Começar pela Constituição (operar uma “limpeza” em regra, remetendo diversos
dispositivos para a legislação infra-constitucional); efetuar uma redução das legislaturas
nos três níveis da federação (já que a representação não apenas é excessiva, mas
provoca gastos em excesso); elaborar uma reforma eleitoral, com a introdução do
sistema distrital misto de seleção e de representação; por fim, tentar uma reforma
partidária (ainda que ela seja manifestamente difícil, também, em vista do autismo
político que caracteriza as lideranças partidárias).

2. Reforma Tributária:
Ela será obviamente dificultada pelo problema da federação e, por isso mesmo,
não poderia ser um simples arranjo formal, e sim uma reforma completa (macro e
micro), com simplificação tributária e disposição de se reduzir a carga tributária total,
ainda que de forma gradual e talvez até mesmo lenta. Em todo caso, ela deveria ser
colocada no contexto de uma continuidade da abertura econômica, com liberalização
ampliada do comércio exterior e dos investimentos diretos estrangeiros e com novos
incentivos à inovação (na linha de do respeito à propriedade intelectual).

3. Reforma Educacional:
Deveria estar centrada no ensino básico, tendo como eixos centrais a capacitação
dos professores dos ciclos fundamental e médio e o reforço do ensino técnico-
64
profissional. A dificuldade principal aqui parece ser a introdução de um regime
meritocrático de avaliação e de remuneração. Não é preciso dizer que a tarefa principal
dos governantes seria concentrar os recursos nos dois primeiros ciclos, uma vez que a
pirâmide de gastos do governo no ensino público – que é, de fato, uma grande pirâmide
– está completamente invertida. Quem conhece os resultados dos exames internacionais
de avaliação de desempenho dos nossos alunos do primário e do ciclo médio sabe que
essa missão é absolutamente crucial. Por fim, deve-se conceder, de imediato, autonomia
universitária às IFES, mas obrigando-as, ao mesmo tempo, a elaborar orçamentos
administrados por claros princípios de premiação por desempenho, de avaliação dos
resultados individuais e de aferição de mérito em bases não isonômicas.

4. Reforma da Seguridade social:


Para acabar, em primeiro lugar, com o festival de privilégios remanescentes,
seria preciso reduzir vários benefícios abusivos do setor público, ou seja, suprimir
alguns regimes especiais que insistem em permanecer. De forma geral, seria importante,
do ponto de vista do equilíbrio das contas públicas, ampliar os prazos de aposentadoria
e as idades mínimas, modular as contribuições em função de regimes complementares
de poupança compulsória (como os regimes de capitalização administrados
setorialmente) e diminuir os desincentivos derivados dos direitos garantidos, que atuam
como um indutor perverso da informalidade e do não-recolhimento (já que os situados
nos estratos de salário-mínimo preferem não contribuir, uma vez que terão direito ao
benefício, independentemente de terem, ou não, contribuído para o sistema durante sua
vida ativa).

5. Reforma Trabalhista (e sindical):


Trata-se, obviamente, da flexibilização da legislação laboral (por mais que isto
possa chocar as “almas cândidas”), no sentido de se ter mais contratualismo e mais
negociações diretas entre as partes, em lugar da rigidez das normais atuais. No plano
dos conflitos, em grande medida criados artificialmente por essa mesma legislação, o
objetivo deve ser, pura e simplesmente, o da eliminação da Justiça do Trabalho, ela
mesma criadora de conflitos, além de custar acima dos valores que são objeto de
julgamento. No plano sindical, consoante uma velha demanda do “novo sindicalismo” –
que se converteu rapidamente em “velho” e parece ter-se acomodado às benesses da

65
República sindical –, a meta é claramente a da extinção da Contribuição Sindical, que
cria sindicatos de papel (quando não deliberadamente corruptos).

6. Reforma da Governança:
Sem nenhuma ilusão de que isto venha a ocorrer, o objetivo seria uma redução
radical do governo (ou colocá-lo sob dieta estrita). Infelizmente, a sociedade ainda não
se convenceu de que o Estado, em lugar de ser o indutor do desenvolvimento, que ele
foi num passado distante, converteu-se, de fato, no mais poderoso obstrutor do processo
de crescimento econômico, dilapindo recursos da sociedade e desviando investimentos
para seus gastos correntes. Caberia, assim, retomar as privatizações (uma vez que as
PPPs constituem, se tanto, uma maquiagem, uma privatização disfarçada), reforçar as
agências reguladoras (que foram deliberadamente sabotadas, ou aparelhadas no período
recente) e introduzir um conjunto de reformadas ainda mais ousadas no plano
administrativo (como, por exemplo, o fim da estabilidade do funcionalismo público).
Existe alguma chance de sucesso, para um programa como esse? Talvez,
embora, pessoalmente, eu considere isso praticamente impossível, em vista da chamada
“consciência cidadã”, hoje comprometida com as supostas “benesses do Estado”. As
pessoas, em geral, demandam “mais Estado”, grande parte dos formandos desejam fazer
um concurso público e aceder a salários que são, na média, o dobro daqueles vigentes
no setor privado, desfrutando, ademais, dos demais benefícios vinculados ao atual
regime do funcionalismo público (entre eles o da estabilidade no emprego). As razões
para o pessimismo, portanto, são reais.
Em todo caso, na ausência de reformas – não necessariamente as delineadas
aqui, mas funcionalmente equivalentes –, o Brasil estará provavelmente condenado ao
atraso relativo, em comparação aos demais emergentes, e ao baixo crescimento pelo
futuro indefinido, com a preservação da atual estrutura social iníqua e uma baixa
dinâmica nos processos de inovação e de modernização. Exemplos de lenta decadência
econômica abundam na história mundial e o Brasil certamente não é o primeiro a
enfrentar esse tipo de problema: a Grã-Bretanha (até os anos 1980) e a Argentina (a
partir dos anos 1930), por exemplo, constituem duas evidências inegáveis de longa
decadência e de empobrecimento contínuo de suas populações respectivas. Talvez o
Brasil siga pelo mesmo caminho nos próximos 20 anos, ou mais.
Eu gostaria de acreditar que não. A responsabilidade está com cada um de nós…

66
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cresce 5% ao ano...”, Espaço Acadêmico, Maringá, 6, n. 67, dezembro 2006.
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Revista de Gestão Pública-DF


(Brasília: Escola de Governo do GDF; vol. I, n. 1, julho-dezembro 2007, p. 29-36);
blog Diplomatizzando (23/12/2013; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/12/ainda-sobre-o-nao-crescimento.html).

67
10. Presença da universidade no desenvolvimento: perspectiva
histórica

Brasília, 1741: 2 abril 2007, 5 p.


Via Política (13/05/2007)

Introdução
Ao apresentar algumas reflexões sobre o papel da universidade no
desenvolvimento nacional, quero deixar claro que estou aqui falando essencialmente da
universidade pública.
Os principais problemas da educação e do desenvolvimento nacional estão bem
mais fora do que dentro da universidade pública, que funciona razoavelmente bem para
os padrões falhos dos países em desenvolvimento. Mas, ela funciona cada vez mais mal
para os padrões exigentes do estilo de desenvolvimento interdependente que temos hoje
no âmbito do capitalismo global. Ela é autista, avessa à reforma, à competição e aos
critérios de eficiência e se julga no direito de usufruir de recursos públicos sem prestar a
devida conta à sociedade. Caminha para a decadência, ainda que a passos lentos, aliás,
como o Brasil, em seu conjunto; pior, ela não está atenta a isso.
Tenho nítida consciência de que meus comentários, julgamentos e avaliações,
tanto quanto minhas propostas e sugestões, serão recebidos com ceticismo, quando não
com desconforto, pois que situando-se em posição crítica, ou possuindo espírito
controverso, ao que normalmente se espera de um membro da academia, o que eu não
sou, possuindo, portanto, alguma independência de opinião em relação aos assuntos
interna corporis. Por fim, alerto, preliminarmente, que a maior parte de minhas críticas
e sugestões se dirigem a objetivos fora da universidade – mas aos quais ela não pode
ficar alheia –, uma vez que estamos falando da contribuição da universidade para o
desenvolvimento nacional, não para o seu próprio desenvolvimento.

1. Consulta às origens: a universidade como formadora de mestres


O papel primordial da universidade sempre foi o da formação de mestres e
pesquisadores, algo que no Brasil teve início tardiamente pela formação de quadros de
elite para o Estado, sem que tivessem sido desenvolvidas as atividades formadoras
básicas nos dois ciclos precedentes. Quando a universidade se instalou, ela o fez de
forma superestrutural, cuidando basicamente do terceiro ciclo, sem olhar para os dois

68
ciclos anteriores. Creio que o descomprometimento com os dois ciclos iniciais de estudo
ainda continua a marcar a atitude geral da academia em relação ao problema
educacional brasileiro, em que pese a atuação de alguns dos seus mestres renomados e
atuantes nos diversos processos de reforma do ensino básico. A universidade brasileira
deveria, a meu aviso, voltar bem mais os olhos para a realidade educacional brasileira
como um todo.

2. O alheamento da universidade brasileira de sua função básica


Quer seja no que se refere à formação de quadros para os ciclos precedentes,
quer seja no retorno à sociedade de suas atividades de pesquisa, financiadas com
recursos da sociedade, a universidade brasileira tem deixado a desejar ao longo de sua
existência consolidada. Embora a maior parte dos cursos “científicos” e “tecnológicos”
isolados – que depois vieram a integrar a universidade – tenha se constituído tendo em
vista o provimento de soluções e respostas práticas aos problemas colocados pelo
mundo da agricultura e da indústria, a atenção prioritária da universidade esteve mais
concentrada na própria universidade, não necessariamente numa agenda percebida de
problemas nacionais básicos.
Pode-se argumentar que formação de professores nunca foi pensada como sendo
a função básica da universidade brasileira, mas caberia aí reconhecer um desvio de
origem, não um plano de trabalho que possua legitimidade social. O viés superestrutural
fica mais uma vez evidente. Quanto à pesquisa, parece evidente, igualmente, seu
alheamento do setor produtivo, ao lado de outros comportamentos ainda mais nefastos,
como uma persistente cultura antipatentária e uma renitente, embora decrescente,
postura antimercado.

3. Nem só de big science vive a universidade e nem sempre é disso que precisa o
país
Se pensarmos em três nomes que parecem caracterizar a consciência aguda dos
problemas brasileiros, José Bonifácio, Joaquim Nabuco e Monteiro Lobato, veremos
que suas agendas respectivas de transformação do país – elevação dos padrões da mão-
de-obra, via cessação do tráfico e da escravidão, promoção de uma colonização
comprometida com a qualificação técnica da agricultura e da indústria e melhoria dos
padrões educacionais e de saneamento da maioria da população – foram
superficialmente integradas à agenda de trabalho das universidades. Mesmo intelectuais
69
obcecados com a superação do atraso nacional, como Caio Prado Jr., por exemplo,
tiveram em certa medida de exercer suas atividades à margem ou no alheamento da
universidade.
Todos eles, de certa forma, não estavam pensando em converter o Brasil num
êmulo dos principais países desenvolvidos em suas épocas respectivas, mas apenas em
estabelecer as condições de base pelas quais esses países se tornaram desenvolvidos em
mérito próprio.

4. Back to basics: para evitar o afundamento completo da educação brasileira


A educação brasileira vem sendo “afundada” devido a uma combinação
involuntária de fatores perversos que ultrapassam a capacidade da universidade de
corrigi-los, mas aos quais ela não deveria estar alheia, uma vez que a degradação do
ensino básico vem se refletindo cada vez mais na mediocrização da graduação
universitária, com possível contaminação dos cursos de pós.
Quando a universidade não se posiciona claramente contra deformações
evidentes dos ciclos anteriores, ela contribui para essa deterioração geral dos padrões de
ensino e pesquisa. Ao não reagir claramente contra regimes de cotas, contra a
politização demagógica do primeiro ciclo e a corporativização do segundo – como
refletidos, por exemplo, no ensino obrigatório de estudos afrobrasileiros e de espanhol e
na reserva de mercado abusiva que se pretende dar a sociólogos desempregados e a
filósofos em disponibilidade –, a universidade sanciona a tendência declinante da
educação pré-graduada e com isso compromete a qualidade dos seus próprios cursos.

5. Uma “cadeia de montagem” de professores de português, matemáticas e ciências


básicas
Se por milagre de uma combinação de políticas macroeconômicas virtuosas e de
políticas setoriais focadas em externalidades positivas o Brasil despertasse para um
ciclo de crescimento sustentado, o setor produtivo não poderia contar com quadros
competentes na tarefa de elevar os padrões de produtividade a níveis de excelência. A
carência educacional naquelas áreas que deveriam constituir o núcleo básico do ensino
fundamental e médio é de tal forma gritante que seria impossível não pedir que a
universidade se interesse pelo assunto.
O futuro do Brasil está sendo comprometido pelo “afundamento” dos
fundamentos. Seria relevante que a universidade se interessasse por isto também: língua
70
pátria, raciocínio matemático e conhecimentos científicos elementares fazem parte do
funil vergonhoso que hoje restringe a população universitária a uma fração mínima da
população total.

6. Competência, competição, administração técnica, avaliação independente e


objetiva
A despeito de certos progressos, a universidade pública continua resistindo à
meritocracia, à competição e à eficiência. Ela concede estabilidade no ponto de entrada,
não como retribuição por serviços prestados ao longo do tempo, aferidos de modo
objetivo. Ela premia a dedicação exclusiva, como ela se fosse o critério definidor da
excelência na pesquisa, ou como se ela fosse de fato exclusiva. Ela tende a coibir a
“osmose” com o setor privado, mas parece fechar os olhos à promiscuidade com grupos
político-partidários ou com movimentos ditos sociais. Ela pretende à autonomia
operacional, mas gostaria de dispor de orçamentos elásticos, cujo aprovisionamento
fosse assegurado de maneira automática pelos poderes públicos. Ela aspira à eficiência
na gestão, mas insiste em escolher os seus próprios dirigentes, numa espécie de conluio
democratista que conspira contra a própria ideia de eficiência e de administração por
resultados. Ela diz privilegiar o mérito e a competência individual, mas acaba
deslizando para um socialismo de guilda, quando não resvalando num corporativismo
exacerbado.
Com todos os desvios acumulados ao longo dos anos, a universidade pública
tornou-se parte do problema do desenvolvimento nacional, sem necessariamente
apresentar-se como parte da solução desse problema. O problema básico do país não se
situa na universidade pública, e sim no ciclo universal de ensino, mas ela não tem feito
o suficiente para diagnosticar encaminhá-lo de forma satisfatória. Ela poderia dizer, por
exemplo, que o sistema nacional de ensino requer um pouco menos de pedagogos no
MEC e mais administradores nas escolas, sensatos, dotados de ideias simples como boa
gestão e fixação de metas para os resultados escolares.

7. O estatismo está estrangulando a economia, with a little help from the


university...
Independentemente do fomento à pesquisa, dos fundos setoriais e de todas as
demandas por financiamento público às suas atividades, a universidade possui
entranhado em seu DNA um estatismo secular e renitente, o que seria compreensível em
71
vista o papel cumprido no passado em favor do desenvolvimento nacional pelo Estado
brasileiro, se essa característica não tivesse, hoje, efeitos nefastos sobre o crescimento
econômico.
Vários estudos empíricos já demonstraram a existência de uma correlação
negativa entre os níveis de gastos governamentais e a taxa de crescimento econômico.
As evidências são tão notórias que o tema não merece maiores desenvolvimentos a não
ser a remissão à bibliografia pertinente. Bastaria agregar que a universidade, com as
poucas exceções de alguns departamentos de economia, também tem falhado em
demonstrar que o Estado brasileiro converteu-se de antigo promotor em atual obstrutor,
de fato, do processo de desenvolvimento, aspecto geralmente negligenciado na maior
parte dos estudos acadêmicos.
Das quatro condições gerais que podem facilitar, estimular ou permitir a
manutenção de um ritmo de crescimento sustentado, base inquestionável de um
processo de desenvolvimento econômico e social, com transformação tecnológica e
redistribuição social de seus benefícios – que são, respectivamente, (a) uma
macroeconomia estável; (b) uma microeconomia competitiva; (c) alta qualidade dos
recursos humanos e (d) abertura ao comércio exterior e aos investimentos diretos
estrangeiros –, a universidade pode atuar diretamente no bom desempenho das tarefas
de formação e aperfeiçoamento dos recursos humanos, e secundariamente em todos os
demais fatores. Não me parece que ela o venha fazendo de modo consistente, pelo
menos não no ritmo e com a intensidade desejados.

Nunca é tarde para que a universidade retifique algumas tendências ao autismo


acadêmico e participe de modo mais afirmado dos diagnósticos e soluções aos mais
graves problemas brasileiros de desenvolvimento. Ela já o fez no passado, pelo menos
de modo parcial, e pode certamente voltar a dar sua contribuição na presente fase de
impasses e de lento estrangulamento do processo de crescimento econômico. Esperemos
que ela o faça, para o seu próprio bem...

Diplomatizzando (11/04/2014; link:


http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/04/presenca-da-universidade-no.html).

72
11. O afundamento da educação no Brasil

Brasília, 1726: 18 fevereiro 2007, 6 p.


Via Política (14/07/2008)

É uma obviedade, quase uma tautologia, aos olhos de qualquer pessoa


medianamente bem educada, afirmar-se que a educação constitui um elemento essencial
na qualificação produtiva e na prosperidade de qualquer país, avançado ou em
desenvolvimento. Ela constitui, também, o principal fator de inserção nos mercados de
trabalho, no plano individual, e um elemento chave do perfil distributivo nacional,
quando se considera a repartição social da renda.
Parece haver um acordo tácito na sociedade quanto a isso. Mas esse consenso é
falso. Não existe terreno comum entre duas abordagens opostas quanto ao papel da
educação no processo de desenvolvimento. O Brasil constitui uma prova viva disso. O
desentendimento começa no próprio enunciado das finalidades da educação, tal como
expresso acima. De um lado, um grupo, mais identificado com os próprios educadores,
considera que a educação tem um papel “libertador”, no plano pessoal, e que os
indivíduos têm de ser educados numa visão humanista, acima e além das exigências “do
mercado”, que no mundo capitalista pretenderia apenas, segundo representantes desse
grupo, que a escola seja “produtora” de trabalhadores treinados para as empresas. De
outro lado, pesquisadores identificados com o desempenho adequado do processo
produtivo pretendem, justamente, que a mão-de-obra seja a mais qualificada possível,
não apenas para atender às necessidades das empresas, mas também para melhorar os
níveis de produtividade da economia como um todo, pois isto se traduziria em riqueza
social e prosperidade para o país e para a sua população, com reflexos na distribuição de
renda. Posso estar simplificando a dicotomia, mas ela representa, grosso modo, duas
visões do mundo que parecem contrapor-se na atualidade.
Parece evidente, aos olhos de quem observa a realidade presente no Brasil, que
os rumos da educação no país vêm sendo determinados pelo primeiro grupo, uma
grande comunidade de trabalhadores dos setores público e privado, formada por
burocratas do MEC, por pedagogos de várias afiliações, por professores,
administradores, sindicalistas, pesquisadores ou por simples curiosos, sem contar os
políticos e outros líderes comunitários que “vivem” da educação. Não é tampouco
novidade para ninguém que a qualidade da educação no Brasil vem se deteriorando a
73
olhos vistos nos últimos tempos. Pode ser que não exista nenhuma relação de causa a
efeito entre essas duas realidades, mas o tema é suficientemente grave para merecer
uma reflexão.
Tendo estas realidades em mente, pretendo tratar, neste texto, de alguns
problemas atuais da educação no Brasil, com um enfoque ligeiramente negativo, ou
razoavelmente pessimista como o próprio título deixa sugerir. Isto não deve causar
espanto, uma vez que fazer elogios por algum sucesso não contribui em nada para a
melhoria daquilo que está indo bem, apenas fazem com que os seus responsáveis se
acomodem nas situações estabelecidas, deixando de introduzir as mudanças necessárias
para que um desempenho determinado se dê de maneira ainda mais efetiva (pelo menos,
até que alguma surpresa desagradável desponte no horizonte à frente). Apenas
aprendemos com erros e fracassos, que nos ajudam a corrigir nossas insuficiências mais
gritantes. O que me parece ocorrer atualmente, no caso da educação brasileira, é
justamente um quadro de resignação e de acomodação com os péssimos resultados do
setor, em vários níveis, evidentes em quaisquer tipos de medidas objetivas que possam
ser feitas.
Não pretendo ocupar-me da educação superior, um setor bem conhecido dos
leitores, pois todos eles são pessoas bem informadas, aliás, formadas e graduadas,
razoavelmente conhecedoras da triste realidade pedagógica e da lamentável situação
material que atinge, hoje em dia, a maior parte das IFES, em grande parte por sua
própria incapacidade de reformar-se e de justificar repasses de recursos adicionais por
parte dos poderes públicos. Tenho apenas uma palavra sobre elas, independentemente
de que sejam públicas ou privadas: salvo poucas conhecidas exceções de praxe, a maior
parte dessas instituições caminha rapidamente para uma decadência substantiva, digna
de nota, visível, por exemplo, na disseminação de cursos de pós-graduação e de
extensão, que tentam cobrir a posteriori as lacunas de uma graduação cada vez mais
medíocre.
Pretendo tratar de três aspectos, apenas, que atingem os ciclos fundamental e
médio do ensino básico no Brasil. Três exemplos de desperdício de recursos, de
desorientação quanto aos objetivos fundamentais da escola, de desvio de finalidades
educativas, de equívocos cruciais que podem comprometer ainda mais a qualidade do
ensino e o funcionamento das instituições do ciclo fundamental, por anos e anos à
frente. Esses três aspectos, que poderiam facilmente ser enquadrados naquilo que eu
chamo de “teoria da jabuticaba”, estão consubstanciados, respectivamente, na
74
obrigatoriedade de ensino de temas afrobrasileiros e de espanhol, no ciclo fundamental,
e de filosofia e de sociologia, no médio. Elas foram introduzidas a partir de 2003 e
expressam de maneira fiel a “visão do mundo” a que me referi ao início deste ensaio.
Esclareço que o meu ponto de vista é o dos estudantes.

1) Estudos afrobrasileiros
Considerando-se que a sociedade brasileira é extremamente diversa em sua
composição étnica e em suas manifestações culturais, com intensa osmose entre suas
comunidades imigrantes e um processo crescente de “cross-fertilization” – termo que se
poderia aproximar de “fundição recíproca” –, qualquer tentativa de separar e apresentar
como mais relevante, no plano histórico ou populacional, qualquer um desses
componentes sociais equivale, à falta de melhor conceito, a uma tentativa de construção
de um “apartheid” cultural e social, quando não diretamente racial.
Não encontro outro equivalente funcional para designar essa tentativa mal
concebida, mal inspirada e, sobretudo, terrivelmente mal implementada no sentido de
destacar nossas supostas raízes “africanas” no cadinho multicultural e multirracial
brasileiro. Tendo já tratado em outro ensaio dos problemas acarretados pelo novo
apartheid representado pela ideologia afrobrasileira, não vou aprofundar a discussão de
um problema que ultrapassa de muito a dimensão estrita de sua aplicação nas salas de
aula do primeiro grau. Gostaria apenas de confirmar que vejo essa iniciativa funesta
como uma semente de racismo e de intolerância, gerando possíveis distorções nos
conteúdos curriculares, em função da manipulação anti-histórica que esse infeliz
conceito é suscetível de receber por parte de seus promotores. Sem entrar em suas
especificidades substantivas, é presumível que o conteúdo de tal “disciplina”, num país
dotado de raras pesquisas de boa qualidade sobre a história da África ou seu possível
legado transatlântico, sofra deformações de tal ordem por parte dos encarregados da
matéria que o conteúdo será um arremedo de protesto social, eivado de ideologia
antiescravista, com fortes colorações políticas e tênue embasamento histórico. Imagino
que toda uma mitologia da resistência negra será igualmente servida a descendentes de
colonos europeus, nas escolas do sul do país, sem que estes recebam sequer alguma
informação sobre sua cultura “eurobrasileira”.
Os resultados, obviamente, não poderiam ser mais perniciosos do ponto de vista
da boa formação escolar de crianças que teriam o direito de se considerar apenas
brasileiras, sem outro prefixo falsamente identificador de alguma origem étnica ou
75
geográfica. Não hesito em afirmar que tal iniciativa contribui poderosamente para a
construção do racismo em nosso país.

2) Ensino de espanhol
Outro resultado de um equívoco fundamental – o de que o processo de
integração será necessariamente beneficiado com o estudo obrigatório da língua
espanhola para as crianças do primeiro grau –, essa medida unilateral, sem
reciprocidade nos demais países da região (o português é ignorado nos currículos
nacionais), vem acarretar apenas despesas adicionais sem que se antevejam resultados
práticos, ou sequer “linguísticos”, para o processo de integração. Este já padece de
conhecida tendência à introversão e ao enclausuramento recíproco – quando o correto
seria a abertura ao exterior e a utilização das complementaridades existentes para maior
inserção no processo de globalização – e esse tipo de medida apenas reforça suas
características “hacia adentro”. Como no caso dos estudos brasileiros, ela demandará a
formação improvisada de centenas, ou mais provavelmente milhares, de mestres
supostamente capacitados em “portunhol”, carregando ainda mais um currículo já
penetrado por várias outras inutilidades “disciplinares”.
Supõe-se que um bom ciclo fundamental seja constituído de estudos de boa
qualidade na língua pátria, na matemática elementar, nas ciências naturais fundamentais
e nos estudos sociais básicos (história e geografia), apenas isto. Se alguma outra língua
tiver de ser aprendida, nos primeiros anos de estudo, supõe-se que a escolhida seja a
língua franca da ciência moderna e da globalização, isto é, a que mais usualmente é
utilizada para pesquisa na internet, ou seja, inglês. A obrigatoriedade do espanhol
servirá apenas para desviar recursos humanos e materiais voltados para a formação de
primeiro grau, num país tão carente de ambos. Trata-se de um falso espírito
integracionista e um equívoco educacional de consequências potencialmente danosas
para seus supostos beneficiários. A integração regional, aliás, nunca padeceu de “déficit
linguístico”.

3) Sociologia e filosofia no ciclo médio


A aprovação dessa outra obrigatoriedade pelo Conselho Nacional de Educação,
em 2006, foi saudada pelos sindicatos de professores e pelas associações profissionais
da área como uma indiscutível vitória para a categoria. Pode até ser. O fato é que se
trata de uma indiscutível derrota para os estudantes do ciclo médio, desde que se adote o
76
ponto de vista dos próprios estudantes, é claro. Como isso nunca esteve em causa no
tratamento da matéria, eles, que obviamente nunca foram ouvidos, verão reduzidos os
horários alocados a outras disciplinas fundamentais para a sua formação, para acomodar
as duas novas obrigatoriedades oficiais, que já eram facultativas numa infinidade de
estabelecimentos escolares em todo o Brasil, segundo suas próprias conveniências.
O Brasil, como é sabido, adora criar obrigatoriedades no papel. O mesmo se dá,
por exemplo, no caso da contratação obrigatória de “jornalistas” para qualquer
empreendimento que se possa conceber que trate de “comunicação social”, ademais da
absurda reserva de mercado, sancionada em lei, para toda e qualquer empresa
classificada como de comunicação de massa. O resultado é uma multiplicação de
faculdades medíocres dedicadas à fabricação de canudos para pessoas medianamente
alfabetizadas que encontram um mercado garantido apenas em virtude do
reconhecimento profissional. Não será surpresa, assim, se novos cursos de “sociologia”
e de “filosofia” passarem a ser oferecidos pelas conhecidas “indústrias universitárias”
apenas como resultado do novo mercado cativo introduzido por uma legislação
irracional e dispensável.
Cria-se, assim, uma verdadeira reserva de mercado para sociólogos
desempregados e para filósofos em disponibilidade, a um custo inimaginável para as
secretarias estaduais de educação e para as escolas privadas. Como as carências já
detectadas para professores secundários em física, biologia, matemáticas ou mesmo
português são propriamente astronômicas, imagine-se o que tal medida vai acarretar em
termos de desorganização ainda maior do ciclo médio de ensino. Isso obviamente não
importa para o sindicato dos ideólogos, perdão, sociólogos, que visa apenas garantir a já
referida reserva de mercado para a formação dos jovens secundaristas na perspectiva da
“escola crítica”. Como já imaginamos o que possa haver de “crítico” nessa escola, o
único resultado possível será a extensão do marxismo vulgar que já é ensinado em
outras matérias – como geografia e história, quando não em literatura – para as duas
novas debutantes do ensino médio. Quando digo marxismo vulgar, o sentido é o mais
vulgar possível, pois não conheço mais marxistas universitários ou secundaristas que
verdadeiramente tenham lido Marx-Engels, apenas a vulgata que se transmite em nome
dos dois profetas e seus epígonos. (Parênteses para os que me pretendem acusar de
direitista ou reacionário: como bom marxista, não religioso, eu li Marx e sei exatamente
do que estou falando, e lamento que muitos dos que se pretendem hoje seguidores dessa
ideologia estejam servindo de correias (inúteis?) de transmissão para novas formas de
77
fascismo educacional, baseado numa visão do mundo ultrapassada, justificando
autoritarismos e incentivando confrontos classistas e raciais que já deveriam estar na
lata de lixo da história.)

Numa apreciação geral, surpreende-me que os “planejadores educacionais” –


supondo-se que eles existam neste país e não só trabalhem como tenham voz no MEC –
não tenham avaliado os custos e as dificuldades vinculados às obrigatoriedades para os
ciclos de ensino pertinentes. Pergunto-me se as avaliações catastróficas efetuadas a cada
ano quanto à qualidade do ensino no Brasil – inclusive e principalmente em escala
internacional – não ajudaram ainda os pedagogos oficiais a refletir sobre o que anda
errado no ensino brasileiro e o que poderia ser feito para remediar (já não digo melhorar
radicalmente) esse estado de coisas. É propriamente estarrecedor constatar que, com
tantos problemas já detectados nos módulos mais elementares de educação – vinculados
ao ensino correto da língua, ao domínio da matemática simples e das noções mais
corriqueiras das ciências físicas e naturais –, os responsáveis pelo setor se permitam
ainda fazer novos experimentos com as crianças e os jovens, sobrecarregando os
currículos com excrescências tão terríveis como as mencionadas aqui.
É óbvio que os adeptos dessas “inovações curriculares” julgarão o que estou
dizendo uma demonstração inequívoca de tradicionalismo, de rejeição à integração ou
de aversão ao “espírito multidisciplinar” envolvido nas novas ideologias servidas como
menu obrigatório nas escolas de todo o país. Pode ser. Mas apenas porque eles não se
colocaram do ponto de vista das crianças e jovens, ou do simples ponto de vista do
reforço da qualidade educacional nas disciplinas básicas. Quando pretendem fazê-lo, se
equivocam novamente de objetivos e de métodos, como as duas soluções “milagre” que
vêm sendo aventadas ultimamente: a “inclusão digital”, via laptop de cem dólares, e o
aumento das verbas para educação no orçamento, de 5% para 7% do PIB.
Duas pequenas palavras sobre essas propostas. Computador portátil a cem
dólares – que não será conectado e não custará cem dólares – não é garantia de
qualidade de ensino, cuja base é, como nunca deixou de ser, a boa formação do próprio
corpo docente, algo hoje dificultado pela mentalidade sindical-corporativa da categoria.
A ferramenta – ou seja, o hard do computador – jamais poderá substituir o soft do
conteúdo ministrado em classe. Quanto à maior participação dos gastos com educação
no PIB, ela não é tampouco garantia de melhoria: o Brasil já gasta na média da OCDE,
mas gasta mal e administra de forma errada sua distribuição entre os ciclos.
78
Com essas três “inovações” nos currículos, apenas posso prever novos
retrocessos na qualidade do ensino oficial (público e privado) do Brasil. Em outros
termos, teremos com elas a garantia segura de que o país continuará andando para trás
nos anos à nossa frente. Lamentável que isto ocorra, mas trata-se de uma escolha
consciente dos atuais dirigentes dessa área, na mais completa indiferença da sociedade.
O preço a pagar será certamente alto, em termos de atrasos e novos desvios na formação
de base, na capacitação para o mercado de trabalho e nos ganhos de produtividade para
o sistema econômico do país. De certa forma, esse preço já começou a ser descontado,
sob a forma de desempenhos cada vez mais desastrosos nos exercícios de avaliação.
Infelizmente, não há nada que salve nossas crianças das opções desavisadas dos
adultos...

Revista Espaço Acadêmico (ano VI, nº 70, março 2007);


blog Diplomatizzando (em 28/10/2014: link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/educacao-no-brasil-como-vai-essa-
coisa.html).

79
12. O problema da universidade no Brasil: do público ao privado?

Brasília, 5 outubro 2008, 6 p.


Texto para concurso de redação do Uniceub,
apresentado sob o pseudônimo de Erasmo Brasiliense, sob o título de
“Construindo a universidade de que o Brasil precisa: aqui e agora”.
Revisto e adaptado, publicado em Via Política (15/12/2008)

A título de introdução: dimensionando o problema


O Brasil tem um grave problema educacional. Aliás, ele não tem um, mas
vários, alguns mais dramáticos do que outros. O mais grave problema educacional do
Brasil é o da má qualidade do ensino nos dois primeiros ciclos, deficiência que também
atinge o técnico-profissional. Essas deficiências têm, essencialmente, uma mesma
causa: a má qualificação dos professores, questão que precisa ser resolvida, caso o
Brasil queira se inserir na sociedade do conhecimento.
Qual é o papel das instituições de ensino superior (IES) na resolução desse
grave problema? Aparentemente, elas teriam uma função simples, mas crucial: elas
precisam formar bons formadores. Digo aparentemente porque a sociedade poderia
estabelecer algum outro tipo de arranjo para a formação dos professores: como no
passado, com o curso Normal; mas o Brasil decidiu exigir o terceiro ciclo, isto é, o
curso universitário, para os professores do básico. A questão é que o Brasil também tem
um problema universitário; aliás, não apenas um, mas vários: eles estão tanto nas
universidades públicas (IFES, incluindo estaduais), como nas privadas (IPES).
Infelizmente para o Brasil, as IFES – que são sustentadas pelos impostos de todos os
brasileiros – não parecem estar em condições de resolver este grave problema
educacional: simplesmente, elas não estão formando bons professores.
Este problema tem de ser resolvido por todas as IES, mas ele provavelmente o
será essencialmente pelas IPES. São elas que formarão os educadores de que o Brasil
necessita para se transformar em uma sociedade desenvolvida no espaço de uma
geração. Aqui está o requisito mais importante que separa o Brasil do seu futuro. Este
tem a ver com a construção de um sistema de conhecimento baseado no mérito e na
competição, concentrando os investimentos naquilo que é fundamental, ou seja: a
formação dos formadores. Esta é uma tarefa, talvez a mais nobre, para a universidade
brasileira do momento presente.

81
As universidades públicas no desenvolvimento brasileiro
Os principais problemas da educação e do desenvolvimento nacional estão mais
fora do que dentro das IES brasileiras, que funcionam razoavelmente bem para os
padrões algo falhos dos países em desenvolvimento. Mas elas funcionam mal para os
padrões exigentes do estilo de desenvolvimento interdependente que temos hoje, no
âmbito do capitalismo global. As IFES, por exemplo, são autistas, avessas à reforma, à
competição e aos critérios de eficiência; julgam-se no direito de usufruir os recursos
públicos sem prestar contas à sociedade. Caminham a passos lentos para a decadência,
mas ainda não atentaram para essa realidade.
O papel primordial da universidade é o de formar mestres e pesquisadores, algo
que no Brasil teve início tardiamente pela preparação de quadros de elite para o Estado,
sem que tivessem sido desenvolvidas atividades formadoras básicas nos dois ciclos
precedentes. Quando a universidade se instalou, ela o fez de forma superestrutural,
cuidando basicamente do terceiro ciclo, sem olhar para os dois ciclos anteriores. A
negligência com os dois ciclos iniciais de ensino continua a marcar a atitude da
academia em relação ao problema educacional brasileiro, em que pese a atuação de
alguns dos seus mestres renomados e atuantes nos diversos processos de reforma do
ensino básico. Mas ainda hoje, as IES, em especial as IFES, continuam não se
preocupando com a grave realidade educacional brasileira.
Quer seja na formação de quadros para os ciclos precedentes, quer seja no
retorno à sociedade das atividades de pesquisa financiadas com recursos públicos, as
IFES têm deixado muito a desejar. Embora a maior parte dos cursos científicos e
tecnológicos isolados – que vieram a integrar a universidade – tenha se constituído com
vistas ao provimento de soluções e respostas práticas aos problemas da agricultura e da
indústria, a atenção prioritária das IFES esteve concentrada na própria universidade, não
necessariamente na agenda real dos problemas nacionais.
Pode-se argumentar que formação de professores para o básico nunca foi
pensada como função primordial das IFES; mas cabe reconhecer aí um desvio de
origem, e não um mandato que, historicamente, possua legitimidade social. Aqui, o viés
superestrutural fica bem evidente. Quanto à pesquisa, também parece óbvio o
alheamento das IFES do setor produtivo, ao lado de comportamentos ainda mais
nefastos, como uma persistente cultura antipatentária e uma renitente (embora
decrescente) postura antimercado, mais evidente nas áreas de ciências humanas.

82
De volta ao básico: para evitar o afundamento da educação brasileira
A educação básica vem “afundando” devido a uma combinação involuntária de
fatores perversos que ultrapassam a capacidade das IFES de corrigi-los; mas elas não
deveriam estar alheias a estes, uma vez que a degradação do ensino básico vem se
refletindo cada vez mais na deterioração da qualidade da graduação no terceiro ciclo,
com a possível contaminação dos cursos de pós-graduação.
Quando as IFES deixam de se posicionar em relação aos problemas dos ciclos
anteriores, elas contribuem para a deterioração dos seus próprios padrões de ensino. Ao
não reagir contra deformações existentes nos primeiros ciclos – como refletidas, por
exemplo, no ensino obrigatório de certas matérias, por imposição do alto, contrária à
autonomia curricular que deveria refletir as características regionais de um país vasto e
culturalmente diversificado como o Brasil –, as IFES sancionam a tendência declinante
da educação pré-graduada e, com isso, comprometem a qualidade dos seus próprios
cursos (para nada dizer da politização demagógica dos regimes de cotas). A educação
básica carece, essencialmente, de professores de português, matemáticas e ciências
básicas; e isto as IFES não estão “entregando”.
O futuro do Brasil está ameaçado pelo “afundamento” dos fundamentos. Se o
Brasil empreendesse um ciclo sustentado de crescimento a altas taxas, o setor produtivo
não contaria com quadros competentes na tarefa de elevar seus padrões de
produtividade até níveis de excelência. A carência educacional nas áreas que constituem
o núcleo básico do ensino fundamental e médio é tão gritante que seria impossível não
pedir que as IPES se interessem pelo tema. Seria importante que as IPES se dedicassem
ao que é relevante: o domínio da língua pátria, o raciocínio matemático e
conhecimentos científicos elementares fazem parte do funil perverso que, hoje, restringe
a comunidade universitária a uma fração mínima da população.
A despeito de certos progressos, as IFES continuam resistindo à meritocracia, à
competição e à eficiência. Elas concedem estabilidade, não como retribuição por
serviços prestados ao longo do tempo, aferidos objetivamente, mas diretamente no
ponto de entrada. Elas premiam a dedicação exclusiva, como se este fosse o critério
definidor da excelência na pesquisa, ou como se ela fosse de fato exclusiva. Elas
coíbem a osmose com o setor privado, mas fecham os olhos à promiscuidade com
grupos político-partidários ou com movimentos falsamente sociais. Elas aspiram à
autonomia operacional, mas gostam de orçamentos elásticos, cujo aprovisionamento
tem de ser assegurado de maneira automática pelo poder público. Elas pretendem ter
83
eficiência na gestão, mas insistem em escolher os seus próprios dirigentes, numa
espécie de conluio corporativo que conspira contra a própria idéia de eficiência e de
administração por resultados. Elas dizem querer privilegiar o mérito e a competência
individuais, mas acabam deslizando para um sindicalismo exacerbado.
Com os desvios acumulados ao longo dos anos, as IFES são hoje parte do
problema nacional, sem necessariamente apresentar-se como parte da solução. O
problema básico do país não se situa no ciclo universitário e sim no ciclo universal. Mas
as IFES não têm feito um esforço suficiente para diagnosticá-lo e encaminhá-lo
satisfatoriamente. Aqui entram as IPES e o seu papel de formadoras de formadores.

O que as IPES poderiam fazer para mudar o quadro?


Não obstante seu menor comprometimento com a pesquisa e a produção de
conhecimentos inovadores, comparativamente às IFES, algumas IPES, no contexto de
um vasto universo que compreende muitas instituições que funcionam para fins
essencialmente comerciais, foram apontadas no Índice Geral de Cursos do MEC como
possuidoras de um nível de qualidade que pode ser considerado satisfatório. Os
resultados refletem a qualidade da formação em seus cursos e confirmam os êxitos
alcançados pelos seus egressos nos concursos públicos e no mercado de trabalho em
geral. Trata-se de um cenário positivo, apesar de os desafios serem ainda maiores.
O setor privado oferece, hoje, o maior número de vagas nos ciclos superiores.
Durante muito tempo, as IPES tinham uma oferta tipicamente bacharelesca, para
atender à demanda difusa da sociedade por títulos universitários, mais do que por
qualificação específica e adaptada aos requerimentos do crescimento econômico e do
progresso tecnológico. No período recente, porém, elas passaram a atender as carências
detectadas pelas empresas no que se refere a profissionais capacitados nas áreas
tecnológicas e administrativas.
Esta realidade tende a se tornar crucial para o futuro das IPES: elas precisam
caminhar no sentido de agregar a pesquisa e a extensão às suas carteiras de atividades.
Elas têm de participar plenamente do sistema nacional de ciência e tecnologia,
contribuindo, no nível microeconômico, com os esforços de pesquisa e
desenvolvimento do setor privado. O movimento foi facilitado por iniciativa do MEC,
que regulamentou, em 1996, cursos sequenciais de formação específica, permitidos pela
Lei de Diretrizes e Bases, posteriormente substituídos por cursos de graduação

84
tecnológica. Com dois anos de duração, esses cursos permitem capacitar técnicos de
forma rápida para as empresas em função de sua orientação aplicada a metas.
Mas é necessário, também, que as IPES assumam a liderança na formação de
recursos humanos para a educação básica e tecnológica, com intensa dedicação
simultânea à sua própria qualificação pedagógica. É sabido que no Índice Geral de
Cursos, menos de 5% das IPES foram classificadas no topo da escala, sendo que muitas
delas se situam nas posições mais baixas. Na verdade, esses dados não correspondem à
qualidade intrínseca dos cursos respectivos das IFES e das IPES, pois que, ademais das
metodologia enviesada do sistema de avaliação do MEC, o que se está medindo é mais
a natureza do “insumo” – isto é, a “matéria-prima” estudantil de entrada, toda ela
situada nos estratos A e B para as IFES, e abaixo disso para grande parte das IPES – do
que a qualidade do ensino stricto sensu.
De qualquer forma, as IPES terão de empreender um esforço sério de
qualificação para assumir o papel que poderia ter sido das IFES, mas que estas não
podem ou não querem cumprir: a formação de toda uma geração de formadores
aproximando-se do ideal da excelência pedagógica.
Para alcançar esse ideal, as IPES terão de caminhar no sentido de reforçar a
pesquisa e estimular a publicação do seu corpo docente. Elas poderiam começar por
atender os seguintes critérios de desempenho:

1) Aprofundar o sistema de mérito:


Deve ser um requisito absoluto, tanto para a seleção do corpo docente, quanto para a
avaliação de seu desempenho em sala de aula e nos trabalhos de pesquisa e extensão;
esse mérito será aferido no contexto econômico do mercado de trabalho, isto é, do
atendimento das necessidades das empresas, além do grau de sucesso em concursos
públicos e em processos de seleção variados;

2) Qualidade na formação dos profissionais educadores:


Um mapeamento das necessidades já detectadas confirma que o ensino público
deveria concentrar-se no essencial: o Brasil carece dramaticamente de centenas de
milhares de professores com domínio adequado e satisfatório da língua portuguesa, das
matemáticas e das ciências elementares. As IPES deveriam começar pela valorização
dos formadores desses professores, remunerando-os adequadamente.

85
3) A competição é positiva e deve ser incentivada, em todos os níveis:
O desenvolvimento de competências e habilidades que levem à perspectiva
diferenciada de futuro deve estar baseado na emulação do ambiente real que o
profissional vai encontrar em mercados de trabalho competitivos. A concorrência é
sempre saudável e deve ser estimulada em todo os níveis do sistema de ensino,
superando o igualitarismo nivelador (para baixo) de uma isonomia deformadora.

4) Inserção na comunidade, construindo o sucesso na prosperidade do meio:


A prestação de serviços à sociedade e a integração dos alunos à comunidade por
meio de programas didático-pedagógicos deve partir de um conhecimento preciso das
especialidades detectadas (vantagens comparativas locais) e das possibilidades
oferecidas pelo meio (novas vantagens adquiridas). Ao lado da estrutura curricular
tradicional, deve-se permitir opções adaptadas a nichos de mercado em formação.

5) Combinar a cultura humanística e o espírito da sociedade tecnológica:


Esta consigna deve traduzir-se em equipamentos, pessoal capacitado, assinatura de
bases de dados e de revistas científicas, seleção de dirigentes com base exclusivamente
no desempenho pessoal, aferido de maneira contínua. A avaliação deve ser contínua, em
todos os níveis. Não se deve mimetizar as IFES, que não são nenhum exemplo de
gestão responsável, mas sim empenhar-se em construir uma instituição exemplar, no
contexto de uma gestão focada em metas e resultados. A profissionalização constante
dos quadros administrativos é parte dessa gestão e o aperfeiçoamento regular do pessoal
docente é condição essencial para a construção de uma universidade de excelência.

86
13. Fim de consenso na diplomacia?

Brasília, 1675: 22 outubro 2006, 2 p.


Via Política (30/10/2006)

Um levantamento efetuado com base nas matérias sobre a diplomacia do


governo Lula, publicadas em revistas especializadas e na imprensa diária, revela algo
inédito nos anais da política externa: pela primeira vez, ela deixou de beneficiar-se do
tradicional consenso a que essa diplomacia estava habituada. Com efeito, mesmo em
momentos nos quais a política externa apresentou aspectos de ruptura – como a
“política externa independente” de Jânio-Jango (1961-1964) ou o “pragmatismo
responsável” da dupla Geisel-Azeredo (1974-1979) –, ela recolhia, ainda assim, a
aprovação da opinião pública, que julgava que as inflexões eram necessárias e mesmo
bem-vindas.
Não parece ser o caso agora, quando diversos setores– empresários, jornalistas
de opinião ou mesmo diplomatas aposentados – manifestam-se contra a atual
diplomacia, acusando-a de ser partidária, ideológica e anacrônica. Em contraste, no seio
da esquerda e entre vastos segmentos da universidade ela goza de virtual consenso, o
que não ocorre, por exemplo, com a política econômica, acusada, nesses mesmos meios,
de “neoliberal”. Iniciada sob promessas de mudanças na forma e no estilo, assim como
em sua substância, a política externa de Lula – que guarda conexões evidentes com as
posições de política internacional do PT – vem sendo calorosamente defendida por
simpatizantes na academia e na imprensa, tanto quanto vem sendo atacada, com o
mesmo ardor, por outros analistas.
No primeiro grupo figuram acadêmicos e jornalistas que sempre foram
solidários com o PT, quando não integram seus quadros. Existem também aqueles que,
sem dar apoio direto, encaram positivamente a política externa, naquilo que ela
representaria de defesa dos interesses nacionais, em face, por exemplo, de pressões dos
EUA para favorecer a criação da Alca ou no sentido da adoção de uma posição mais
dura em relação a regimes considerados “desviantes” na América Latina.
O segundo grupo abriga os que se mantêm em postura independente ou que têm
assumido uma atitude crítica em relação a essa política, ademais dos que poderiam ser
classificados como “oposicionistas declarados”. Alguns analistas do meio acadêmico se
opõem à política externa, não por qualquer predisposição oposicionista, mas por julgá-la
87
em seu próprio mérito e concluir que ela rompe tradições diplomáticas. Os mais críticos
julgam que a política externa atual não logra alcançar, ao contrário do que é
proclamado, os objetivos pretendidos, sacrificando posições de princípio e os interesses
nacionais.
Os “apoiadores benevolentes” consideram a política externa de Lula adequada e
necessária ao Brasil, que deveria ser capaz de afirmar-se de forma soberana nos
contextos regional e mundial, possuir um projeto nacional de desenvolvimento e buscar
reduzir o arbítrio e o unilateralismo ainda presentes no cenário internacional. Trata-se
de um grupo expressivo, tendo em vista a conhecida dominação da academia pelo
pensamento de esquerda, pelo menos na área das humanidades.
Os opositores declarados, por sua vez, consideram essa política uma emanação
tardia do terceiro-mundismo dos anos 1960-80, exacerbada pela adesão equivocada a
regimes autoritários e marcada por um anti-imperialismo infantil. Eles criticam a
retórica “terceiro-mundista”, contrariamente a uma atitude proativa em favor da
globalização que seria seguida, aliás, pela China e pela Índia, os dois “parceiros
estratégicos”. As iniciativas “mudancistas” representariam ilusões de mudança nas
“relações de força” ou da “geografia comercial” do mundo e os fracassos nas
negociações comerciais adviriam do próprio estilo de atuação, chamado por alguns de
“ativismo inconsequente”.
O governo investiu na nova postura, representada pela multiplicação de
iniciativas nas mais diversas frentes de atuação, daí a caracterização de “ativa e altiva”
dada pelo chanceler à nova diplomacia. A postura foi bem acolhida nas bases do
governo e recolheu apoio dos aliados, ao passo que os críticos preconizam o abandono
dos “velhos mitos”. À medida que reveses foram sendo registrados em algumas frentes
de atuação, como nas relações com os vizinhos, a condescendência com as “novas
roupas” da diplomacia foi dando lugar a críticas cada vez mais acerbas quanto a seus
resultados efetivos.
Os elementos inovadores da política externa do governo Lula não deveriam,
talvez, ser buscados no seu discurso e na atuação diplomática, mas sim no próprio fato
de que, pela primeira vez na história da diplomacia brasileira, a palavra e a prática nesse
campo já não recolhem o consenso da sociedade.

Publicado no jornal O Estado do Paraná


(Curitiba, sexta-feira, 27/10/2006, Opinião, p. 4)

88
Segunda Parte

O mundo e seus problemas

89
14. O Brasil no Índice dos Estados falidos

Brasília, 1597: 6 maio 2006, 6 p.


Via Política (25/05/2006)

A revista Foreign Policy e The Fund for Peace (dos EUA) passaram a divulgar,
a partir de 2005, um índice de “estados falidos”, ou seja, dos países incapazes de se
manterem dentro da normalidade política, econômica ou social. Esse índice foi
elaborado a partir de doze critérios sociais, econômicos, políticos e militares,
ponderados em função de um sofisticado modelo quantitativo desenvolvido pelo Fund
for Peace (ver a metodologia neste link: http://fundforpeace.org/fsi/).
No plano mundial, os países que encabeçam o ranking dos Estados falidos são o
Sudão, a República Democrática do Congo (antigo Zaire), a Costa do Marfim (que
antigamente preferia ser chamada pelo seu nome francês de Côte d’Ivoire), o Iraque e o
Zimbábue. Uma seleção desse estudo, restrita aos países latino-americanos foi
elaborada pelo boletim espanhol Red Electronica de Relaciones Internacionales, (link:
http://diplomatizando.blogspot.com/2006/05/403-indice-de-estados-falidos.html).
Em geral, os países latino-americanos melhoraram sua situação em relação à
primeira edição do estudo (em 2005), “descendo” algumas posições no ranking geral
dos Estados falidos. Podem ser destacados os progressos do Brasil (que saiu do número
62 para o 101, ou seja, bem mais distante de uma eventual “falência”), a Venezuela, a
República Dominicana, o Peru, Honduras e o Paraguai. Os países mais mal
posicionados são o Haiti (em primeiro lugar no ranking latino-americano e 8º no
mundo), a Colômbia e a mesma República Dominicana (que, ainda assim, saiu da 19ª
posição para a 48ª).
Neste momento, pretendo apenas examinar, não a posição relativa do Brasil, que
não é de todo má (já que ele melhorou sua posição no ranking), mas seu
posicionamento em relação aos indicadores qualitativos específicos que permitiram
construir o índice sintético. Estes comentários preliminares possuem, portanto, uma
validade meramente metodológica e visam discutir a adequação dos indicadores
selecionados pelo Fundo para a Paz à real situação do Brasil. Os doze critérios
utilizados pelo Fundo para a compilação dos índices individuais dos países são os
seguintes:

91
Indicadores Sociais
1. Pressões demográficas crescentes
2. Movimento massivo de refugiados ou pessoas internamente deslocadas criando
emergências humanitárias complexas
3. Legado de desejo de vingança – Injustiça ou paranoia grupal
4. Fuga crônica e sustentada de pessoas
Indicadores Econômicos
5. Desenvolvimento econômico desigual entre grupos sociais
6. Declínio econômico acentuado ou severo
Indicadores Políticos
7. Criminalização e/ou deslegitimização do Estado
8. Deterioração progressiva dos serviços públicos
9. Suspensão ou aplicação arbitrária das normas legais e violações generalizadas dos
direitos humanos
10. Aparelho de segurança operando enquanto “Estado dentro do Estado”
11. Ascensão de elites facciosas
12. Intervenção de outros Estados ou de atores políticos externos

Pois bem, em face desses critérios, vejamos como o Brasil – cuja posição
absoluta é a de número 101, à frente da maioria dos demais países latino-americanos,
inclusive do México, mas abaixo dos países do Cone Sul, com destaque para o Chile
(que possui uma melhor pontuação do que países desenvolvidos como França, Espanha,
Estados Unidos ou Grã-Bretanha) – se situa em relação aos indicadores analíticos, cuja
importância relativa, por ordem negativa, está aqui enfatizada:

Brasil: posição geral no índice de Estados falidos do Fund for Peace: 101
Composição da pontuação, em função de valores decrescentemente negativos:
Ordem – Número do Indicador – Descrição – Pontuação sobre dez pontos possíveis
1) 5: Desenvolvimento econômico desigual entre grupos sociais: 8.5
2) 8: Deterioração progressiva dos serviços públicos: 6.7
3) 1: Pressões demográficas crescentes: 6.5
4) 10: Aparelho de segurança, enquanto “Estado dentro do Estado”: 5.7
5) 3: Legado de vingança – Procurando injustiças grupais: 5.7
6) 7: Criminalização ou deslegitimização do Estado: 5.5
7) 9: Violações generalizadas dos direitos humanos: 5.3
8) 4: Fuga crônica e sustentada de pessoas: 5
9) 12: Intervenção de outros Estados ou de atores externos: 4.7
10) 2: Movimentos maciços de refugiados ou de pessoas deslocadas: 3.6
11) 11: Ascensão de elites facciosas: 3.2
12) 6: Declínio econômico acentuado ou severo: 2.7
Soma geral: 63.1

Reconhecendo que formulo meus comentários sem qualquer base empírica ou


quantitativa mais desenvolvida, eu teria as seguintes observações qualitativas – e que
são impressionistas, portanto – a fazer com respeito a cada um dos critérios, na ordem
em que eles foram colocados.
92
1) Estou totalmente de acordo em que a característica básica do Brasil,
atualmente e desde sempre, é a sua, mais do que desigual, iníqua distribuição de renda,
com um índice de concentração de renda (coeficiente de Gini) que é quase o dobro da
média mundial. Não creio, porém, que esse fator, tomado isoladamente, possa constituir
um critério de Estado “falido”. Sem ser especialmente cínico, pode-se simplesmente
observar que um Estado, mesmo mantendo uma desigualdade social absoluta, pode
ostentar, sob outros critérios, um desempenho econômico “fabuloso”, com crescimento
geral da renda para todos os estratos sociais, ainda que proporcionalmente mais
elevados para os grupos sociais de maior renda. Esse país, portanto, exibiria um
“terrível” índice de concentração de renda, mas um progresso econômico e social
constante, mesmo desigual. Esta não é, obviamente, a situação do Brasil, mas algo do
gênero ocorreu durante os anos 1970, gerando a famosa controvérsia sobre a
concentração de renda, real, mas relativamente “desimportante” em face dos progressos
observados em todos os grupos sociais. Ou seja, mais importante do que a desigualdade,
para aferir a situação mais ou menos “falimentar” de qualquer Estado, é a sua condição
econômica de estar ou não em crescimento. A China, por exemplo, é o país que mais
cresce no planeta, e também é o que ostenta a mais rápida expansão das desigualdades
distributivas entre estratos sociais, o que pode ser lamentado, em bases éticas, mas não
elimina o fato de que todos os estratos estão conhecendo uma melhoria absoluta na sua
renda nominal.
Em todo caso, um “rankeamento” dos países segundo esse critério colocaria o
Brasil num desconfortável 28º lugar, logo atrás da Turquia e um pouco abaixo da
Libéria e da Sierra Leoa, mas distante da China, que ocupa agora um terrível terceiro
lugar de uma lista que começa com a Guiné-Bissau e segue com o Sudão; a Nigéria
ocupa o 10º lugar da lista, seguida por Angola. Trata-se de uma lista chocante, sem
dúvida, inclusive porque ela traduz sobretudo miséria absoluta na maior parte dos
países, o que não parece ser o caso nem do Brasil, nem da China.
2) Nada a opor em que a “deterioração progressiva dos serviços públicos” é
visível e constante no Brasil, sendo parte da incapacidade gerencial do atual Estado
brasileiro. A julgar pelos crescentes problemas fiscais, essa deterioração tende a se
acentuar nos próximos anos.
3) Não considero, em absoluto, que “pressões demográficas crescentes” sejam
um problema para o Brasil atual, e só posso explicar essa colocação em terceira posição
por um viés deliberadamente “anti-natalidade” dos organizadores do índice. Existe, sim,
93
um problema “demográfico” nas camadas sociais mais pobres, com um crescente
número de mães solteiras ou adolescentes nas favelas das grandes metrópoles e taxas de
natalidade ainda relativamente elevadas em certas zonas rurais. Mas não penso que este
seja o maior problema de saúde pública do Brasil, ainda que ele seja dramaticamente
importante para explicar o “estacionamento” na miséria de muitos contingentes de
pobres urbanos e rurais.
4) Sem dúvida que o “aparelho de segurança”, ou seja, o fato de existirem vários
“estados dentro do Estado brasileiro”, constitui uma terrível mazela social e política do
Brasil contemporâneo, com órgãos policiais contaminados pela corrupção e muitos
agentes mesclados a facções criminosas nas favelas e subúrbios e nas penitenciárias.
5) Esse problema do “legado de vingança” não me parece ter, no Brasil, a
importância que ele ostenta em outros países, uma vez que os homicídios, sem dúvida
alarmantes, nas favelas e periferias têm mais a ver com o crime organizado recrutando
agentes em caráter individual, do que com retaliações entre grupos sociais.
6) Esta “criminalização ou deslegitimização do Estado” se apoia em critérios
algo subjetivos, sendo difícil considerar que exista, no Brasil, um divórcio entre os
cidadãos e o Estado. A despeito de toda a corrupção política, as pessoas continuam
acreditando no Estado como “fonte” de benesses sociais (emprego, alocações, apoio
financeiro em obras assistenciais), e não me parece que estamos perto da
“deslegitimização” alegada.
7) Não cabe aqui a menor dúvida: “violações generalizadas dos direitos
humanos” constituem um dos problemas mais recorrentes do nosso panorama social, e
elas se dão por aspectos até prosaicos de denegação de justiça e por serviços públicos
falhos, justamente.
8) A “fuga crônica e sustentada de pessoas” me parece mais bem direcionada
para países mais prósperos, e não uma fuga em total desespero, como pode ser o caso
em vários outros países. Eu tenderia, assim, a minimizar esse fator, a despeito mesmo
do enorme contingente de “refugiados econômicos” brasileiros em países
desenvolvidos.
9) Não atribuo qualquer sentido material, no caso brasileiro, à “intervenção de
outros Estados ou de atores externos”, fator que me parece superdimensionado no
ranking para o Brasil. O Brasil certamente não é um Estado geopoliticamente
fragilizado e suas forças armadas, ainda que subequipadas, constituem fator suficiente
de dissuasão.
94
10) Tampouco consigo ver no critério “movimentos maciços de refugiados ou de
pessoas deslocadas” qualquer peso significativo para os brasileiros, uma vez que nosso
país vem acolhendo ou já acolheu refugiados de guerras externas (Colômbia, Angola),
ou ainda refugiados econômicos dos países vizinhos, mas não fornece qualquer
contingente “exportável” de nacionais nesse tipo de situação.
11) A “ascensão de elites facciosas” pode de fato constituir-se em problema de
segurança pública não desprezível, a continuarem os altos índices de criminalidade nos
centros urbanos e nas próprias penitenciárias brasileiras, que parecem constituir-se em
verdadeiras centrais do crime organizado.
12) O fator “declínio econômico acentuado ou severo” deveria ter, a meu juízo,
um peso muito mais relevante, ainda que mascarado, no caso brasileiro, pelo
crescimento de alguns setores econômicos em função da demanda externa. Minha
impressão é a de que o Brasil é um país totalmente preparado para não crescer, pelo
futuro previsível.

Em conclusão, se eu tivesse de ordenar os fatores relevantes de uma situação


“falimentar” brasileira, retendo os mesmos critérios que os dos organizadores do estudo
sobre os “Estados falidos”, esta seria a minha escolha, totalmente subjetiva, por certo:

Brasil: pontuação pessoal como possível indicador de Estado falido “potencial”:


Classificação, em função de critérios decrescentemente negativos (observações PRA):
1) Declínio econômico acentuado ou severo (pouco visível atualmente, mas crescente)
2) Deterioração progressiva dos serviços público (visível e preocupante)
3) Violações generalizadas dos direitos humanos (dramático, mas a classe média não
vê)
4) Aparelho de segurança, enquanto “Estado dentro do Estado” (sorry, periferia)
5) Ascensão de elites facciosas (problema das grandes penitenciárias, mas
extravasando)
6) Desenvolvimento econômico desigual entre grupos sociais (iníquo, mas corrigível)
7) Criminalização ou deslegitimização do Estado (a começar pelos “negócios” políticos)
8) Fuga crônica e sustentada de pessoas (apenas emigração econômica, basicamente)
9) Pressões demográficas crescentes (localizada nas faixas mais pobres da população)
10) Legado de vingança – Procurando injustiças grupais (subúrbios e favelas)
11) Movimentos maciços de refugiados ou de pessoas deslocadas (para dentro, apenas)
12) Intervenção de outros Estados ou de atores externos (fator totalmente marginal)

No entanto, o melhor a fazer, a meu ver, seria tentar construir um indicador de


“falência” válido para o Brasil, no qual um critério como o de corrupção nos negócios
públicos, por exemplo, fosse considerado como possuindo maior incidência relativa do
que o registrado no índice em causa, no qual ele parece estar diluído na
95
“deslegitimização do Estado”. No que se refere aos indicadores propriamente
econômicos, eu tenderia a “ver” no horizonte a ameaça crescente do declínio
econômico, uma possibilidade já presente, ao passo que reduziria para totalmente
marginal, ao ponto de praticamente inexistente, os fatores de ameaça externa. Remeto,
em particular, a meu artigo “Colapso!: prevendo a decadência econômica brasileira”,
Espaço Acadêmico (ano V, n. 60, maio 2006).
Em todo caso, um estudo como esse, rico em sugestões, convida naturalmente a
novos desenvolvimentos e pesquisas nos planos metodológico, conceitual e substantivo.
Sociólogos do Brasil, incito-vos ao estudo do nosso estado “pré-falimentar”...

Postado no blog Diplomatizando em 7/05/2006, link:


http://diplomatizando.blogspot.com/2006/05/404-brasil-estado-pr-
falimentar.html#links.

96
15. América do Sul: rumo à desintegração política e à fragmentação
econômica?

Brasília, 1612: 28 maio 2006, 8 p.


Comentários na mesa-redonda “América do Sul: entre a integração e a fragmentação”,
organizada conjuntamente pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais-CEBRI,
pela Rede Latino-Americana de Comércio-LATN, pelo Centro de Estudos de Integração
e Desenvolvimento-CINDES e pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior-
FUNCEX (Rio de Janeiro, CEBRI, dia 2 de junho), no Painel 1: A dimensão política.
Via Política (10/06/2006)

1. A integração é uma hipótese, mas a fragmentação é um fato


A América Latina – e, dentro dela, a América do Sul – tem vivido, desde a
remota época bolivariana, sob a mística da integração política e, desde meados dos anos
1950, pelo menos, sob o signo da integração econômica. Paradoxalmente, quando mais
e mais líderes da região proclamam sua vocação a perseguirem tais ideais, ela parece
estar vivendo uma realidade antinômica ao que poderia expressar o conceito de
integração. Ela, na verdade, aproxima-se do que poderia ser chamado de fragmentação.
O conceito de integração – eminentemente positivo e propositivo de uma nova
realidade de cooperação irrestrita e de construção de economias sólidas e sociedades
mais inclusivas – talvez seja inadequado para traduzir a presente conjuntura da América
do Sul, na qual, a despeito da retórica integracionista, as tendências fortes indicam, na
verdade, forças centrífugas em marcha em diversos países. As realidades são
divergentes porque as lideranças políticas e seus respectivos projetos nacionais são
muito diversos, o que revela a existência de projetos políticos – ou até a ausência deles
– bastante diferentes e, possivelmente, contraditórios entre si.
O conceito de fragmentação, por sua vez, traduz não apenas uma realidade
econômica, mas, também e principalmente, uma tendência política e social com fortes
conotações internas, isto é, domésticas e regionais. A despeito de certo crescimento nos
fluxos de comércio e de investimentos dentro da própria região – talvez bem mais uma
recuperação de níveis passados –, a despeito mesmo do aparecimento de um projeto de
união política dos países do continente – a Casa –, parece claro que cada país vem
procurando resolver problemas econômicos e sociais imediatos com soluções ad hoc,
definidas internamente e com respostas tipicamente nacionais, nem sempre coincidentes
com a lógica do esforço integracionista no plano político ou econômico. Esse conceito
me parece, portanto, totalmente adequado à presente realidade sul-americana.
97
Estariam, então, os países da América do Sul a caminho da sua desintegração
política e da fragmentação econômica? Em parte sim, por razões objetivas, derivadas de
insucessos econômicos acumulados e de frustrações sociais continuadas. Mas, em parte
não, em virtude das aspirações míticas a uma aparente e ilusória unidade de propósitos e
uma pretensa comunidade de intenções. A despeito, assim, de projetos integracionistas
grandiosos – e a Casa não representa senão uma nova aposta no mesmo ideal mítico –, a
verdade é que os países caminham para esquemas políticos e econômicos que procuram
responder a necessidades do momento e a conveniências políticas nacionais, mesmo se
são inevitáveis pressões no sentido contrário, isto é, aquelas de natureza centrípeta, que
são exercidas pelas forças da globalização e da interdependência econômica.
Em todo caso, o panorama é suficientemente confuso para justificar uma análise
que deixe de lado os esquemas generalizadores e unificadores, que redundariam, por
exemplo, em identificar pretensas tendências globais para o continente, e privilegie, em
lugar disso, análises mais focadas nas realidades nacionais, com situações únicas a cada
caso. Mesmo neste caso, alguns analistas da própria região – Castañeda, por exemplo –
pretendem visualizar dois modelos de desenvolvimento político, ambos focados nas
novas forças políticas de esquerda que estão se firmando no continente: de um lado,
uma esquerda moderna, reformista, capitalista e democrática – que seria a do Chile,
Uruguai, Brasil e, em parte, a Argentina – e, de outro, a velha esquerda que insiste nos
chavões anti-imperialistas, nas mesmas receitas nacionalizantes e estatizantes, que
possui nítidos traços autoritários e cesaristas, esta claramente identificada com Chávez e
seus pupilos regionais, até aqui basicamente limitados a Evo Morales (uma vez que
mesmo Ollanta Humala, do Peru, Daniel Ortega, da Nicarágua, e Manuel López
Obrador, do México, aparentam recusar a companhia). Não creio que a bipartição de
Castañeda seja correta em seus próprios termos: trata-se de um recurso jornalístico ou
ensaístico, que prefere tornar absolutas determinadas situações, num sentido
maniqueísta, mas o fato é que existem tantas “esquerdas”, no continente, quanto são
diversas as “direitas”, e isso em função de dinâmicas políticas nacionais. Vejamos,
rapidamente, algumas das tendências políticas no plano regional.

2. Evolução do cenário político na América do Sul, dos anos 1980 a 2006


O que caracteriza, antes de tudo, as últimas duas décadas e meia no cenário
político regional, é a erosão e talvez mesmo a esclerose irremediável das forças políticas
tradicionais nos diversos países da região. Antigos partidos conservadores, de extração
98
liberal ou claramente conservadora, vem sendo submetidos a fortes pressões
competitivas, quando não são alijados do poder, por novas forças políticas ou por
movimentos sociais que nem sempre assumem as características de partidos políticos,
no sentido usual da palavra. O fato é que os partidos tradicionais estão em declínio.
O progresso relativo a ser registrado parece ter sido o afastamento dos militares,
enquanto corporação, dos negócios da política, ainda que militares tenham continuado a
participar, enquanto indivíduos, do jogo político. O atraso registrado, tangível e real, foi
a incapacidade política das lideranças tradicionais dos sistemas políticos nacionais de
continuar na via das reformas econômicas, políticas e sociais iniciadas a partir da crise
da dívida do início dos anos 1980, que também serviu para reconduzir a região ao
caminho da redemocratização política, reformas que pudessem viabilizar um novo
processo de crescimento sustentado.
Com a notável exceção do Chile e, parcialmente, do México – sem mencionar a
Costa Rica e o Brasil –, a maior parte dos países não conseguiu consolidar sólidas
estruturas políticas democráticas comprometidas com o processo de reformas,
incorrendo quase todos eles em graves problemas de legitimação das estruturas políticas
tradicionais, que acabaram sendo parcialmente substituídas ou, mesmo, totalmente
suplantadas por novos desafiantes saídos de fora do sistema político tradicional.
Um panorama geral da região, em especial nos países andinos – à exceção do
Chile, como referido –, indica que os partidos políticos tradicionais entraram em crise.
Dominados que estavam por velhas oligarquias que não souberam responder aos anseios
das massas urbanas e rurais, seus mecanismos tradicionais de dominação passaram a ser
contestados. Em alguns países, a instabilidade política atingiu níveis traumáticos, com
manifestações maciças, ameaças de golpe, queda de presidentes e ruptura dos canais
normais de transição política e de sucessão de chefes de Estado.
O Chile e a Argentina puderam conservar seus partidos tradicionais, mas com a
emergência de novas lideranças políticas, da mesma forma que o Brasil, que realizou
uma bem sucedida transição para a normalidade democrática, sem que fossem, no
entanto, colocadas as bases de um novo modelo de crescimento econômico com divisão
equitativa de seus frutos. No Brasil, o quadro político é suficientemente confuso neste
momento (junho 2006) para fazer prognósticos sobre as forças políticas que emergirão a
partir do próximo escrutínio eleitoral (outubro de 2006). O que é certo é que o governo
do PT conseguiu desmantelar o que restava de credibilidade política das instituições
públicas, fragmentando lideranças partidárias e envolvendo toda a classe política numa
99
teia de corrupção que vai deixar marcas profundas nos próximos anos. O Brasil
caminha, aliás, qualquer que seja o resultado da eleição presidencial de outubro, para
sérios problemas de governabilidade estatal e de governança política a partir de 2007.
Nenhum presidente disporá de maioria clara no Congresso e os mecanismos de
funcionamento do Congresso deixaram de operar em condições normais.
Além disso, a despeito do crescente consenso social e político em torno das
bases essenciais da estabilização macroeconômica, a sociedade brasileira ainda não
realizou esforço equivalente para completar o ciclo de reformas e retomar o caminho do
crescimento sustentado. Nenhuma força política importante propõe a volta aos padrões
insustentáveis de irresponsabilidade fiscal e monetária que marcaram o Brasil até o
início dos anos 1990, mas tampouco há consenso sobre como continuar e completar a
série de reformas políticas e econômicas. Meus prognósticos, na vertente econômica,
são propriamente pessimistas, com tendências ao baixo crescimento pelos anos à frente.
Nos demais países, o quadro é propriamente desolador, e mesmo a Argentina
conheceu os efeitos da desestruturação das lideranças políticas tradicionais, sem chegar,
no entanto, à exacerbação de paixões e de movimentos destrutivos que caracterizaram
vários países andinos nos últimos anos. Por incrível que pareça, o partido justicialista,
ou seja, o movimento peronista tradicional ainda continua influente naquele país: trata-
se, sem dúvida, de caso único na história da humanidade, um líder político que
conseguiu sequestrar todo um país, inclusive a sua inteligência, durante mais de meio
século. Claro, o peronismo, durante os últimos sessenta anos, teve várias encarnações:
foi primeiro fascista, depois socialista moderado (mas assistindo a lutas terríveis entre
suas facções de esquerda e de direita), veio a ser neoliberal com Menem, e hoje se
descobre simplesmente nacionalista e populista, como sempre foi, aliás.
Os países andinos, por sua vez, em especial aqueles marcadamente indígenas –
Bolívia, Peru e Equador – aproximam-se de certo modo do padrão de “estados falidos”,
ainda que possam ter conhecido fases de crescimento e reestruturação econômica. As
crises políticas que abalaram esses países, inclusive a Venezuela, constituem exemplos
de incapacidade das elites em realizar a transição das antigas sociedades oligárquicas
para democracias inclusivas de massa, o que nem sempre é fácil, reconheça-se. Todos
eles, com particularidades para o caso da Colômbia, enfrentaram surtos prolongados de
violência, instabilidade política, anomia social e fragmentação do tecido social, com
várias ameaças latentes de ruptura institucional ainda hoje.

100
O caso da Colômbia é um tanto diverso, na medida em que esse país representa
um dos exemplos “bem sucedidos” de dominação oligárquica com incorporação gradual
de setores médios, o que pode ter evitado os exemplos sensíveis de deterioração social e
política observada nos demais países, nos quais a componente indígena era mais viva.
Ainda assim, sua elite tampouco conseguiu evitar a transformação da luta política em
guerra civil, hoje transformada em banditismo puro, com a narco-guerrilha e a indústria
dos sequestros. Na Venezuela, país que conta com uma bem sucedida experiência de
mistura racial, a crise política foi praticamente criada pela “maldição do petróleo”, já
que esta fonte abundante de recursos fáceis criou uma sociedade rentista, na qual os
ricos e os líderes políticos simplesmente se encarregaram de “organizar” a dilapidação
dos recursos nacionais, em lugar de criar uma sociedade “normal”, baseada em outras
fontes de receitas do que unicamente a renda petrolífera. A decadência moral das velhas
lideranças políticas chegou a tal ponto que o país “regrediu” para a solução ilusória da
liderança cesarista-distributivista-populista. Ganhou um fascismo leniente, como brinde.

Finalmente, o Chile, parece conformar a única experiência sul-americana de


crescimento em bases sólidas, com desenvolvimento moderado de novas oportunidades
sociais. Mas, isso só foi possível depois de duas décadas de traumas políticos e sociais
como resultado da funesta experiência do “socialismo legal” de Allende e da brutal
ditadura que se lhe seguiu. Não se pense que os militares introduziram de imediato os
Chicago boys e produziram crescimento e estabilidade nos preços desde os primeiros
anos da ditadura. Passaram por diversas disfunções e uma grave crise bancária antes de
consolidar um modelo econômico conforme ao instrumental básico da mainstream
economics – com algumas adaptações – e uma adequação satisfatória ao que prega o
famoso “consenso de Washington” (algo que a Argentina nunca fez, ao contrário do que
vulgarmente se alega). As lideranças políticas chilenas pós-ditadura foram sábias o
bastante para preservar o essencial do modelo econômico construído ao longo da
transição. O Chile é, provavelmente, um dos poucos países no mundo que realiza
superávit nominal há muitos anos. Direita e esquerda aprenderam a conviver em bons
termos – apesar de rancores passados – e a eventual alternância para a direita em algum
momento do futuro não implicaria, provavelmente, em mudança do modelo.

Feito esse giro pela política da região, vejamos agora a “integração”, na prática.

101
3. Esforços integracionistas e de coordenação política
Depois de décadas de esforços integracionistas uniformemente multilateralistas,
mas “hacia adentro”, a América Latina adentrou em iniciativas mais limitadas, de cunho
sub-regional. O México, depois da crise de 1982, procurou seu caminho liberalizador
próprio e encerrou décadas de lutas contra sua própria geografia para tentar, por uma
vez, render-se ao charme pouco discreto do grande irmão do Norte. Pode-se dizer que
foi relativamente bem sucedido na empreitada, pois conseguiu consolidar um acesso ao
mercado norte-americano através do Nafta e teria conseguido um canal seguro para
“exportar” regularmente seu excedente demográfico se não fosse pelo 11 de setembro.
Em todo caso, uniu seu destino, para o bem e para o mal, ao dos EUA, mas continua
perseguindo outros esquemas livre-cambistas, dentro e fora da região.
Na América do Sul, os resultados da sub-regionalização foram contraditórios,
parar dizer o mínimo. O Chile escolheu a via da “multilateralização” do livre-comércio
e permanece consistentemente nesse itinerário, mesmo de forma unilateral. Quanto aos
demais, houve sucessos e fracassos. O Pacto Andino, que primeiro tinha perseguido um
modelo “europeu” de integração, e definido a panóplia completa de “políticas comuns”
e instrumentos institucionais para a integração – inclusive um Tribunal –, não conseguiu
sequer completar a sua união aduaneira, ficando bem atrás do Mercosul, que logrou
relativo sucesso nos seus primeiros quatro (transição) ou nove anos (depois de formar a
união aduaneira) de vida. O comércio se expandiu, assim como as trocas com o resto do
mundo, mas a introversão econômica habitual das suas economias e as muitas exceções
feitas à zona de livre-comércio e à própria união aduaneira abriram espaços para as
resistências setoriais ao acabamento do que seria um mercado comum embrionário.
Não foi por falta de instituições que o Mercosul deixou de se consolidar, como
alegado por juristas e outros neófitos do processo, mas sim por uma infeliz combinação
de circunstâncias conjunturais e de fatores estruturais, que acabaram se constituindo em
poderosos obstáculos à implementação completa do Tratado de Assunção. Os processos
domésticos de estabilização econômica foram divergentes entre si – caso dos regimes
cambiais da Argentina e do Brasil – e agravados pelas crises financeiras dos anos 1990,
ao passo que as assimetrias existentes entre os países não puderam ser vencidas por
esforços próprios de reconversão ou de adaptação às novas condições de concorrência.
De fato, depois de implementada a TEC, nunca mais houve esforços adicionais
de liberalização comercial ou de abertura econômica, mas ao contrário, um rol completo
de medidas protelatórias ou protecionistas, seguidas de constantes promessas de “mais
102
Mercosul” para vencer as deficiências constatadas do processo. Das poucas iniciativas
de liberalização comercial surgidas, nenhuma partiu do Mercosul ou de algum dos
países membros, mas sim de parceiros externos, como os EUA – no caso da Alca – ou a
UE – no caso do acordo bi-regional.
O México e o Chile foram os mais consistentes liberalizadores “hacia adentro” e
“hacia afuera”, ao passo que o Mercosul parecia se fechar numa visão introvertida do
processo. Os demais países – e mesmo alguns dentro do Mercosul – procuraram o que
lhe parecia a melhor promessa de ampliação de mercados: o dos EUA, que perseguiram
sua estratégia minilateralista de forma sistemática, isolando o Mercosul em direção da
Antártida, como tinha prometido o ex-USTR Robert Zoellick.
Quando o Brasil, tardiamente em relação à primeira reunião promovida por FHC
em 2000, decidiu completar a Alcsa – a zona de livre-comércio sul-americana, proposta
em 1993 pelo chanceler Amorim – mediante o esquema político da Comunidade Sul-
Americana de Nações (e seu estranho acrônimo), as condições já não eram propícias
para assegurar uma mesma visão estratégica do processo. Vários países se desgarraram
do ideal integracionista, seja por interesse em resultados mais tangíveis de curto prazo –
na direção do império – seja por problemas políticos internos. Registre-se, também, que
a iniciativa brasileira veio no bojo de uma autoproclamada (e por isso inconveniente)
“liderança regional”, reforçando sentimentos de desconfiança dos vizinhos, inclusive
porque não vinha secundada pelos meios materiais ou políticos para o seu exercício. A
Casa pode dificultar, em lugar de ajudar, a promoção da integração física do continente.
O fato é que o Mercosul mergulhou na crise desde 1999 e nunca mais saiu dela,
mesmo se o comércio voltou a crescer nos últimos anos entre os dois maiores membros,
à luz da recuperação argentina da crise de 2001. Mas, salvaguardas abusivas e déficit de
internalização de normas contribuem para restringir as potencialidades de um bloco que
constitui metade da economia do continente. Mesmo a recente decisão pela adesão
“plena” da Venezuela não deve produzir resultados significativos antes de muitos anos,
em virtude de prazos de transição que obedecem em grande medida a acordos aladianos
pouco ambiciosos (sem mencionar o risco de politização ainda maior do Mercosul).
Se já não bastassem os inúmeros problemas comerciais, a nova administração
brasileira decidiu, ao dar início a seus esforços de “revitalização” do Mercosul, que os
aspectos comerciais seriam secundários em relação a outros objetivos, políticos ou de
ordem social, e que estes deveriam passar a sustentar o processo. Por fim, mas não
menos importante, a concepção originalíssima do líder venezuelano sobre o que deve
103
ser a integração torna todo o exercício – seja da Casa, seja do reforço do Mercosul – o
equivalente de uma aventura política de alto risco.
Observe-se que a Alba pode até ser movida a petrodólares durante algum tempo
mais – e certamente Mister Chávez está sendo beneficiado pela tendência irrefreável ao
aumento nos preços do óleo cru –, mas ela não parece constituir uma alternativa válida
de integração econômica para o continente, uma vez que pretende ignorar as regras mais
elementares da economia. Ou seja, pode-se comprar alguns países durante algum tempo,
mas não parece ser fácil comprar todos os países durante todo o tempo.

4. Um continente a caminho da “mafialização?


O chanceler Celso Amorim costuma repetir que o destino da América do Sul
tem de ser o da integração e que ela deve fazê-lo pela via positiva da cooperação
política e do comércio, ou será forçosamente integrada pela via perversa do crime
organizado e do narcotráfico. Pode-se retrucar, a esta promessa de um futuro sombrio,
que ela já se realizou, pois a integração de grupos criminosos – tráfico de drogas, de
armas, diversas formas de lavagem de dinheiro, ademais da contaminação dos corpos
político e policial – já é um dado comum na paisagem regional. Não deveria haver
nenhuma dúvida quanto a isso: a América Latina, de modo geral, é uma região a
caminho da “mafialização”, mesmo sem as tradicionais famílias baseadas na omertà.
Aspecto ainda mais patético da “involução” que se observa nos costumes e no
“mores” político local é o apelo recorrente a soluções do passado para enfrentar os
problemas do presente: o velho apelo ao nacionalismo epidérmico, a denúncia infantil
da exploração imperialista e o recurso a esquemas estatizantes que já demonstraram ser
ineficientes em mais de uma ocasião. Mais preocupante é o estilo autoritário que líderes
políticos estão imprimindo a suas campanhas eleitorais ou às administrações em curso,
com notável destaque, mais uma vez, para o coronel bolivariano. Para o desconforto da
esquerda, o anti-imperialismo também se apresenta em sua modalidade fascista.

Se considerarmos que a América Latina já é, de todas as regiões do mundo, a de


menor crescimento relativo – perdendo, agora, inclusive para a África – e que os países
da América do Sul continuam a perseguir estratégias nacionais de crescimento ou de
inserção internacional, chegaremos inevitavelmente à conclusão de que as perspectivas
para a integração política ou econômica na região são no mínimo limitadas, em que pese
a retórica integracionista ascendente.
104
Pode até ser que meu pessimismo não seja justificado em bases reais, mas como
diz um velho ditado, os pessimistas nunca correm o risco de serem desagradavelmente
surpreendidos pela realidade que um dia desaba à sua frente.

Divulgado no blog Diplomatizando (link:


http://diplomatizando.blogspot.com/2006/06/456-desintegrao-sul-
americana.html#links).
Republicado no boletim Carta Internacional (São Paulo: Nupri-USP; vol. 1, n. 2, julho
2006, ISSN: 1413-0904; p. 6-10).

105
16. O papel dos BRICs na economia mundial

Brasília, 1691: 26 novembro 2006, 5 p.


Na origem, entrevista concedida ao jornalista Lourival Sant’Ana,
do jornal O Estado de São Paulo, no Rio de Janeiro, em 9 de novembro
de 2006, publicado na edição d’O Estado de São Paulo em 04/12/2006,
caderno Economia, pág. B7, sob o título “O Bric é só um exercício
intelectual”, e objeto de editorial do jornal em 5/12/2006, sob o título
“Atraso made in Brazil”.
Via Política (26/11/2006)

Os BRICs
Muito se tem falado sobre os BRICs, um suposto grupo de países emergentes
dinâmicos, composto pelo Brasil, Rússia, Índia e China, com perspectivas relevantes na
futura economia mundial. Em vista, porém, das baixas taxas de crescimento econômico
do Brasil, vários jornalistas têm retirado o Brasil desse grupo, convertendo-o em RICs,
apenas.
A verdade, entretanto, é que esse BRIC não existe. Trata-se de uma construção
arbitrária, que não se sustenta em nenhum arranjo político-diplomático, em nenhuma
configuração efetiva internacional. É um exercício puramente intelectual de um banco
de investimentos, o Goldman Sachs, que criou essa figura, sem justificativa em si, a não
ser pelo peso específico de cada um desses países.
Com efeito, na maior parte do tempo, os supostos BRICs não interagem entre si,
não atuam de forma coordenada para fins desse exercício feito pelo banco, que é a
emergência econômica, como massa atômica específica, de cada um desses países na
economia mundial. Ou seja, eles terão inevitavelmente um grande peso, inclusive o
Brasil, que é pouco dinâmico, mas cada um por sua própria conta.
A rigor, há também a Indonésia, que está um pouco diminuída hoje, mas que vai
voltar a crescer e emergir, não apenas na região da Ásia Pacífico. Há ainda a África do
Sul, o México, todos grandes países que, somados à China, à Índia e ao Brasil,
conformariam um G-11 ou G-13 da economia mundial.
Isso é relevante, em termos de coordenação da agenda econômica mundial, mas
não há nenhum exercício político-diplomático de coordenação entre BRICs, ou RICs.
Cada um tem uma forma específica de inserção na economia mundial. Cada um tem
interesses nacionais, que não são necessariamente divergentes, mas não são
coincidentes.
106
Não existe, sobretudo, para fins de qualquer classificação diplomática com
respeito ao possível alinhamento desses BRICs na política mundial, uma natural
identificação dos supostos integrantes desse grupo com os demais países em
desenvolvimento ou com alguma diplomacia do Sul. Para todos os efeitos de inserção
na economia mundial, a Rússia, a Índia e a China fazem parte do hemisfério norte,
assim como, do ponto de vista estritamente político, a Rússia integra plenamente as
estruturas de dominação e controle típicos dos países do hemisfério norte.
A Rússia é relevante por seu poderio atômico. Não foi incorporada ao G-7 por
ser uma economia de mercado, o que obviamente ela não era, mas porque poderia
causar problemas. Ela não faz parte do G-7 econômico, mas do G-8 político, que adota
resoluções um pouco inócuas. A Rússia não conta economicamente, a não ser por sua
energia. Como ela é importante no equilíbrio geopolítico asiático e europeu e no plano
energético mundial, ela faz parte desses esquemas de coordenação. Mas o processo de
reformas internas deve ser intensificado para que ela possa ser plenamente incorporada
à OMC e à OCDE.
Tampouco existe, para fins de comércio internacional, um realinhamento radical
dos fluxos, ainda que seja previsível e até natural um crescimento mais intenso dos
intercâmbios entre os próprios países do Sul. A “nova geografia comercial”, que se
anuncia como relevante para o Sul, na verdade já existe: são os emergentes asiáticos
exportando para o Norte desenvolvido – Estados Unidos e Europa – ou para outros
países em desenvolvimento de sua própria esfera geográfica, como é o caso da China e
sua imensa esfera de intercâmbios na própria Ásia Pacífico.

A China e a Índia
Para todos os efeitos imagináveis, o destino econômico da China está
intimamente ligado ao dos Estados Unidos. Os americanos dependem da transferência
de recursos asiáticos para continuar sustentando a sua avidez de consumo. A China
depende enormemente da capacidade comercial deficitária americana, ou seja, que os
Estados Unidos continuem comprando dela. Do catálogo do Wal Mart, 80% ou mais é
chinês ou pode ser feito na China.
A China exerce hoje um papel deflacionista extremamente importante na
economia mundial. Assim como a Inglaterra no século 19 ofereceu mercadorias baratas
a todo o mundo, a China desempenha hoje esse papel. É importante porque permite que
mesmo os trabalhadores desempregados pela concorrência chinesa nos mercados de
107
manufaturados da Europa e dos EUA continuem a consumir produtos, a partir de suas
bonificações-desemprego, que de outra forma não estaria ao seu alcance, se fossem
fabricados aos preços da Europa e dos EUA.
A Índia também está intimamente integrada aos Estados Unidos, pelas redes de
engenheiros, pelos seus executivos que trabalham na Califórnia ou na Costa Leste, que
vão alimentar a nova economia da inteligência e do conhecimento. A China é
basicamente um laboratório, um ateliê ou uma fábrica. A Índia é basicamente um
escritório de concepção e desenho. Os indianos desenham aquilo que lhes foi
encomendado desde o Vale do Silício, podendo inclusive agregar algo mais.
Mas o que é desenhado na Califórnia também o é por engenheiros indianos. Há
uma simbiose completa entre concepção e desenho americano, ou ocidental, e a nova
Índia, que está emergindo paulatinamente e vai ser uma potência em software e em
conhecimento também.
Trata-se, obviamente, de uma “pequena Índia”, pois se está falando da
incorporação de uma parte apenas da imensa população da Índia na economia de
mercado. A exclusão social da maior parte dos indianos dessa economia dinâmica pode
até representar algum fator de pressão interna contra as reformas e uma maior inserção
na globalização, mas esse é um fator interno que tem de ser resolvido na política
indiana. O fato é que a Índia vai continuar com milhões de miseráveis durante muito
tempo, assim como a China.
O que esse dois países já fizeram, em termos de crescimento econômico, é
propriamente extraordinário. A China tirou 200 ou 300 milhões de camponeses de uma
miséria abjeta para uma pobreza aceitável, e os transformou em operários. A Índia
também tirou algumas centenas de milhares de pessoas da miséria. Mas a miséria
indiana ainda é monumental, e vai continuar pelas décadas futuras. Mas isso não
importa para a economia mundial, e sim os grandes fluxos transnacionais de comércio,
bens, serviços.
Os analistas ocidentais e, sobretudo, os políticos americanos argumentam que,
no caso da China, isso foi obtido ao custo de um câmbio artificialmente baixo e de
salários baixos, até para o poder de compra chinês. Entretanto, esses são fatores
conjunturais. A China tem uma boa manipulação de sua política econômica, inclusive
para efeitos cambiais e comerciais. Tem uma boa manipulação da sua agenda financeira
– reservas, investimentos externos. Mas tudo isso é superestrutura, é espuma.

108
O mais importante, todavia, é o papel da China como produtora de bens
correntes no mundo globalizado. Para fazer isso, ela simplesmente se inseriu na divisão
internacional do trabalho. Quando acabou o socialismo, no fim dos anos 80, o impacto
da incorporação dos ex-socialistas na economia mundial não foi muito grande, porque
esses países eram pouco competitivos - tinham uma participação ridícula no comércio
de bens e de tecnologia internacional - e inexistentes no plano financeiro. O impacto
econômico da inserção do ex-bloco socialista no PIB mundial foi de 10% ou 15%, se
tanto. Agora, o impacto da incorporação do exército industrial de reserva ex-socialista
na divisão mundial do trabalho provavelmente supera um quarto da mão-de-obra total
do mundo.
Tudo isso é muito relevante no plano da alocação de investimentos para fins de
produção, montagem de produtos, enfim, tudo o que requer mão-de-obra. A China,
também, em algum momento, vai ficar um pouco cara, e aí outros países vão ser
incorporados. No que se refere ao setor industrial, a China manterá a sua preeminência
mundial nas próximas décadas.
De certa forma, ela está repetindo a história japonesa de copiar para depois criar.
Mas, não se trata de equiparar a China a um novo Japão. A história é sempre diferente.
A China produz mais engenheiros do que qualquer país do mundo. Quem produz
patentes, inovação tecnológica, são engenheiros. A China vai construir um poder
econômico nos seus próprios termos, que não necessariamente vai se dar no vácuo ou na
decadência ocidental, e sim em extrema osmose com o Ocidente.
As teses de hegemonias, declínios e substituição de impérios não são muito
válidas hoje, porque não se tem mais uma economia baseada apenas nas matérias-
primas ou na força bruta das máquinas. Como a economia é do conhecimento, tudo isso
tende a se disseminar. Quem está perdendo, na verdade, são os operários americanos e
ocidentais. Mas as empresas ocidentais vão continuar tão fortes quanto antes, inclusive
utilizando mão-de-obra chinesa, claro, para o que for necessário.

E o Brasil nesse processo?


O Brasil vai continuar sendo um grande fornecedor de commodities, o que é
bom, e um grande fornecedor de energias renováveis, o que é excelente. Mas o Brasil é
hoje, reconhecidamente, um país de lento crescimento, a despeito de ser um país
moderno.

109
O fato é que todos os nossos problemas são made in Brazil. Nenhum deles tem
algo a ver com a globalização. Nada do que é externo é estratégico para os problemas
brasileiros atuais. São deficiências próprias: previdenciárias, educacionais,
organizacionais, corrupção, gastos públicos. A globalização até ajudaria na tarefa de
reforma. Mas como o Brasil é um pouco avestruz, introvertido, recusa a competição
externa e novos acordos comerciais com países desenvolvidos, sua indução à reforma
vai ser bem mais lenta. Tanto o Mercosul como os acordos hemisféricos são menos
importantes para o Brasil, enquanto acesso a mercados, do que enquanto estabilização
econômica e indução à reforma, à competição e à inovação. Como o Brasil continua
relativamente introvertido, o processo de reformas vai ser muito lento. Não é que não
haja consenso entre as elites quanto a uma agenda de reformas. Não há sequer
consciência de que a reforma é necessária, nos planos tributário, fiscal e educacional.
Na globalização, o papel da educação é extremamente relevante. Com a baixa
qualidade atual do seu ensino fundamental, o Brasil simplesmente não pode pensar em
se inserir na economia mundial de forma competitiva. Achamos que nossos problemas
econômicos são graves, por causa da falta de uma agenda de reformas. No plano
educacional, é pior do que possamos imaginar, e tendente à deterioração. A situação é
muito pior do que as estatísticas revelam. Não é apenas do ponto de vista organizacional
e de investimentos, mas no plano mental, de preparação dos professores. Temos
enormes problemas pela frente, que não serão resolvidos facilmente.
Não se deve ser muito otimista quanto às possibilidades do Brasil de concorrer
numa economia globalizada, na medida em que sua situação educacional é pavorosa. O
Brasil não está preparado para capacitar a mão-de-obra, no plano puramente industrial,
nem para enfrentar as exigências da modernidade, da inovação tecnológica. No plano
científico, existe muita capacidade: os cientistas brasileiros são tão bons ou até melhores
que os estrangeiros. Mas a vinculação do sistema científico com o tecnológico é muito
precária. Não há um sistema inovador autogerado. É tudo muito induzido pelo Estado.
O Estado brasileiro deixou de ser uma solução e passou a ser um problema
enorme. Um estudo com países da OCDE para o período 1960 a 1996 mostra que o
ritmo de crescimento está correlacionado à carga fiscal. Países com carga fiscal de até
25% do PIB tiveram crescimento anual de 6,6%; aqueles com carga fiscal superior a
60% do PIB, de apenas 1,6%. Isso ocorre porque simplesmente não existem recursos
para o investimento. A despoupança estatal é um fator extremamente negativo. E, no

110
plano tributário, a incidência sobre o lucro e o trabalho é fator de desemprego,
informalidade e não-crescimento.
Pode-se mencionar aqui o caso da Irlanda. Trata-se de um país que saiu do perfil
europeu típico de alta imposição fiscal e enveredou pelo caminho da eficiência, da baixa
tributação sobre os lucros e sobre o trabalho. Em menos de uma geração, em
aproximadamente 17 anos, ela saltou de metade da renda per capita européia para acima
da média. A China impressiona porque é grande. Mas a Irlanda, em termos de
transformação estrutural, é um caso único na história econômica mundial.
O Brasil poderia parar de olhar tanto para a China e para a Índia e verificar o que
fizeram, por exemplo, Irlanda e Chile, em termos de reforma econômica e inserção no
processo de globalização. Para todos os efeitos, não importa muito o tamanho dos
países e sim a qualidade de suas políticas econômicas.

Para maiores esclarecimentos quanto à natureza dessas políticas econômicas,


remeto a meu artigo “Uma verdade inconveniente (ou sobre a impossibilidade de o
Brasil crescer 5% ao ano)”.

Postado no blog Diplomatizzando


(28/05/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/05/os-brics-antes-de-
existirem-os-brics.html).

111
17. Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos

Brasília, 1708: 3 janeiro 2007, 10 p.


Via Política (dividido em onze artigos, de 12/01/2007 a 25/03/2007)

Os militantes do Fórum Social Mundial já começaram a preparar o próximo


conclave anual do movimento. Esse encontro está marcado para a capital do Quênia,
Nairobi, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. As organizações participantes do FSM –
nem todas as que gostariam de ser podem sê-lo, pois todas precisam concordar com a
plataforma antiglobalizadora da qual elas se orgulham, o que significa que não se
admitem discordâncias e desvios do “pensamento único” que defendem – elaboraram,
em 2006, um conjunto de objetivos gerais que expressam, presumivelmente, a visão do
mundo de seus militantes, quando não sua filosofia de vida.
Pretendo, no presente texto, transcrever esses nove objetivos gerais, tais como
expressos no site do FSM, e tecer, em seguida, comentários pessoais sobre cada um
deles, agregando a cada vez argumentos de natureza conceitual e histórica sobre o que
me parece correto e o que considero serem equívocos dos “ideólogos” desse movimento
(“ideólogos”, aqui, no bom sentido da palavra, isto é, como produtores de ideias). Faço-
o num puro espírito de debate intelectual, que geralmente ocorre de modo unilateral,
pois raramente tenho encontrado antiglobalizadores que aceitem debater suas “ideias”.
Não importa. Vejamos simplesmente o que eles têm a dizer.
Cito, do site e de mensagem recebida em 2 de janeiro de 2007:

“Veja a seguir a lista completa dos nove objetivos gerais, que foram definidos a partir
de consulta realizada entre junho e agosto de 2006 sobre ações, campanhas e lutas
em que estão envolvidas as organizações participantes do FSM:
1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades
diversas;
2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro;
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza;
4. Pela democratização do conhecimento e da informação;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de todas as
formas de discriminação;
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, especialmente os
direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e trabalho digno;
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e
nos direitos dos povos;
8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade;

112
9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições com a
participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos públicos.”
Fonte: Reunião do Conselho Internacional do FSM, em Parma, Itália, 10-12 de outubro
de 2006.

Comentários sobre os objetivos do FSM:


Meus comentários serão puramente de natureza sociológica ou econômica, uma
vez que a maior parte dos objetivos dos integrantes do FSM tem a ver com a
organização social, política e econômica no plano mundial e com as formas de serem
encaminhados alguns dos problemas com que se debate a humanidade, em especial a
pobreza, a desigualdade, os desequilíbrios ambientais, sociais e de gênero, com seu
cortejo de injustiças a serem remediadas. Acredito que a maior parte dos integrantes do
FSM seja formada por jovens idealistas, efetivamente preocupados com os problemas
que eles dizem pretender combater, embora uma parte significativa dos que poderiam
ser identificados como dirigentes, os seus “ideólogos” – aqui no sentido marxista da
palavra –, ostente uma nítida postura anticapitalista e antimercado que não pode ser
negligenciada.

1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas


espiritualidades diversas
Irreprocháveis e irretocáveis os três primeiros objetivos, embora o último, o de
serem respeitadas as “espiritualidades diversas”, se parece muito com o chamado
“relativismo cultural”, um conceito que passou a infestar as universidades ocidentais e
as sociedades cristãs no período recente. Ou seja, em nome do respeito ao direito dos
povos serem como eles são, pode-se acabar sendo conivente com os piores atentados à
dignidade humana que se possa conceber. Refiro-me, concretamente, ao tratamento da
mulher e das jovens adolescentes em determinadas sociedades africanas e asiáticas, nas
quais não apenas se pratica a ablação do clitóris como se costuma entregá-las
compulsoriamente, segundo conveniências familiares, a homens bem mais velhos, em
casamentos arranjados (em alguns casos quando elas ainda nem se tornaram
adolescentes). Sem mencionar a discriminação educacional e profissional, de modo
geral, que elimina as mulheres de uma série de atividades produtivas nessas sociedades,
caberia lembrar que o que distingue o progresso humano – ou civilizatório – é
justamente o tratamento dado à mulher.

113
Ora, falar em relativismo cultural representa, em determinadas circunstâncias,
preservar as piores formas de opressão e de violação dos direitos humanos, culturais e
até religiosos (uma vez que essas mesmas sociedades convivem com formas
condenáveis de intolerância religiosa), sem que se possa avançar, por exemplo, a causa
da universalidade e da indivisibilidade desses mesmos direitos humanos (individuais ou
coletivos). De resto, o respeito às “espiritualidades diversas” é bem mais praticado nas
sociedades ocidentais do que nessas sociedades implicadas nas formas mencionadas de
discriminação, sem que se levante, contra elas, o mesmo princípio do “relativismo
cultural” (uma vez que o que as caracteriza, justamente, é um absolutismo a toda prova
na afirmação de suas particularidades espirituais e culturais). Em resumo, a defesa da
ética pode não combinar com o respeito de “espiritualidades” que ofendem a dignidade
humana.

2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro


Incompreensível, impraticável ou simplesmente quimérico, para não dizer
totalmente irracional, na sua forma e na substância. O modo de produção capitalista,
que se disseminou em todo o mundo nos últimos cinco séculos, aproximadamente, está
justamente baseado numa forma de organização social da produção que tem nas
empresas – eventualmente convertidas em grandes conglomerados – o seu principal
vetor de inovação produtiva, de distribuição de produtos e de propagação de hábitos de
consumo que derivam diretamente da atividade dessas instituições de mercado. Ainda
que as formas individuais de criação de conhecimento e de tecnologia possam
representar uma parte significativa do engenho humano aplicado produtivamente, ainda
que as empresas cooperativas – que certamente são defendidas pelos militantes do FSM
– possam ser um tipo de empreendimento socialmente recomendável, nenhuma pessoa
sã de espírito negaria o fato de que, hoje em dia, parte significativa das inovações e dos
sistemas produtivos se dão num contexto dominado por grandes empresas, as
multinacionais aparentemente vilipendiadas pelos militantes do FSM.
Não considerando o fato de que eles também pertencem, atualmente, a um
grande empreendimento multinacional – que, de certa forma, também apresenta o seu
lado financeiro (do contrário eles não poderiam realizar seus vistosos encontros em
capitais “alternativas”) –, esses militantes parecem viver num universo paralelo, que não
tem nada a ver com o mundo real. Para esse tipo de objetivo ser cumprido, eu só teria
uma única recomendação a fazer: os militantes do FSM precisariam parar,
114
imediatamente, de usar celulares, de se comunicar por internet, de se locomover pelos
meios habituais de transporte, de ir ao cinema, de ver televisão, enfim, parar de fazer a
maior parte das coisas que eles fazem no seu dia-a-dia, uma vez que, inevitavelmente,
eles estão “patrocinando” uma ou outra multinacional de algum setor qualquer de
atividade. Ou seja, eles deveriam se retirar do mundo globalizado – no qual eles
parecem se inserir tão bem – e se refugiar como eremitas nas montanhas do
Afeganistão, onde a globalização aparentemente ainda não penetrou (nem, aliás, o tal de
“capital financeiro”).
Como esse objetivo deve ter sido inculcado nos jovens idealistas que freqüentam
os foros da antiglobalização por velhos militantes da causa socialista, deve-se alertar
esses jovens que eles estão embarcando numa causa perdida antecipadamente. O mundo
não será “libertado” das vis multinacionais porque, simplesmente, não existe força
humana, sequer coletiva, capaz de realizar tal tarefa impossível. Sugiro, simplesmente,
borrar completamente esse objetivo da lista do FSM.

3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da


natureza
Simples e elogiável, dito assim, de modo generoso e não utilitarista; ou difícil de
ser realizado na prática, se olharmos mais de perto cada um desses conceitos. “Acesso
universal” significa que todas as sociedades possam ser colocadas num mesmo patamar
de consumo e de dispêndio de energia. Algo difícil de ser realizado efetivamente, em
vista das diferentes dotações de fatores naturais e dos diferentes níveis de produtividade
do trabalho humano. O “acesso” é o resultado de certa capacitação técnica – que pode
ser inerente ou importada, mas aqui isso depende de meios adequados – no atendimento
das necessidades humanas, triviais e não triviais, o que as sociedades conhecidas ainda
não conseguiram assegurar de modo igualitário mesmo depois de cinco mil anos – ou
mais – de civilização material. Infelizmente esse acesso é desigual, a despeito, mesmo,
da disseminação quase universal das técnicas mais elementares de cultivo, de
saneamento básico e de produção de alimentos: a privação ainda é um traço muito
comum em pelo menos metade da população do planeta em pleno segundo milênio da
chamada era comum. Esse acesso desigual não resulta, como gostariam de acreditar
alguns simplistas do pensamento socialista, da exploração colonial ou da dominação
imperialista, mas sim dos diferenciais de produtividade do trabalho humano, o que
depende basicamente de educação ou, simplesmente, de capacitação técnica.
115
Acesso “sustentável” significa que os sistemas produtivos nacionais não
destruam os recursos naturais, além da capacidade de reprodução ou de manejo do meio
ambiente, o que justamente não é assegurado nas sociedades dotadas de baixa
produtividade. Trata-se de um circulo vicioso, no qual a pobreza amplia a destruição
dos recursos existentes. A elevação dos padrões produtivos, em geral vinculada à
inovação trazida por grandes empresas (às quais se opõem os militantes do FSM), pode
contribuir para diminuir o grau de “insustentabilidade” dos processos produtivos
“rústicos”. Desse ponto de vista, os militantes do FSM deveriam patrocinar ativamente
essa elevação a padrões sustentáveis de produção, por quaisquer meios disponíveis, o
que implicaria, em princípio, a aprovação da “penetração” das multinacionais nos
sistemas produtivos nacionais, algo aparentemente inaceitável aos seus olhos.
Finalmente, o conceito de “bens comuns” está associado a dois elementos cada
vez mais presentes em nossas vidas: por um lado, os grandes espaços naturais (ainda)
não delimitados politicamente por soberanias exclusivas, o que inclui oceanos,
atmosfera e o meio ambiente, de modo geral, mas também o chamado estoque
acumulado de conhecimento humano, o que inclui as descobertas, a produção científica,
os saberes e as artes, que podem constituir patrimônio comum da humanidade; por outro
lado, aumentam progressivamente os bens culturais colocados voluntariamente à
disposição do público, conhecidos pela sigla “cc”, os creative commons, ou “coletivos”,
no lugar dos direitos proprietários, vinculados ao copyright. Não existe, a priori,
nenhuma objeção técnica a que essa apropriação de “bens comuns” se faça de modo
mais amplo, mas no plano prático isso depende de meios de “delivery” – ou seja,
internet, computadores e logística, de modo geral –, que sempre apresentam custos que
devem ser assumidos por alguém (a coletividade ou instituições privadas, que não
costumam trabalhar de modo gracioso). Talvez os militantes do FSM pudesse começar
contribuindo para essa causa colocando “em comum” as suas discussões e foros, hoje
restritos apenas aos que concordam com suas posições e políticas.

4. Pela democratização do conhecimento e da informação


Este objetivo tem muito a ver com o anterior e, como ele, depende da
disseminação das informações – o que depende, mais uma vez, de meios técnicos de
acesso – e da disponibilidade dos conhecimentos. Os conhecimentos que resultam de
descobertas e da produção científica estão prática e livremente disponíveis, de modo
direto e imediato, nas bases de dados abertos colocados na internet. Existe, porém, uma
116
outra parte do conhecimento, com aplicações diretas no sistema produtivo – que é
tecnologia ou know-how –, que exige grandes investimentos para sua elaboração, sendo
geralmente protegida por regimes proprietários (patentes e outros títulos).
Supõe-se, portanto, que por “democratização” os militantes do FSM queiram
dizer, de modo direto, o maior acesso possível, não necessariamente de modo gratuito,
mas eventualmente por via do mercado, a instituição humana – não inventada – mais
eficiente que já se descobriu para alocar recursos e fatores produtivos e para distribuir
bens e serviços (inclusive informação). Pode-se propor, mais uma vez, que os militantes
do FSM comecem democratizando a informação e o conhecimento de que já dispõem,
criando escolas para formação básica em disciplinas elementares para aquela parte da
humanidade hoje excluída dos sistemas formais de ensino.

5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de


todas as formas de discriminação
Nada, absolutamente nada, a objetar, a não ser o mesmo tipo de argumento
implícito ao primeiro objetivo, que consiste na proclamação praticamente universal de
direitos e garantias individuais, sem um mínimo de perspectiva crítica quanto à
diversidade “estrutural” existente no mundo. As desigualdades remanescentes – ou
melhor, existentes, de fato – entre os homens (entre os gêneros, sobretudo) e as
sociedades não são, apenas, produto da vontade dos homens e das sociedades, mas
resultam de causas estruturais muito lentas a se implantarem e ainda mais lentas a se
dissolverem. Esse objetivo está implícito a um dos grandes objetivos do milênio, tal
como definido pela conferência da ONU para sua redução até 2015; mas ele será,
provavelmente, o de mais difícil erradicação da face da Terra, em especial naqueles
territórios e sociedades pouco afetados pelo processo de globalização, o mais poderoso
indutor de modernização econômica e social que se conhece na história da humanidade.
Pena que os militantes e as organizações do FSM sejam tão acidamente contrários a este
processo, em nome da preservação, justamente, da diversidade dos povos, esquecendo,
talvez, que essa “diversidade” é muitas vezes produtora de discriminações que têm suas
raízes em costumes ancestrais que caberia extirpar, em nome, por exemplo, da
dignidade da mulher.

117
6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais,
especialmente os direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e
trabalho digno
Mais uma vez, nada a objetar, a não ser, igualmente, o fato de que esses
“direitos” têm de ser “produzidos” de alguma forma, o que coloca novamente na agenda
dos militantes do FSM a difícil questão de nos explicar a origem da “cornucópia”
fantástica que vai “garantir” esses bens de modo semiautomático. Em geral há uma
tendência, nesses meios, a considerar que basta determinar que os Estados sejam
organizados de forma a “prover” o acesso de toda a população a esses direitos básicos,
independentemente do seu modo efetivo de provimento, para que isso ocorra, como que
por fiat divino. É o que Marx e Engels chamavam de “socialismo utópico”.
Trata-se de uma carência lamentável na “economia política” desses movimentos,
uma vez que eles estão sempre invocando o slogan mágico de que “um outro mundo é
possível”, sem jamais, porém, avançar os rudimentos, que seja, desse mundo
alternativo. Dele não se conhecem seus contornos arquitetônicos, sua localização no
tempo ou no espaço e, mais importante, suas engrenagens essenciais, ou seja, seu modo
de funcionamento interno. A não ser que ele funcione por moto perpétuo, como no
velho sonho dos reformistas utópicos, não existe nenhuma maneira factível (conhecida
dos economistas, em todo caso) que seja capaz de assegurar o livre provimento desses
bens de maneira ampla e indiscriminada, a não ser distribuindo os custos e as penas do
processo produtivo por toda a sociedade. Como o Estado, em si, não produz
absolutamente nada – a não ser, obviamente, déficit público – e como tudo o que ele
recolhe sob forma de recursos teve de ser previamente produzido pelos agentes
econômicos (que são os trabalhadores e seus patrões), supõe-se que os militantes do
FSM já tenham pensado em modos alternativos de “dar” ao Estado o poder mágico de
dispensar favores sem custo para a sociedade.
Curiosamente, pelo que se conhece da experiência histórica – dos últimos 150
anos, pelo menos –, as sociedades menos aptas a prover seus cidadãos de quantidades
ilimitadas desses bens materiais (e alguns “espirituais”, como a cultura ou a liberdade)
são justamente aquelas mais dominadas pela presença econômica do Estado enquanto
agente ativo do processo produtivo. Ao contrário, as sociedades mais produtivas – e as
que desfrutam de maior liberdade, também – foram e são aquelas cujos princípios
organizadores dão menos ênfase ao papel do Estado e maior à própria sociedade civil,
no seu sentido estritamente produtivo. A objeção de que as sociedades mais avançadas
118
do mundo, no plano do IDH, por exemplo, são as escandinavas ou nórdicas, nas quais o
Estado desempenha um preeminente papel redistributivo, não pode ser considerada
como uma denegação dessa tese, uma vez que o direito à propriedade privada, em sua
expressão plena, e a capacidade de iniciativa individual estão nelas totalmente
asseguradas. O próprio Estado está nelas integralmente controlado pelas forças vivas da
nação, como sabem reconhecer todos os que conhecem o modo de funcionamento das
sociedades nórdicas.

7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na


autodeterminação e nos direitos dos povos
No plano jurídico, tampouco haveria algo a objetar a esse objetivo inatacável do
ponto de vista democrático, praticamente kantiano em sua inspiração. Ocorre, porém,
que a ordem mundial não está baseada na representação dos povos, mas sim na
organização dos Estados, e aqui começa todo o problema. Como sabem aqueles que já
leram a Carta da ONU, ela começa invocando no preâmbulo os “povos das Nações
Unidas” – que são aqueles que derrotaram as “potências do mal”, no caso, a Alemanha e
o Japão – mas todos os seus enunciados ulteriores referem-se, não a “povos”, mas aos
“Estados membros”. O Estado nacional é a forma política até aqui insuperável que a
humanidade encontrou para organizar esse arremedo de “ordem mundial” que temos
hoje.
Em outros termos, a soberania que temos hoje é a westfaliana, baseada no velho
princípio da não-subordinação de um Estado a um outro (em teoria, pelo menos). Da
mesma forma, a autodeterminação tem mais a ver com o direito dos governos decidirem
em toda legitimidade a ordem interna em suas respectivas jurisdições do que com os
direitos dos povos em exercer, diretamente, esse direito, do contrário a ONU não
poderia aceitar em seu seio governos não democráticos (ou ditaduras execráveis), o que
sabemos que tampouco é o caso. Os “direitos dos povos”, por fim, poderiam estar
consubstanciados na Declaração de 1948, mas ela se refere aos direitos do homem, tão
facilmente negados em certos regimes que integram, de pleno direito, a ordem mundial
regida pela ONU.
A soberania nacional tem sido justamente invocada como um biombo muito
cômodo para a violação dos mais elementares “direitos dos povos”, a começar pela
segurança e pela liberdade. Os militantes do FSM dariam um grande passo adiante, na
defesa dos “direitos dos povos”, se eles se decidissem a lutar, justamente, pelo fim da
119
soberania absoluta dos Estados como próxima fronteira na construção do direito
internacional, colocando como princípios organizadores dessa “ordem mundial dos
povos” o respeito à democracia política e a defesa absoluta dos direitos do homem (e do
cidadão) como critérios de “inclusividade” na nova ordem onusiana. Movimentos que
não pretendem representar os Estados, mas os cidadãos, precisamente, deveriam pensar
nesse tipo de progresso conceitual no terreno do direito internacional. (Eles não
precisam me agradecer pela ideia, basta usar, sem qualquer tipo de copyright.)

8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade


Pelo que eu conheço dos princípios econômicos elementares, toda e qualquer
economia é baseada nos povos e na sustentabilidade, do contrário ela já teria
desaparecido da face da Terra. Em outros termos, esse objetivo geral não quer dizer
absolutamente nada, a não ser que os velhos “ideólogos” do FSM – não os seus jovens
idealistas, entre os quais podem estar alguns que já estudaram o seu manual de
economia, o famoso text-book Economics 101 –, queiram significar com isso que a
economia não pode se sustentar nos mercados, nas trocas mercantis e na busca
desenfreada de lucro, o que é muito mais provável, se eu conheço a fauna do FSM.
Não é segredo para ninguém que as organizações que militam no FSM abrigam
um número considerável – preponderante mesmo, eu diria – de pessoas que rejeitam,
quase como um anátema, a peste em pessoa, o capitalismo, os mercados, o lucro, enfim,
tudo aquilo que se assemelhe, de perto ou de longe, a formas de apropriação privada dos
meios de produção e a formas mercantis de distribuição de bens e serviços. Seu ideal
seria um mundo que funcionaria sem mercados, sem dinheiro, sem capitalismo e,
sobretudo, sem capitalistas, o que seria o máximo de genialidade possível. Infelizmente
para os órfãos do socialismo estatal e para os viúvos do planejamento centralizado, o
embate entre modos de produção já se deu nos bastidores da história e, pelo que eu sei,
o capital venceu. Tudo isso pode não ser muito agradável para os idealistas de sempre (e
para alguns rancorosos irredentistas), mas a história tem dessas coisas que, de vez em
quando, resultam no soterramento definitivo de paquidermes pouco adaptados às novas
condições ambientais. Pode-se até chorar uma lágrima pelo desaparecimento desses
monstros simpáticos do passado, mas não se pode pretender sua sobrevivência em
contradição com os novos dados da história (ou até da “geologia” econômica).
Quero crer que os que redigiram este objetivo geral estejam entre a dor pungente
de terem perdido um ente querido e a confusão mental de não terem absolutamente nada
120
para colocar em seu lugar, do contrário não teriam formulado um objetivo tão “sem pé
nem cabeça” como esse. Eu proponho simplesmente que os militantes do FSM retirem
esse objetivo da sua lista, refaçam o dever de casa e voltem depois com algo melhor,
isto é, algum objetivo que tenha consistência econômica ou, pelo menos,
sustentabilidade lógica.

9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições


com a participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos
públicos
Nenhuma objeção, no terreno dos princípios. Ocorre, porém, uma pequena
dificuldade que esse princípio, plenamente assegurado em polities relativamente
diminutas, como aquelas que se reuniam na ágora grega dos tempos de Péricles – ou,
ainda hoje, em algumas aldeias de cantões recuados da Suíça moderna –, é um pouco
mais complicado de ser assegurado em alguns países de dimensão continental:
experimente reunir a população da China, ou que seja da cidade do México, para uma
discussão “democrática” sobre o uso dos recursos públicos. Complicado, não é mesmo?
Esse democratismo de base é muito fácil de ser proclamado, mas muito
complicado de ser implementado nos modernos regimes democráticos, que organizam
povos disseminados por um vasto território. Foi, aliás, por isso mesmo que se inventou
a instituição da representação política, plenamente assegurada na maior parte das
democracias modernas. Justamente, as organizações que militam no FSM são as menos
propensas a pregar esse tipo de controle democrático sobre as decisões e quanto ao uso
dos recursos, uma vez que, elas mesmas, raramente se submetem ao princípio que
pregam: estruturas democráticas pressupõem voto aberto, respeito aos direitos da
minoria e equilíbrio de poderes, com controle independente das decisões adotadas e
escrutínio externo quanto ao uso de recursos (tribunais constitucionais e cortes de
contas, segundo as regras dos checks and balances). No Brasil, sobretudo, onde grande
parte das ONGs vivem de recursos públicos – segundo pesquisas confiáveis –, a
chamada accountability dos movimentos ditos “sociais” é algo ainda mais difícil de ser
assegurado.
Proponho, então, que os militantes do FSM refinem esse último conceito,
consultem o seu Norberto Bobbio em algum fim de semana mais folgado – depois do
próximo encontro, talvez – e voltem a se reunir em Parma para redigir um novo objetivo

121
geral que seja menos “democratista” em seus princípios básicos e mais realista em suas
aplicações práticas.

De modo geral, comparando-se o mínimo de estruturação conceitual que se


registra hoje em alguns dos textos dos militantes do FSM com a grande confusão mental
que reinava em seus primeiros encontros – da fase de Porto Alegre –, percebe-se que os
chamados altermundialistas (que eu prefiro chamar de antiglobalizadores) estão fazendo
um grande esforço para afinar as suas ideias, tanto quanto se percebe, e tentam,
honestamente, se ouso dizer, fazê-las encontrar-se com a realidade do mundo. Mas, eles
ainda estão bem longe da “realidade efetiva das coisas”, como diria um outro filósofo
italiano (totalmente globalizado, cabe registrar).
Atualmente, em todo caso, em lugar dos jamborees anuais, nos quais o maior
esforço de transpiração consistia em xingar o imperialismo, em lugar de uma saudável
inspiração mental, nota-se o sincero desejo de oferecer algumas respostas mais ou
menos estruturadas aos problemas complexos com que se defrontam os povos (que eles
dizem representar). Mais algum esforço e um pouco mais de organização – porque
globalizados eles já estão, talvez até mais do que os seus odiados “primos” capitalistas
de Davos –, os altermundialistas justificarão finalmente o nome pelo qual pretendem ser
chamados: eles ainda precisam oferecer uma forma alternativa, mas factível, de
organização social da produção que não seja inerentemente injusta e desigual como
atualmente o é a capitalista.
Eu, pessoalmente, desconfio que, antes disso, muitos desses militantes se
converterão em sisudos capitalistas alternativos. Mas isso faz parte do processo.
Em todo caso, eu desejo a todos um bom encontro em Nairobi. Continuem
sonhando!

Publicado no boletim eletrônico Meridiano 47


(n. 78, janeiro 2007, p. 7-14; ISSN: 1518-1219).
Ensaio incorporado ao livro:
Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude
(Hartford: Edição do autor, 2015).

122
18. Socialismo do século XXI?: apenas para os incautos...

Brasília, 1736: 18 março 2007, 3 p.


Via Política (01/04/2007)

Quem diria?!: o socialismo, temporariamente aposentado e relegado a um


esquecido e remoto depósito de alternativas credíveis ao velho e duro capitalismo,
parece estar voltando novamente à cena, agora travestido em sua nova roupagem “do
século XXI”. Ele passou a ser oferecido, sobretudo, na América Latina, terra de todos
os milenarismos.
Com efeito, depois de seu brilhante fracasso no final dos anos 1980, o
socialismo tinha ido fazer companhia à roca de fiar e ao machado de bronze, no museu
das antiguidades, como pretendia Engels em relação ao Estado. Surpreendentemente,
ele parece ensaiar um retorno triunfal nos remakes que vem sendo servidos em tom
triunfalista – e a grandes doses de subsídios petrolíferos – por alguns personagens
diretamente retirados dos livros de história, ainda que de épocas que se imaginavam
enterradas e esquecidas.
Seu retorno em grande estilo se deve, ao que parece, aos fracassos igualmente
rotundos do “neoliberalismo” na região, no decorrer das duas décadas seguintes ao
desmantelamento do socialismo real na Europa do leste (e um pouco em todas as outras
partes do mundo). O fato é que o velho capitalismo continuava a ser, de fato, um
sistema injusto e desigual, mas ele se impunha quase que naturalmente como forma de
organização econômica e social, uma vez que não tinha sobrado quase nada de
alternativo, e que fosse factível, nas reduzidas prateleiras do supermercado da história.
Tivemos passar a consumir capitalismo, em doses maciças, de forma praticamente
obrigatória.
Para alguns, a experiência de ter de aceitar compulsoriamente o capitalismo
deve ter sido traumática. Os órfãos do velho socialismo – tão mais numerosos quando
nunca tiveram de viver a experiência do “socialismo real” – devem estar novamente
esperançosos, ao assistir os anúncios triunfalistas que são atualmente feitos em nome do
novo socialismo, cujos contornos são ainda em grande parte indefinidos, mas que
envolvem as fórmulas habituais de estatização e os cacoetes culturais conhecidos em
torno da criação do “homem novo”, como convém aos sistemas deliberadamente
messiânicos e salvacionistas. Aos velhos socialistas se juntaram vários grupos de jovens
123
idealistas, comumente referidos como antiglobalizadores ou altermundialistas, que
acreditam, em grande medida sinceramente, que o capitalismo representa, de fato, a
maior soma de iniquidades possíveis de todas as formas conhecidas de organização
econômica e social, entre elas as comunidades primitivas e o feudalismo medieval.
Contemplo essa “nova marcha para a frente”, no sentido da “redenção da
humanidade”, com o olhar cético de quem já assistiu a esse filme antes, inclusive por ter
me engajado, em outras eras, na luta contras as iniquidades do capitalismo latino-
americano e sua submissão aos ditames do imperialismo colonizador e de ter tido, na
sequência, a oportunidade de conhecer os diversos socialismos reais disponíveis nas
lojas de departamento da história, a maior parte nos países do leste europeu, do início
até quase o final dos anos 1970. Estou portanto habilitado a pronunciar-me por
experiência própria quanto às esperanças de se ter um “novo socialismo”, desta vez sem
as habituais bulas marxianas ou leninistas, apenas com roupagens e cenários que me
lembram, vagamente, as fórmulas mussolinianas.
Se isto pode servir de consolo aos jovens idealistas da antiglobalização – uma
vez que eu considero os “velhos órfãos” do socialismo “irreformáveis” e
“intransformáveis” –, eu diria o seguinte: aqueles que hoje condenam o capitalismo por
todas as suas iniquidades, provavelmente nunca conheceram suas alternativas “reais”,
que eram as do socialismo de tipo soviético e suas diversas variantes, algumas delas
sobrevivendo ainda numa pequena ilha do Caribe e num canto remoto da Ásia. Apenas
a falta de informação e uma irracional recusa em se informar, a despeito da massa de
conhecimento acumulada a respeito das experiências do socialismo real podem explicar
essa demanda, atualmente crescente, por um “socialismo do século XXI”.
Eu, por ter conhecido pessoalmente, se ouso dizer, todos os socialismos reais e o
seu modo de funcionamento interno, posso assegurar, com toda a candura de uma alma
reconciliada com as supostas iniquidades do capitalismo, que não há maior miséria
moral, maiores atentados à dignidade humana, do que os regimes socialistas que
existiram na face da terra até bem pouco. Posso parafrasear o que disse o poeta e
revolucionário cubano José Marti dos Estados Unidos, país no qual ele se exilou
temporariamente, para escapar dos opressores coloniais de sua pátria: “eu conheci as
entranhas do monstro”. De fato, pude conhecer o interior da “baleia socialista” e o que
vi não era nada bonito, muito pelo contrário.
O mais chocante, justamente, não eram apenas as pequenas misérias materiais, o
aspecto deteriorado dos equipamentos públicos, a falta habitual de produtos de primeira
124
necessidade, as estantes sempre vazias nos comércios, a rudeza de apresentação e o
caráter tosco da maior parte dos bens e serviços oferecidos nos “mercados” socialistas,
tudo isso era habitual e esperado e não me surpreendeu mais do que a decepção dos
primeiros contatos. O que estava por trás de tudo aquilo era muito mais importante, pois
tinha a ver, não com a simples miséria material, mas com os comportamentos sociais,
com o olhar furtivo das pessoas, com a contenção da linguagem, com a retenção do
pensamento, com o permanente estado de vigilância policial, em uma palavra, com a
miséria moral que só os verdadeiros regimes socialistas são capazes de exibir.
Não estou me referindo aqui ao Estado policial em estado quimicamente puro, se
ouso dizer, uma amostra do qual pode ser conferido na grande “biografia” do Gulag da
historiadora Anne Applebaum. Não tem a ver com a repressão direta, estilo Gestapo ou
NKVD, apenas com a vida cotidiana num país socialista “normal” do Leste europeu em
meados dos anos 1970. Aquilo deve ter me vacinado de maneira eficaz contra minha
anterior inclinação revolucionária a querer implantar o socialismo a golpes de martelo,
como pretendíamos na nossa juventude de opositores do regime militar brasileiro.
Por isso, quando ouço novamente os novos cantos de sereia sobre o “socialismo
do século XXI”, permito-me retrucar modestamente: vamos ficar com as modestas
iniquidades materiais do capitalismo – que permitem, ainda assim, o progresso
individual baseado no mérito individual e no esforço próprio – e deixar de lado as
tentações totalitárias de pretender implantar a igualdade na base do autoritarismo, o que
só pode conduzir às grandes iniquidades morais do socialismo.
Não existem grandes virtudes no socialismo, apenas “heróis” do povo,
devidamente fabricados por ditadores pouco esclarecidos que implantam regimes muito
parecidos com os sistemas fascistas existentes na Europa do entre-guerras. Por
experiência própria, eu constatei que a ditadura dos medíocres – que caracteriza quase
sempre os regimes socialistas – é uma coisa terrível, e a miséria daí derivada é muito
superior à eventual miséria material do capitalismo...

Blog Diplomatizzando
(link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/02/socialismo-para-os-incautos-
paulo.html).

125
19. Sete teses impertinentes sobre o Mercosul

Brasília, 1734: 14 março 2007, 4 p.


Via Política (22/04/2007)

O estado atual do Mercosul pode ser interpretado de maneira muito diversa pelos
observadores interessados nesse processo de integração. Eles terão, segundo os casos,
uma interpretação mais ou menos otimista quanto ao seu desenvolvimento político no
período recente e serão mais ou menos realistas quanto às suas perspectivas evolutivas,
no atual contexto da integração sul-americana, dependendo da interação pessoal com
esse processo. Aqueles responsáveis por sua condução tenderão a enfatizar o muito que
se fez nos últimos anos para reforçar suas estruturas diretivas, para diversificar o escopo
e ampliar a cobertura da integração e para expandir sua influência na região, ou, na pior
das hipóteses, para evitar o prolongamento de uma crise começou em 1999.
Os observadores mais críticos desse processo poderão retrucar quanto ao não
cumprimento dos principais objetivos fixados originalmente e reafirmados de maneira
recorrente nos anos que se seguiram, sem que os obstáculos ao pleno funcionamento da
zona de livre-comércio ou à plena vigência da união aduaneira tenham de fato sido
superados. Eles também saberão reconhecer a preservação do esquema integracionista,
ainda que possam discordar quanto à utilidade das medidas adotadas para tal efeito.
Independentemente de qualquer julgamento sobre se as características atuais do
Mercosul resultaram de “acidentes de percurso” ou se elas derivaram, ao contrário, de
escolhas conscientes feitas pelos atuais dirigentes políticos, vou tentar formular algumas
“teses” sobre esse processo, oferecendo, ao final, algumas propostas tendentes a superar
algumas de suas atuais dificuldades. Cabe registrar que, a despeito de um julgamento
otimista ou pessimista que se faça da situação atual do Mercosul, não há como recusar o
fato de que esse processo atravessa dificuldades notórias, superáveis ou não em função
da avaliação que se possa fazer quanto à natureza ou a origem desses males e sobre os
“remédios” aplicados ao caso.

1. Desvio de rota e mudança de substância


O Mercosul desviou-se, ou foi desviado, de seus objetivos fundamentais, que
eram os da liberalização comercial e da integração econômica, e converteu-se – ou foi

127
levado a converter-se – num esquema fragmentado de iniciativas setoriais, nos campos
político, social, cultural, ou outros, não coordenados e desconectados entre si.

2. Introversão
O Mercosul deixou de ser uma ferramenta facilitadora, ou um meio, para atingir
determinadas finalidades, que na origem eram as da modernização produtiva dos países
membros e sua inserção econômica internacional, e tornou-se um fim em si mesmo,
como se a forma devesse necessariamente determinar o conteúdo. Com essa nova
orientação “hacia adentro”, a integração vem sendo perseguida pela própria integração,
não como um veículo condutor ou uma alavanca para a consecução de objetivos
economicamente racionais. Seria como se a preocupação “estética” tomasse a dianteira
sobre o funcionamento efetivo do esquema.

3. Fuga para frente


Em face de dificuldades reais, nos capítulos mais relevantes do processo
integracionista, o Mercosul foi levado a efetuar uma verdadeira fuite en avant, atitude
que se desdobra num número cada vez maior de iniciativas para compensar as tarefas
não cumpridas de sua agenda corrente. A criação de novos órgãos, todos meramente
acessórios ou simplesmente “redistribuidores”, confirma essa tendência, que não levará
necessariamente a maior coesão e coerência em relação aos objetivos fundamentais.

4. Expansão arriscada
O Mercosul foi levado a expandir de maneira talvez impensada, em todo caso de
modo pouco condizente com os seus requerimentos intrínsecos, previstos no tratado de
Assunção e nas decisões já adotadas, em termos de Tarifa Externa Comum, regras de
origem, defesa da concorrência etc. Decisões políticas de incorporação, sem atenção aos
elementos constitutivos da união aduaneira, fragilizam o edifício original e tornam mais
difícil o consenso interno para negociações externas.

5. Mimetismo indevido e foco em supostas assimetrias


O Mercosul foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras
experiências integracionistas, no caso a europeia, como se ele devesse, sem dispor dos
mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios, dar início a um
programa completo de correção de supostas “assimetrias estruturais”, à custa de
128
transferência de recursos de alguns países a outros. Concretamente, o único país que
pode ser considerado “não assimétrico” seria o Brasil – que, na verdade, possui muito
mais assimetrias internas, regionais e sociais, do que todos os demais –, ou então ele é o
assimétrico absoluto, portanto encarregado de redimir os males existentes.

6. Exceções protecionistas desfiguram o Mercosul, sem reforçá-lo


O Mercosul foi levado a aceitar a introdução, ainda que parcial, de restrições
comerciais que de fato fragilizam o edifício integracionista, em lugar de fortalecê-lo,
como parece ser a intenção, restrições que são, no mínimo, abusivas, quando não
ilegais, seja do ponto de vista do próprio Mercosul, seja do ponto de vista do GATT.

7. Ênfase na superestrutura e carência de implementação infraestrutural


O Mercosul padece de excessos superestruturais, isto é, uma ênfase exagerada
no “cupulismo” e nas decisões políticas em torno de iniciativas em geral mais retóricas
do que substantivas, em detrimento da implementação de medidas de caráter
“infraestrutural”, que tendam a valorizar o trabalho das burocracias nacionais ou da
própria secretaria técnica.

Em face dessas características, quais poderiam ser as soluções aos problemas


apontados? Simetricamente, podem ser apontadas as seguintes orientações em relação a
cada uma das teses.

1. Retomada da rota original e confirmação da substância


Caberia voltar aos propósitos originais do Mercosul, ou seja, retornar ao
mainstream da integração, resgatando os objetivos da liberalização comercial e da
conformação plena da união aduaneira. Proclamar objetivos sociais, políticos ou
culturais, em substituição ao fortalecimento das bases efetivas do Mercosul, redunda
necessariamente na erosão dos seus fundamentos.

2. Extroversão econômica e competição internacional


O Mercosul foi pensado como um instrumento facilitador e promotor da
inserção internacional dos países membros. Os mercados a serem perseguidos são antes
externos do que os recíprocos.
129
3. Concentrar-se no básico
No longo processo europeu sempre existiu a preocupação de que, a despeito de
dificuldades eventuais, deveria ser garantido o chamado acquis communautaire, ou seja,
o núcleo central de normas que regem o processo. Isto implica fazer o dever de casa,
isto é, empreender as reformas necessárias para que as regras constitutivas do processo
sejam preservadas e reforçadas. Desvios ou tratamentos excepcionais podem ser aceitos
apenas no que se refere à aplicação delongada das próprias normas, não na alteração de
seu sentido original.

4. Expansão medida
O princípio de base deveria ser “aberto ma non troppo”, ou seja, novos sócios
devem submeter-se aos estatutos vigentes, não pretender alterar o funcionamento do
clube. A simpatia não pode ser um substituto para a seriedade no engajamento formal
do respeito às normas. Um entendimento claro quanto aos propósitos definidos e quanto
aos objetivos fundamentais é a primeira das condições para que novas incorporações
sejam decididas.

5. Assimetrias constituem a própria base do comércio internacional


Não há, na história do comércio exterior, doutrinas que enfatizem a necessidade
de eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em dotações naturais
ou adquiridas. Ao contrário, vantagens ricardianas sempre funcionaram, em quaisquer
latitudes e longitudes e constituem fonte de ganhos líquidos para todas as partes.
Verdades simples como esta podem servir para avaliar os programas de “correção” de
assimetrias, cujos efeitos podem ser mais danosos do que benéficos. Reconversão deve
significar adaptação aos novos requerimentos, não equalização de condições.

6. Excesso de exceções levam à criação de novas e “urgentes” exceções


Não ceder ao protecionismo setorial deveria ser uma regra básica dos decisores.
Caso se ceda à tentação protecionista, todos os demais setores vão se julgar habilitados
e demandar resguardo em algum momento da trajetória competitiva. Não custa lembrar,
tampouco, que salvaguardas sempre devem ser não discriminatórias, por princípio.

7. Ênfase na infraestrutura, retórica moderada na superestrutura


130
Consoante uma velha fábula, sistemas econômicos organizados e funcionais
requerem um pouco mais de formigas (isto é, empresários, trabalhadores e até mesmo
burocratas), para a preservação dos equilíbrios fundamentais. As cigarras podem ajudar
a enriquecer a harmonia do conjunto, mas nem sempre contribuem com os estímulos
adequados.

Verdades simples como estas podem ajudar a clarificar o debate.

Apresentadas, sob o título “O Mercosul e suas sete encruzilhadas”, no


lançamento do livro organizado por Rubens A. Barbosa, Mercosul 15 anos
(São Paulo: Memorial da América Latina, Imprensa Oficial do Estado, 2007).

131
20. Terrorismo islâmico-fundamentalista: uma quarta guerra
mundial?

Brasília, 1712: 18 janeiro; 23 junho 2007, 3 p.


Via Política (24/06/2007)

Os historiadores, os cientistas sociais, os atores políticos e até os simples


cidadãos sabem exatamente o que é o terrorismo, ainda que possam divergir quanto à
sua exata definição ou discordar, em função de suas sociedades de origem e de suas
preferências ideológicas, quanto ao seu papel na presente etapa da humanidade,
supostamente promotora do respeito aos direitos humanos e da legalidade internacional
sob a égide da ONU e de convenções internacionais.
Qualquer que seja a definição que possamos dar ao fenômeno terrorista, uma
modalidade específica se destaca na atualidade: o terrorismo islâmico-fundamentalista.
Não há nenhuma dúvida de que ele constitui uma terrível realidade contemporânea da
qual talvez não tenhamos (mas deveríamos ter) a dimensão e a consciência exatas do
que ela significa na história da humanidade. Está se constituindo uma modalidade de
terrorismo político-religioso sem qualquer precedente na história da humanidade, que
promete ficar conosco durante muito tempo ainda: o terrorismo islâmico-
fundamentalista, uma nova espécie de barbárie, que precisa ser chamada pelo que ela é,
efetivamente.
Essa modalidade de terrorismo está sendo identificado, por alguns analistas,
como sendo a Quarta Guerra Mundial (a terceira sendo constituída pela Guerra Fria, que
terminou com a implosão do comunismo, que não foi obviamente destruído pelo
capitalismo, mas foi eliminado por sua própria incompetência econômica e
tecnológica). Alguns dos problemas para definir a sua especificidade e que dificultam
sua compreensão e o seu combate eficaz derivam, talvez, dessa própria característica: a
de que ele venha sendo designado como uma ameaça militar e que os meios de
combatê-lo seriam basicamente de ordem tática. A própria escolha dos termos pode
influenciar a estratégia de combate ao terrorismo, como revelado, por exemplo, na
preferência do governo Bush por caracterizar suas iniciativas nessa área como sendo a
war on terror. Vejamos, contudo, quais são algumas dessas especificidades e por que
pode ser extremamente difícil lidar com essa nova realidade.
Esse novo terrorismo, de base inegavelmente e inquestionavelmente (é preciso

132
que se o diga) islâmico-fundamentalista, visa simplesmente a causar o maior número de
mortos, de forma indiscriminada (mesmo entre os próprios seguidores da religião
islâmica), em nome de objetivos muito difusos, mas que todos tem a ver com a recusa
da modernidade ocidental, com a rejeição das conquistas do iluminismo (que foi
ocidental, mas é propriamente universal).
Esse terrorismo islâmico-fundamentalista é profundamente reacionário e
obscurantista, e alguns observadores o acusaram de fascista, mas não creio que esse
conceito apreenda suas características peculiares. O fascismo tem a ver com uma
determinada noção de um regime político, com a conquista do Estado e a obtenção de
objetivos políticos, econômicos e sociais. O terrorismo islâmico-fundamentalista é mais
uma negação do existe do que a construção de uma nova sociedade.
Esse terrorismo se baseia num estoque infindável de pessoas-bomba, de todos os
gêneros e idades. Não é incomum assistir-se na TV, reportagens que mostram alguma
mãe de um pequeno candidato a menino-bomba (existem garotos de dez anos sendo
treinados para isso) dizendo se sentir orgulhosa de ver seu filho sendo treinado para ser
um combatente contra o inimigo sionista e americano. Pode ser patético, mas é
revelador de um certo estado de espírito.
Qual é a sociedade que produz uma mãe que pede, literalmente, que o seu filho
converta a si mesmo em bomba humana, levando consigo o maior número possível de
inimigos? Não creio que seja uma sociedade “normal”, mas esse tipo de predisposição
para o martírio corresponde a um movimento determinado, o do fundamentalismo
islâmico, que aparentemente conquistou muita gente. Existem, como se sabe, muitos
“meninos-bomba” em preparação, da Palestina ao Paquistão, e talvez mais além.
Não nos enganemos: todos esses candidatos voluntários ao martírio pertence a
um arco civilizatório específico: o do islamismo decadente e fracassado, não enquanto
religião, mas enquanto sociedades “normais”. Por várias razões – entre elas a autocracia
política e a falta de modernização econômica e social, pelo próprio fracasso dessas
sociedades e desses Estados autoritários em prover meios de vida descentes a uma
massa considerável de jovens desesperançados (e alimentados no ódio ao Ocidente,
como se ele fosse responsável pelos fracassos) –, o movimento do terrorismo
fundamentalista-islâmico dispõe hoje de um estoque infinito de candidatos a pessoas-
bomba.
O que o Hezbollah, o Jihad, o Hamas e outros movimento assemelhados fazem
hoje, da Palestina à Índia, passando pelo Iraque e pelo Afeganistão, é exatamente isso:
133
uma nova modalidade de terrorismo inaceitável na perspectiva de qualquer nação
civilizada na face da terra.
Sim, existe uma diferença entre esses bárbaros e os antigos terroristas, da fase
anarquista, quase romântica. Os antigos anarquistas, geralmente de extração operária,
faziam atentados isolados, visando diretamente os soberanos (presidentes, reis,
autoridades em geral), pois queriam combater o Estado, que viam como mal absoluto.
Se expunham pessoalmente e conseguiam em alguns casos o seu intento. Era uma tática
terrorista numa estratégia mais ampla de luta política, mas algo desorganizada,
geralmente condenada pelos demais grupos de esquerda.
Os bárbaros da atualidade explodem tudo e a todos, matando inocentes sem
contar, sem qualquer objetivo militar aparente, numa estratégia de terror pelo terror.
Eles também se expõem pessoalmente – e como: na promessa mirífica do paraíso dado
automaticamente aos mártires – mas seus objetivos são indiscriminados, atingindo
inocentes e alguns “correligionários”.
Acho que a realidade terrível está exposta, claramente. A nova barbárie bateu à
nossa porta e ela promete perdurar por longos anos à frente. As pessoas que se julgam
conscientes e responsáveis deveriam tomar partido. A linha divisória está posta.
Eu fico assustando de ver como a esquerda brasileira, e talvez a esquerda
mundial, ainda se permite aplaudir esse tipo de gesto, apenas porque ele se dirige,
supostamente, contra o inimigo imperialista ou sionista. Não gostaria de constatar que a
esquerda se colocou do lado dos bárbaros, absolutos, inaceitáveis a qualquer pretexto.
Por outro lado, não creio que a resposta a esse novo fenômeno tenha de ser
basicamente militar, isto é, baseada no enfrentamento de grupos terroristas com o
objetivos de aniquilá-los, fisicamente. Esse tipo de tática os converte, imediatamente,
em guerreiros de um novo exército, os eleva à categoria de soldados de uma causa e
lhes traz, ao mesmo tempo, responsabilidade e respeitabilidade (aos olhos dos que
comungam das mesmas ideias). A estratégia correta, mas muito mais difícil – reconheço
– seria vencê-los no terreno das ideias, demonstrar a profunda desumanidade que
encarnam, o total niilismo dos procedimentos e resultados. Obviamente, a
responsabilidade maior por este tipo de mensagem “desmanteladora” da legitimidade
das ideias terroristas está antes com os líderes religiosos e os clérigos do Islã (em suas
diversas correntes) do que com os responsáveis dos países ocidentais.
O fato é que, atualmente, existe algo de profundamente errado e vicioso nas
atitudes dos líderes religiosos do Islã; sua responsabilidade pelo terrorismo
134
fundamentalista islâmico não pode, de nenhuma maneira ser afastada. O simples fato de
não condenar, de forma veemente, autores e planejadores, cada vez que um ato bárbaro
é perpetrado, os converte em coniventes, para dizer o mínimo, com seus autores. Existe
uma guerra, mas ela se passa no interior do Islã...

Blog Diplomatizzando
(18.01.2007: http://diplomatizzando.blogspot.com/2007/01/689-o-terrorismo-
islmico.html#links).

135
21. Duzentos anos da vinda da família real: o que Portugal nos legou?

Brasília, 1846: 16 dezembro 2007, 13 p.


Via Política (23/12/2007)

1. Um introdução em retrospectiva
Aproximando-se as comemorações pelos 200 anos da vinda da família real
portuguesa para o Brasil, em janeiro de 2008, caberia talvez fazer uma espécie de
balanço em torno do que isto representou para o Brasil e sobre o quê, em decorrência
desse fato, mudou na vida da jovem nação, então em fase de constituição,
independentemente de continuar, durante alguns anos mais, a estar formalmente
subordinada a Portugal (tendo passado a Reino Unido, isto é, a um estatuto quase pleno
de autonomia, em 1816).
Uma maneira de fazê-lo seria a de proceder uma espécie de confronto entre o
“então” e o “agora”, ou seja, examinar a situação econômica do Brasil, tal como ela se
apresentava em 1808, acompanhar as mudanças ocorridas a partir daí, até a
independência ser consolidada, grosso modo em 1825, e verificar, então, o que se
fizemos desde aquela época, ou seja, nos últimos 200 anos. É o que tentarei fazer no
presente texto, mas confesso que uma grande pergunta me assalta a mente. Ela poderia
ser formulada da seguinte forma:
Por que o Brasil, desde o início do século XIX até este início de século XXI,
falhou em realizar as promessas de desenvolvimento contidas na primeira e na segunda
revoluções industriais, ocorridas ao longo do século XIX e no decorrer do século XX,
como fizeram muitos outros países, e por que ele falha, ainda e sempre, em acompanhar
as tendências mais dinâmicas do século XXI?
Em outros termos, e vista a mesma pergunta por outro ângulo: o quê,
exatamente, nos separa de 1808-1822 em termos de realizações e conquistas? Ou ainda:
será que somos, 200 anos depois, tão diferentes assim, do que éramos na conjuntura do
estabelecimento da família real portuguesa entre nós?
Estabelecida a hipótese de trabalho, os objetivos do presente ensaio de revisão
histórica poderiam ser assim estabelecidos: quais eram as condições de partida do
Brasil, no contexto colonial português e europeu?; qual era o peso do Estado, que
sempre constituiu, então e agora, nossa característica fundamental em termos de
organização política e social?; como era e como está, agora, o ambiente de negócios,
136
provavelmente pavoroso e piorando?; como andamos de empreguismo estatal e de
irresponsabilidade fiscal?; será que essa mania de construir palácios para o setor
público, como já então se via, é nova?; como defendemos nossos recursos naturais,
econômicos, humanos e institucionais?; quais eram e quais são as nossas deficiências
essenciais nesse campo?; por que as políticas adotadas por nossas elites conseguem ser
tão equivocadas nos planos macro e no micro?; qual foi o nosso desempenho econômico
em perspectiva comparada com outros países?; como caminharam os outros?
Enfim, esta tentativa de balanço visa, simplesmente, analisar de onde viemos e
onde estamos atualmente. Acredito, pessoalmente, que fizemos grandes progressos
nestes 200 anos, mas esses avanços podem, ainda assim, ser considerados insuficientes,
em vista de tudo o que poderíamos ou deveríamos ter feito, e em face dos enormes
desafios que ainda temos que enfrentar para podermos apresentar-nos ao mundo, 200
anos depois, como uma nação desenvolvida, o que ainda não somos. Mas, desejo desde
já deixar constância de um fato, que pode ser considerado como uma mera opinião, mas
ela vem sustentada em uma infinidade de “provas materiais”:
Não, não creio que os portugueses – o povo ou a família real – sejam culpados
pelo que somos ainda hoje, ou seja, um país industrialmente desenvolvido, mas
socialmente iníquo, economicamente avançado, mas socialmente atrasado,
cientificamente realizado, mas tecnologicamente mal dotado. Não se devem aos
portugueses nossos comportamentos atávicos e nossos fracassos de modernização. Eles
não podem responder pelo que fizemos desde 1822. Nós mesmos somos responsáveis
pelo muito que conseguimos fazer neste período, em termos de construção da nação,
assim como devemos ser considerados culpados pelo quadro lamentável no plano social
ou educacional que ainda contemplamos hoje.
Parte do que vou aqui dizer – pelo menos a conjuntura histórica do “movimento
da independência”, como diria o historiador Manoel de Oliveira Lima – encontra-se
descrito com maior grau de detalhe na minha contribuição, “A formação econômica
brasileira a caminho da autonomia política: uma análise estrutural e conjuntural do
período pré-independência”, que constitui um dos capítulos da coletânea coordenada
por Rubens Ricupero e Luiz Valente de Oliveira, sobre Os 200 anos da Abertura dos
Portos (São Paulo: Editora Senac-SP, 2008, p. 256-283; ISBN: 978-85-7359-651-9),
que foi apresentado em seminário sobre “1808: A Abertura dos Portos”, realizado em
28 e 29 de novembro de 2007, sob o patrocínio da Federação do Comércio do Estado de
São Paulo.
137
2. O que Portugal nos legou, exatamente?
Uma breve relação do que Portugal implantou na terra “braziliense” – como
diria José Hipólito da Costa, o grande cronista independente da conjuntura que estamos
analisando –, desde o período colonial até a independência, poderia ser resumida na
seguinte lista:
1. A língua portuguesa, obviamente;
2. Um povo aberto à miscigenação racial;
3. Instituições estatais exacerbadas e muito centralizadas;
4. Uma diplomacia bastante competente e alerta aos “negócios” do mundo;
5. Comportamentos rentistas, patrimonialistas e extrativistas em economia;
6. Um judiciário antiquado, desde a origem, e provavelmente corrupto, também;
7. Uma religiosidade pervasiva, mas bastante maleável e integradora, finalmente;
8. Uma introversão nos comportamentos e a desconfiança do que é estrangeiro.

Não pretendo desenvolver cada um desses pontos de maneira sistemática, tanto


porque alguns deles dispensam maiores comentários, como o fato da língua portuguesa,
por exemplo. A despeito de não ser ela uma das línguas científicas, de comércio ou de
cultura universal, em virtude da baixa qualificação original de Portugal nessas áreas,
graças ao espírito aventureiro e desbravador dos líderes do pequeno Estado europeu, ela
se espalhou por três ou quatro continentes, o que hoje permite constituir uma
comunidade de povos lusófonos que pode servir para ampliar os horizontes culturais e
econômicos desse substrato linguístico. Da mesma forma, a maleabilidade religiosa e,
sobretudo, a racial são dois traços importantes da nossa nacionalidade, sendo que o
segundo é distintivamente português, embora o primeiro seja mais controverso, em vista
da carolice e do tradicionalismo religiosos de Portugal. Mas, o confronto com tantos
povos e tradições culturais e religiosas distintas permitiu um sincretismo religioso
bastante rico que, ainda que não existente na metrópole, passou a se desenvolver nas
colônias desde cedo. Quanto à mistura racial, ela constitui um dos traços mais
importantes da nossa formação étnica e, ainda que alguns estejam, hoje, tentando
substituí-la por uma cultura do apartheid racial – sob a forma de programas de ação dita
“afirmativa” e de valorização da negritude, que nada mais constituem do que um
programa de construção da separação racial e, portanto, do racismo –, ela deve ser

138
valorizada pelo que representa de legado a ser projetado no futuro, na certeza de que
certamente conseguirá superar os proponentes atuais do racismo e da separação racial.
Não necessito, por outro lado, deter-me em demasia na competência
diplomática, que constitui, sim, um excelente legado português, uma vez que as boas
heranças devem ser mantidas e desenvolvidas. Uma atitude autocongratulatória
constitui, porém, a mais segura receita de estagnação e retrocesso, pois que o excesso de
confiança nas próprias virtudes induz a erros de julgamento e a uma predisposição para
a não-mudança.
Pretendo-me deter em alguns aspectos desse legado português e verificar em que
medida fomos capazes de vencer as dificuldades do momento inicial – feito de
construção da nação praticamente a partir do zero – e desenvolver nossa capacidade de
vencer novos desafios ao longo do tempo, construindo, ou não, uma nação inclusiva e
próspera.

3. O que falava do Brasil um globalizador esclarecido do século XVIII?


Comecemos por uma citação de uma mente avançada do Iluminismo, ou seja,
um observador contemporâneo do império colonial ultramarino português:
“O Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo
(nada para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos, desse
cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros monopólios não
mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias que lhe trazem não
mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas; quando os seus produtos
não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais avultados que os dos seus
concorrentes; quando as suas comunicações com as outras possessões nacionais se
virem desembaraçadas dos entraves que as restringem...”
O autor desta passagem, absolutamente pertinente para os nossos dias, é o
francês Guillaume-Thomas Raynal, mais conhecido como Abade Raynal (1713-1796),
na Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens
dans les deux Indes (publicada em Amsterdã, a partir de 1770, para o primeiro dos seis
volumes da obra); a tradução deste trecho para o português foi feita pelo diplomata e
historiador Manuel de Oliveira Lima, no D. João VI no Brasil (3a. ed.; Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996, p. 58-59).
Incrível, de fato, a atualidade dos argumentos transcritos acima, de uma das
cabeças mais lúcidas do século XVIII francês, um pouco obscurecido, é verdade, pelos
139
enciclopedistas Diderot e D’Alembert, com os quais, porém, ele pode ser comparado
com grande vantagem. Antiescravista em plena era do mais intenso tráfico africano (ele
vinha de uma família de mercadores que enriqueceu no comércio de escravos), pensador
iluminista, profundo conhecedor das coisas do mundo, mesmo sem ter viajado fora da
Europa, o abade Raynal poderia ser descrito, em linguagem moderna, como um
“globalizador esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se
existisse entre nós um tal clube filosófico.
Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et politique des
établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser classificada
como o primeiro “tratado da globalização” dos tempos modernos. Os franceses, sempre
suscetíveis nessas coisas de anglofonia, talvez preferissem chamá-la de premier traité
de la mondialisation. [Nota: Os leitores interessados em ler na íntegra esta obra,
obviamente na linguagem original de 1770, em francês, podem descarregá-la, da base
de dados do Institut National de la Langue Française, na coleção Galica da Bibliothèque
Nationale de France, a partir deste link:
http://visualiseur.bnf.fr/Visualiseur?Destination=Gallica&O=NUMM-89431.]
Raynal começava sua obra proclamando a mudança radical que tinha sido a
passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução começou então no comércio, na
potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos povos. Foi nesse
momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram necessários: os produtos
dos climas equatoriais são consumidos nos climas vizinhos do polo; a indústria do norte
é transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente e, em todas as partes, os
homens intercambiam suas opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas
enfermidades, suas virtudes e seus vícios” (Nota: minha tradução, a partir do arquivo
acima citado). Continuava, um pouco mais adiante, o abade Raynal: “Como essas
descobertas influenciaram a situação dos povos? Por que, enfim, as nações mais
florescentes não são exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?”
Ele começa, então, a explorar essas questões, partindo do pressuposto da
unificação comercial do mundo sob a hegemonia do se poderia chamar, hoje em dia, de
capitalismo global. Sua análise é absolutamente atual, podendo-se dizer que seus
argumentos se referem exatamente à globalização contemporânea. De fato, as nações
mais prósperas não são aquelas mais bem dotadas de recursos naturais – embora esse
fator seja importante, como no caso dos Estados Unidos – e sim aquelas que
desenvolveram seus recursos humanos. Não fosse assim, o Japão seria um conjunto de
140
ilhas de desenvolvimento médio, ao passo que os gigantes do petróleo, como Nigéria,
Irã e Venezuela, seriam países avançadíssimos nos campos social e tecnológico. Esta
advertência inicial serve apenas para moderar o entusiasmo daqueles que acreditam que
o Brasil é um gigante destinado, pela própria natureza, a ser uma das grandes potências
mundiais, apenas por deter imensos recursos naturais. Nada é garantido, como já
ensinava o abade Raynal em 1770...
Sua leitura nos relembra, também, no que se refere a cada um dos pontos
levantados por Raynal, em 1770, é que continuamos a ser extorquidos por uma multidão
de impostos, por um cardume de recebedores, nossas mercadorias carregam o peso de
muitas taxas e ainda enfrentam protecionismo duplo, aqui e lá fora. Duzentos depois da
chegada da família real e da abertura dos portos, o que temos, é exatamente aquilo que
descrevia o Abade Raynal.

4. Comecemos, justamente, pelos impostos: o que havia em 1808, o que temos


hoje?
O que existia, no momento da chegada da família real? Esta era a coleção de
impostos, taxas e contribuições em vigor em 1808:
(A) Tributos de incidência local: selos, foros de patentes, taxas do sal;
(B) Tributos de incidência geral: subsídio real sobre carnes e couros, taxa
suntuária sobre lojas e armazéns; taxa sobre engenhos; sisa de 10% sobre os
imóveis; meia sisa sobre os escravos urbanos;
(C) Impostos sobre o comércio exterior, nos dois sentidos (a principal fonte de
receita, aliás).
Em 1821, quando D. João VI parte de volta a Portugal, a estrutura tributária do
Reino Unido, compreendia, além de muitas outras taxas gerais (selos, foros de patentes,
direitos de chancelaria, taxas de correio, sobre sal, sesmarias, ancoragens etc., ou
impostos locais cobrados de particulares), os seguintes direitos e impostos:
1º) subsídio real ou nacional (carne verde, couros crus ou curtidos, aguardente de
cana e lãs grosseiras);
2º) subsídio literário (para custeio dos mestres de escola, percebido sobre cada rês
abatida, sobre aguardente destilada e sobre carne seca);
3º) imposto em benefício do Banco do Brasil (12$800 sobre cada negociante,
livreiro, boticário, loja de joias e artigos de cobre, tabaco);
4º) taxa suntuária (também para o Banco, sobre cada carruagem de quatro e de
duas rodas, navios de três mastros, lojas de mercadorias e armazéns, 5% da
compra de navios);
5º) taxa sobre engenhos de açúcar e destilações (variável por província);
6º) décima predial urbana (casas ou quaisquer imóveis);
7º) sisa (imposto de 10% sobre o valor da venda de imóveis urbanos);

141
8º) meia sisa (imposto de 5% sobre a renda de cada escravo que fosse negro
ladino, isto é, que já soubesse um ofício);
9º) novos direitos (taxa de 10% sobre os vencimentos dos funcionários da
Fazenda e da Justiça)... et encore...

E agora, em matéria de impostos, taxas e contribuições, o que temos hoje?


Existem, hoje, 76 tributos federais, 12 estaduais, 15 municipais, além de 5 outros
“latentes”, isto é, que podem vir a ser implementados (entre eles o das “grandes
fortunas”), num total de 109 impostos, taxas e contribuições, sem contar pedágios e
cobranças por serviços específicos. Este é o quadro de terror tributário, sem considerar a
burocracia do sistema declaratório, que consome dias e dias e de vários contabilistas,
apenas para cumprir as obrigações e provar ao Estado que somos honestos e
cumpridores dos nossos deveres de contribuintes (tosquiados). De fato, segundo as
informações de consultorias especializadas, numa lista de 178 países, Brasil é aquele em
que o empresário mais perde tempo nessa atividade: são 2.600 horas só para pagar
impostos. O Brasil é campeão na quantidade de horas gastas para que uma empresa
pague todos os impostos e tributos. Com base nos dados do Banco Mundial (Doing
Business), são necessárias 2.600 horas (108 dias) para que uma empresa cumpra todas
as obrigações fiscais, o que deixa o Brasil em último lugar entre 178 países.

5. E o ambiente de negócios, como ele tem se desenvolvido?


Ao chegar à Bahia, em janeiro de 1808, D. João, príncipe regente, não apenas
decreta a abertura dos portos (absolutamente necessária), mas também aprovou os
estatutos da primeira companhia de seguros, a “Comércio Marítimo”; mandou abrir uma
fábrica de vidro e uma fábrica de pólvora; autorizou o governador da Bahia a
estabelecer a cultura e a moagem de trigo; mandou abrir estradas, sim estradas (de fato,
pouco mais que picadas...).
O que surpreende, no modelo ibérico de administração, preservado em grande
medida até os nossos dias, é que tudo tenha de ser autorizado ou ordenado pelo príncipe,
mediante um decreto, um alvará régio, um instrumento qualquer da autoridade política.
O que, por outro lado, faz a eficiência do modelo anglo-saxão de organização social e
econômica, é que tudo o que não estiver expressamente proibido em alguma lei
aprovada por um parlamento ou conselho, está ipso facto autorizado e aberto à iniciativa
privada, exatamente o contrário do que ocorria no mundo português e ainda ocorre entre
nós.
142
De fato, a julgar pelo PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento,
continuamos cingidos pela autoridade política, circunscritos ao que ela possa
determinar, autorizar, permitir, se dignar a nos deixar trabalhar. A mania que temos de
tornar toda e qualquer atividade dependente das boas graças da administração é
propriamente irracional, sobretudo quando sabemos que o processo burocrático de
autorizações e permissões está eivado de descaminhos corruptores.
Em outra vertente, mas no mesmo terreno, pode-se examinar como evoluiu o
“ambiente de negócios”. Ao chegar ao Rio de Janeiro, em março de 1808, D. João, por
alvará de 1º de abril, revogou o alvará de D. Maria I, de 1785, que tinha proibido todas
as indústrias de tecidos no Brasil, exceto as de pano grosso, para os sacos e escravos.
Vinhos, azeites, tecidos e todos os demais produtos úteis tinham, até então, de ser
comprados de Portugal, a despeito do fato de possuir a colônia plenas condições de
fabricá-los quase todos. Agora, os principais problemas que se colocam aos candidatos
a empreendedores é o número absurdo de requisitos legais, exigências burocráticas e
autorizações variadas para quem decide iniciar um negócio. Basta consultar o Doing
Business anual do Banco Mundial para constatar que o Brasil continua a figurar nos
últimos lugares do ambiente de negócios.
No plano da indústria, o que ocorria, duzentos anos atrás? Entre 1810 e 1811,
novas medidas buscaram estimular a indústria local: isenção de direitos sobre fios e
tecidos de algodão, seda ou lã, fabricados no Brasil; foram criados arsenais e fundições,
no Rio de Janeiro, uma indústria de lapidação de diamantes e um laboratório químico.
Eram empresas estatais, com a eficiência que se conhece nesse tipo de empreendimento.
E o que temos hoje, como pregação industrial? O presidente de um dos principais
órgãos de planejamento estatal, o IPEA, acredita que novamente enfrentamos a mesma
“dependência” da grande empresa agroexportadora à base de cana-de-açúcar, como
existia no século XVI. E o que ele propõe para reduzir a suposta “nova dependência”?
Segundo ele, “o Brasil precisa constituir uma empresa pública de agro-energia” e operar
uma “centralização do comércio da energia renovável no país” (Márcio Pochmann,
presidente do IPEA: “Antídoto ao novo dependentismo”, Valor Econômico,
01.11.2007). Trata-se, certamente, da receita mais segura para inviabilizar
completamente uma indústria pujante do etanol e do biodiesel no Brasil, só se
justificando como uma forma de cobrar um “pedágio” dos verdadeiros criadores de
riqueza no Brasil, que são os empreendedores privados.

143
6. Como evoluímos em termos de respeito aos direitos de propriedade e ao
patrimônio?
Como ensinam os economistas da escola institucionalista (Douglass North e
outros), o respeito aos direitos de propriedade e aos contratos – duas das mais
importantes instituições da vida econômica – estão entre os elementos mais relevantes
do progresso econômico. Nesse terreno, o legado da instalação da família real no Brasil
não é dos mais edificantes.
Quando a comitiva que acompanhava o príncipe regente chegou ao Rio de
Janeiro, um grave problema habitacional colocou-se: onde acomodar tantos nobres?
Criou-se, então, um sistema das “aposentadorias”: as casas mais apresentáveis e
espaçosas eram requisitadas em nome do Príncipe, e os locais escolhidos eram logo
pintados com as iniciais “PR”, de Príncipe Regente. Mas, o povo carioca logo as
interpretou à sua maneira, dizendo que representavam, na verdade, um “Ponha-se na
Rua”. Hipólito da Costa escreveu em seu Correio Braziliense que o sistema das
aposentadorias era um “regulamento medieval”, um “ataque direto ao sagrado direito de
propriedade”, que “poderia tornar o novo governo no Brasil odioso para o seu povo”.
Nem tão medieval assim, uma vez que ele continua existindo em nossos dias.
O que temos hoje, em matéria de desapropriações forçadas, é um fenômeno
diferente, mas não menos preocupante em termos de legalidade e respeito aos direitos
de propriedade: são contingentes organizados (em número relativamente desconhecido)
de “sem-terra” e de “sem-teto” profissionais que, alimentados por cestas básicas
fornecidas pelo próprio Estado e arregimentados de forma quase militar por
organizações igualmente sustentadas pelo dinheiro estatal, se dedicam a invadir
propriedades rurais e urbanas em nome da “justiça social”. Eles o fazem invocando
“direitos”, que sempre são os seus direitos particulares, não os direitos da coletividade.
De fato, a Constituição brasileira de 1988 contém 76 vezes a palavra “direito”, muito
poucas vezes a palavra “obrigação”, raríssimas vezes a palavra produtividade e quase
nenhuma o conceito de eficiência.
Mas, talvez esses ataques ao direito da propriedade, e aos cofres públicos – pois
é deles que sairão os recursos para garantir tantos direitos a terras e moradias – não
sejam os mais lesivos ao erário público. Passados duzentos anos de desapropriações
estatais para acomodar os poderosos do momento, o que temos hoje em matéria de
“acomodação” dos nobres servidores do Estado? A transcrição de uma matéria da Folha
de São Paulo, de 22.10.2007, nos informa que: “Judiciário vai gastar R$ 1,2 bi para
144
construir três tribunais”. Subtítulos esclarecedores: “Procuradoria investiga suspeita de
desperdício de dinheiro e superfaturamento”; “Presidente do Tribunal Regional Federal
de Brasília terá um gabinete 4 vezes maior que o de Lula”.
Vale a pena transcrever alguns pontos da matéria: “O Judiciário vai gastar R$
1,2 bilhão na construção de três suntuosas sedes de tribunais com suspeitas de
desperdício de dinheiro público, direcionamento de licitações e superfaturamento. Os
custos estimados pelos tribunais poderão aumentar até o final das obras. O Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, decide nesta semana quem tocará uma obra
de R$ 489,8 milhões com área total de construção maior do que a do Superior Tribunal
de Justiça. Nas novas instalações, o presidente do tribunal e seus assessores ocuparão
um gabinete quatro vezes maior do que o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O
Ministério Público Federal pediu a suspensão das obras e a anulação da licitação para a
construção da nova sede do Tribunal Superior Eleitoral, estimada em R$ 336,7
milhões.”

7. Como evoluímos em matéria de empregos públicos?


A fuga da família real não se restringiu, como se sabe, a meia dúzia de ministros
e algumas dezenas de funcionários do Estado. Foram alguns milhares de “dependentes”
do Estado que precisavam ser agraciados com os favores da corte. Apenas a título de
comparação mencione-se que em 1800, ao transferir a capital da Filadélfia para
Washington, o presidente John Adams trouxe consigo cerca de 1.000 funcionários
governamentais. Com D. João, vieram entre 10 e 15 mil funcionários portugueses,
segundo as crônicas históricas.
Era preciso dar emprego para toda essa gente. Na verdade, muitos deles não
trabalhavam, consoante seu estatuto de “nobres” (aos quais não se permitia o exercício
de alguma atividade “manual”. Em Portugal, para sermos precisos, não eram muitos os
nobres, mas o coração generoso de D. João se encarregaria de criar muitos mais, ao aqui
chegar, pela prática de enobrecer aqueles que tinham cedido suas casas, contribuído
financeiramente para a manutenção da corte, participado na constituição do Banco do
Brasil e outros favores mais.
Como esclarece um historiador: “Os indivíduos enobrecidos, agraciados com
hábitos ou comendas, entendiam não lhes quadrar mais comerciar, sim viver das suas
rendas, ou melhor ainda, dos empregos do Estado. Avolumar-se-ia desta forma o
número dos funcionários públicos, com o rancor dos burocratas do reino, que tinham
145
acompanhado a família real ou chegavam seduzidos por essas colocações em que as
fraudes multiplicavam os ganhos lícitos, muito pouco remunerados” (Oliveira Lima, D.
João VI no Brasil, p. 57).
E não eram poucos, os candidatos a um emprego público: além da família real,
276 fidalgos e dignitários régios recebiam verba anual de custeio e representação, paga
em moedas de ouro e prata, retiradas do erário real; havia ainda 2000 funcionário reais,
700 padres, 500 advogados, 200 praticantes da medicina, entre 4 e 5 mil militares, todos
vivendo em torno da Coroa. Um dos padres recebia 250 mil réis (14 mil reais de hoje),
só para confessar a rainha (Fonte: Luiz Felipe Alencastro, “Vida privada e ordem
privada no império” in História da Vida Privada no Brasil, vol. 2, p. 12).
Hoje, o que temos, exatamente, em matéria de sanguessugas do Estado? As
prebendas estatais, deve-se reconhecer, se democratizaram: o número de funcionários
públicos tem experimentado uma curva ascendente no atual governo, que criou ou
recriou dezenas de estatais (a última sendo um TV estatal), expandiu cargos de
confiança devidamente aparelhados pelo partido no poder, e se esforça para convencer a
população que para melhorar o serviço público é preciso contratar mais gente.

8. Como foi o nosso desenvolvimento econômico comparado com outros países?


Como se situava o Brasil no confronto econômico com outros países? Éramos
pobres, mas os demais países não eram muito mais ricos do que nós. No início do
século XIX, a divergência econômica entre os países ainda não tinha alcançado os
patamares que ela ostentaria um século depois.
Segundo os dados comparativos coletados em bases homogêneas pelo
economista-historiador Angus Madison, a distância entre o Brasil e países como México
ou Japão não era significativa, assim como era relativamente pequeno o diferencial de
renda em relação à maior parte dos países, com exceção dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha, então a economia mais avançada em termos de renda em função do seu
pioneirismo na revolução industrial, sendo o país americano o seu êmulo direto nesse
processo.
A tabela seguinte dá uma ideia dos valores em dólares constantes (atualizados
para 1990, segundo os cálculos de Angus Madison) e sua proporção em relação ao
Brasil:

146
PIB per capita e comparações entre os países, 1820
Países PIB per capita Brasil = 100
Brasil 670 100
México 759 113
Japão 669 99
França 1.230 183
Estados Unidos 1.257 232
Grã-Bretanha 1.707 254

Como foi a nossa evolução desde então? A mesma tabela pode ser construída
com valores mais atuais:

PIB per capita e comparações entre os países, 1998


Países PIB per capita Brasil = 100
Brasil 5.459 100
México 6.655 122
Japão 20.084 368
França 19.558 358
Estados Unidos 27.831 500
Grã-Bretanha 18.714 342

A distância só fez aumentar, evidenciando o nosso baixo dinamismo econômico


no longo período decorrido desde então. Aqui, os mesmos resultados em visão
diacrônica:

Evolução histórica do PIB per capita, 1820-1998 (1820 = 100)


Países 1900 1998
Brasil 105 814
México 152 876
Japão 161 3.002
França 233 1.590
Estados Unidos 318 2.174
Grã-Bretanha 261 1.096

Muito desse baixo dinamismo econômico pode ser explicado por nossa pequena
abertura internacional. Uma comparação de nosso coeficiente de abertura externa revela
a reduzida participação do comércio exterior na formação do PIB, quando é pelas
transações externas que se realizam as incorporações de capitais e tecnologias
modernizadoras. No período recente, em particular, nosso crescimento tem sido pífio
em relação à média mundial e, sobretudo, em relação aos emergentes dinâmicos da Ásia
147
oriental. Considere-se, por exemplo, o PIB per capita da Coréia do Sul que, em 1960,
representava 50% do valor do PIB per capita do Brasil. Atualmente, o país asiático nos
superou por uma razão de três. Na média, o crescimento dos países emergentes nos
últimos dez anos tem sido três vezes superior ao do Brasil, que cresce mais ou menos a
metade do PIB mundial. Nesse ritmo, nossa renda per capita vai dobrar apenas em três
gerações (75 anos), ao passo que a da China dobra a cada 17 anos.

9. E o que a nossa Constituição tem a ver com tudo isso?


Bem, aqui já não estamos falando de nenhum legado português, e sim de
problemas e deficiências “made in Brazil”. O fato é que, desde a promulgação da
Constituição de 1988, a carga fiscal promovida pelo Estado predador aumentou
inapelavelmente a cada ano, passando de um quarto do PIB a mais de um terço (e
crescendo continuamente). Em comparação mundial, nos situamos atualmente no nível
dos países da OCDE – que dispõem de uma renda per capita seis vezes superior à nossa
–, o que representa cerca de dez pontos percentuais acima da média dos paises
emergente e vinte pontos acima dos mais dinâmicos.
A lista de problemas brasileiros é muito extensa, mas ela poderia ser resumida
da seguinte forma:
1. Constituição detalhista, intrusiva, concedendo muitos “direitos” e demandando
muito poucas obrigações;
2. Estado extenso, também intrusivo, perdulário, gastador, “burrocrático” e
gigantesco;
3. Regulação microeconômica hostil aos negócios e ao trabalho, dando pouco espaço
às relações autorreguladas e diretamente contratuais;
4. Monopólios em excesso, cartéis e restrições de mercado, pouca competição e
muitas barreiras a novos ofertantes de bens e serviços;
5. Reduzida abertura externa, seja para comércio, investimentos ou fluxos de
capitais, criando ineficiências, altos custos e preços, ausência de competição e de
inovação;
6. Sistemas legal e judicial atrasados, permitindo manobras processuais que atrasam
a solução das disputas e aumentam custos de transação.

Uma agenda das reformas absolutamente necessárias para sustentar um processo


sustentado de crescimento econômico, não detalhada no presente ensaio por razões de
espaço, compreenderia ações nos seguintes campos: político, tributário, educacional,
previdenciário, trabalhista e no da governança pública. A reforma política, deveria
começar pela Constituição (operando uma limpeza em regra); ela continuaria pela
redução das legislaturas nos três níveis (a representação parlamentar é excessiva, com
148
enormes gastos, injustificáveis); passaria pela reforma eleitoral ( com a introdução do
sistema distrital misto) e atingiria a estrutura partidária (diminuindo o “mercado”
político que hoje impera no Congresso).
A tributária choca-se com o problema da federação, mas deveria ser uma
reforma completa, macro e micro; ela começaria por uma simplificação tributária geral
e caminharia no sentido da redução progressiva dos tributos; teria continuidade na
abertura econômica, com redução dos impostos alfandegários, e passaria também pela
liberalização do comércio e dos investimentos estrangeiros; concederia, por fim,
incentivos à inovação (reforço da propriedade intelectual).
A reforma educacional deveria concentrar-se no ensino básico, prevendo
capacitação de professores, a introdução de um regime meritocrático de avaliação e de
remuneração. Em qualquer hipótese, se deveria conceder prioridade absoluta de
recursos para os dois primeiros ciclos de ensino, concedendo-se a tão solicitada
autonomia universitária, igualmente em termos de orçamentos. No plano da seguridade
social, impõe-se, antes de mais nada corrigir o festival de privilégios ainda existentes,
ou seja, reduzir os benefícios abusivos do setor público; depois, seria necessário ampliar
os prazos e as idades mínimas, modular as contribuições em função de uma relação
estrita entre pagamentos e benefícios, com garantias mínimas, suprimir os regimes
especiais e diminuir os desincentivos derivados dos direitos garantidos.
Quanto à reforma trabalhista (e sindical), o ideal seria a flexibilização da
legislação (mais contratualismo e negociações diretas entre as partes), a eliminação da
Justiça do Trabalho (por ser, na verdade, uma instância estimuladora de conflitos,
substituindo-se a ela o regime arbitral) e operar de vez a extinção da Contribuição
Sindical, que cria sindicatos de papel. Finalmente, quanto à governança pública, o que
se pretende seria uma redução radical do governo (que seria mantido sob dieta estrita), a
retomada das privatizações, o reforço das agências reguladoras e o fim da estabilidade
do funcionalismo público.
Existe alguma chance de sucesso num programa desse tipo? Duvidoso. O Brasil
está provavelmente condenado ao baixo crescimento, à preservação de uma estrutura
social iníqua e ao baixo dinamismo nos processos de inovação e modernização. Esse
tipo de desempenho não é inédito em termos históricos: antes de nós, a Grã-Bretanha e
a Argentina constituíram as duas evidências mais remarcáveis de uma longa decadência
e de empobrecimento contínuo. Talvez o Brasil seguirá o mesmo caminho pelos
próximos 20 anos ou mais. Não é certo, mas é provável que isso ocorra, em vista da
149
nossa incapacidade de empreender as reformas que são necessárias para corrigir as
deficiências atuais do nosso sistema (que, repita-se, não têm mais nada a ver com o
legado português).
A responsabilidade, como sempre, está com cada um de nós…

Relacionado ao trabalho 1840: “Então e agora: do começo da Nação aos


dias de hoje; Como era o país, no momento de sua formação, em 1808?;
Como ele se apresenta hoje?”, exposição oral em seminário sobre “1808 -
A Abertura dos Portos”, realizado em 28 e 29 de novembro de 2007, sob
o patrocínio da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.
Espaço Acadêmico (ano 7, n. 80, janeiro 2008; ISSN: 1519-6186).
Postado no blog Diplomatizzando (11.07.2010; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/07/de-1808-ate-hoje-por-que-
o-brasil-ainda.html).

150
22. Um outro Fórum Social Mundial é possível…

Atlântida (RS), 1853, e Brasília, 1854: 17 e 25 janeiro 2008, 4 + 5 p.


Via Politica (21 e 28/01/2008)

(A) Fórum Social Mundial 2008: Um pouco menos de transpiração e um pouco


mais de inspiração, por favor...

No dia 26 de janeiro de 2008, os coordenadores e militantes do Fórum Social


Mundial pretendem organizar, em diversas cidades do Brasil e do mundo, mais uma
jornada de protestos contra vários dos seus inimigos (e eles são muitos): contra o World
Economic Forum, seu irmão mais velho, mas quase gêmeo, de Davos, contra o
capitalismo desigual, iníquo e opressor, contra os mercados globais (que são, por
definição, excludentes, como todo mundo sabe), contra a miséria, a pobreza e a
desigualdade, contra a devastação do meio ambiente (toda ela conduzida por empresas e
indivíduos ávidos de lucro), enfim, contra uma série de males e perversões desta nossa
época (e, diga-se de passagem, de várias outras épocas, também).
Tenho assistido a essas manifestações de protesto desde sua primeira aparição,
ainda antes da estruturação formal do movimento dos antiglobalizadores em um Fórum
Mundial, a partir de meados da década passada, quando eles começaram lutando contra
o MAI-OCDE, depois contra os 50 anos do GATT e a nova OMC, depois contra toda e
qualquer reunião de organismos econômicos internacionais, e mais recentemente ainda,
contra toda e qualquer reunião política que congregue os “poderosos do mundo” – como
o G-7/G-8, por exemplo, ainda que esses poderosos estejam se reunindo para lutar a
favor dos direitos humanos e pela defesa do meio ambiente. Não importa: os
antiglobalizadores são fundamentalmente do contra; eles protestam um pouco contra
tudo e contra todos, com um ardor juvenil que lembra, por vezes, os bons (e
turbulentos) momentos de maio de 1968. Parabéns pelo entusiasmo, ainda que toda essa
transpiração tenha de ter, atrás de si, alguma inspiração, pelo menos é o que se supõe,
de um movimento que passou a se chamar, gloriosamente, de Fórum Social Mundial a
partir de seu primeiro encontro em Porto Alegre, em 2001.
Confesso, na verdade, que estou cansado de assistir, assistir e assistir a todas
essas grandiosas manifestações e, ao final de cada uma delas, ter de chegar a uma
conclusão patética, que representa, também, uma pergunta: eles estão protestando contra
o que, mesmo? Claro, eu já relacionei, no primeiro parágrafo, os inimigos habituais dos
151
antiglobalizadores, embora eles disponham de uma lista ainda mais completa do que a
minha: além daqueles relacionados acima, eles são contra a opressão da mulher, das
minorias, contra as multinacionais, os mercadores de armas, os simples mercadores,
enfim, contra tudo o que represente economia mercantil e lucro, sobretudo o lucro (no
que eles acolhem a companhia desta Santa Madre, a Igreja Católica). Mas, eu me
pergunto – e, comigo, certamente pelo menos meia dúzia dos meus leitores – eles são a
favor do quê, exatamente? Sim, eles proclamam, desde o very beginning do seu
movimento, que “um outro mundo é possível” (e suas diversas variantes: uma outra
economia, um outro Brasil, ou outro Piauí etc.). Mas, continuo aguardando, desde 2001
pelo menos, que eles nos digam do que seria feito esse outro mundo possível (e
supostamente factível).
Tenho escrito muito a este respeito, no começo com maior constância do que
nos últimos tempos, pois de fato não tenho encontrado muitos motivos para write about,
pois para isso seria preciso ter du pain sur la planche, como diriam os franceses, isto é,
coisas substantivas para que eu possa me pronunciar a respeito. Verifico, em minha lista
de trabalhos, que meu último escrito sobre o FSM, e suas “ideias”, tem quase um ano de
redigido e publicado, consistindo, para ser mais preciso, neste ensaio: “Ocaso de uma
utopia?: objetivos nobres e vacuidade de ideias no Fórum Social Mundial”, Brasília, 29
janeiro 2007, 12 p.; Espaço Acadêmico (ano 6, nº 69, fevereiro 2007;). Nele eu me
pronunciava sobre um conjunto de teses – sendo generoso com esta expressão – que os
coordenadores do FSM tinham acabado de aprovar e que, segundo eles, deveriam
inspirar e mobilizar os antiglobalizadores nas suas jornadas de protestos around the
world (em 2007 foi no Quênia, lembram-se?; recordo-me de alguns depoimentos que
reclamavam dos altos preços de tudo, de militantes de meios modestos terem sido
enganados por quenianos pouco escrupulosos, enfim, o lote comum de todo e qualquer
turista aprendiz). Não pretendo agora retomar meus argumentos, e muito menos as
“teses” dos meus inspiradores, pois tudo isso são águas passadas, e o que importa,
como eles mesmos diriam, é o próprio movimento, é a marcha constante e cada vez
mais global de protestos contra a globalização.
O que eu gostaria de chamar a atenção, neste ano bissexto de 2008 – no qual,
portanto, o capitalismo global disporá de um dia a mais para realizar lucros, integrar
mercados, oprimir povos longínquos, enfim, continuar sua obra nefasta em escala
propriamente global –, seria para um fato singelo: como é que a imprensa dita
responsável, os grandes jornais nacionais, as redes de TV e de rádio, os grandes grupos
152
de comunicação, enfim, que estão no próprio coração daquilo que os antiglobalizadores
mais detestam, como é que esses meios conseguem dar tanta atenção e atribuir tanto
espaço em seus veículos a literalmente nada de substantivo, a quase zero de propostas
com algum significado prático, a praticamente nenhuma ideia relevante em termos de
sugestões e propostas para o tal de “outro mundo possível”? Como isso é possível?
Como é que se consegue ter, retomando meu subtítulo, tanta transpiração para tão pouca
(if any) inspiração? Os jornalistas ainda não conseguiram refletir como se dá esse
milagre? Ou seriam os jornalistas quase tão néscios quanto o seu objeto privilegiado de
atenção durante quase uma semana nesses diversos cantos do globo?
Ao ler um dos últimos boletins do FSM, que faz o relato das providências para o
“dia de ação global” – eles não conseguem evitar a raiz da palavra tão detestada,
embora os franceses preferissem “mondial” e “mondialisation” –, constato que eles
estão ativamente empenhados em agendar reuniões de grupos de trabalho, confeccionar
bandeiras e cartazes para suas manifestações de protesto, enfim, preparar-se para
“milhares de atividades organizadas por movimentos, grupos, redes e entidades em seus
locais de atuação, seguindo agendas próprias, mas relacionadas com a construção de
‘um outro mundo possível’” (boletim de 13.11.2007).
Retomo explicitamente suas palavras, para ficar mais claro: “A proposta do
FSM 2008 é realizar uma semana de mobilização internacional repleta de debates,
eventos culturais, intervenções artísticas, marchas, protestos, ações diretas, encontros e
outras formas de manifestação que irão culminar no Dia de Ação Global em 26 de
janeiro”. Muito bem: jovens bem alimentados e dispondo de algum dinheiro no bolso
conseguem, de fato, fazer tudo isso e ainda retornar para casa contentes, satisfeitos com
o dever cumprido, com mais alguns contatos na agenda eletrônica, novos amores, novas
amizades e muitas histórias para contar (um pouco de gás lacrimogênio costuma fazer
parte dos relatos). Mas, eu me pergunto: o quê, exatamente, eles estarão fazendo, que
torna mais factível, realizável, concreto esse outro mundo possível que eles dizem estar
construindo?
Eu me pergunto a cada ano, e confesso que ainda não obtive respostas
satisfatórias. Mas, o que me surpreende é que jornalistas inteligentes – o pressuposto é
obrigatório – não se façam a mesma pergunta e, além de cobrir essas ruidosas marchas
de protestos, eles se questionem, e com isso interroguem os seus organizadores: o quê
sai de tudo isto?; so what?; et alors?; a que viene todo esto?; alora, che?; warum? Fico
realmente estupefato pela falta de curiosidade dos jornalistas e também, por que não
153
dizê-lo?, dos próprios participantes acadêmicos desses encontros: a que serve tudo
isso?, se não é para contribuir com ideias inteligentes para a resolução dos problemas
fundamentais da humanidade, como proclamam cada vez e sempre os
antiglobalizadores?
Afinal de contas, eles estão supostamente se reunindo para traçar “algumas
estratégias para que a jornada de mobilização internacional potencialize as ações locais,
integrando-as na rede de resistência e construção de alternativas ao Fórum Econômico
de Davos”. Este é o seu objetivo proclamado, e é em nome dele que jornalistas
supostamente inteligentes deveriam se interrogar e, a partir daí, interrogar os
animadores do FSM, para que estes respondam pelo que prometeram: construir
alternativas ao irmão maligno de Davos. Onde estão as alternativas? Onde foram parar
os elementos formadores, os tijolos construtores do “outro mundo possível”?
Enquanto o pessoal do FSM não entregar o que promete desde muitos anos, não
deixarei de exercer minha pluma crítica na cobrança do que me é devido: explicações,
argumentos, ideias, propostas (de preferência racionais e logicamente sustentadas),
enfim, um mínimo de consideração para com a inteligência alheia. Do contrário, vou
acabar acreditando que se trata de uma grande brincadeira, uma espécie de jamboree
adolescente, uma saudável reunião de adolescentes que ainda estão tentando entender
como funciona o mundo, para depois apresentar algumas ideias a respeito.
Senhores jornalistas, façam o seu trabalho: questionem, interroguem, duvidem,
critiquem, enfim, respondam às perguntas fundamentais de sua profissão, aquelas
mesmas que vocês aprenderam, supostamente, nos cursos de jornalismo alguns anos
atrás.
Do contrário, vou começar a duvidar da inteligência de uns e de outros...

Atlântida (RS), 17.01.2008

(B) Um outro Fórum Social Mundial é possível...


(aliás, é até mesmo necessário)

O slogan central do Fórum Social Mundial e do movimento antiglobalizador –


adotado originalmente pelos altermundialistas franceses da Attac – é “um outro mundo
é possível” (e todas as derivações geográficas e temáticas: uma outra África, um outro
Piauí, uma outra economia, uma outra sociedade etc.). Acredito tratar-se de um bom
slogan, pelo menos em termos de marketing e publicidade, que permite esse tipo de
154
simplificação para vender uma boa ideia, sem necessariamente entrar nos detalhes de
sua efetivação.
Eu também acho que um outro mundo é, não apenas possível, como desejável,
em vista dos muitos problemas neste que conhecemos, não apenas em termos de
iniquidades econômicas e injustiças sociais, mas também ausência de democracia em
muitos países, desrespeito generalizado aos direitos humanos – inclusive, e sobretudo,
os da mulher, em incontáveis nações de um determinado arco civilizatório e religioso –
e esse outro mundo é tão mais necessário que milhões de pessoas, em nosso mundo
concreto, sobrevivem em condições inaceitáveis de pobreza e de miséria. Por isso,
devemos todos esforçar-nos para tornar factível um outro mundo de prosperidade, de
respeito aos direitos humanos – sem qualquer ressalva culturalista ou “politicamente
correta” –, de democracia plena e de oportunidades iguais para todos.
O diabo, como já disse alguém, está nos detalhes: como, exatamente, construir
esse outro mundo talvez possível, mas certamente desejável? Por um momento, desde o
surgimento do movimento altermundialista na Europa, há mais ou menos dez anos,
acreditamos que seus militantes devotados e os nobres defensores de suas causas
humanitárias e progressistas, fossem nos trazer as respostas indispensáveis para que se
pudesse dar início à construção desse “outro mundo possível”. Eu, pessoalmente, venho
aguardando, nestes dez anos de agitação altermundialista, que seus promotores
apresentem a receita desse outro mundo julgado possível, que eles anunciam, insistente
e repetidamente a cada ano, sem jamais apresentar a fórmula milagrosa dessa genial
trouvaille.
De fato, a cada ano é a mesma história: os altermundialistas se reúnem,
ruidosamente, a grandes clarins de publicidade gratuita (de uma imprensa que me
parece tão leviana quanto eles), fazem manifestações coloridas, ouvem dezenas de
discursos de seus gurus oficiais, sufocam (sem ar condicionado) em centenas de
reuniões e encontros de trabalho certamente muito animados e, depois... nada,
rigorosamente NADA!
Não estou dizendo nenhuma novidade jornalística se afirmar que eles falham,
cada ano, em suas promessas reincidentes: nunca, jamais de la vie, ever and ever, mai,
eles conseguiram entregar o que prometem tão enfaticamente, o que anunciam a tantos
golpes de publicidade globalizada (e, o que é mais importante, gratuita, como jamais
desfrutou o seu irmão inimigo de Davos). Nesses dez anos, nunca houve, nem parece

155
haver condições de existir, sequer um rascunho da arquitetura desse outro mundo
possível que eles anunciam cada vez.
Bem, o mundo certamente mudou nestes dez anos, não sei se eles perceberam,
pelo menos para chineses, indianos e um bocado de gente espalhada por aí. Talvez não
seja exatamente o mundo que eles, altermundialistas, estivessem esperando, isto é, um
mundo sem capitalistas, sem lucros, sem mercados e sem várias outras coisas que eles
acreditam estar na raiz das iniquidades atuais. Eles deveriam perguntar aos chineses o
que eles, chineses, estão achando da globalização. Provavelmente, a resposta não será
conforme ao que eles esperam, mas talvez este seja o mundo possível, atingível por
milhões de chineses e indianos.
Como os altermundialistas – que são, na verdade, antiglobalizadores, ou pelo
menos pretendem uma outra globalização –, não conseguem entregar o seu peixe, isto é,
revelar o segredo desse outro mundo possível, eu só posso concluir que um outro Fórum
Social Mundial é, não apenas possível, como necessário, pois o que existe até o
momento não consegue deliver o que promete.
Para ajudá-los nessa tarefa ingente de transformar sonhos em realidades,
promessas em realizações tangíveis, talvez eles devessem começar lendo bons livros de
história, de desenvolvimento econômico, de relações internacionais, pois, pelo visto, as
cartilhas que andam percorrendo – uma mistura de Noam Chomsky, com Eduardo
Galeano e outros perfeitos idiotas da globalização – não estão servindo para nada. Eles
devem, antes de mais nada, se desvencilhar de ideias caducas, inadequadas ao mundo
atual ou simplesmente equivocadas. Para ajudá-los na tarefa, começo por listar alguns
dos artigos que escrevi nos últimos anos, tendo como objeto, justamente, a globalização
e seus românticos (e ineficazes) detratores. Talvez eles possam fazer um novo encontro
com outras ideias possíveis, pois as atuais são impossíveis...

Paulo Roberto de Almeida


Lista de trabalhos sobre a antiglobalização e os altermundialistas:

1762. “Globalização perversa e políticas econômicas nacionais: um contraponto às


visões correntes em certos meios”, Espaço Acadêmico (n. 74, julho 2007).
1715. “Ocaso de uma utopia?: objetivos nobres e vacuidade de idéias no Fórum Social
Mundial”, Espaço Acadêmico (nº 69, fevereiro 2007).
1665. “Uma previsão marxista...”, Espaço Acadêmico (ano VI, nº 65, outubro 2006).
1579. “Um diálogo sobre a globalização: Intercâmbio de ideias nunca faz mal”, blog
Diplomatizando (link: http://diplomatizando.blogspot.com/2006/04/366-um-
dilogo-sobre-globalizao.html#links).
156
1574. “Sorry, antiglobalizadores: a pobreza mundial tem declinado, ponto!”, Resumo no
blog Diplomatizando (link: http://diplomatizando.blogspot.com/2006/04/349-
sorry-antiglobalizadores-pobreza.html#links); íntegra: “A distribuição mundial de
renda: caminhando para a convergência?”, Meridiano 47 (setembro 2006).
1573. “A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos”, Espaço
Acadêmico (nº 61, junho 2006).
1538. “Uma imprensa superficial ou uma cobertura vazia de conteúdo?: a propósito do
Fórum Social Mundial e a “inteligência” jornalística”, Observatório da Imprensa
(23.01.2006).
1533. “Anti-globalizadores super globalizados”, Brasília, 16 janeiro 2006, 1 p.
Comentários sobre a agenda globalizada de reuniões do FSM. Blog PRA
(16/01/2006; link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/168-anti-globalizadores-
super.html).
1532. “Resultados antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia
garantida...”, Blog PRA (15/01/2006; link:
http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-antecipados-do-foro-
de.html).
1530. “Perguntas impertinentes a colegas que me acusam de ser ‘liberal
fundamentalista’”, Blog PRA, link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/154-
perguntas-impertinentes-colegas.html; “Perguntas impertinentes a um amigo anti-
globalizador”, Meridiano 47 (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais, ISSN 1518-1219, nº 65, dezembro 2005, p. 2-4).
1525. “Um debate sobre processos econômicos”, Blog PRA (8/01/2006; link:
http://paulomre.blogspot.com/2006/01/137-em-torno-de-um-debate-
econmico.html).
1523. “Think Again (2): Alter-mundialismo?”, Blog PRA (4/01/2006; link:
http://paulomre.blogspot.com/2006/01/111-think-again-2-alter-
mundialismo.html).
1297. “Contra a anti-globalização: Contradições, insuficiências e impasses do
movimento anti-globalizador”, Meridiano 47 (nºs 49-58, agosto 2004-maio 2005)
1281. “Globalização para todos os gostos”, Resenha do livro de Jagdish Bhagwati: Em
Defesa da Globalização: como a globalização está ajudando ricos e pobres (Rio
de Janeiro: Elsevier-Campus, 2004, 348 p.).
1258. “A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo”, Espaço
Acadêmico (nº 37, junho 2004).
1252. “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”,
Meridiano 47 (Brasília: nº 44-45, março-abril 2004, p. 13-16).
1205. “A globalização e o desenvolvimento: vantagens e desvantagens de um processo
indomável”, Achegas (Rio de Janeiro: nº 20, novembro-dezembro de 2004; link:
http://www.achegas.net/numero/vinte/pralmeida_20.htm).
1011. “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em
escala mundial”, Revista Autor (ano III, n° 21, março 2003, ISSN 1677-3500).
Publicado em três partes na revista Espaço Acadêmico (Maringá; Ano III, 1ª parte:
nº 29, outubro de 2003; 2ª parte: nº 30, novembro de 2003; 3ª parte: nº 31,
dezembro de 2003).
920. “O Brasil como sócio menor da globalização: insuficiente interdependência
econômica e pequena participação comercial”, Revista de Economia e de Relações
Internacionais (São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado; ISSN: 1677-
4973; vol. 1, nº 2, janeiro 2003, pp. 5-17; Link: http://www.faap-
mba.br/revista_faap/rel_internacionais/socio.htm).
157
737. “O Brasil e os primeiros 500 anos de globalização capitalista”, revista Estudos
Iberoamericanos (Porto Alegre: PUC-RS, Edição Especial, nº 1, 2000, pp. 149-
180).
734. “O Brasil e os impactos econômicos e sociais da globalização”, in Universidade
Católica de Brasília (org.), Relações Internacionais e Desenvolvimento Regional
(Brasília: Editora Universa, 2000, p. 115-149).

Brasília, 25 de janeiro de 2008

158
23. O império americano em sete teses rápidas: uma hegemonia
involuntária, envergonhada e não reconhecida

Brasília, 1878: 19 abril 2008, 3 p.


Via Política (20/04/2008)

Pretendo alinhar alguns argumentos de natureza basicamente impressionista –


mas nem por isso desprovidos de fundamentação histórica, econômica ou política – para
tratar da questão mais relevante da atualidade: a chamada hegemonia americana, que
para alguns se aproximaria de uma “arrogância imperial”. Embora eu concorde,
basicamente, com o argumento de que os Estados Unidos da América (EUA)
constituam um império, embora de novo tipo, tenho sérias reservas quanto a essa
denominação e também quanto ao que se imagina que os EUA representem no mundo
atualmente. Com efeito, a maior parte daqueles que se utilizam desse conceito para se
referir aos EUA têm uma imagem basicamente negativa dessa qualificação,
identificando-a aos antigos impérios do passado e alimentando uma imagem
essencialmente negativa desse papel “imperial” nas relações internacionais
contemporâneas.
Como não concordo com esse tipo de visão, vou alinhar, nas sete seções abaixo,
minha interpretação do fenômeno imperial americano, embora de forma rápida e sem o
apoio em referências documentais ou bibliográficas, deixando para uma futura ocasião o
desenvolvimento dessas “teses” informais. Esclareço, porém, que essas minhas “teses”
resultam de uma leitura cuidadosa do processo histórico, com base numa ampla lista de
livros e ensaios especializados no desenvolvimento comparado das civilizações.

1) Os EUA não são um império, no sentido formal da palavra.


Um império é, basicamente, um sistema extrator de recursos por meio da
coerção, o que não ocorre no caso dos EUA, que estão comprometidos com valores e
princípios condizentes com a liberdade de mercados e as franquias políticas
democráticas. Qualquer afirmação em contrário teria de comprovar que as ditaduras que
os EUA apoiaram em várias partes do mundo, na era da Guerra Fria, foram obras
construídas consciente e deliberadamente pelos EUA para assegurar um tipo qualquer
de extração de recursos por via da coerção militar.

159
De uma parte, os EUA são um poder aroniano por excelência, ou seja, um
Estado que soube, melhor do que qualquer outro, no concerto de nações, conjugar e
combinar os dois vetores essenciais de qualquer capacidade de projeção internacional.
Esses vetores são constituídos, de um lado, por uma presença dilatada e ativa nos mais
diversos foros e cenários abertos à sua diplomacia e, de outro, por uma poderosa
ferramenta de afirmação do seu poder primário, isto é, sua força militar, que permanece
incontrastável desde um século aproximadamente. O diplomata e o soldado, ainda que o
primeiro apareça como bem menos eficiente do que o segundo, são os instrumentos
sempre presentes da afirmação internacional ímpar desse hegemon relutante, desse
decisor incontornável, de última instância, nos assuntos de segurança internacional e
desse árbitro unilateral, por vezes arrogante, das questões de segurança de outros países,
incapazes, por sua própria vontade e poder, de dirimir certas contendas ou de afastar
certas ameaças.
De outra parte, os EUA constituem também um Estado radicalmente
westfaliano, no sentido em que eles serão, provavelmente, a última nação do planeta
disposta a ceder soberania a qualquer entidade intergovernamental, internacional ou
supranacional que possa ser chamada a exercer, pela evolução natural ou dirigida do
direito internacional, competências reguladoras ou decisoras infringindo o mandato
original conferido ao seu congresso, vale dizer, ao povo dos EUA. Contrastando com
outras nações, da Ásia do Sul à América Latina, passando sobretudo pela Europa, mas
também pelo Oriente Médio e pela África, que consentem em renunciar, por vezes
alegremente, à sua soberania – em políticas macro e setoriais, em questões monetárias e
até em matéria de defesa –, os EUA não são sequer relutantes quanto a isso: eles
simplesmente não cogitam em colocar qualquer aspecto de sua soberania exclusiva,
política, econômica e a fortiori militar, nas mãos de qualquer outro poder político que
não seja o seu próprio Congresso e, em última instância, o seu povo. A China talvez
possa ser um Estado tão “westfaliano” quanto os EUA, mas ela é muito pouco aroniana
em sua natureza profunda e em seu modo de ser.

2) Mesmo que os EUA se conformassem ao e se aproximassem do modelo dos


impérios, eles constituiriam um império de novo tipo.
Os EUA não estão diretamente interessados na construção de um poder
hegemônico incontrastável e incontestável, como os impérios “extratores” do passado.
Eles estão, sim, interessados em garantir a sua própria segurança e em criar as
160
condições para que essa segurança se expresse em termos não diretamente militares e
sim econômicos, comerciais e financeiros, ou até em bens intangíveis, como são os
valores da democracia, da livre iniciativa e da liberdade individual.

3) A única hegemonia na qual os EUA estão interessados é a hegemonia do


livre-comércio.
Em outros termos, os EUA estão interessados em um sistema de portas abertas
no qual não subsistam restrições, ou que elas sejam muito poucas e não-
discriminatórias, à atuação de suas empresas nas diversas frentes dos intercâmbios
humanos e sociais que possam, de fato, estar (e ficar) abertos à criatividade de suas
empresas e cidadãos.

4) Nesse sistema de portas abertas, a única “ditadura” suscetível de ser criada


pela hegemonia dos EUA é aquela que destrói todas as ditaduras.
Estas são as bases indiscutíveis do “império” americano: a livre circulação de
fatores de produção e de produtos da inteligência e da criatividade humanas. Esse é um
sistema destruidor de todas as hegemonias conhecidas historicamente. Mas quem
destrói todas as velhas hegemonias não é o poder comercial ou econômico dos EUA, e
sim a força das suas ideias, ideias muito simples: liberdade de iniciativa, liberdade
política, liberdade de acumular e de circular riquezas.

5) Nos últimos dois séculos de sua existência enquanto nação independente, os


EUA exerceram, inquestionavelmente, um papel eminentemente positivo na história da
humanidade.
Isto se deu tanto em termos de liberdade econômica como no terreno das
franquias democráticas e dos direitos humanos, não necessariamente porque os
americanos são mais virtuosos do que outros povos, mas pela configuração específica
de sua “civilização”. Seus valores básicos confundem-se com os do racionalismo
iluminista, embora eles sejam extremamente confusos e contraditórios na hora de
aplicá-los na prática, fruto de um regime de extrema liberdade individual, o que redunda
eventualmente em disfunções localizadas.
Os valores essenciais da vida política e social americana – democracia,
liberdade, representação, império da lei, iniciativa individual e recompensa pelos
méritos – não são exportáveis, ainda que muitos, inclusive e principalmente os próprios
161
americanos acreditam sinceramente que eles são o farol da liberdade e que, como tal,
deveriam levar esses valores a outros povos e nações. Daí um inevitável pêndulo entre
duas posturas recorrentes, o isolacionismo e o envolvimento, que agitam de forma
ambígua a história internacional dos EUA no último século e meio, aproximadamente.

6) Os EUA são uma nação westfaliana, no sentido clássico da palavra, mas de


âmbito universalista.
Os EUA acreditam na soberania nacional, que no seu sistema nacional se
confunde com a soberania popular, e não estão – e não estarão nunca – dispostos a
renunciar a essa soberania em nome de qualquer sistema que se proponha administrar
coletivamente a liberdade. Os EUA acreditam que a liberdade não precisa de
administração centralizada, aliás, ela não necessita sequer de administração: a liberdade
é, ou existe, ponto. Seu universalismo consiste em propor que todos os países vivam nas
mesmas bases de soberania igualitária, que é a soberania da convivência pacífica tendo
como única postura “agressiva” a competição comercial, ou seja, a conquista pelos
méritos do que cada um tem ou pode oferecer de melhor.

7) O westfalianismo americano não se coaduna com nenhum projeto


integracionista, apenas com acordos de livre comércio, de implementação dos direitos
de propriedade e com garantias de promoção e proteção de investimentos.
Trata-se de uma integração “light”, compatível, filosoficamente, com o exercício
das liberdades individuais nos demais planos da vida social. Os Estados Unidos são,
ademais de westfalianos e aronianos, schumpeterianos, isto é, a favor da “destruição
criativa”, o que significa uma constante remise en cause, ou contestação, das condições
estabelecidas. Seu sistema econômico e social funciona com base no mérito, o que
implica uma constante luta pelo sucesso, sobretudo de tipo econômico. É o que os
economistas chamam de “market contestability”, aquilo que pode ser testado e
contestado num sistema que funcione sem barreiras à entrada. Daí a desconfiança de
princípio, histórica, dos EUA pelos esquemas preferenciais, tendência apenas revertida
nas últimas duas décadas em favor de um minilateralismo de ocasião, em face das
tendências regionalistas e da relutância dos muitos membros da OMC em se engajar
num desmantelamento comercial verdadeiramente multilateral.

162
Aceitas, ou pelo menos propostas, estas simples teses sobre a posição dos EUA
no plano mundial, caberia abordar a questão do seu papel na segurança internacional e
na ordem econômica mundial. Estes serão a matéria e os motivos para um próximo
artigo na sequência deste. A seguir, portanto...

163
24. O império e sua segurança: quatorze novas teses sobre equilíbrio
estratégico e autossuficiência militar

Rio de Janeiro, 1880: 25 abril 2008, 6 p.


Via Política (27/04/2008)

Aceitas algumas teses sobre a posição dos EUA no plano mundial (ver trabalho
precedente), venho agora à questão do seu papel na segurança internacional. Disponho,
igualmente, de algumas outras breves teses sobre essa questão, que não pretendo
elaborar substantivamente ou discorrer longamente sobre elas, basicamente por razões
de espaço, mas acredito que elas sejam suficientemente explícitas para se justificarem a
si mesmas. Vejamos, portanto, minhas “teses” sobre o papel dos EUA na segurança
internacional.

Nem Ialta, nem Tordesilhas; apenas Westfália (e um pouco de Viena e Versalhes)


1) Os EUA não se ocupam, nem pretenderiam se ocupar, da segurança mundial: eles se
ocupam de sua própria segurança nacional e a de seus cidadãos e empresas, ponto.
A despeito do fato que alguns intelectuais apreciem racionalizar os impulsos de
política internacional dos EUA como divididos ambiguamente, entre, de um lado, um
idealismo de tipo wilsoniano, e portanto engajados nos assuntos do mundo, e de outro,
um realismo de extração bem jacksoniana, e portanto determinados a atender única e
exclusivamente o seu próprio interesse nacional, a verdade é que os EUA não
pretendem, por vontade própria, se imiscuir nos assuntos dos demais países, nem
desejariam se ligar a outros países em esquemas permanentes de coordenação ou aliança
militar.
Os EUA acreditam que se bastam a si próprios e pretenderiam manter-se nessa
situação, não fosse pelos apelos que lhes são feitos ou pelas demandas de ação externa
que emergem inevitavelmente de um mundo complexo e constantemente agitado por
ameaças latentes e recorrentes à segurança nacional americana. Os europeus, que
viveram décadas sob a proteção do guarda-chuva nuclear americano, e deixaram de
investir em sua própria segurança (e nem têm o desejo de fazê-lo), são os primeiros a
chamar os EUA to the rescue quando eles têm de enfrentar alguns problemas em seu
próprio jardim (como nos Bálcãs, por exemplo).

164
2) Os EUA não estão interessados em impulsionar nenhum esquema multilateral de
segurança estratégica, de tipo onusiano ou outro, que consistiria em armar forças de
intervenção que possam, de alguma forma, interferir com os seus próprios esquemas
domésticos de segurança e de defesa nacional. Nisso, eles são westfalianos radicais.
Não há nenhuma chance, no futuro previsível, que os EUA venham a concordar
com a implementação prática do que está estipulado no artigo 47 da Carta da ONU,
relativo ao estabelecimento de um Comitê de Estado Maior para assessorar e assistir o
Conselho de Segurança em todas as questões relativas às necessidades militares do
CSNU, inclusive quanto ao emprego e comando de forças colocadas à disposição desse
Comitê. Os EUA nunca permitirão que tropas americanas, ou quaisquer forças suas,
sirvam sob comando alheio, ainda que este seja formalmente da ONU, em situações que
digam diretamente respeito à segurança e à defesa dos interesses dos EUA.

3) Os EUA podem, eventualmente, vir a integrar-se a, de preferência liderando,


esforços multilaterais que digam respeito à segurança de outros países – e,
indiretamente, à sua própria – desde que percebam eventuais ameaças como
suficientemente credíveis e suscetíveis de afetar, no plano colateral, a segurança de
seus cidadãos e empresas em territórios estrangeiros.
Em outros termos: forças americanas não são solúveis em qualquer “líquido” ou
recipiente estranho à própria vontade do povo dos EUA, materializado em seu
Congresso e na autoridade executiva, na pessoa do presidente. Não há hipótese de
soldados americanos servirem sob qualquer outro comando que não os de seu próprio
país. Não se trata aqui de isolacionismo; trata-se, simplesmente, de exercício de
soberania plena, ou seja, irrenunciável.

4) Os EUA mantêm, como regra de princípio, a decisão política de antepor-se e mesmo


de sobrepor-se a qualquer outro poder, no plano da dissuasão e do balanço de
forças, e de antecipar qualquer desafio estratégico, tendo estabelecido, para si
mesmos, a postura de conservar uma supremacia estratégica clara e certa sobre
qualquer outro poder exterior, amigo ou desafiante, sendo totalmente indiferentes
quanto à natureza política ou ideológica desse suposto contendor.
Isto significa que, independentemente do fato de disporem de supostos aliados
estratégicos no âmbito da OTAN, ou indiferentes à situação de que contendores possam
emergir de países hostis ao modo de vida americano – quer seja a antiga União
165
Soviética ou a China atual –, os EUA sempre estarão dois ou três passos, pelo menos, à
frente de possíveis poderes desafiantes. Esta atitude de dissuasão total e absoluta se
aplica a todo e qualquer tipo de cenário estratégico e a toda a panóplia das ferramentas
militares. Desse ponto de vista, a velha Europa da OTAN reduzida – a da Alemanha
ocupada dos tempos da Guerra Fria – não se distinguia em absoluto da União Soviética
inimiga: ambas tinhas de ser mantidas em estado de inferioridade estratégica, o que
implicava, obviamente, um crescimento contínuo da capacidade ofensiva dos EUA. O
mesmo pode ser dito dos dias atuais, aplicando esses princípios à OTAN ampliada, à
nova Rússia, à velha China ou a qualquer outro Estado, vilão ou amigo. Não se trata,
cabe deixar claro, de uma atitude belicista, mas tão simplesmente, de um seguro militar
preventivo. A preeminência estratégica é a própria alma do sistema de segurança
nacional americano.

5) A segurança nacional americana não é concebida em termos exclusivamente ou


mesmo essencialmente militares e nisso os EUA são perfeitamente aronianos. Eles
integram, mais do que o soldado e o diplomata, também o cientista e o empresário
em seus cálculos de preeminência estratégica.
Na base desse sistema integrado de defesa nacional, que vai da concepção
original à implementação prática dos princípios de segurança estratégica, encontra-se
um conceito de organização social da produção que é propriamente marxista ou
marxiano, pelo menos alegoricamente, em seu desenho e expressão: os EUA
conceberam e desenvolveram um “modo inventivo de produção” que não encontra
paralelo na história econômica mundial. Trata-se da mais perfeita máquina de produzir
inovações, de qualquer tipo, inclusive as militares, que se conhece no sistema
planetário. Se houvesse um “prêmio Nobel” para a defesa, ou para a guerra, os EUA
também se situariam entre os primeiros contemplados, como ocorre, aliás, nos demais
campos, com a possível exceção (ainda) das humanidades, ou seja, da literatura. Não se
trata de uma máquina exclusivamente americana, pois ela integra cérebros de todas as
partes do mundo, se trata apenas de uma máquina “made in USA”, como ocorre, aliás,
nos prêmios Nobel da área científica.

6) Os EUA não parecem dispostos a colocar todo o seu potencial à disposição do resto
do mundo e provavelmente nunca o farão.

166
Eles se contentam em fazer com que o resto do mundo seja um lugar não
suficientemente ameaçador do ponto de vista dos interesses nacionais americanos. Ao
garantir essa situação, os EUA estão contribuindo, de forma indireta, para a segurança
do planeta, ao impedir a emergência de forças contestadoras da supremacia militar e
estratégica americana.
Se os EUA são the world’s cop, isto é, os policiais do mundo, eles têm de agir e
se comportar, efetivamente, como o “porrete de última instância”, ou seja, como aquele
poder acima do qual nenhum outro prevalece ou se mantém. Não se trata de uma atitude
arrogante, imperial ou unilateral, como pensam muitos; apenas de um comportamento
que é a própria essência do ser americano: não há poderes acima do xerife da aldeia.

7) Os EUA não precisam de aliados ou parceiros militares, eles apenas desejam países
que paguem a conta das operações militares ou de manutenção da paz que não
sejam aquelas estritamente vinculadas à defesa do território americano ou da
segurança de suas empresas e cidadãos.
O conceito de burden sharing, no plano da ONU e das operações onusianas de
imposição e de manutenção da paz, aplica-se exclusivamente no plano político e a
esferas externas à segurança nacional americana. Ou seja, o compartilhamento de
tarefas no plano da defesa e da segurança internacionais se referem a cenários
estratégicos que se situam todos fora do território americano, apenas interagindo com
esquemas nacionais de defesa na medida em que cenários estratégicos situados em
outras latitudes e longitudes tenham ou exerçam algum tipo de impacto na segurança
nacional americana.
Foi exclusivamente em função do “burden sharing” que os EUA patrocinaram,
numa primeira fase, as candidaturas da Alemanha e do Japão a uma cadeira permanente
no Conselho de Segurança da ONU, isso ainda nos anos 1980. Com o passar dos anos,
com o emasculamento da Rússia e a diluição da grande Alemanha no conjunto
puramente hedonista da União Europeia, os EUA deixaram de patrocinar o ingresso da
Alemanha nesse foro restrito dos “mais iguais”, preferindo, por razões puramente
estratégicas – e não mais de ordem orçamentária, como era o caso na fase de
keynesianismo militar da era Reagan –, promover a ascensão do Japão e da Índia em tal
foro.

167
8) O conceito, a construção e a operacionalização prática da OTAN de forma nenhuma
implicam em qualquer tipo de multilateralismo securitário ou estratégico da parte
dos EUA.
A OTAN é simplesmente um braço armado dos EUA para determinadas tarefas
e funções específicas, uma das muitas ferramentas utilizadas, ao longo do seu processo
de afirmação imperial, para ampliar sua capacidade de projeção externa, no plano
militar e diplomático, e para contribuir à manutenção de uma mesma concepção
civilizatória geral, no plano dos valores e dos princípios de organização econômica e
social.
A OTAN não deve ser vista apenas como uma aliança militar dotada de um
conceito puramente defensivo – a proteção do Ocidente contra a ameaça militar
soviética, de acordo com a doutrina do containment, inspirada por George Kennan –
mas também como uma esfera de liberdade política e econômica, não necessariamente
no sentido mais puro da palavra, como os exemplos de Portugal salazarista e da Turquia
semicapitalista podem comprovar. Com esses flancos garantidos, a Espanha franquista
era dispensável, mas se ela, por acaso, fosse estrategicamente relevante, também teria
sido integrada ao baluarte da democracia.

9) A OTAN não foi vitoriosamente militarmente: ela apenas cumpriu uma função
defensiva, dissuasiva, de treinamento e de enquadramento dos países subordinados,
sem mencionar o lado da demanda por equipamentos militares, que também faz
parte do supply-side economics da indústria americana.
A URSS manteve, na maior parte do tempo, uma capacidade ofensiva superior
em forças de terreno, e talvez mesmo no terreno dos dispositivos nucleares. Ela
tampouco foi “esgotada” pela competição armamentista, mas estiolou-se a si mesma. A
URSS perdeu a competição em meias de nylon, não em equipamentos militares, ela
implodiu, por sua própria incapacidade produtiva, por manter um sistema que não podia
simplesmente funcionar. Mas isso já estava previsto desde 1919 pelo economista
austríaco Ludwig Von Mises, que demonstrou logicamente a impossibilidade de cálculo
econômico e, portanto, de funcionamento do processo produtivo, numa economia
socialista.

10) A OTAN assumiu, desde a derrocada (não derrota) do socialismo, funções bem
mais abrangentes do que eram as suas no período da Guerra Fria. Isso não tem
168
muita importância do ponto de vista americano, uma vez que ela é acessória à sua
própria segurança nacional.
A OTAN cumpre funções subsidiárias nos esquemas americanos de defesa,
ainda que ela seja, hoje, algo bem mais amplo do que a coordenação de esquemas
militares, uma espécie de ferramenta polivalente, numa palavra, um canivete suíço com
administrador europeu e manipulador americano. Seu novo mandato lhe dá poderes para
intervir praticamente em todos os assuntos, da luta contra as agressões ao meio
ambiente e as violações aos direitos humanos à defesa da democracia e da paz, num
cenário que há muito extravasou o Atlântico Norte, alcançando praticamente todo o
mundo (com a exceção do universo, isto é, do espaço exterior, que permanece
“americano”).

11) A OTAN e, de certa forma, também os EUA não parecem estar preparados para as
novas ameaças, mais difusas do que claramente identificadas, ainda que o inimigo
tenha contornos muito nítidos: trata-se do fundamentalismo islâmico.
A OTAN estava teoricamente preparada para combater um inimigo claramente
identificado, com divisões e instâncias de comando apoiadas em coisas tangíveis:
tanques e canhões, navios e aviões, quartéis e linhas de comunicação, enfim, ferro, aço,
cimento, um pouco de cobre. Hoje, isso não se aplica, pois o “inimigo” vive no próprio
território e confunde-se com a população em geral ou com imigrantes honestos. A
globalização, neste caso, traz um processo de declínio civilizacional – que é o do Islã
em crise social e econômica e capturado por minorias ativistas – para dentro do
Ocidente desenvolvido.
Trata-se de uma ameaça que não assume contornos militares muito claros, e que
não tem, provavelmente, nenhum perfil tático-militar preciso, mas poderosas
implicações estratégicas, situadas mais no terreno da sociedade, como um todo, do que
no campo dos quartéis-generais. Aliás, a arte da guerra, hoje, apresenta, bem mais,
elementos de Sun Tzu do que aspectos de Clausewitz, mas pede, sobretudo, mais ações
de inteligência do que operações de força bruta. Não se trata apenas do terrorismo
islâmico, que é uma mera manifestação material de algo bem mais insidioso, o
fundamentalismo islâmico. Este deriva do islamismo “normal”, constitui uma recusa
direta da modernidade “ocidental” e se apresenta, materialmente, como uma
mobilização de forças para destruir, material e humanamente, a diversidade ocidental e
seus valores associados.
169
A OTAN pode até estender um pouco mais seus cenários de atuação, mas não se
trata de um terreno no qual seus pensadores e estrategistas tenham algo de relevante a
trazer para o equacionamento do problema. A batalha é mais de ideias e de conceitos, de
corações e mentes, do que propriamente um combate de trincheiras, aliás impossíveis a
definir, ainda que essa nova guerra tenha alguns cenários privilegiados de atuação.
Todos eles se situam no arco civilizacional do islamismo, que engloba mesmo os países
que tinham feito opção por sua versão light, ou laica, em todo caso, separada do Estado.
Nessa luta, a ignorância popular sustenta o obscurantismo político, num cenário no qual
a democracia tem de enfrentar com transparência e bons modos um inimigo que se
utiliza da mentira e da deception.

12) A proliferação nuclear não constitui, de verdade, um problema militar, nem no


plano dos Estados, nem ao nível dos grupos terroristas. Trata-se de um problema
político e como tal deveria ser enfrentado.
Durante a Guerra Fria, o mundo foi dividido a partir de Ialta, que é uma espécie
de tratado de Tordesilhas da era contemporânea (ambos acordos falhos e incompletos).
No mundo pós-Guerra Fria, o cenário é bem mais do tipo Congresso de Viena ou
tratado de Versalhes, sem que os grandes atores consigam se entender sobre uma
agenda comum que combine segurança com oportunidade para todos, como foi o caso
em Bretton Woods. Uma das razões é, precisamente, o gênio que saiu da garrafa, a
capacitação nuclear, difícil de engarrafar outra vez. Não há uma solução militar ao
problema dos novos proliferadores e não há suficiente consenso entre os “donos” do
gênio para domá-lo de maneira credível, o que implicaria em esforços credíveis para o
desarmamento nuclear. A situação de impasse político deve persistir e mesmo uma
nação poderosa como os EUA não conseguem controlá-la, em parte devido a um grande
déficit de liderança política. Este é, provavelmente, o único terreno nas relações
internacionais contemporâneas no qual os EUA não conseguem obter resultados
isoladamente ou por iniciativas unilaterais e necessitam da cooperação de outros
Estados, não necessariamente no plano multilateral. Um exemplo dessa necessidade está
expressa na iniciativa tendente a controlar os fluxos civis de materiais nucleares, mais
um clube restrito ao estilo do finado Cocom (hoje Wassenaer), dos grupos de Londres e
do MTCR.

170
13) O “fator China” não é propriamente um desafio militar aos EUA ou ao Ocidente, e
sim uma recomposição dos dados do jogo econômico, uma “nova geografia”.
A despeito de muitas especulações sobre o desafio militar ou estratégico chinês
ao poderio incomensurável dos EUA, o que há é uma reestruturação dos fluxos de bens
tangíveis e intangíveis no hemisfério norte (para esses efeitos, tanto China quanto Índia
pertencem ao Norte, não ao Sul). A “nova geografia do mundo”, que alguns pretendem
fundar a partir de intercâmbios concentrados no sul, na verdade já existe, e ela não é
apenas comercial, mas sobretudo econômica e tecnológica, mas também financeira e de
cérebros (eventualmente materializados em P&D e propriedade intelectual).
Essa “nova geografia” se manifesta na incorporação de novos grandes
emergentes ao conjunto de países desenvolvidos, basicamente um clube constituído pela
OCDE mais emergentes dinâmicos, que seriam os RICs, com grande ênfase na China e
na Índia. A nova geografia econômica, que é também uma divisão mundial do trabalho,
faz o mundo convergir pela primeira vez em dois séculos, a despeito mesmo da grande
divergência nas rendas individuais. Os EUA já se adaptaram a ela, inclusive no terreno
estratégico, de que é prova a parceria nuclear com a Índia. No terreno comercial,
financeiro e tecnológico o que existe é uma simbiose cada vez maior entre os EUA e os
emergentes asiáticos: tanto os chineses são dependentes da avidez de consumo dos
americanos quanto estes são hoje dependentes da boa disposição dos asiáticos em
continuarem financiando seus déficits.
A América Latina não está a priori excluída da nova geografia, mas ela se exclui
a si mesma quando recusa concluir acordos comerciais, estender garantias ao
investimento direto estrangeiro, oferecer maior abertura em serviços ou outras rubricas.
Ela se exclui, igualmente, quando se contenta em explorar suas vantagens ricardianas
em recursos naturais, mas não avança na qualificação educacional da sua população,
não investe o suficiente em ciência e tecnologia, mantém a desigualdade social em
níveis inaceitáveis e apresenta um péssimo ambiente micro e macro para o mundo dos
negócios.

14) As ameaças aos EUA provindas da América Latina não são derivadas de qualquer
desafio estratégico, mas emergem de fatores negativos internos (tanto aos EUA
como à América Latina), ligados à economia da droga, basicamente. A oferta
contínua de imigrantes, por outro lado, é um fator positivo, para ambos os lados,
mas pode estar associado a outras fontes de criminalidade.
171
Com uma demanda irrefreável dos EUA por drogas duras, não há dúvida de que
qualquer plano de contenção atuando no supply-side econômico, apenas – como é o
caso do Plano Colômbia – tende a não produzir resultados significativos, ainda que
possa trazer benefícios residuais do ponto de vista do combate à narco-guerrilha. O
problema da droga não será resolvido enquanto não for equacionado o lado da demanda.
Mas, trata-se de um problema para os dois lados, pois ele tende a gerar, no território dos
produtores e dos países de trânsito – o que é obviamente o caso do Brasil –, uma
corrupção ativa dos agentes públicos, que atinge basicamente o sistema político e o
aparato policial.
No que se refere à oferta do fator humano, ela atende, igualmente, aos dois lados
da equação, mas com desequilíbrios sociais e econômicos, pois os países exportadores
retiram vantagens que eles não estão dispostos a renunciar, diminuindo, por outro lado,
a pressão política para que os dirigentes políticos reformem suas instituições
esclerosadas, ofereçam novas oportunidades de emprego local, qualifiquem
educacionalmente suas populações e atuem decisivamente no plano das desigualdades
distributivas. Os EUA retiram vantagens desse fluxo importador, mas eles se preparam
para gastar inutilmente US$ 6 bilhões com um muro de fronteira rigorosamente inútil e
ineficiente.

172
25. O Brasil e o cenário estratégico mundial: breves considerações

Brasília, 1º maio 2008, 4 p.


Via Política (04/05/2008)

O Brasil, no plano estritamente militar, é um país rigorosamente marginal,


alheio aos grandes cenários estratégicos internacionais, como de resto a maior parte da
América Latina. Tem certa importância no plano comercial, para algumas commodities
e produtos de sobremesa, e pode tornar-se um ator relevante na nova matriz energética
mundial, que emergirá paralelamente ao lento declínio da velha (150 anos) civilização
do petróleo (aqui mais do lado dos combustíveis do que no plano industrial e
tecnológico). Ainda não está totalmente ajustado aos requerimentos da quarta revolução
industrial, mas possui competências potenciais (científicas, pelo menos) para
acompanhá-la.
A rigor, o país não apresenta nenhuma ameaça à segurança internacional, mas
existem os que acreditam que os EUA representam uma ameaça à soberania brasileira.
Como esse tipo de suposição se presta a alguma confusão mental, talvez fosse o caso de
tecer breves considerações em relação à posição do Brasil no atual cenário de segurança
internacional.

1) O Brasil não tem um grande papel a cumprir, positivo ou negativo, no atual


cenário estratégico internacional. Seu papel é residual e talvez seja mais relevante no
caso de operações conduzidas no quadro das Nações Unidas, que a rigor não servem
de parâmetro para nada, apenas para a manutenção do status quo. Se o Brasil tiver de
assumir algum papel mais importante nessa vertente, a questão da cooperação militar
com os EUA torna-se inevitável (e politicamente complicada).
O Brasil é, como se sabe, um país soberanista, em todo caso bem mais do que
outros na América Latina e na Europa, dispostos eventualmente a ceder soberania em
troca de alguns benefícios materiais. O Brasil também aspira – e isso é histórico, mas se
trata de uma reivindicação puramente elitista – fazer parte dos “mais iguais”, embora
disponha de poucos atributos para tanto. As elites militares e diplomáticas – deixando
de lado as elites políticas, extremamente fluídas para merecerem atenção – possuem
essa inclinação oligárquica que visa colocar o país no inner circle da política mundial,

173
agenda que nunca ganhou crédito entre as elites econômicas – também cambiantes e,
sobretudo, desprovidas de visão internacional – para que elas sustentassem essa
pretensão.
O fato é que, com o Brasil dentro ou fora do Conselho, o cenário estratégico não
mudará rigorosamente nada, nem para o Conselho, nem para o Brasil, e tampouco para
o mundo, ocorrendo apenas e tão somente maiores despesas orçamentárias para o país,
num engajamento que jamais foi discutido a fundo com a sociedade brasileira ou com
seus representantes proclamados. A participação apresentaria, obviamente, maior
impacto para as Forças Armadas, que teriam de revisar suas concepções estratégicas –
mas essa é uma função talvez mais política do que militar – e sobretudo revisar toda a
panóplia na qual se apoiam atualmente, com adaptação consequente de suas ferramentas
de atuação.
Grande parte da corporação militar parece preparada e estaria disposta a
enfrentar esse esforço de revisão, mas esse cenário não depende da vontade dos
militares, sequer dos políticos e das elites econômicas, e sim da capacitação da
economia nacional como um todo. Trata-se de um processo lento e duvidoso, pois
significa colocar o país num outro patamar de desenvolvimento que o atualmente
seguido, que se apresenta bem mais como um lento arrastar de pés em direção da
modernidade.

2) O Brasil não tem ameaças credíveis vindas do imediato entorno regional


(embora alguns atores se esforcem por criar artificialmente uma custosa, inútil e
totalmente indesejada corrida armamentista). O nível de dissuasão requerido parece
justificar, portanto, o baixo investimento efetuado nos instrumentos, ainda que isso não
devesse refletir-se na capacitação e treinamento, sempre necessários.
Não existe mais hipótese, sequer no plano teórico, de conflitos interestatais que
possam envolver o Brasil em torno de disputas regionais, como ocorreu no passado em
torno do Prata. Os conflitos são menores e residuais e tendem a ser equacionados por
via diplomática, embora a prudência histórica recomende que um “grande porrete”
esteja sempre pronto para oferecer a dissuasão necessária.
Outras ameaças – como a narco-guerrilha, o crime organizado, eventualmente os
neobolcheviques que insistem numa agenda de expropriação direta de terras – terão de
ter um equacionamento basicamente policial, mas a inteligência militar e algum
respaldo material das FFAA podem contribuir decisivamente para o afastamento de
174
quaisquer riscos de transbordamento, inclusive fronteiriço. Nesse particular, a
cooperação com os EUA é inevitável e desejável, embora condicionada a aspectos
operacionais nem sempre bem-vindos do ponto de vista brasileiro.

3) Não parece haver nenhuma ameaça à soberania brasileira na vertente


amazônica, embora interesse a diversos atores, tanto à direita quanto à esquerda,
agitar esse espectro, por razões peculiares a cada setor. A Amazônia será naturalmente
integrada ao mainstream da economia brasileira – e internacional – à medida que seu
imenso potencial venha a ser adequadamente identificado e explorado (e isso implica
algum grau de desgaste em relação ao patrimônio existente).
A Amazônia tem vários inimigos, mas os principais não são aqueles
supostamente interessados em sua “internacionalização”, em princípio ecologistas
ingênuos que podem estar a serviço de interesses externos (segundo rezam algumas
lendas made in Brazil). Existem muitas paranoias e teorias conspiratórias em torno
dessa questão, fabricadas por uma anacrônica esquerda anti-imperialista e pela extrema
direita nacionalista – geralmente composta de militares da reserva –, nenhuma delas
justificada por dados credíveis da realidade. Lendas e fabulações não merecem,
obviamente, ser objeto de quaisquer teses.
No plano estritamente militar, o espectro pode servir para uma maior alocação
de recursos, embora seja indesejável uma misallocation em função de esquemas
dissuasórios que nunca serão testados na prática. A responsabilidade das autoridades
militares é aqui enorme, pois uma eventual indução ao erro na elaboração orçamentária
setorial redundará em investimentos custosos, desviando recursos de investimentos
econômicos e sociais que são necessários para, não propriamente afastar temores
totalmente infundados, mas para construir as bases do desenvolvimento sustentável
naquela região.
Os problemas da defesa amazônica parecem ter o mesmo teor das ameaças já
aludidas anteriormente, derivadas da narco-guerrilha e do crime organizado, o que
recomendaria uma adaptação do ferramental militar e policial a essas circunstâncias.
Isso implica, igualmente, um maior grau de cooperação com os EUA, o que pode
suscitar resistências em certas áreas, mas que me induzem, experimentalmente, a
elaborar uma última tese sobre o papel do Brasil no cenário estratégico internacional.

175
4) Se o Brasil não é um ator relevante para os cenários estratégicos
internacionais, ele o é, contudo, no âmbito regional, naval, do Atlântico Sul, e no do
imenso hinterland sul-americano. Tanto quanto para sua integração a esquemas
militares onusianos ou plurilaterais mais amplos – isto é, numa base de like-minded
countries –, um papel mais ativo na própria região se beneficiaria de maior
cooperação com os EUA, algo extremamente complicado para nossos padrões políticos
e diplomáticos.
O Brasil é um país introvertido, quase avestruz economicamente, embora
tentando graus crescentes de abertura numa fase em que a globalização é, não apenas
inevitável, como uma quase fatalidade. O establishment diplomático-militar guarda
relutâncias em relação a uma maior cooperação com os EUA em virtude dos choques no
passado – no caso da agenda nuclear, por exemplo – e das assimetrias do presente, para
nada dizer da arrogância imperial que não vai diminuir tão cedo. Em termos claros,
cooperação com os EUA, mormente no terreno militar, significa subalternidade e
integração a esquemas já fixados, em posições acessórias e desprovidas de real
capacidade decisória.
O próprio establishment militar, com algumas exceções, não parece arredio a
uma maior cooperação técnica com a superpotência, embora sejam manifestas as
reações contrárias e as resistências a tal intento. Alguns acreditam que o caminho da
afirmação do Brasil no cenário mundial passa não apenas ao largo como se situa
contrariamente às iniciativas e interesses das grandes potências, cabendo sempre a
singularização negativa da hiperpotência. Nessa visão, as articulações geopolíticas do
Brasil devem passar, prioritariamente, pela periferia do sistema, o que explica, aliás,
muitas das escolhas do presente. Não parece haver justificativas econômicas ou
tecnológicas a esse tipo de visão excludente, mas deve-se reconhecer que a cooperação
com gigantes sempre é complexa e duvidosa, em qualquer hipótese.
Os obstáculos, assim, parecem ser mais de natureza política, ou ideológica, do
que propriamente estratégica ou econômica, mas se é verdade que são as ideias que
dominam o mundo, então os primeiros fatores são muito mais poderosos do que os
segundos. O Brasil é um país que caminha muito lentamente no cenário doméstico e
internacional: é bastante provável, assim, que ele acabe confirmando sua natureza
essencial.

176
26. O legado de Henry Kissinger

Brasília, 1894: 2 de junho de 2008, 5 p.


Via Política (08/06/2008)

Não, o velho adepto da realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85
anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança
Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus
obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos
nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de
suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou
menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno
para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo
das ideias aplicadas às relações de poder).
Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que
alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger – querem
ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas
o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos
humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas
de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e
da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador
relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente
Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou
francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente
desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que
realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa.
Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática
e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma
vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de
“vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia
simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de
par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena
(1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda
assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.
177
O legado de Henry Kissinger é multifacético e não pode ser julgado apenas
pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como
Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve
profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta
anticomunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da
política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas
atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio
nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction –, como
consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriormente
a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações
internacionais.
A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações
internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa
época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da
derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e
ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e
Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na
história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos
velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista
dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas
novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível
aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e
militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro
poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a
destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer
tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros
lançamentos.
Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se
da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através
dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação
nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o
lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que
afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de
poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se
178
socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal,
em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais
comprometidos com a causa anticomunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e
todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos
seus olhos.
Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora
este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de
Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de
Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele
deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem
estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos
homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que
ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos
humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder
comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto.
O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista”
– como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de
juizes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à
“causa democrática” no mundo –, tem de ser necessariamente diferente do julgamento
daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de
julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de
terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes
potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente
táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”.
Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os
demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu En-
lai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um
lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e
grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.
Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet
– que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que
ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver
que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA
tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública
179
doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não
“acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham
cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.
Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática
mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela
graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em
geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no
sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos
homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem
de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação –
qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo
incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto
quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.
Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante
da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano,
tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes
estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e
mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles
que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve
sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma
marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do
mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de
suas ações e pensamento.
Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes
mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder
soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos.
Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma
paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma
ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império
que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado
de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio
das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por
Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente
alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser
180
o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser
apenas o seu intérprete tardio. Nada mau, afinal de contas, para alguém que foi, acima
de tudo, um intelectual...

Publicado em Mundorama (Brasília, 31/05/2008):


http://www.mundorama.net/?article=o-legado-de-henry-kissinger-por-paulo-roberto-de-
almeida; em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689).
Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015).

181
27. Pequena lição de Realpolitik

Brasília, 1895: 2 junho 2008, 5 p.


Via Política (7/07/2008)

Seria totalmente justificado o mau (pré)conceito que carrega a Realpolitik no


plano das atitudes possíveis de serem adotadas pelos estadistas e outros responsáveis
pelas relações internacionais dos Estados modernos? Leva ela, necessariamente, a um
comportamento egoísta no confronto com alternativas menos estado-centristas e mais
voltadas para o bem comum da comunidade internacional? Mas será que existe, de fato,
uma coisa chamada “comunidade internacional”? Estadistas responsáveis podem adotar
outra postura que não a pragmática, focada no interesse nacional, quando se trata de
administrar as relações exteriores de seus países? Vejamos o que seria possível
argumentar em torno desse conceito numa espécie de curso concentrado.
Realpolitik é mais um método do que uma doutrina, completa e acabada. Ela
pode ser vista como uma escola de pensamento que não é boa, ou má, em si, e sim que
pode, ou não, servir os interesses daqueles que presumidamente se guiam por seus
“princípios”, algo vagos, de análise e de ação. O que ela quer dizer, finalmente? A rigor,
trata-se de um simples cálculo utilitário, baseado nos interesses primários de um país,
um Estado, um indivíduo. Ela tende a considerar os dados do problema e não se deixa
guiar por motivações idealistas, generosas ou “humanitárias” de tal decisão ou ação,
mas apenas e exclusivamente pelo retorno esperado de um determinado curso de ação,
que deve corresponder à maior utilidade ou retornos possíveis para o seu proponente ou
condutor da ação.
Como tal, ela responde a objetivos estritamente pragmáticos e “racionais”, num
sentido estrito, de uma determinada interação humana, social ou estatal. Ela parte de um
pressuposto básico, na vida ou na sociedade: indivíduos e grupos sociais guiam-se,
basicamente, por seus instintos de sobrevivência ou por seus interesses imediatos de
conforto, bem-estar, segurança, maximização de satisfação, de prazer ou de riqueza e
poder, no caso de sociedades mais complexas. Não se pode negar que, nessa
perspectiva, ela corresponde, aparentemente, à natureza humana, ou pelo menos a certa
concepção da natureza humana, tal como vista pelos filósofos utilitaristas ou
individualistas.
O que oferece, em seu lugar, aquela que seria, presumivelmente, sua
182
contrapartida teórica, ou até prática, a Idealpolitik? Esta, supostamente, se deixaria guiar
por nobres ideais, altruística em seus princípios e motivações, generosa nas suas
interações e ações, voltada para o bem comum, a solidariedade, a elevação moral da
humanidade e a promoção de valores vinculados aos direitos humanos, à democracia, ao
primado do direito sobre a força, à construção de uma institucionalidade que supere,
justamente, o interesse egoísta de indivíduos e Estados. Ainda que se possa conceber a
existência, e mesmo a atuação, de indivíduos, instituições e Estados que se deixem guiar
por tal conjunto de princípios e valores, não tenho certeza de que eles são seguidos na
prática quando se trata do interesse maior de indivíduos e sociedades organizadas, que
são os da sua segurança e da sua sobrevivência física.
Em qualquer hipótese, algumas distinções são possíveis, e passíveis, de serem
feitas e elas têm a ver com a organização geral das ações do Estado no plano exterior.
Teoricamente, a “doutrina” idealista seria mais comprometida com a cooperação
internacional – no plano bilateral ou multilateral – e com a promoção de instituições
comprometidas com tal finalidade, atualmente representadas pela ONU (mesmo com
toda a corrupção e desvios comprovados), ao passo que a “doutrina” realista teria
unicamente como base o interesse egoísta dos Estados, fechados, portanto, a esforços de
cooperação ampliada, assistência a necessitados ou promoção de interesses comuns da
humanidade. Tal dicotomia é dificilmente encontrável na prática, pois todos os Estados,
e indivíduos, acabam cooperando na prática, ainda que tratando de cuidar,
primariamente, de seu interesse próprio.
Finalmente, pode-se conceber uma Realpolitik “esclarecida” que,
voluntariamente ou não, busca, de forma ativa ou secundária, a promoção de valores
“altruísticos”, uma vez que eles poderiam ser funcionais, em última instância, para a
promoção e a manutenção do interesse próprio do Estado ou do indivíduo em questão.
Ou seja, a busca do “bem” redundaria em maior bem primeiramente para o seu
promotor.
Estas considerações, necessariamente de cunho generalizante ou conceitual,
não têm muito a ver com realizações práticas, ou correntes, de alguma Realpolitik em
ação, “esclarecida” ou não. Normalmente se tende a identificar o exercício desse tipo de
política com manifestações práticas de “diplomacia blindada” de alguma grande
potência, na suposição de que apenas potências dominantes têm condições de cuidar de
seu interesse próprio de maneira egoísta ou arrogante, o que é um entendimento
enviesado, ou capcioso, do que seja Realpolitik. Por certo, pequenos Estados ou
183
indivíduos desprovidos de poder próprio não têm condições de impor sua vontade aos
demais, daí a identificação da Realpolitik com a política de poder. A rigor, qualquer
indivíduo ou Estado pode tentar exercer seu quantum de Realpolitik, embora dentro de
limites próprios à sua liberdade de ação (ou de reação).
Para tocar num exemplo sempre invocado de doutrina “realista” do interesse
nacional, num sentido estreitamente egoísta e unilateral, referência é feita à chamada
“doutrina Bush” de ação preventiva, com vistas a antecipar a qualquer iniciativa por
parte de Estados inimigos ou grupos terroristas de atacar os EUA, o que justificaria, aos
olhos de seus dirigentes, um ataque preventivo contra esses supostos inimigos. Ao
mesmo tempo, caberia lembrar que essa doutrina vem sendo apresentada ou vem
“envelopada” num conjunto de argumentos justificadores da ação americana,
condizentes, supostamente, com uma visão mais “altruística” das relações
internacionais, posto que identificada com a promoção da democracia, a defesa dos
direitos humanos – em especial da mulher –, a capacidade de iniciativa individual no
plano econômico, a liberdade religiosa e vários outros elementos de natureza
supostamente “iluminista”.
Que isto esteja sendo feito por bombas e ocupação militar, e não por
professores e missionários, poderia ser visto como secundário do ponto de vista da
escola “realista”, embora não o seja para os “destinatários” da ação: afinal de contas,
parece difícil implementar a democracia na ponta dos fuzis, ou mediante canhões e
mísseis. Desse ponto de vista, a visão e a ação de Kissinger pareciam sinceras, ainda
cinicamente realistas: ele não pretendia “melhorar” o mundo, apenas torná-lo suportável
no plano dos interesses nacionais americanos, o que já lhe parecia um programa
realisticamente enorme (em face dos perigos percebidos, reais ou ilusórios).
A Realpolitik, portanto, recomendaria deixar cada povo cuidar dos seus
afazeres, sem interferência dos demais, até o limite dos efeitos indiretos sobre a
segurança de outros da soberania exclusiva assim exercida (ou seja, eventuais spill-
overs da potestade interna exercida de maneira excludente). Atualmente se invoca, ao
lado do “dever de ingerência” – que seria a intervenção direta nos assuntos internos de
outros Estados em caso de graves atentados aos direitos humanos – o chamado princípio
da “não-indiferença”, que seria uma motivação altruística para exercer a cooperação
ativa em prol do bem estar de povos menos bem aquinhoados pela natureza ou pela sua
organização estatal ou social. A diferença entre um e outro estaria em que, no primeiro
caso, a intervenção se daria contrariamente aos desejos ou capacidade de reação do
184
Estado em questão, ao passo que no segundo, em total concordância e em cooperação
com seus dirigentes.
Num primeiro caso, teríamos, então, a Realpolitik bem intencionada, no
segundo a Idealpolitik explícita e aberta. O que se deve julgar, na verdade, é a eficiência
das ações empreendidas com relação a objetivos bem determinados: no primeiro caso, o
possível resultado é o salvamento de pessoas que de alguma forma pereceriam na
ausência de intervenção, o que significa, simplesmente, a diferença entre a vida e a
morte. No segundo caso, as ações altruísticas empreendidas podem ser rigorosamente
inócuas, caso a não indiferença se exerça em direção de objetivos secundários ou
totalmente marginais em relação aos verdadeiros problemas do país ou sociedade assim
beneficiados com tal ação humanitária.
Não há, como se vê, um critério uniforme para se julgar princípios de ação, ou
suas motivações teóricas: o que existem são situações objetivas e resultados tangíveis,
em função dos quais julgar da efetividade de iniciativas e empreendimentos tomados
por estadistas. O realismo e o idealismo podem ser invocados em circunstância diversas,
e produzirem resultados totalmente contraditórios, em função dos objetivos pretendidos
e dos meios mobilizados.
O que teria Kissinger a ver com isto, finalmente? Provavelmente nada, a não
ser a perspectiva da história profunda e o sentido da razão, sempre bons conselheiros em
matéria de políticas de Estado, em qualquer área que se pretenda atuar. Com todo o seu
realismo cínico, Kissinger foi provavelmente um estadista altamente eficiente do ponto
de vista dos interesses egoístas – portanto realistas – dos EUA. Teria sido ele tão
eficiente assim caso tivesse sido, hipoteticamente, guindado à frente das Nações Unidas,
num papel de cunho profundamente altruístico e humanitário? Provavelmente não, pois
lhe faltaria a alavanca necessária para ser bom (ou mau, com os ditadores), segundo as
circunstâncias: o poder de ordenar e de ser obedecido.
Não é segredo para ninguém que a ONU, com todos os seus bons princípios – e
a despeito de uma maquinaria emperrada, por vezes corrupta – não é sequer capaz de
fazer cumprir seus objetivos prioritários, e ela não o será pelo futuro previsível. Isto
talvez seja uma demonstração cabal de que o realismo prático, com todos os seus
supostos defeitos congenitais, ainda constitui uma boa alavanca para a ação.
Talvez, então, a melhor combinação possível, se as escolhas nos são dadas,
fosse armar-se de uma doutrina inspirada nos bons princípios da Idealpolitik, ao mesmo
tempo em que, no terreno da ação prática (e efetiva), buscaríamos guiar-nos pelos
185
velhos e surrados princípios da Realpolitik. Acredito que mesmo um cínico como
Kissinger não desgostaria desta combinação. Provavelmente é mais fácil propor do que
implementar tal tipo de mini-max, ou seja, uma mistura de boas intenções com uma mão
de ferro na sua consecução: poucos seriam capazes de fazê-lo, talvez apenas os
“realistas-idealistas”. Ou serão os “idealistas- realistas”? Grande questão...

Publicado em Mundorama (link: http://www.mundorama.net/?article=o-legado-de-


henry-kissinger-por-paulo-roberto-de-almeida; em Meridiano 47 (Brasília: n. 95, junho
2008, p. 2-4; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584);
Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de
Ampla Latitude (Hartford, 2015).

186
28. Bric: anatomia de um conceito

Brasília, 1920: 26 agosto 2008, 29 p.


Via Política em dez vezes (de 31/08/2008 a 10/11/2008).

Sumário:
Introdução: a caminho da briclândia
1. Radiografia dos Bric
2. Ficha corrida dos personagens
3. De onde vieram, para onde vão?
4. New kids in the block
5. Políticas domésticas
6. Políticas econômicas externas
7. Impacto dos Bric na economia mundial
8. Impacto da economia mundial sobre os Bric
9. Consequências geoestratégicas
10. O Brasil e os Bric
Alguma conclusão preventiva?

Introdução: a caminho da briclândia


Economistas costumam ser pessoas estudiosas, essencialmente focadas na estrita
racionalidade dos dados da vida material, aparentemente preocupadas apenas com os
fundamentos empíricos da economia prática, ou, se pesquisadores, com suas elegantes
equações de equilíbrio de mercados, suas linhas de regressão e suas belas curvas de
tendência. Eles pareceriam insensíveis aos problemas sociais ou às implicações
humanas de eventuais prescrições de políticas econômicas. Segundo certo senso
comum, eles seriam, sobretudo, indiferentes às relações de causa a efeito de
determinadas propostas feitas a partir de uma análise fria das realidades correntes e suas
consequências práticas no plano político ou diplomático, ignorando, por outro lado,
elementos de psicologia social, tão importantes em estudos de outras vertentes das
ciências sociais aplicadas e das humanidades em geral.
Seria esta nova condenação da dismal science aplicável, de alguma forma, ao
exercício intelectual de economistas corporativos, que aventaram a ideia de um grupo –
quiçá convertido em uma nova entidade internacional – identificado com quatro
economias emergentes, os Bric, apresentados repentinamente como as novas estrelas da
economia mundial? Constituiria essa suposta identidade grupal, construída a partir de
dados econômicos elementares, a base institucional para uma atuação política e
diplomática coordenada no plano mundial? Seria essa eventual atuação melhor e mais
187
benéfica do que aquela conduzida atualmente pelos países, individualmente, no seio das
organizações internacionais existentes, ou coletivamente por meio dos grupos mais
conhecidos de coordenação de políticas econômicas, como o G7 ou a OCDE?
O presente ensaio pretende examinar dez questões relativas a esta nova
conformação da geografia econômica mundial e oferecer, em conclusão, uma nota de
caução quanto às implicações político-estratégicas desse exercício intelectual que vem
encontrando suporte nas ações de diplomacia prática de vários dos Bric. Ele foi escrito
com a convicção de que – muito além dos sonhos eventuais dos líderes dos Bric quanto
ao poder relativo de seus respectivos países e de suas possíveis intenções de mudar a
geografia econômica do mundo e de redesenhar a geopolítica mundial, pela alteração
nas relações de poder atualmente existentes – o comprometimento básico de estadistas
responsáveis tem de estar com a prosperidade e o bem-estar de seus povos, com a
preservação do meio ambiente e com a paz e a segurança internacionais, num quadro de
plena vigência (nacional) de instituições democráticas e de total respeito aos direitos
humanos.

1. Radiografia dos Bric


O conceito foi cunhado originalmente pelo economista Jim O’Neill, da Goldman
Sachs, e figurava num estudo pioneiro intitulado “Building Better Global Economic
Brics” (Global Economics Paper n. 66; November 30, 2001). A proposta de um novo
“grupo econômico”, integrado pelas quatro maiores economias emergentes, Brasil,
Rússia, Índia e China (que provavelmente deveriam figurar na ordem inversa de
importância econômica: Cirb), foi, em seguida, sugerida num estudo de 2003 da mesma
Goldman Sachs, sobre a evolução da economia mundial até 2050, assinado pelos
economistas Dominic Wilson e Roopa Purushothaman: “Dreaming with Brics: the path
to 2050” (Global Economics Paper nr. 99; October 1st, 2003). Esses papers foram
consolidados em dois livros editados pela própria Goldman Sachs, Growth and
Development: The Path to 2050, publicado em janeiro de 2004, e The World and the
BRICs Dream, publicado em fevereiro de 2006. Esses estudos foram complementados,
em 2007, por nova compilação englobando outras onze economias emergentes e países
de grande população (N11), chamado “Brics and Beyond”, que amplia a perspectiva do
primeiro trabalho, com novas projeções para 2050.
A rigor, o “grupo” Bric não existia oficialmente, ou sequer informalmente, mas
dado o succès d’estime logrado pelo conceito e o excelente acolhimento obtido pela
188
ideia mesma de um novo conjunto de futuras economias preeminentes, o que se teve, a
partir de então, foi a adoção paradigmática dessa noção, praticamente virtual, como
correspondendo a uma nova realidade na economia mundial, digna, portanto, de ser
contemplada em estudos e formulações sobre as novas relações econômicas reais. O que
é importante sublinhar, desde já, é que a origem do nome buscava apresentar a ideia de
novos fundamentos – bricks, ou tijolos – da futura economia mundial em meados do
século XXI, sem que no entanto esses fundamentos fossem examinados em sua
interação recíproca, que de fato não existia, sequer virtualmente.
Em outros termos, um exploratory paper, que poderia ser considerado mera
especulação de um economista inventivo, veio a impulsionar uma realidade política que
ainda precisa confirmar suas potencialidades, o que prova, mais uma vez, o poder das
ideias no mundo real.

2. Ficha corrida dos personagens


A “sopa de letras” proposta nos trabalhos dos economistas do Goldman Sachs
não pode nos fazer esquecer uma simples realidade: estamos falando de quatro países
absolutamente distintos entre si, de quatro economias contrastantes e de quatro nações
que possuem histórias e percursos civilizatórios fundamentalmente diferentes, nos
planos social, militar, econômico e geopolítico, quando não nas esferas cultural e
religiosa. No plano demográfico, estamos falando dos dois países mais populosos do
planeta e de dois outros de populações “médias”, ainda assim consideráveis, do ponto
de vista de seus mercados internos, como se pode constatar na tabela 1. A China
representa, sozinha, mais de um quinto da população mundial, seguida de perto pela
Índia (17,5%) e, bem mais longe, pelo Brasil (2,9%) e Rússia (2,2%).

1. População (milhões de pessoas) e território (milhões km2)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 km2
Brasil 171.2 173.8 176.3 178.9 181.5 184.1 186.7 189.3 8,5
China 1,267.4 1,276.2 1,284.5 1,292.2 1,299.8 1,307.5 1,314.4 1,321.0 9,3
Índia 1,007.0 1,025.5 1,041.7 1,058.0 1,074.7 1,091.7 1,108.0 1,123.9 3,2
Rússia 146.9 146.3 145.2 145.0 144.2 143.5 142.8 142.1 17,0
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008; CIA Fact Book

Mesmo dispondo de grandes territórios – dos 17 milhões de km2 da Rússia, aos


3,2 da Índia, passando pelos 9,3 da China –, os quatro Bric diferem entre si, no que se
refere a recursos naturais, graus de industrialização e capacidade de impacto na

189
economia mundial. A tabela 2 apresenta, em valores correntes e em paridade de poder
de compra, a evolução absoluta do produto bruto dos Bric, desde 2000.

2. (a) PIB, preços correntes (US$ bilhões)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil 644.2 554.4 505.7 552.2 663.5 881.7 1,072.3 1,313.5
China 1,198.4 1,324.8 1,453.8 1,640.9 1,931.6 2,243.6 2,644.6 3,250.8
Índia 461.9 473.0 494.9 573.1 669.4 783.1 877.2 1,098.9
Rússia 259.7 306.5 345.4 431.4 591.8 764.2 988.6 1,289.5
(b) PIB, estimado em Paridade de Poder de Compra (PPP) (US$ bilhões)
Brasil 1,230.9 1,276.9 1,333.8 1,377.8 1,494.6 1,584.6 1,695.9 1,835.6
China 3,006.5 3,334.1 3,701.0 4,157.8 4,697.9 5,333.2 6,112.2 6,991.0
Índia 1,519.5 1,616.4 1,719.5 1,876.5 2,096.1 2,354.4 2,665.4 2,988.8
Rússia 1,120.5 1,205.9 1,284.6 1,407.7 1,548.7 1,697.8 1,881.1 2,087.8
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

É importante registrar tais características, pois que a força de um conceito


ingenuamente unificador pode fazer com que similitudes indevidas – ilegítimas, talvez,
no plano conceitual – sejam traçadas quanto ao papel dos quatro países na economia
mundial; daí redundando possíveis conclusões equivocadas quanto ao que esperar de
sua presença – certamente marcante e crescentemente determinante – nos cenários
futuros que se possam traçar para o mundo em meados do presente século.
Comecemos pela letra final: China. Trata-se, seguramente – junto com o povo
judeu, que passou, entretanto, por processos de fragmentação territorial e social como
nenhum outro povo conhecido no mundo, e que, no entanto, conseguiu sobreviver
culturalmente de modo relativamente homogêneo –, da mais antiga civilização contínua
registrada na história da humanidade, não necessariamente dotada de perfeita unidade
política, mas sim de uma notável continuidade cultural. Sua história, moderna e
contemporânea é, no entanto, dramática, senão trágica, no sentido da decadência
econômica, da instabilidade política, da humilhação militar e de retrocessos sociais
expressos em degradação profunda do tecido social, quando as loucuras do maoísmo
levaram o país a uma verdadeira hecatombe humana, com uma “lacuna” demográfica
que pode ser estimada em algumas dezenas de milhões de pessoas sacrificadas. Em
claro: a população e a economia diminuíram, em consequência dos anos de socialismo
totalitário. Marcas profundas desse passado recente são ainda visíveis na sociedade
chinesa, que emerge de um longo intervalo – provavelmente mais de três séculos – de
declínio e de deterioração da qualidade de vida no imenso país asiático.
A Índia é, provavelmente, a segunda civilização “contínua” mais antiga do
mundo, valendo as aspas pela imensa diversidade de culturas e etnias existentes no
190
subcontinente indiano. Não há, propriamente, e nunca houve unidade cultural na Índia e
sua história “política” só parece fazer sentido com base na “unidade” temporária
introduzida por invasões estrangeiras, em especial o Império mongol, seguido pela
dominação de uma companhia de comércio inglesa, depois convertida em supremacia
britânica sobre povos muito distintos entre si, linguística e religiosamente falando. A
Índia moderna é uma “invenção” do Império britânico, tendo sido, aliás, amputada
parcialmente (com o Paquistão e depois o Bangladesh, que dele emergiu) logo em
seguida à proclamação de sua independência política (sublinhe-se o “política”, posto
que economicamente ela já conformava uma jurisdição monetária própria e passou a ter
seu próprio território aduaneiro, reconhecido precocemente pelo GATT-1947).
A Rússia é também antiga; não tanto quanto esses dois primeiros países, mas
dotada de tradições culturais que a identificam como unidade cultural e linguística
desde a alta Idade Média; deslocamentos de povos bárbaros deram origem a uma nação
eslava em processo de homogeneização cultural e social, a caminho de uma formação
nacional, que só veio a existir, de fato, quando Pedro, o Grande, submeteu as
autoridades feudais e consolidou seu poder sobre um território em grande parte
indefinido, sob a forma de um Estado incipiente, baseado no conceito de absolutismo
imperial. Esse Estado se estendeu imperialmente ao longo dos séculos XVIII a XX, até
atingir o máximo de sua extensão e poderio já sob o domínio dos “czares” soviéticos. O
“império soviético” representou, de certo modo, um paradoxo na trajetória da “grande”
Rússia, posto que lhe deu a segurança nacional a que sempre aspirou aquele Estado
semi-europeu e semi-asiático, ao mesmo tempo em que criou um sistema econômico
profundamente irracional no plano de seu funcionamento, o que determinou, inclusive,
sua crise estrutural e derrocada estrondosa, basicamente por auto-implosão, não por ter
sido minada por um poder exterior ou guerra de usura.
O Brasil, finalmente, é um caso “clássico” de criação colonial – característica
que não partilha com nenhum outro Bric – e de lenta constituição de uma economia
diversificada, no quadro de uma construção estatal mais precoce e bem sucedida. De
fato, o Brasil teve um Estado unificado – e centralizador – antes de ter uma economia
integrada nacionalmente ou positivamente integrada à economia mundial. Esse Estado
certamente não construiu a nação de modo exclusivo, mas representou um poderoso
elemento indutor na construção dessa economia industrializada e relativamente moderna
para os padrões usuais dos países “periféricos” ou em desenvolvimento. A despeito de
sua qualificação inicial enquanto constituição política – Império – e de sua expansão
191
territorial ao longo do período colonial e imediatamente posterior à sua independência,
o Brasil nunca foi de fato imperial ou dominador, como talvez as duas grandes
potências militares dos Bric; assim como ele não exibe a mesma “pujança” demográfica
e os problemas geopolíticos da Índia. Trata-se de um país “contente” com sua geografia
e bastante tranquilo quanto ao relacionamento regional, o que não é o caso dos demais
Bric, envolvidos em disputas de diversos tipos, nem sempre solucionáveis de modo fácil
ou rápido. Esse contexto de “paz regional” – pelo menos desde o final da Guerra do
Paraguai – e de ausência de ameaças externas define o Brasil em sua singularidade
geopolítica no quadro dos Bric e deve ser considerado com um “ativo” positivo no seu
processo de inserção regional e internacional.
Estas digressões sobre cada um dos Bric, tomados individualmente, permite
visualizar algumas das características que podem marcar sua forma de relacionamento
com o entorno geográfico e na comunidade internacional. A percepção que se retira
deste brevíssimo racconto storico é a de que seus problemas e ambições nacionais são
profundamente distintos, pelo menos observados retrospectivamente. Pode até ser que,
no futuro, seus projetos e interesses nacionais possam ser objeto de alguma ação
convergente ou ação coordenada; mas esta hipótese ainda precisa ser construída e
testada com base em dados da realidade, não apenas a partir da vontade política ou da
retórica diplomática de seus dirigentes ocasionais. Esta questão, central para os
propósitos deste ensaio, será vista mais adiante.

3. De onde vieram, para onde vão?


As trajetórias respectivas dos Bric na economia mundial, nos últimos dois
séculos, e particularmente nas últimas duas décadas, foram bastante desiguais, para não
dizer divergentes e contraditórias, seja entre si, seja na sua relação com os centros mais
dinâmicos dessa economia global. Suas relações recíprocas ao longo do último meio
século foram, aliás, relativamente marginais, com a exceção, talvez, da URSS e da
China, numa primeira fase da construção do socialismo neste último país.
Quais foram e quais são os centros dinâmicos e como eles interagiram entre si
na construção de uma economia globalizada e cada vez mais abrangente na integração
de mercados, na localização de fatores produtivos e na disseminação de tecnologias e
circulação de capitais? Para resumir, eles foram, num primeiro momento, a Inglaterra,
país pioneiro na revolução industrial e na integração comercial do mundo, e, por outro
lado, o mercado financeiro londrino como grande investidor direto e “emprestador de
192
última instância” de países carentes de capitais. Num segundo momento, o centro se
deslocou para os EUA e Nova York, respectivamente, com grande desenvolvimento
tecnológico e científico e disseminação do “American way of life” pelos veículos de
comunicação e através da indústria do cinema.
A esse respeito, o relacionamento ou a interação, dos Bric, individualmente
tomados, com a economia mundial, seguiu uma trajetória errática, nos últimos dois
séculos, com alguma convergência nas últimas duas décadas, ou seja, sua maior
integração à globalização capitalista, processo complementado, agora, por uma maior
interação recíproca, justamente motivado pela “invenção” do conceito de Bric por um
banco de investimentos privado. Deve-se dizer, antes de tudo, que os Bric, tomados
individualmente e conjuntamente, retrocederam em sua participação nos grandes fluxos
mundiais de capitais, comércio, investimentos e tecnologia nos dois séculos que levam
da primeira revolução industrial à oitava década do século XX, retomando, a partir daí,
uma interação mais intensa com a economia global. Esse retrocesso, no passado,
ocorreu tanto por decisões próprias – revoluções socialistas na Rússia e na China,
adoção do planejamento estatal na Índia –, como de maneira totalmente involuntária,
em virtude de desastres externos, seguidos de introversão estatizante, como no caso
brasileiro (basicamente, a crise de 1929 e a depressão dos anos 1930 foram fatores
indiretos de estímulo à definição de um projeto nacional de industrialização e de
desenvolvimento, aliás exageradamente introvertido).
No período de construção de uma nova ordem econômica internacional, no
segundo pós-guerra, tanto a URSS como a China, se auto-excluíram das instituições
típicas do sistema mundial capitalista – FMI, BIRD, GATT – enquanto o Brasil e a
Índia aderiam de modo muito relutante, e marginal, a essas entidades “capitalistas”. Na
verdade, o Brasil foi muito ativo nesses órgãos da interdependência capitalista, ainda
que ele o tenha sido mais um “cliente” do que um responsável por processos decisórios
que, até a pouco, passaram ao largo de sua capacidade de atuação. Em todo caso, mais
do que qualquer outro Bric, ele preservou estruturas de mercado e um estilo capitalista
de gestão econômica em razoável sintonia com o padrão formal de organização
econômica do capitalismo avançado. O único outro Bric “capitalista” do período da
Guerra Fria, a Índia, foi muito mais estatizante, burocratizado e atrasado, no plano
gerencial, do que o Brasil, devendo o país do Sul asiático seu forte impulso
modernizador do período recente bem mais à sua diáspora econômica nos EUA do que
às transformações internas à própria Índia.
193
A China foi um total desastre econômico, não só pela sua contínua decadência
na época da guerra civil e da invasão japonesa, mas também pelos catastróficos (e até
criminosos) planos econômicos da era do maoísmo triunfante (Grande Salto Para a
Frente e Revolução Cultural). Basta com dizer que, possuindo um produto nacional
bruto equivalente, grosso modo, a quase um terço do PIB mundial até o final do século
XVIII, ela regrediu a menos de 5% do PIB global nos anos 1960, recuperando parte
razoável do que tinha perdido historicamente só nos 2000. Quanto à Rússia, ademais de
notavelmente diminuída depois da implosão da URSS, suas estatísticas da era socialista
são pouco confiáveis para o estabelecimento de uma série relevante de seu desempenho
ao longo do século XX, quando sofreu, além das destruições das duas guerras mundiais,
desastres incomensuráveis em termos materiais e, sobretudo, humanos. No período
“clássico” do stalinismo triunfante, ao final da Segunda Guerra Mundial, a contribuição
do sistema econômico do Gulag (geralmente concentrado nas áreas florestal, mineral e
obras de infraestrutura) pode ter representado quase 5% do PIB soviético. A própria
CIA superestimou a produção industrial e a capacidade tecnológica do que era,
finalmente, uma imensa “aldeia Potemkim”, vivendo uma mentira institucionalizada ao
longo de sete décadas.
A “reincorporação” dos Bric ao mainstream da economia mundial, a partir da
oitava década do século XX, foi também muito diferenciada, devido às características
bastante divergentes de seus modos de inserção no sistema global. O Brasil, a rigor,
nunca dele se afastou, mas exibia, até meados dos anos 1980, quase 95% de
nacionalização na oferta interna, por força de um protecionismo renitente. A Índia,
provavelmente, levou mais longe o capitalismo burocrático de Estado, o que, junto com
um planejamento extensivo, foi responsável por décadas de crescimento reduzido e de
baixa modernização tecnológica. Foi a China, na verdade, quem deu a partida para a
“grande transformação” na divisão mundial do trabalho, ao iniciar, com as reformas da
era Deng Xiao-Ping, uma rápida reconfiguração na geografia mundial dos investimentos
diretos. A Rússia, por sua vez, operou uma lamentável reconversão a um capitalismo
mafioso nos anos 1990, passando a contar mais como fornecedora de matérias-primas
energéticas do que como participante ativa da economia mundial. O Brasil passou a ser
um grande provedor de commodities alimentícias e minerais; a Índia consolidou sua
presença nas tecnologias de informação e de comunicação e nos serviços vinculados; ao
passo que a China industrial assumiu a liderança virtual nos produtos de consumo de
massa de todo o tipo, com dominância dos bens duráveis eletrônicos. Todos eles se
194
beneficiaram de suas vantagens ricardianas, com ênfase em mão-de-obra no caso
chinês, tecnologia no modelo indiano e recursos naturais para o Brasil e a Rússia.
E para onde caminham os Bric nas próximas décadas? Certamente não em
direção ao mesmo destino, ainda que o traço comum de suas respectivas trajetórias seja
uma crescente adesão, incontornável, à economia mundial. O estudo de 2003 da
Goldman Sachs aposta que esse G4 ultrapassará, conjuntamente, o PIB do atual G7 em
2035, sendo que a China ultrapassará a todos, individualmente, até 2040 (ela já o fez
para três ou quatro). Os componentes dessa ultrapassagem econômica são, contudo,
muito diversos, com uma provável “explosão” tecnológica da China, uma continuidade
“extrativa” no caso da Rússia, uma enorme competitividade agrícola para o Brasil e de
serviços de internet e de tecnologia da informação para a Índia, ou seja, nada de muito
diferente do que já está ocorrendo atualmente.
A verdade é que a economia mundial apresenta estruturas muito lentas em seu
processo de constituição e um pouco menos lentas em sua transformação progressiva.
Muitos dos argumentos sobre o declínio inevitável dos atuais países avançados podem
carecer de fundamentos reais, uma vez que a natureza dos ganhos de produtividade, na
economia moderna, depende bem menos de domínio físico sobre fatores brutos de
produção e muito mais sobre elementos intangíveis, ou imateriais, da nova sociedade do
conhecimento, e estes são inesgotáveis e sempre surpreendentes. Ou seja, ainda que a
“massa atômica” dos Bric possa superar o peso do atual G6 ou G7, todos eles
permanecerão, em termos per capita, bem abaixo dos indicadores atuais de bem estar e
de produtividade dos países mais avançados. A própria noção de “blocos” parece ser
totalmente ilusória, posto que os vínculos entre todas essas economias – e entre eles e
novos emergentes – serão substantivamente transformados nas próximas décadas.

4. New kids in the block


Transformações econômicas são sempre o resultado de uma combinação de
fatores, alguns estruturais – ao estilo das ondas “geológicas” braudelianas –, outros de
natureza contingente, ou seja, derivados de decisões políticas tomadas em alguns
momentos especiais por líderes visionários. A Rússia e a China afundaram no “caos
destruidor” de suas economias socialistas pela força carismática de líderes políticos
bastante competentes no plano orgânico-partidário e absolutamente ineptos no tocante à
capacidade de compreender o modo de funcionamento de uma moderna economia de
mercado. No primeiro caso, a transição do socialismo ao capitalismo continuou sendo
195
errática e especialmente inepta; mas no caso da China ocorreu uma combinação exitosa
de autoritarismo político e de firme condução para um regime de mercado que a
converteu em exemplo único na história econômica mundial de crescimento inédito (e
sustentado) com transformações estruturais de enorme impacto social.
No caso do Brasil e da Índia, as transformações foram menos o resultado de
processos dirigidos de “retorno aos mercados”, ou de “revoluções pelo alto”, e bem
mais a ação das “forças profundas” de regimes semi-capitalistas finalmente liberados
em suas energias criadoras pela abertura econômica e a liberalização comercial. O
problema básico do Brasil era o de romper com a retroalimentação inflacionária e o
estrangulamento cambial, processo conduzido a termo mesmo em meio a turbulências
financeiras que ameaçaram o êxito do ajuste entre a segunda metade dos anos 1990 e o
início dos 2000. No caso da Índia, se tratava de romper com o dinossauro estatal da
economia planejada e do protecionismo exacerbado, o que foi feito de modo tardio, mas
facilitado pela existência de uma “diáspora” econômica de alta qualidade nas principais
economias desenvolvidas, diáspora que também existe, embora com outras
características, na experiência histórica chinesa.
A rigor, a China parece reproduzir, com maior velocidade adaptativa e uma
imensa ambição de recuperar rapidamente as décadas perdidas de socialismo doentio, a
experiência japonesa da Revolução Meiji – mandar seus filhos aprenderem com os
líderes científicos e tecnológicos do capitalismo avançado – e, sobretudo, o milagre
japonês do pós-Segunda Guerra, com muita cópia e adaptação do know-how ocidental e
um cuidado extremo em logo reproduzir os mesmos produtos com novos desenhos e
marcas próprias. De todos os Bric, é a única economia emergente que está destinada a
converter-se, efetivamente, em economia dominante, ademais de potência militar de
primeira classe, muito embora ela ainda esteja muito longe de igualar, para os seus
cidadãos – muitos deles ainda súditos de um regime autoritário –, os níveis de bem-estar
individual das populações dos países do capitalismo avançado.
A Rússia, amputada de territórios, recursos naturais e humanos em dimensões
relativamente importantes, não parece próxima de recuperar a relevância estratégica e
política alcançada no ponto máximo de sua “expansão” geopolítica, que correspondeu
ao “brejnevismo senil” do final dos anos 1970. Ainda que detentora de formidável
arsenal nuclear e de certa capacidade de projeção militar, ela não terá condições de
desafiar efetivamente os dois gigantes da economia mundial de meados do presente
século. Ela depende de recursos finitos e mesmo sua demografia é declinante (ver tabela
196
1), como já tinha chamado a atenção, desde aquela época, um observador atento como
Emmanuel Todd (La Chute Finale, 1976).
No que se refere à Índia, ela pode até dominar com ainda maior competência os
serviços eletrônicos que já oferece de maneira bastante competitiva; mas terá de
absorver na moderna economia de mercado centenas de milhões de camponeses
miseráveis que ainda vegetam numa economia ancestral, totalmente incompatível com o
que se entende como modernidade capitalista. O Brasil, finalmente, tem pela frente,
durante uma geração aproximadamente, a chance de beneficiar-se do chamado “bônus
demográfico” – ou seja, a melhor relação possível entre população ativa e dependentes
econômicos –, oportunidade que será provavelmente perdida, em grande medida devido
à baixa qualificação técnica e educacional da população, o que reduz bastante os ganhos
de produtividade que seriam de se esperar, se fossem outras as condições de capacitação
de sua mão-de-obra.
Essas deficiências relativas não impedirão quase todos os Bric de se tornarem
relevantes no quadro da economia mundial de meados do século. Mas eles o serão pelo
seu enorme peso demográfico e enquanto mercados de consumo em expansão, com
exceção da Rússia, obviamente; não é provável que eles alcancem o nível de excelência
tecnológica já logrado por quase todos os países do bloco avançado do capitalismo
mundial. A exceção, mais uma vez, deverá ser a China, que reproduzirá, provavelmente,
o desempenho tecnológico de Taiwan e da Coréia do Sul em escala ainda mais
importante e com uma rapidez surpreendente para os padrões conhecidos.
Cabe registrar, preventivamente, que os Bric lograrão tais desempenhos, sem
qualquer uniformidade de ritmos, sem qualquer similaridade entre as características
essenciais de seus processos respectivos de modernização, sem qualquer coordenação
conjunta e de maneira totalmente independente uns dos outros. Ou seja, eles devem
confirmar sua ascensão relativa no futuro cenário econômico mundial sem apresentar os
mesmos traços imanentes em suas respectivas economias de mercado – algumas mais
capitalistas e capitalizadas do que outras – e sem qualquer comparação possível entre
suas políticas econômicas nacionais.

5. Políticas domésticas
Essas políticas não seguem e não seguirão um padrão uniforme por uma razão
muito simples. O mundo ainda é, e continuará sendo no futuro previsível, um “teatro de
variedades” de experiências econômicas divergentes e até contraditórias entre si, em
197
que pese a gradual convergência de políticas macroeconômicas básicas (fiscal,
monetária e cambial), mas com imensas variações de detalhe entre elas. Registre-se que
estamos falando aqui de políticas macroeconômicas e setoriais, não de grandes
tendências estruturais, que se movem mais lentamente, mas que são, igualmente,
determinantes da posição ocupada pelas economias nacionais no sistema mundial.
Políticas domésticas podem ser aferidas por uma variedade de instrumentos de
análise econômica. Mas em última instância são julgadas pela sua capacidade de
“entregar” (ou não) aquilo que se espera de políticas responsáveis: crescimento (o que
significa maior renda nacional), num ambiente de relativa estabilidade (ou seja, com
inflação baixa e manutenção do poder de compra da moeda) e equilíbrios interno e
externo (contas fiscais em ordem, com pequeno ou nenhum déficit orçamentário, dívida
pública administrável e tranqüilidade no balanço de pagamentos). Todos esses
indicadores são aferíveis objetivamente, através de séries estatísticas (preferivelmente
uniformes, segundo padrões internacionais). Mas eles não querem necessariamente
dizer que uma economia em crescimento traga desenvolvimento social, o que implica
transformações estruturais (ganhos de produtividade), que se traduzem em bem estar
crescente para a população (distribuição relativamente equânime daqueles ganhos) e
preservação de um ambiente sustentável para as futuras gerações.
Atendo-se, contudo, ao essencial das políticas domésticas dos Bric, podemos
constatar que, a despeito da lógica implícita ao seu agrupamento – grandes economias
de crescimento dinâmico, com grande poder de impacto na futura economia mundial –,
eles se diferenciam quanto ao desempenho econômico, ainda que suas taxas de
crescimento econômico possam ter apresentado, com a exceção conhecida do Brasil,
comportamento vigoroso nos últimos anos, como se pode constatar na tabela seguinte.

3. Taxas de crescimento anual do PIB, 2000-2007


Países 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil 4,3 1,3 2,7 1,1 5,7 3,2 3,8 5,4
China 8,4 8,3 9,1 10 10,1 10,4 11,1 11,4
Índia 5,4 3,9 4,6 6,9 7,9 9,1 9,7 9,2
Rússia 10,0 5,1 4,7 7,3 7,2 6,4 7,4 8,1
Emergentes 5,9 3,8 4,7 6,2 7,5 7,1 7,8 7,9
G7 3,6 1,0 1,2 1,8 3,0 2,3 2,7 2,2
Mundo 4,7 2,2 2,8 3,6 4,9 4,4 5,0 4,9
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

A China tem crescido duas vezes mais do que a média mundial e um terço a
mais do que os emergentes, ao passo que o Brasil não conseguiu acompanhar aquela
198
média e se situa sistematicamente aquém dos emergentes. Com base em suas taxas de
crescimento, a renda per capita nos Bric tem crescido de forma consistente nos últimos
anos; com menor vigor no Brasil, cuja progressão nominal pode ser explicada pela
valorização de sua moeda nacional, em contraste com a modéstia de resultados quando
os valores são considerados em paridade de poder de compra, como se pode constatar
na tabela 4. A Rússia operou uma reversão significativa, comparativamente ao terrível
declínio que tinha experimentado na última década do século anterior.

4. (a) PIB per capita, preços correntes (US$ mil)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil 3,761 3,189 2,866 3,085 3,654 4,787 5,741 6,937
China 945 1,038 1,131 1,269 1,486 1,715 2,011 2,460
Índia 458 461 475 541 622 717 791 977
Rússia 1,767 2,095 2,379 2,975 4,104 5,325 6,923 9,075
(b) PIB per capita, em Paridade de Poder de Compra (PPP) (US$ mil)
Brasil 7,186 7,346 7,561 7,697 8,231 8,603 9,080 9,695
China 2,372 2,612 2,881 3,217 3,614 4,078 4,649 5,292
Índia 1,508 1,576 1,650 1,773 1,950 2,156 2,405 2,659
Rússia 7,627 8,242 8,847 9,708 10,740 11,832 13,173 14,692
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

Aplicando-se um índice 100 à renda PPP per capita do começo do período,


pode-se verificar que o melhor desempenho é o da China, com um índice equivalente a
223 em 2007, seguida da Rússia, com um índice de 192. A Índia, a despeito de sua
enorme (e ainda crescente) população, conseguiu multiplicar sua renda per capita em
1,76, ao passo que o Brasil experimentou modesto desempenho, expandindo seu índice
em apenas 1,34. Políticas de distribuição de renda representam um componente
essencial de todo país moderno. Mas os indicadores e modalidades que apresentam os
Bric nesse particular tornam pouco significativa uma comparação direta entre eles.
A capacidade dos governos garantirem estabilidade monetária nesses países
também tem variado ao longo dos anos, como se pode ver na tabela 5.

5. Inflação: aumento médio dos preços ao consumo (% anual)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil 7.0 6.8 8.4 14.7 6.5 6.8 4.1 3.6
China 0.4 0.7 -0.7 1.1 3.9 1.8 1.4 4.7
Índia 4.0 3.7 4.2 3.8 3.7 4.2 6.1 6.3
Rússia 20.7 21.4 15.7 13.6 10.8 12.6 9.6 9.0
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

O Brasil vem consolidando um modelo bem sucedido de metas de inflação, o


que tem produzido bons resultados no período recente. O ritmo do aumento de preços
199
tem declinado no Brasil e na Rússia, mas aumentado na China e na Índia, mesmo antes
da ascensão generalizada nos preços das commodities e da energia no período recente.
A despeito de que praticamente todos os governos de países avançados apresentam
resultados fiscais moderadamente deficitários e dívidas públicas na faixa de 40 a 60%
do PIB, estes são indicadores relevantes de risco soberano que interessa mais de perto
os Bric, uma vez que é a partir deles que são fixadas as taxas de risco associadas a
empréstimos e outros movimentos de capitais. Nesse particular, os dados dos Bric
também são variados entre si e variáveis ao longo do tempo, mesmo numa perspectiva
de curto e médio prazo. Brasil e Índia são os que apresentam os resultados fiscais mais
preocupantes, uma vez que não se trata apenas de déficits orçamentários construídos
para fins de investimentos produtivos ou construção de infraestrutura, e sim de políticas
governamentais adotadas com claro sentido político que acabam provocando a
agravação das contas públicas.
O serviço público indiano, com seus 10 milhões de empregados, é um sugador
contínuo de recursos, da mesma forma como os subsídios para agricultores pobres ou a
combustíveis e produtos básicos. No caso do Brasil, despesas com o desequilibrado
sistema da Previdência social, mais o peso dos juros da dívida pública e a crescente
folha de pagamentos do funcionalismo público representam três enormes e perigosos
componentes de uma bomba-relógio fiscal. Em ambos os países, as despesas vêm sendo
cobertas pelo aumento da arrecadação gerada pelo crescimento econômico; mas se
ocorre uma reversão nessa frente, ou se a demanda externa entra em fase declinante, o
cenário está criado para uma nova crise no setor. O nível da dívida pública da Índia,
acima de 90% do PIB, é enorme para todos os padrões conhecidos, comparativamente
aos 65% da dívida brasileira e menos de 20% para os dois outros.
O governo russo, por sua vez, tem operado uma consistente volta do Estado aos
negócios, passando a controlar um número crescente de companhias que operam em
setores ditos estratégicos: a consequência mais provável pode ser o afastamento de
investidores estrangeiros de novas oportunidades empreendedoras naquele país, com
uma possível diminuição do ritmo de crescimento no futuro de médio prazo. Reações
nacionalistas são típicas em todos os Bric, mas este pode não ser o fator principal na
decisão de um investidor estrangeiro. Mais relevantes são: o ambiente de negócios (e,
segundo as pesquisas do Banco Mundial em seus relatórios anuais, Doing Business, o
cenário no Brasil é extremamente burocratizado) e, sobretudo, peculiaridades da política
tributária, setor no qual o Brasil também consegue se alinhar aos países de mais alta
200
extração fiscal – aproximadamente 38% do PIB, que é a média da OCDE –, reduzindo
proporcionalmente a poupança privada dirigida aos investimentos.

6. Políticas econômicas externas


As políticas mais importantes no plano da inserção externa têm a ver com o
câmbio, a liberalização dos movimentos de capitais e abertura comercial, terrenos nos
quais as políticas dos Bric são também muito diversas. Todas tendem à adoção de um
padrão mais propício à sua integração econômica internacional, o que contrasta com as
formas historicamente restritivas que todos eles exibiam até menos de uma geração
atrás. As rupturas políticas mais importantes ocorreram, obviamente, com os dois
gigantes socialistas, uma vez que o Brasil e a Índia se situavam nos limites de um
capitalismo fortemente marcado pela presença avassaladora do Estado empreendedor.
Estes dois últimos foram membros fundadores do GATT e estiveram presentes, desde
cedo, nas instituições de Bretton Woods, sem necessariamente acatar de bom grado as
prescrições de política econômica formuladas pelas duas entidades de Washington.
A China e a Rússia ingressaram no FMI e no BIRD tão pronto superaram suas
restrições ideológicas às duas entidades-símbolo do mundo capitalista, mas o processo
foi mais complicado na esfera comercial. A China levou 14 anos para ser admitida no
GATT, fazendo-o apenas às vésperas do início da Rodada Doha (2001), mantendo ainda
várias práticas não conformes ao padrão normal de relacionamento comercial. A Rússia,
a despeito de politicamente admitida no G7 desde os anos 1990 e de ter sido
reconhecida como “economia de mercado” desde o G7 de Kananaskis (2002) por esse
mesmo G7, não conseguiu, ainda, cumprir todos os requisitos para ingressar no sistema
multilateral de comércio, nem parece perto de ingressar na OCDE. O recente retorno a
uma política externa “musculosa” pode deixá-la ainda mais longe dessas organizações
típicas da interdependência capitalista.
Brasil e Índia mantiveram, durante várias décadas, o padrão típico da política
desenvolvimentista preconizada por economistas keynesianos como Raul Prebisch ou
Gunnar Myrdal, com muitas restrições cambiais, protecionismo comercial e medidas
discriminatórias contra o capital estrangeiro, políticas que começaram a ser mudadas no
final dos anos 1980 e início dos 1990. Eles ainda mantêm uma política comercial
basicamente defensiva no plano industrial. A Índia, graças à sua qualificação no campo
das tecnologias de informação, tem operado abertura no setor de serviços, ao passo que
o Brasil se mostra mais ofensivo no combate às políticas subvencionistas na área
201
agrícola (o que deveria incluir, além dos protecionistas desenvolvidos, também os
aliados do Brasil no G20, China e Índia, precisamente).
As políticas cambial, comercial e do capital estrangeiro mantidas pelos Bric são,
portanto, tão variadas quanto suas formas específicas de inserção internacional. Mas os
resultados acabam refletindo-se, como seria de se esperar, no balanço de transações
correntes, cujos saldos, deficitários ou superavitários, são então corrigidos pelos
movimentos de capitais voluntários e pelos financiamentos compensatórios. A tabela 6
oferece o panorama da evolução recente dos movimentos de fatores para os Bric, com
uma evolução crescentemente positiva para os dois grandes exportadores de
mercadorias (China) e energia (Rússia), e um comportamento mais errático do lado dos
dois outros.

6. (a) Balança de transações correntes (US$ bilhões)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil -24.225 -23.215 -7.637 4.177 11.679 14.193 13.621 3.555
China 20.519 17.405 35.422 45.875 68.660 160.818 249.866 360.705
Índia -4.599 1.410 7.061 8.773 0.781 -10.285 -9.800 -19.345
Rússia 46.839 33.935 29.116 35.410 59.514 84.443 94.257 76.600
(b) Balança de transações correntes (% do PIB)
Brasil -3.7 -4.1 -1.5 0.7 1.7 1.6 1.2 0.2
China 1.7 1.3 2.4 2.7 3.5 7.1 9.4 11.0
Índia -0.9 0.2 1.4 1.5 0.1 -1.3 -1.1 -1.7
Rússia 18.0 11.0 8.4 8.2 10.0 11.0 9.5 5.9
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

O Brasil saiu de uma situação bastante frágil, na segunda metade dos anos 1990
e início dos 2000, o que o levou a buscar financiamento preventivo por meio de três
acordos concluídos com o FMI (1998, 2001 e 2002), para uma posição de relativo
conforto no plano externo, com reservas internacionais superiores à dívida externa. O
superávit em transações correntes deve, no entanto, reverter ainda em 2008, com déficit
moderado plenamente coberto por ingressos a título de investimentos diretos. Com seus
enormes saldos comerciais, a China caminha para novos recordes de reservas em divisas
– superiores a US$ 2 trilhões – e deve se manter como grande exportadora pelo futuro
previsível. Os saldos da Rússia são também crescentes ou confortáveis, mas sua posição
estrutural apresenta fragilidades, dada a dependência do petróleo e do gás. Os déficits da
Índia, por sua vez, a despeito de crescentes, têm apresentado proporção administrável
para sua economia também em expansão.

202
Déficits de transações correntes são financiáveis até certo ponto, dependendo
das demais relações da economia com o sistema internacional. Países abertos a fluxos
comerciais e financeiros, com contas fiscais ordenadas e perspectivas de crescimento,
conseguem obter financiamento a taxas razoáveis, o que parece ser parcialmente o caso
de Brasil e Índia. A Rússia, provavelmente, não terá um problema desse tipo pela frente
no médio prazo. Mas o único país verdadeiramente confortável quanto à sua inserção
dinâmica na economia mundial parece ser a China, como se depreende da tabela 8, mais
abaixo.
A despeito de todo o seu sucesso nos fluxos mundiais de mercadorias, a China
se mantém como uma grande usuária de medidas de defesa comercial e permanece em
posição defensiva quanto a demandas adicionais para abertura de seus mercados (em
especial o agrícola), no que ela é largamente acompanhada pela Índia. As diferenças de
política comercial entre os Bric são provavelmente maiores do que nos demais vetores
da política econômica externa, o que pode surpreender ao se considerar que, à exceção
da Rússia, eles integram o mesmo bloco negociador na Rodada Doha (G20).

7. Impacto dos Bric na economia mundial


A grande justificativa para a existência da sigla Bric, segundo seu propositor
original, é a dimensão do impacto dessas economias emergentes na economia mundial e
sua capacidade de moldar o futuro de muitos outros países em desenvolvimento. De
fato, à exceção do Brasil, os três outros Bric vêm consistentemente ganhando peso e
importância no contexto global e setorial, como se depreende da tabela 7.

7. PIB em PPP em proporção do PIB mundial (%)


Bric 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Brasil 2,9 2,9 2,9 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8
China 7,2 7,6 8,1 8,6 9,1 9,5 10,1 10,8
Índia 3,6 3,7 3,7 3,9 4,0 4,2 4,4 4,5
Rússia 2,6 2,7 2,8 2.932 2,9 3,0 3,1 3,1
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, April 2008

Teoricamente, portanto, como indicam os autores desse tipo de estudo, os Bric


representarão, em poucos anos, um quinto da economia mundial, caminhando
paulatinamente para ultrapassar o G7 em duas décadas, segundo as estimativas. Essa
agregação de “volumes” individuais pode fazer sentido nesse tipo de exercício
intelectual, no qual a aritmética parece predominar sobre a política; mas é pouco
provável que ela indique tendências de desenvolvimento da economia mundial, cujos
203
vetores são dados por transformações tecnológicas, fluxos de capitais e informação de
tipo científico e estratégico, como sempre ocorreu, aliás, na história do capitalismo.
De fato, pela sua crescente importância demográfica, assim como através da
disseminação crescente da tecnologia e de capitais de investimento, pode-se prever com
toda segurança que a participação dos países em desenvolvimento (entre os quais estão
inseridos os Bric, segundo o FMI) nas exportações mundiais de bens e serviços e no
PIB total deverá se expandir a partir dos valores atuais, resumidos na tabela abaixo.

8. Participação no PIB agregado, nas exportações de bens e serviços e na


população mundial, 2007 (%)
PIB agregado Export. bens-serviços População
Países ricos mundo ricos mundo ricos mundo
Ricos (31) 100 56,4 100 66,4 100 16,3
EUA 37,9 21,4 14,4 9,6 30,7 4,7
Alemanha 7,7 4,3 13,8 9,2 8,4 1,3
França 5,6 3,2 6,0 4,0 6,3 1,-
Itália 4,9 2,8 5,6 3,7 6,0 0,9
Japão 11,7 6,6 7,2 4,7 13,0 2,0
Reino Unido 5,9 3,3 6,4 4,2 6,2 0,9
Canadá 3,5 2,0 4,4 2,9 3,3 0,5
G7 77,2 43,5 57,8 38,4 73,8 11,3
PIB agregado Export. bens-serviços População
Países em em des. mundo em des. mundo em des. mundo
desenv.(141) 100 43,6 100 33,6 100 84,7
Brasil 6,4 2,8 3,2 1,1 3,5 2,9
China 24,8 10,8 23,3 7,8 24,2 20,5
Índia 10,5 4,6 4,0 1,3 20,6 17,5
Rússia 7,3 3,2 6,8 2,3 2,6 2,2
México 4,8 2,1 5,1 1,7 1,9 1,6
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook 2008, Statistical Appendix, p. 235

Trata-se, no entanto, de uma constatação elementar, que nada diz sobre os


demais aspectos, sobretudo institucionais e políticos, que atuam de modo interativo com
as forças estruturais que estão moldando o sistema econômico mundial. Ou seja, o
impacto econômico dos Bric é necessariamente decisivo; mas ele sozinho nada diz
sobre os demais condicionantes de um complexo relacionamento que não se resume à
contabilidade de PIB e exportações, mas tem a ver com fatores complexos de
interdependência recíproca, não dos Bric entre si, mas entre eles, individualmente
tomados, e seus múltiplos parceiros na economia mundial.
Em outros termos, os valores registrados nos intercâmbios globais, bem como os
próprios volumes físicos de bens e serviços comercializados, não podem ser
considerados unicamente em sua base territorial ou sua jurisdição nacional, uma vez que

204
eles resultam de relações contratuais de propriedade intelectual e de criação e
apropriação tecnológica – subjacentes a outros fluxos de renda não computados de
modo adequado naquelas estatísticas – que traduzem a verdadeira complexidade da
economia contemporânea (e futura). Desse ponto de vista, os Bric não possuem
existência econômica de fato, sendo puramente uma criação do “espírito econômico”.

8. Impacto da economia mundial sobre os Bric


Os Bric e os demais países emergentes não têm, no contexto da globalização
capitalista, um itinerário e um destino econômico independentes dos que possam ser
concebidos para os polos mais avançados da economia mundial. Estes estabelecem os
padrões e parâmetros fundamentais por meio dos quais ela se organiza, num processo
dinâmico que não é dominado exclusivamente por um centro específico, mas possui
“nós” articulados de produção e de disseminação de ideias e de conhecimento prático,
através dos quais é tecida a teia da economia mundial. Obviamente, as modalidades de
inserção de cada economia nacional no sistema mundial são distintas, assim como são
distintos os nichos ocupados e os papéis desempenhados por cada uma delas nessa
interdependência cambiante, posto que os processos de desenvolvimento econômico e
social são sempre únicos e originais, respondendo a ênfases, orientações e opções que
são determinadas, em grande medida, pelas elites dirigentes dos Estados nacionais.
Assim como os Bric podem contribuir para moldar o perfil da futura economia
mundial, esta possui um impacto ainda mais decisivo sobre eles, aqui individualmente
considerados (já que não se observa, na presente conjuntura, uma ação coordenada no
plano das políticas macroeconômicas ou setoriais). A crise financeira deslanchada em
2007 a partir do episódio das subprimes hipotecárias americanas, estendida em 2008 às
bolsas e ao sistema financeiro como um todo, nos diversos continentes, demonstra essa
interconexão das unidades econômicas nacionais. Com efeito, a despeito das teses sobre
o “descolamento” dos Bric do ciclo econômico dos países do G7 e dos demais
avançados, o fato é que o impacto destes sobre aqueles é mais relevante do que o
usualmente admitido. Não se trata, apenas, de mercados de consumo e de fluxos de
investimento direto, mesmo se esses vetores já são importantes para os ciclos
econômicos dos emergentes e os de outros países em desenvolvimento. Ademais das
especializações ricardianas e de outras vantagens adquiridas, os emergentes, em geral, e
os Bric, em particular, estão integrados seja como tomadores, seja como provedores de
recursos financeiros para o sistema em seu conjunto.
205
De fato, a economia mundial não se apresenta apenas como um conjunto de
espaços (reais ou virtuais) para o intercâmbio de bens e serviços, com os quais cada
unidade nacional pode ter maior ou menor interação física. Mesmo na hipótese de uma
osmose dinâmica entre cada economia nacional com essa interface internacional
relativamente complexa, ela não esgota as características fundamentais da economia
moderna. Esta é, no seu aspecto essencial, sobretudo um espaço para o intercâmbio de
ideias. Nesse sentido, a dominação intelectual do chamado Ocidente desenvolvido deve
continuar a se exercer pelo futuro previsível e imaginável: ainda que a inovação
tecnológica possa se disseminar mais rapidamente, a pesquisa científica continua a ter
maior densidade nos centros universitários ligados à tradição baconiana.
Quando se observa o panorama geral da economia mundial, uma conclusão
parece inevitável: as mesmas forças que transformaram o mundo desde o século XVI
continuam a moldar o mundo contemporâneo e aquele previsível no horizonte, não só
pelos fluxos de bens e serviços, mas também pelas formas de organização econômica e,
sobretudo, pela produção de ideias e conceitos que sustentam os fluxos reais. Desse
ponto de vista, não se pode, ainda, conceber uma suposta independência dos países em
desenvolvimento do núcleo central da economia mundial. Aliás, o próprio conceito de
“países em desenvolvimento”, ou de economias centrais e “periféricas” pode ser posto
em dúvida para fins de uma análise isenta de supostos ideológicos.
Não caberia, nos limites deste ensaio, discutir os preconceitos filosóficos e de
organização “mental” que presidiram à construção política do mundo contemporâneo,
feita de divisões políticas entre grupos de países supostamente homogêneos, tanto
porque esse constructo tem sólidos fundamentos na realidade: existem, claro, países
“centrais” e “periféricos”; existem, sim, economias “dominantes” e as “dominadas” ou
“dependentes”; ocorre, obviamente, “extração” de recursos e de renda de umas pelas
outras, assim como a tutela política e a influência cultural são parte da história mundial
nos últimos cinco séculos. Mas essas dicotomias simplistas e redutoras não esgotam a
realidade formada a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI, aquela
constituída pela unificação econômica do mundo a partir do século XIX,
provisoriamente interrompida, durante “breves” setenta anos do século XX, por um
experimento socialista alternativo, depois retomada sob a égide do capitalismo global.
Em qualquer hipótese, os Bric possuem a sua própria “periferia”, assim como
cada um deles constitui o “centro” de um espaço econômico específico, que não deixa
de vincular-se aos muitos círculos concêntricos que emanam naturalmente dos vários
206
pólos da economia mundial. Nesse sentido, pode-se parafrasear George Orwell e dizer
que, se todos são interdependentes, alguns são mais interdependentes do que outros. A
China, por exemplo, o único dos Brics que tem condições de impactar de maneira
decisiva – para o bem ou para o “mal” – a economia mundial, é também a economia
mais integrada ao atual pólo hegemônico do capitalismo global: ela “extrai” dele os
excedentes comerciais mais volumosos, mas também “devolve” esses recursos sob a
forma de financiamento à dívida pública americana, via compra de T-bonds. O Brasil,
aliás, é o quarto mais financiador do Tesouro dos EUA, tendo investido três quartos de
suas reservas internacionais nos mesmos instrumentos financeiros.

9. Consequências geoestratégicas
Qualquer que seja a conformação futura da economia mundial, os Bric, assim
como todas as outras economias, maduras, emergentes ou ainda em “hibernação”, são
parte integrante de qualquer paisagem geoeconômica ou geopolítica que se possa
conceber. Essa é uma realidade que independe de estudos por especialistas e que não
tem a ver com o “ajuntamento” artificial de quatro, ou mais, países num novo bloco,
supostamente homogêneo, por agregação arbitrária de um desses especialistas em
processos econômicos. Todas as economias, em maior ou menor grau, têm um papel a
cumprir no sistema econômico mundial. Mas, obviamente, como ocorre no mundo da
política de poder, algumas economias são “mais iguais” do que outras, e entre estas se
situam os Bric, países capazes de impactar, seletivamente, um ou outro aspecto das
relações econômicas internacionais, sem que sua ação seja coordenada ou intencional.
Economistas acadêmicos, como outros cientistas sociais, tendem a simplificar a
realidade a pretexto de racionalizar processos que necessitam de uma explicação mais
complexa ou elaborada. O conceito “Bric”, em sua aparente novidade, é uma dessas
trouvailles interessantes que passam a ocupar espaços informativos e a mente dos
jornalistas, impedindo, talvez, que análises mais elaboradas sejam conduzidas de modo
responsável e, talvez até, excitando a imaginação de líderes políticos em busca de
alguma ideia nova, mesmo desinteressante. O conceito Bric pode ter essa função.
Mas o que esse conceito representa, verdadeiramente, em acréscimo à, ou além
da virtude heurística de organizar – eventualmente simplificando – uma análise mais
complexa sobre as novas configurações do sistema mundial? Independentemente de
suas consequências práticas, em termos de reorganização parcial da economia mundial
e, a partir daí, seus inevitáveis reflexos nos planos estratégico, político e até militar, o
207
conceito também tem a capacidade de induzir espíritos preocupados com a realidade de
uma “velha” hegemonia a alimentar a ideia de uma “ruptura de sistema”, ou seja, a
eliminação, ou talvez a substituição, dessa antiga hegemonia.
Esta é, talvez, a consequência mais visível da proposta de transposição de um
conceito virtual da análise econômica – conduzida pelos economistas do Goldman
Sachs – para a realidade tangível da vida político-diplomática, sob a forma de uma
proposta tendente a converter o Bric num grupo efetivo de coordenação de políticas (e
eventuais ações) no plano mundial. Estimulados pela honrosa distinção que lhes foi
gratuitamente oferecida por um “aprendiz de feiticeiro” econômico, que viu neles os
substitutos designados dos velhos hegemons, líderes políticos dos Bric começam a se
encantar com a ideia de encarnar uma nova realidade política que, bafejada pela
propaganda também gratuita dos meios de comunicação, esperava tão somente por sua
formalização adequada.
Essa institucionalização, concebida informalmente, num primeiro momento,
entre alguns protagonistas dos Bric, assumiu, em maio de 2008, um formato mais
estruturado, quase parecido a um “grupo”, termo que, entretanto, não é utilizado no
comunicado liberado em nome dos quatro “Bric countries” em 16 de maio, em
Ecaterimburgo, Rússia. Na declaração, os ministros de relações exteriores dos Bric
sublinham, em primeiro lugar, seus “interesses comuns” e a “coincidência ou
similaridade de abordagens em relação aos problemas urgentes do desenvolvimento
global”, para depois concordar com a tarefa de construir “um sistema internacional
fundado no predomínio do direito (rule of law) e na diplomacia multilateral”. O resto do
texto é ocupado pelo diplomatês habitual da agenda internacional; mas no ponto que
mais interessavam o Brasil e a Índia, qual seja, seu eventual acesso ao Conselho de
Segurança da ONU, a linguagem é mais cuidadosamente formulada: “Os Ministros da
Rússia e da China reiteraram que seus países dão importância ao status da Índia e do
Brasil nos assuntos internacionais, e compreendem e apoiam as aspirações da Índia e do
Brasil em desempenhar um maior papel nas Nações Unidas.” Ou seja, nada além de
compreensão e apoio, sem que no entanto esse apoio se traduza em votos efetivos no
processo de reforma da Carta da ONU.
Independentemente, porém, do grau efetivo de “coincidência ou similaridade”
dos Bric quanto a seus “interesses comuns”, o fato é que esse exercício intelectual
deslanchou um processo de efetiva coordenação entre quatro grandes emergentes, que
prometem exercer o seu quantum de poder econômico a serviço de causas políticas
208
ainda não de todo claras, mas que poderiam significar a conformação de uma “nova
geografia econômica internacional”; talvez, até, uma “mudança no eixo do poder
mundial”, segundo formulações já ouvidas de alguns dentre eles. Com efeito, o que
pode estar subjacente à formalização do Bric seria o não tão secreto desejo de alterar a
balança de poder, em termos de influência econômica e política mundial por certo, mas
talvez também no plano do equilíbrio militar, o “definidor de última instância” do poder
mundial.
Historicamente, são raras as tentativas de alteração pacífica do equilíbrio do
poder mundial, na medida em que os beneficiários do status quo tendem a resistir às
demandas dos contestadores por novos espaços no quadro dessa mesma ordem. Caso as
expectativas não sejam atendidas, os contestadores podem se decidir pela mudança
dessa ordem, se possível por meios pacíficos, se necessário por métodos violentos. A
Alemanha imperial empreendeu, por duas vezes, entre 1870 e 1918, uma tentativa de
alterar o equilíbrio do poder na Europa, com sucesso pleno na primeira vez e um quase
sucesso na segunda vez, não fosse pela intervenção dos EUA nos campos do norte da
França, em 1917. A partir de 1938, com a anexação da Áustria e de parte da
Tchecoslováquia, a Alemanha nazista deu início, em cooperação com a Itália fascista e
o Japão militarista, à mais ousada tentativa de alterar pela força a ordem mundial; os
três poderes contestadores estiveram próximos de realizar suas metas expansionistas,
não fosse pela resistência do Reino Unido e pelo poderio econômico americano (em
1939, a URSS apoiou, indireta mas voluntariamente, essa tentativa de eliminação dos
velhos hegemons, mas acabou vítima, ela também, do expansionismo nazista).
Contidos, derrotados e radicalmente transformados os contestadores fascistas do
entre-guerras, a geopolítica do poder mundial passou a ser dominada, a partir de 1947,
pelo expansionismo soviético, sem, contudo, chegar-se ao enfrentamento direto com a
superpotência americana, em vista da mudança brutal nas ferramentas militares em
função do vetor nuclear, ele mesmo uma arma de última instância. Os conflitos se
deram, então, por procuração, cada lado contabilizando avanços e recuos nos teatros
periféricos que passaram a concentrar o essencial do “grande jogo”. Essa “terceira
guerra mundial” terminou sem que o hegemon conservador tivesse logrado vitória; a
derrota do lado economicamente mais débil se deu, na verdade, por auto-implosão de
um socialismo esclerosado e incapaz de competir no plano da eficiência produtiva.
Depois da derrocada espetacular da URSS e do momento “unipolar”, do qual os EUA
emergiram como única superpotência efetiva, o mundo parece caminhar para uma nova
209
fase de transição, na qual se assiste a um declínio relativo dos EUA e à ascensão
(China), reafirmação (Rússia) ou emergência de novos atores (Índia, Brasil, União
Europeia), que poderão redistribuir as cartas nos novos cenários estratégicos.
Existem fundadas dúvidas, entre os analistas, sobre se o mundo entra em uma
era de competição entre novos candidatos a hegemon – dos quais o mais falado seria a
China pós-socialista – ou se estão sendo lançadas as bases de uma paz não-kantiana.
Esta seria a estabilidade fundada, não sobre a convivência pacífica entre repúblicas
democráticas, mas sobre a mútua tolerância entre grandes potências, dado o impasse
estratégico produzido pela arma nuclear. O fato é que dentre os poderes emergentes que
poderiam entrar na nova equação estratégica figuram pelo menos dois Bric, por acaso
ex-socialistas e ainda dominados por sistemas políticos autoritários e agitados por
problemas étnicos e territoriais em suas fronteiras próximas e territórios próprios.

10. O Brasil e os Bric


Qualquer que seja a evolução futura da geopolítica mundial no século XXI, é
evidente que problemas desse tipo – ou seja, nova Guerra Fria, ou uma Paz Fria – não
têm nada a ver com a condição de membro de algum grupo inventado na prancheta de
um economista, ainda que conflitos prováveis possam surgir da condição de alguns
candidatos a emergente global. A situação de “Bric” é acidental e fortuita, ao passo que
a condição de emergente econômico mundial foi adquirida ao longo de um lento
processo de qualificação produtiva e tecnológica que deve converter-se em poder
político e militar na sequência natural das coisas. Em outros termos, a construção do
futuro geopolítico não será determinada pela introdução fortuita do grupo Bric.
Normalmente, a constituição de agrupamentos políticos ou econômicos tem a
ver com afinidades regionais ou agregação de interesses comuns para a realização de
objetivos partilhados, seja na esfera da segurança, do desenvolvimento ou na defesa de
seus espaços respectivos. Assim foi desde a Liga Ateniense – que escondia mal o
imperialismo da cidade e sua supremacia naval –, a Liga Hanseática – criada para
defender interesses de mercadores livres – e, mais recentemente, as alianças militares
dos dois blocos inimigos – Otan e Pacto de Varsóvia – e a verdadeira proliferação de
“Gs”, dentro e fora do sistema onusiano, a começar pelo G77.
O G7, politicamente convertido em G8 com a inclusão da Rússia, tinha (talvez
ainda tenha) um sentido claro: coordenar (ou pelo menos tentar fazê-lo) as políticas
econômicas dos países mais importantes do capitalismo avançado num momento de
210
desestruturação do sistema monetário criado em Bretton Woods. Vários outros “Gs”
foram criados antes e depois do G7, sempre com o sentido de responder de forma
coletiva ou coordenada a desafios comuns, como pode ter sido o caso do G20 liderado
pelo Brasil: evitar um novo “Blair House” na Rodada Doha e promover os interesses
dos países em desenvolvimento na frente negociadora agrícola. Ele é, de certa forma,
“complementado” pelo G33, que visa defender a postura mais restritiva dos países em
desenvolvimento importadores líquidos de alimentos, congregando inclusive alguns
membros do próprio G20, o que pode parecer contraditório. Quase não se fala mais,
atualmente, do G15, que deveria ser o pendant desenvolvimentista do G7, este
“assediado”, agora, por um G5 de candidatos ao clube (Brasil, Índia, China, México e
África do Sul). Existe, também, um G20 financeiro, que deveria seguir de perto os
trabalhos do Fóro de Estabilidade Global, que parece ter ficado hibernando desde o
arrefecimento da crise financeira dos anos 1997-1999.
Seja como for, cada um desses grupos responde a uma lógica intrínseca a seus
membros e foram concebidos e implementados a partir de uma coordenação que se
desenvolveu internamente, com base em uma agregação voluntária dos integrantes. O
Bric parece ser o primeiro grupo a ser primeiro definido externamente, por critérios que
respondem mais a uma lógica econômica de tipo analítico do que propriamente a
critérios políticos definidos soberanamente por cada um dos membros. O conceito,
aparentemente, primeiro ganhou status atraente no mundo do jornalismo econômico,
para depois ser absorvido e promovido pelos objetos centrais do exercício analítico.
Cada um dos Bric apresenta características fundamentalmente diferentes, sem
que essa pretensa unificação de traços econômicos exteriores, por força de uma sigla
atraente pelo seu significado simbólico, constitua de fato um elemento agregador de
interesses ou um “adesivo” político capaz de justificar a criação de um novo grupo
diplomático. O empenho em sua criação pode ser explicado por diferentes razões
nacionais, nenhuma delas exatamente coincidentes com as dos demais “membros”. Dos
quatro integrantes, os dois ex-socialistas apresentam características políticas
profundamente autoritárias, consolidando o legado de séculos de Estados totalitários,
eventualmente sob a forma de um Império centralizado, em suas diversas formas,
inclusive o comunista. O analista Robert Kagan não hesita em falar de um retorno da
Rússia a um sistema político “czarista”, olhando, aliás, para o que os chineses fizeram
como modernização econômica e manutenção de um sistema político autoritário (“The
End of the End of History”, The New Republic, April 23, 2008). Os outros dois, ditos
211
em desenvolvimento, apresentam trajetórias passavelmente democráticas, ainda que
com extremas deficiências de funcionamento e de justiça social; mas também são as
economias de mercado que mais se aproximam do padrão usual, capitalista, de
organização econômica e social.
Mesmo essa divisão bipartite não permite, porém, aproximar os quatro países
para fins dessa entidade artificial que se cogita introduzir no cenário internacional. O
Brasil, de todos eles, é o que possui estruturas capitalistas mais avançadas e ostenta a
mais moderna dentre as três sociedades. Dos quatro é seguramente a sociedade mais
integrada nacionalmente – nos planos linguístico, cultural, étnico e, talvez, religioso – o
que permite, em princípio, melhores formas de administração política, sem grandes
rupturas institucionais, e condições mais favoráveis para a modernização econômica e
social. O grau de democratização social pode tornar mais lento o ritmo de crescimento e
os processos de adaptação aos novos ambientes da economia mundial, mas isso também
contribui para maior coesão em torno de objetivos nacionais.
De fato, o Brasil é, dentro os Bric, o país que tem apresentado a menor taxa de
crescimento do PIB no período recente, não tendo contribuído em praticamente nada
para a alteração do peso econômico dos Bric em face dos países da OCDE. Como se
pode constatar pela tabela 9, o aumento da participação do bloco no PIB mundial se
deve inteiramente aos RICs (Rússia, Índia e China), tendo o Brasil atuado bem mais
como fator retardatário na nova dinâmica criada. Essa tendência pode, evidentemente,
vir a ser modificada, caso a economia brasileira venha a conhecer taxas mais vigorosas
de crescimento, mas o registro de suas taxas de poupança e de investimento nas últimas
duas décadas e as estimativas para a evolução de suas contas fiscais, nos próximos anos,
não oferecem perspectivas muito otimistas nesse particular.

9. PIB em PPP em proporção do PIB mundial (%)


2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
BRICs 21,54 22,28 23,05 23,94 24,75 25,66 26,53
RICs 18,64 19,38 20,15 21,14 21,95 22,86 23,73
Brasil 2,9 2,9 2,9 2,8 2,8 2,8 2,8
OCDE 60,18 59,43 58,63 57,53 56,48 55,36 54,37
Fonte: Calculado a partir de FMI, World Economic Outlook Database, April 2008

Uma questão relevante, por fim, tem a ver com a geopolítica mundial. A
diplomacia brasileira sempre foi exercida de modo bastante profissional, preservando
uma tradição de excelência que remonta à própria formação do Estado nacional, tendo
herdado a grande experiência prática da diplomacia lusitana (que ela soube preservar e
212
reforçar). Seus processos de recrutamento e formação de quadros sempre foram
reputados pela qualidade e preservação do profissionalismo inerente a uma carreira de
Estado. O que ocorreu, na fase recente, é que a diplomacia brasileira foi tomada por um
ativismo inédito para os padrões usualmente mais discretos do Itamaraty, retomando
teses desenvolvimentistas e de coordenação Sul-Sul que se pensava superadas nesta fase
de globalização ascendente (a cooperação Sul-Sul, aliás, é expressamente citada na
declaração dos ministros dos Bric de 16 de maio de 2008).
A busca de um papel mais ativo nos cenários regional e internacional levou a
diplomacia brasileira a desenvolver uma série de articulações no eixo Sul-Sul e com
“parceiros estratégicos”, cujos exemplos mais evidentes são o IBAS (Índia, Brasil e
África do Sul), o G20 (no contexto da Rodada Doha), as cúpulas inter-regionais (com
países africanos e do Oriente Médio), diversas iniciativas no âmbito da América do Sul
(reforço e ampliação do Mercosul, criação da Comunidade Sul-Americana de Nações,
Conselho de Defesa no âmbito da Unasul, etc.), além de vários outros foros de diálogo e
de cooperação com atores relevantes da agenda internacional (UE e seus mais
importantes países, os próprios EUA), para culminar agora na proposta do Bric, que
coloca o patamar de articulação mundial da diplomacia brasileira num nível mais
elevado de interação com a agenda internacional.
As iniciativas adotadas pela diplomacia brasileira no período recente não se
encontram em descompasso ou em ruptura com linhas tradicionais de atuação dessa
diplomacia no passado, uma vez que ela sempre buscou aquilo que foi identificado com
a “desconcentração do poder mundial” – supondo-se que os atores dominantes estavam
interessados no “congelamento” desse poder –, ou seja, uma democratização do sistema
internacional. Essa ideia encontra-se potencialmente em contradição com o projeto de
ascender ao inner circle do poder mundial – na Liga das Nações ou, agora, a
candidatura a uma cadeira permanente no CSNU. Mas não convém enfatizar este ponto
neste momento. O fato é que o projeto do Bric, como grupo institucionalizado, pode
chocar-se com o outro grande princípio de atuação da diplomacia brasileira, que é o do
“pragmatismo democrático”, respaldado em orientações gerais de política externa que
figuram na própria Constituição do País.
A atuação do Brasil nos Bric pode ser pautada pela “prevalência dos direitos
humanos” e pelo apoio ao “Estado democrático de direito”, que constituem princípios
constitucionais brasileiros, embora não se possa garantir que a ação coordenada dos
membros do Bric o seja. Como a agenda externa, individual, de cada um dos Bric, deve
213
diferir de uma agenda conjunta, esta teria de ater-se a um mínimo denominador comum,
que não necessariamente incorporará aqueles princípios. Por exemplo, uma das
possíveis iniciativas dos Bric poderá ser em apoio à proposta brasileira explicitada no
comunicado: “Os ministros da Rússia, da Índia e da China saudaram a iniciativa do
Brasil de organizar um encontro dos ministros de economia e/ou finanças dos países
Bric para discutir questões econômicas e financeiras globais”.
Em face desse tipo de proposição, pode-se perguntar: essa ação conjunta seria no
sentido de reforçar as instituições que, para todos os efeitos práticos, criaram algumas
décadas de prosperidade para os povos dos países que a elas aderiram desde a sua
criação?; tratar-se-ia, presumivelmente, de redistribuir a estrutura do processo decisório
e de aumentar sua participação nos órgãos de direção, como é legitimamente seu
direito?; ou se trata, alternativamente, de transformar seu modo de funcionamento para
que ele passe a refletir uma outra orientação de política econômica que não a que vem
sendo seguida tradicionalmente?
Muitas outras questões podem e devem ser colocadas no tocante às propostas
dos Bric em pontos sensíveis da agenda mundial: não-proliferação (e o que fazer com
proliferadores rebeldes); meio ambiente (e a questão das responsabilidades atuais, não
apenas passadas); terrorismo (e a assunção de tarefas concretas para combatê-lo, além
da letra das convenções da ONU); desarmamento (e a necessária negociação de um
código de conduta para os principais mercadores); a questão do desenvolvimento dos
países pobres e Estados falidos (com um comprometimento preferencial pelo lado dos
mercados e do comércio, mais do que pela assistência tradicional). Estarão os Bric em
condições de se colocar de acordo sobre todas essas frentes de trabalho e manter uma
postura não confrontacionista – com o G7, em primeiro lugar – no encaminhamento de
soluções consensuais a problemas que afligem a grande maioria da humanidade?
Não existem, por certo, respostas prontas a essas e a muitas outras questões que
figuram na agenda mundial e às quais devem se confrontar os Bric, como grupo ou
individualmente. Muitas outras questões, talvez a maioria, ostentam uma dimensão
basicamente regional e representam, portanto, um desafio considerável a um grupo que
nasceu destinado a ser o “sucessor econômico” do atual G7. Outras questões, as mais
relevantes provavelmente, têm a ver com o exercício do poder em sua dimensão mais
elementar, e nesse particular a postura comum dos Bric enfrentará certamente outros
percalços, sendo eles constituídos por três potências nucleares e dois membros
permanentes do Conselho de Segurança. O Brasil apresenta, nesse contexto, um perfil
214
único e diferente dos demais Bric, sendo mais propriamente visto como uma potência
regional do que mundial.

Alguma conclusão preventiva?


Não há, propriamente, conclusões a serem tiradas nesta fase constitutiva,
equivalente de alguma forma ao conjunto de testes iniciais que fazem os competidores
antes de empreender uma corrida. Os Bric, sendo verdade que eles vão se consagrar e se
consolidar como grupo formal, estão, ainda, flexionando seus músculos e polindo seus
discursos antes de se lançarem na arena de um mundo em rápida transformação.
Pode ser que a própria ideia dos Bric acabe sendo, finalmente, o que ela de fato
representa enquanto exercício intelectual: um conceito destinado mais a organizar dados
e a alinhar indicadores numa tela de computador – excitando, com isso, a imaginação
dos jornalistas – do que uma realidade operacional no plano político ou diplomático.
Nesse caso, se estaria fazendo muito barulho por nada, ou quase nada. Mas pode ser,
também, que se trate, efetivamente, de um novo animal na paisagem geopolítica
mundial, com todas as consequências que isso pode ter nos alinhamentos existentes e
nos realinhamentos prováveis a partir da implementação desse conceito. Nesse caso, os
quatro Bric deveriam estar prontos a assumir a responsabilidade de propor uma agenda
positiva, que não seja uma simples reação – defensiva ou negativa – à agenda proposta
atualmente pelo G7 e os demais participantes do mundo norte-atlântico (que continuam
a dominar as principais interações em escala mundial que ocorrem nos planos
econômico, comercial, tecnológico, financeiro e cultural).
As principais questões que dividem o mundo não são mais, ainda bem, de
natureza ideológica, como ocorria ainda menos de três décadas atrás, quando projetos
concorrentes se mobilizavam para conquistar os corações e mentes dos cidadãos ao
redor do mundo. Elas nem são de ordem técnica, uma vez que parece haver razoável
consenso e colaboração entre cientistas e pesquisadores de todo o mundo em torno das
principais fronteiras a desafiar o conhecimento humano nos campos da medicina, da
física, da biologia. Os principais dilemas se dão em torno das prioridades políticas e das
políticas econômicas alternativas que se colocam, sob a forma de opções, aos estadistas,
na busca de soluções a velhos problemas que afligem a humanidade: fome,
desemprego, saúde, educação, segurança e bem-estar.
A experiência do passado – aliás, ainda recente – em torno de algumas dessas
escolhas e sobre as tentativas de impô-las de modo autoritário a sociedades inteiras, não
215
nos traz ensinamentos muito otimistas sobre algumas das soluções propostas por
desafiantes radicais do status quo. Não é preciso rememorar a história terrível da
Alemanha nazista e do Japão militarista para constatar que poderes emergentes podem
ser competidores apressados, aptos a contestar, pela violência em alguns casos, o poder
estabelecido de hegemons mais antigos. A lição, em todo caso, deve ter sido aprendida.
Mas tampouco é preciso ser candidamente panglossiano para desejar que a unificação
econômica e política do mundo contemporâneo se processe, doravante, mais com a
ajuda filosófica de Erasmo e de Kant do que com as recomendações operacionais de
Sun Tzu ou de Clausewitz. Esperemos que desta vez seja diferente...

Publicado na revista Nueva Sociedad


(Buenos Aires: Friedrich Ebert Stiftung; especial “O Brasil no mundo”,
outubro 2008; ISSN: 0251-3552, p. 133-152);
Publicado sob o título de “To Be or Not the Bric”,
Inteligência (Rio de Janeiro: Ano: XI - 4º trimestre, 12/2008, p. 22-46).

216
29. Fórum Surreal Mundial: globalizados contra a globalização

Em voo, Brasília-Buenos Aires, 28/09/2008;


Brasília, 1966: 22 dezembro 2008, 17 p.
Via Política (12/01/2009 e 19/01/2009)

Sumário:
1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?
2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de ideias?
3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?
4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?
5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?

1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?


Os participantes do próximo conclave do Fórum Social Mundial, a realizar-se
em Belém, de 27 de janeiro a 1° de fevereiro de 2009, podem congratular-se por serem
os mais globalizados do planeta: eles desfrutam, provavelmente, de 100% de inclusão
digital por meio da internet (sem considerar celulares e outros gadgets do mundo
moderno), ou seja, fazem uma utilização plena das possibilidades abertas pela atual
sociedade da informação. Todo o processo de informação sobre o FSM, de convocação
e de mobilização preventivas, assim como o registro simultâneo e instantaneamente
disseminado de suas ruidosas reuniões, colocadas (escusado dizer) sob o signo da
antiglobalização, todo ele terá sido assegurado e efetivamente realizado 100% online,
isto é, sob o signo do mundo virtual, que é praticamente um sinônimo da globalização.
E, no entanto, os alegres participantes do piquenique anual da antiglobalização
se reunirão para, entre outros objetivos, conspurcar, atacar e combater os próprios
mecanismos que possibilitaram, viabilizaram e permitiram todas essas facilidades de
informação, de comunicação e de interação recíproca. Não é contraditório? Aliás, não
parece completamente estapafúrdia essa revolta irracional contra os seus meios de
expressão? Eu – como não pretendo usufruir de minha cota permitida de ilogismo e de
irracionalidade – respondo imediatamente que SIM.
Sim, me parece totalmente ilógico e contraditório que pessoas normalmente
constituídas, bem informadas, geralmente alfabetizadas (inclusive até o nível
universitário) e (que se acredita serem) cidadãos razoáveis no contexto do mundo em
que vivemos – ou seja, estudantes e trabalhadores honestos, cumpridores de seus
deveres cívicos, promotores de um mundo melhor, ativos na defesa do meio ambiente e
217
dos direitos humanos – consigam revoltar-se contra aquilo mesmo que lhes permite
serem exatamente o que são: cidadãos bem informados, participantes, defensores de um
mundo melhor para si mesmos e para todos os habitantes do planeta. Em vista disso,
apenas posso sorrir ante a perspectiva de ver tantos jovens (e alguns velhos também)
reunirem-se para combater a globalização capitalista, logrando, aliás, pleno sucesso em
seus empreendimentos antiglobalizadores, justamente tendo como suporte material tudo
o que a globalização capitalista lhes ofereceu de melhor. São uns ingratos, para dizer o
mínimo. Eu acho que eles também são ingênuos, provavelmente equivocados em suas
concepções e intenções e, talvez mesmo, um pouquinho desonestos, pois que se
eximindo – como não deveria ocorrer na academia e nas organizações mais sérias – de
trazer as provas de suas afirmações tão contundentes contra o capitalismo e a
globalização. Deixamos esses aspectos de lado, por enquanto, pois voltaremos a eles no
momento oportuno.
Podemos perdoar a inconsequência política e cultural desses jovens – que parece
ser o simples resultado da ignorância e ingenuidade típicas da juventude, ou seja,
daquilo que os franceses chamam de naïveté; mas certamente não o tremendo equívoco
em que incorrem os mais velhos, que induzem esses jovens a protestar contra o mesmo
sistema que lhes permitiu tanta eficiência comunicativa, tanta modernidade
organizativa, tanta interação virtual para, finalmente, empreenderem iniciativas ruidosas
e totalmente inconsequentes contra a própria base material de seu tremendo sucesso
globalizado. Os jovens antiglobalizadores constituem o mais vibrante exemplo e
sustentáculo daquilo mesmo que pretendem combater: a globalização capitalista
(forçosamente assimétrica).
Digo equívoco, porque quero acreditar que esses velhos órfãos da globalização,
esses escolhos do anticapitalismo militante, esses falidos profetas de um socialismo
ultrapassado, hoje quase surrealista – entre os quais podemos identificar vários
acadêmicos de sucesso, todos eles monotonicamente adeptos do pensamento único do
altermundialismo, de origem francesa – não sofram de um mal bem mais grave e
infinitamente mais prejudicial aos mais jovens, que eu chamaria de desonestidade
intelectual. Consiste em desonestidade intelectual o ato de acusar a globalização
capitalista de (quase) todos os males do planeta, quando na verdade é a falta de
globalização capitalista que provoca os próprios males que os mais jovens dizem
pretender combater. Para ser direto, eu sequer preciso provar a desonestidade intelectual
desses que proclamam as misérias do capitalismo: basta olhar ao redor de si, ou
218
consultar as tabelas estatísticas de qualquer organismo internacional, para ver onde
estão os melhores indicadores de bem estar e de liberdade política e individual, e
comparar o quadro com os países que não são, justamente, capitalistas e globalizados.
Mas examinemos a questão com um pouco mais de detalhe, por meio dos
argumentos dos antiglobalizadores e altermundialistas (esta última designação é a
preferida dos próprios interessados; mas como eles ainda não conseguiram dizer do que
seria feito o outro mundo possível, prefiro chamá-los pelo nome que melhor os
identifica). De certa forma, eles já nos facilitaram a tarefa, ao enunciar seus argumentos
em dois conjuntos de “teses”, que contêm aquilo que pensam sobre o mundo, seus
problemas (os do mundo) e as suas propostas (as deles) para salvar esse mesmo mundo
do capitalismo perverso e da globalização assimétrica.

2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de ideias?


O primeiro conjunto é formado por uma espécie de decálogo que eles vêm
digerindo há algum tempo e que são definidos como os “objetivos de ação para o evento
de 2009”. Ora, isso revela preguiça intelectual dos antiglobalizadores, posto que esses
objetivos não são novos, tendo sido elaborados anteriormente, mas apenas em número
de nove objetivos, por ocasião de reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada
em Parma, Itália, de 10 a 12 de outubro de 2006. Na época, esses nove objetivos se
destinavam a servir como documento preparatório ao FSM de 2007, realizado em
Nairobi, no Quênia, nos dias 21 a 24 de janeiro de 2007. Eles foram objeto de meus
comentários (mas também podem ser lidos por inteiro) em texto já publicado sob o
título: “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”, in
Meridiano 47 (n. 78, janeiro de 2007, p. 7-14).
Para poupar trabalho aos mais preguiçosos, ou aos membros do MSI –
movimento dos sem internet –, reproduzo novamente aqui abaixo as propostas dos
antiglobalizadores. Permito-me, todavia, convidar os interessados a ler os meus
comentários a cada um deles no trabalho acima indicado. Aqui estão os nove objetivos
de 2006-2007:

1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades


diversas, livre de armas, especialmente as nucleares;
2. Pela libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação
imperialista patriarcal, colonial e neocolonial e de sistemas desiguais de comércio,
com cancelamento da dívida dos países empobrecidos;
219
3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza,
pela preservação de nosso planeta e seus recursos, especialmente da água, das
florestas e fontes renováveis de energia;
4. Pela democratização e descolonização do conhecimento, da cultura e da
comunicação, pela criação de um sistema compartilhado de conhecimento e saberes,
com o desmantelamento dos Direitos de Propriedade Intelectual;
5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero, raça, etnia, geração,
orientação sexual e eliminação de todas as formas de discriminação e castas
(discriminação baseada na descendência);
6. Pela garantia (ao longo da vida de todas as pessoas) dos direitos econômicos,
sociais, humanos, culturais e ambientais, especialmente os direitos à saúde,
educação, habitação, emprego, trabalho digno, comunicação e alimentação (com
garantia de segurança e soberania alimentar);
7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação
e nos direitos dos povos, inclusive das minorias e dos migrantes;
8. Pela construção de uma economia centrada em todos os povos, democratizada,
emancipatória, sustentável e solidária, com comércio ético e justo;
9. Pela ampliação e construção de estruturas e instituições políticas e econômicas –
locais, nacionais e globais – realmente democráticas, com a participação da
população nas decisões e controle dos assuntos e recursos públicos.

Pois bem: confirmando o torpor mental dos antiglobalizadores – ou a sua


completa falta de novas ideias, mesmo desinteressantes –, esses nove objetivos são
reproduzidos ipsis litteris num post que li no site do FSM, sob o título de “Rumo a
Belém”; são apresentados como “Os 10 objetivos de ação para o Fórum Social Mundial
2009”. Claro, está faltando um, que eles prepararam em consulta aos seus membros, e
que vai reproduzido aqui abaixo, imediatamente seguido de meus comentários, com o
que ficamos todos quites: você, leitor, que conhece agora todos os dez objetivos de ação
do FSM para seu piquenique de Belém, e eu, que termino assim meus comentários a
esses objetivos vagos e ingênuos.
Digo isto, confesso desde logo, sem qualquer preconceito contra os objetivos
dos antiglobalizadores, pois que as suas propostas são realmente vagas, o que não as
impede se serem, também, equivocadas e nocivas – em sua maior parte – para o mundo
de bem estar geral para cuja construção eles pretendem contribuir.

3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual?


Como não podia deixar de ser, o único objetivo novo formulado para o encontro
de Belém tem a ver – nada mais apropriado – com a realidade amazônica e aqui vai ele:

10. Pela defesa da natureza (amazônica e outros ecossistemas) como fonte de vida para
o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes,
220
tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades,
justiça ambiental, espiritualidade e bom viver.

A primeira coisa que se pode afirmar, em relação a este objetivo, é que ele está
mal redigido, continua vago e indefinido sobre o que se deve fazer para alcançar todos
os elementos nele inscritos e revela, mais uma vez, preguiça mental, pois que contém,
inequivocamente, uma grande dose de conservadorismo social e econômico, o que é
surpreendente para pessoas e grupos que se pretendem progressistas e avançados. O que
pode significar “defesa” sem que se defina, exatamente, onde estão os perigos? O
conceito de defesa sempre implica uma ação contra algo ou alguém que ameaça a sua
segurança ou a própria vida. Mas isto não está claro no objetivo acima. Que a natureza
seja fonte de vida é algo totalmente tautológico, como sabem os adeptos da lógica
formal ou aqueles que lidam com a biologia elementar. Não existe, aliás, outra fonte de
vida (salvo para os criacionistas).
A segunda coisa que se pode dizer é que o Português dos antiglobalizadores
anda tão estropiado quanto a floresta amazônica, pois não é possível admitir que esse
“aos” seja o equivalente funcional de “para os”, referindo-se aqui aos “povos originários
do mundo”. Fonte de vida “aos” povos originários? Recomendo uma revisão estilística
antes de publicar oficialmente esse décimo e último objetivo.
Mas indo à substância da matéria, parece-me que os antiglobalizadores têm se
mostrado tremendamente preconceituosos contra todos os habitantes da Amazônia que
não se encaixem em nenhuma das categorias inscritas nesse objetivo, aliás, contra eles
mesmos, que virão das grandes metrópoles do Brasil e do mundo e que não são, em sua
grande maioria, povos originários. A Amazônia comporta hoje um bocado de gente que
não é nem originária, nem indígena, nem afrodescendente, nem tribal, nem ribeirinha,
sendo cidadãos emigrados de outras regiões do Brasil e de outros países e que ali vivem
e trabalham honestamente. Reivindicar todas aquelas coisas apenas para esses
“originários” me parece um tremendo reducionismo étnico ou racial, um pouco como
ocorre com esses movimentos racialistas pelos direitos de certas minorias e que
pretendem introduzir oficialmente o apartheid no Brasil. Coisa feia, antiglobalizadores!
Mas o quê, mesmo, eles pretendem reivindicar? Está lá, dito claramente assim:
“territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom
viver”. Território implica a noção de direitos sobre um patrimônio fundiário e isso
parece que já está regulado na Constituição e na legislação pertinente, bastando fazer

221
apelo a um advogado ou aos cartórios de registro para assegurar esses direitos. Língua é
algo tão vivo que me parece supérfluo ou inócuo reivindicar direitos sobre qualquer
uma delas: enquanto existirem povos usando uma língua como instrumento de
comunicação ela será preservada; mas é também algo que se transforma com o tempo,
acompanhando os destinos de seus detentores. É certo que as línguas indígenas – ou dos
“povos originários do mundo” como preferem os antiglobalizadores – vêm sendo
submetidas a um duro processo de enxugamento, que corresponde, também, à própria
transformação cultural das sociedades originárias, como resultado da pressão terrível
sobre elas exercida pela cultura materialmente dominante, que é a do homem urbano
(ou talvez capitalista, como prefeririam os antiglobalizadores).
Este é um desafio partilhado por quase todos os “povos originários do mundo”
em qualquer canto do planeta, e ele corresponde a forças históricas quase irresistíveis, já
que é difícil colocar esses “povos originários” numa redoma e impedi-los de manter
contato com outras culturas e civilizações, sobretudo quando estas chegam a eles pela
via da invasão territorial ou dos meios de comunicação. Por outro lado, o próprio ato de
pretender preservar esses povos originários em seu estado “originário” pode não
representar algo progressista ou desejável; ao contrário, pode ser algo regressista ou
mesmo reacionário, já que implicando o congelamento desses povos numa das fases
evolutivas do seu desenvolvimento cultural – geralmente correspondendo, em
linguagem pré-histórica, à era do paleolítico superior –, o que, por outro lado,
provocaria muita “injustiça ambiental” e muito “mau viver”, para usar, no sentido
inverso, outros dois conceitos dos antiglobalizadores.
Constatemos, em primeiro lugar, que quem está, exatamente, determinando essa
defesa contra toda e qualquer mudança nos meios de vida, nas identidades e na cultura
não são, para ser mais preciso, os “povos originários do mundo”, mas sim uma tribo de
brancos intelectualizados que se reúnem todo ano para proclamar objetivos para o
mundo todo, inclusive para os “povos originários do mundo” (que, obviamente, não são
eles). Questionemos, em segundo lugar, o direito desses brancos exóticos de traçar uma
lista de objetivos para os “povos originários do mundo”, sem que estes tenham se
reunido e decidido democraticamente o que pretendem fazer: ficar com suas culturas,
línguas e identidades originais, ou integrar-se progressivamente ao chamado
mainstream civilizacional, que significa, simplesmente, o Brasil do século XXI, com
todas as suas misérias e grandezas, realizações e frustrações, justiças e injustiças. Assim

222
é o mundo, e a nós cabe tomá-lo como ele é, para melhorá-lo progressivamente, em
favor de todos, e não apenas dos “povos originários do mundo”.
Deixo de lado, por fim, o objetivo da “justiça ambiental”, posto que ela não está
definida positivamente e não deve ser clara em que consiste, mesmo para o mais
tarimbado antiglobalizador. Talvez algum jurista altermundialista possa elaborar a
respeito, e eu me reservo o direito de comentar sua inovação jurídica posteriormente.
Quanto aos termos “espiritualidade e bom viver”, deixo à imaginação dos leitores tentar
descobrir o que é isso, exatamente, pois não me parece que mereçam maiores
comentários, pela indefinição conceitual ou substantiva. Pergunto, aliás, como “exigir”
espiritualidade de alguém?

4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens?


Eu mencionei, ao final da primeira seção deste meu texto, dois conjuntos de
“teses”, que conteriam aquilo que os antiglobalizadores pensam – verbo sério, este –
sobre os problemas do mundo e suas propostas para salvar esse mesmo mundo do
capitalismo perverso e da globalização assimétrica. Mas me concentrei, até aqui, nos
componentes de apenas um bloco de argumentos altermundialistas. Estes são, de toda
forma, os objetivos oficialmente aprovados para o encontro de Belém, e são eles que
devem ser considerados no debate atual.
Creio que meus comentários, antes e agora formulados, bastam quanto a esse
primeiro bloco de argumentos. Em todo caso, como já escrevi bastante sobre os anti e
suas ideias surrealistas, permito-me remeter os interessados no aprofundamento de
minhas contestações a essas propostas ingênuas a vários outros trabalhos meus que se
encontram livremente disponíveis. Eles não esgotam, obviamente, tudo o que tenho a
dizer (e já disse) sobre o processo de globalização e seus descontentes; mas podem dar
uma ideia de quão longe da realidade se encontram os antiglobalizadores “originários”
(que precisariam ser reciclados ou substituídos por representantes mais inteligentes ou
intelectualmente mais preparados).
Pois bem, como são poucas (e inconsistentes, como vimos) as “ideias” dos
antiglobalizadores, vou me permitir ajudá-los neste momento de tensão pré-encontro,
retomando – e praticamente “desenterrando” – algumas outras propostas de alguns dos
seus mais lídimos representantes, que tinham sido formuladas e apresentadas cerca de
quatro anos atrás, mais exatamente no dia 1o. de fevereiro de 2005, sob a forma de um
“manifesto” sob o titulo de “Doze Propostas para Outro Mundo Possível” (procurem
223
nos arquivos do FSM, por favor, que eu já perdi o link original). Esse manifesto era
apresentado como “produzido por ativistas e intelectuais durante o Fórum Social
Mundial com propostas para a construção de um outro mundo”.
Os signatários desse manifesto “para um outro mundo” foram 19 eminentes
antiglobalizadores (ou que passam por tal), personalidades que continuam a frequentar
os conclaves do FSM a cada ano e que continuam a pontificar sobre a globalização
assimétrica e o capitalismo perverso. São eles: Adolfo Pérez Esquivel; Aminata Traoré;
Eduardo Galeano; José Saramago; François Houtart; Armand Matellar; Boaventura de
Sousa Santos; Roberto Sávio; Ignácio Ramonet; Ricardo Petrella; Bernard Cassen;
Samuel Luis Garcia; Tariq Ali; Frei Betto; Emir Sader; Samir Amin; Atílio Borón;
Walden Bello e Immanuel Wallerstein. À época eu não comentei suas doze sugestões,
seja por falta de tempo, seja porque eu já tinha feito em julho de 2004 (preventivamente,
portanto), um texto “Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses
do movimento antiglobalizador”, publicado de forma fragmentada nas Colunas de
Relnet , de julho a dezembro de 2004, e depois, de forma parcial, em diversos números
do Meridiano 47, de julho de 2004 a maio de 2005.
No ano seguinte, em janeiro de 2005, o FSM foi realizado, como todos sabem,
em Caracas, ocasião na qual eu também perpetrei um texto contendo os “Resultados
antecipados do Foro de Caracas: um exercício de futurologia garantida...”, elaborado
obviamente antes da realização do jamboree bolivariano e publicado em um dos meus
blogs (15/01/2006; link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/165-resultados-
antecipados-do-foro-de.html). Como eu tinha ficado devendo, portanto, meus
comentários às doze propostas dos antiglobalizadores eminentes, eu me permito neste
momento completar a lacuna pela transcrição integral dessas propostas, seguidas
imediatamente de meus comentários sintéticos, reservando a uma outra ocasião uma
elaboração mais sofisticada intelectualmente, à altura da respeitabilidade dos sábios
antiglobalizadores (mas que não me parecem melhor dotados do que os jovens que
costumam produzir mais transpiração do que inspiração nesses conclaves aborrecidos
pela repetição das mesmas ideias surrealistas).
Resumindo suas (poucas) ideias, os sábios propunham o cancelamento da dívida
pública dos países do sul, a taxação internacional das transações financeiras e o
desmantelamento progressivo dos paraísos fiscais, jurídicos e bancários. Pediam, ainda,
a proibição de todo o tipo de patente do conhecimento e seres vivos, assim como da
privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água. Diziam que estavam
224
se expressando a título estritamente pessoal e que não pretendiam falar em nome do
FSM, afirmação que pode ser tomada pelo seu valor face (mas que cabe receber cum
grano salis, posto que eles são considerados os maîtres-à-penser do movimento
antiglobalizador). Mas como o Fórum tem se notabilizado por uma notável falta de
ideias, pode-se considerar que suas propostas representam, sim, propostas do FSM,
mesmo que não tenham sido distribuídas oficialmente para discussão no conclave
amazônico. Como imagino que vários desses sábios ali comparecerão, permito-me
comentar agora suas ideias de 2005, esperando que elas não tenham piorado desde
então.

5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível?
Vejamos o que seria possível dizer, sinteticamente, sobre cada uma das
propostas:

1) Anular a dívida pública dos países do Hemisfério Sul, que já foi paga várias vezes e
que constitui, para os Estados credores, os estabelecimentos financeiros e as
instituições financeiras internacionais, a melhor maneira de submeter a maior parte
da humanidade à sua tutela;
Ocorre, em primeiro lugar, uma imprecisão conceitual: trata-se, obviamente, da
dívida externa, posto que nenhum país estrangeiro tem algo a ver com a dívida pública
de qualquer país soberano; esta geralmente se refere à dívida mobiliária interna, criada
exclusivamente em âmbito nacional. Em todo caso, a proposta é redundante, chega tarde
e traz a marca de uma visão equivocada do que constitui a dívida externa. Desde
meados dos anos 1980, pelo menos, os países do G7, os membros do Clube de Paris e
os sócios mais influentes das instituições de Bretton Woods vêm aprovando –
aprofundando a cada ano – mecanismos de redução negociada e menus de redução
unilateral da dívida dos países mais pobres. Dizer que ela já foi paga várias vezes
constitui, obviamente, uma visão totalmente política do problema, que não corresponde
às condições contratuais. A relação, obviamente, é recíproca e não se tem notícia de
países tomadores de crédito que tenham contraído dívidas para se submeter
voluntariamente à tutela dos credores. Os juros da dívida pública, inclusive, ostentam os
menores níveis do mercado e podem ter aspectos concessionais, como é o caso da
relação entre muitos credores e os países mais pobres. A anulação da dívida pública
comprometeria um sistema que ocupa um nicho não atendido pelo sistema de mercado
de créditos a taxas comerciais.
225
Os propositores, provavelmente, não têm ideia de como funcionam os diversos
mercados de créditos, e o atendimento de sua proposta simplesmente prejudicaria o
conjunto dos tomadores públicos, que são todos os países em desenvolvimento que não
possuem sistemas de financiamento sofisticados ou abastecidos. Para o Brasil, por
exemplo, que é um país ao mesmo tempo tomador e credor, a implementação dessa
medida representaria um enorme prejuízo nos negócios empreendidos por empresas
brasileiras no exterior, que contam com financiamento público (BNDES ou outro).

2) Aplicar taxas internacionais às transações financeiras (especialmente a Taxa Tobin


às transações especulativas de divisas);
Essa iniciativa, especialmente na forma proposta originalmente pelo seu suposto
patrono, já foi inclusive renegada pelo economista James Tobin, que deu,
involuntariamente, o nome à associação francesa que está na origem do movimento
antiglobalizador, a ATTAC (Association pour la Tobin Tax en Appui aux Citoyens).
Tobin havia feito a proposta no quadro dos movimentos cambiais erráticos que se
seguiram à quebra do sistema de Bretton Woods de taxas estáveis, mas logo constatou
sua inaplicabilidade prática, em virtude da impossibilidade de se separar os fluxos de
ativos reais voltados para o investimento e a produção, daqueles puramente
especulativos. Este é o problema central de toda taxação sobre transações financeiras:
ela pune indistintamente movimentos positivos e outros de qualquer natureza, o que
introduz, simplesmente, não um fator dissuasivo aos movimentos erráticos – que se
realizam de qualquer maneira – mas um custo adicional aos legítimos tomadores de
recursos nos mercados de créditos.
O Brasil, decididamente, seria prejudicado pela introdução desse tipo de medida
mal concebida e impossível de ser aplicada em bases universais, como aliás já escrevi
em um pequeno texto (“Interessa ao Brasil uma taxa sobre os movimentos de capitais?”,
Meridiano 47, n. 47, junho 2004, p. 12-15). Considerando-se que existem brasileiros
entre os 19 sábios do FSM, se a proposta fosse introduzida, eles estariam,
conscientemente ou não, prejudicando a posição do Brasil enquanto tomador de
recursos nos mercados financeiros internacionais. Ingenuidade ou simples ignorância?

3) Desmantelar progressivamente todas as formas de paraísos fiscais, jurídicos e


bancários, por considerá-los como um refúgio do crime organizado, da corrupção e
de todos os tipos de tráficos;

226
De fato, os paraísos fiscais constituem um problema para governos e empresas e
cidadãos honestos, na medida em que eles não apenas subtraem recursos que, de outra
forma, poderiam estar integrados aos circuitos normais da vida econômica, como
também podem ser utilizados pelo crime organizado e pelos habituais defraudadores das
administrações tributárias nacionais. O problema está em que, num sistema de
soberanias ilimitadas, cada país está livre para determinar seu sistema tributário e as
alíquotas a serem aplicadas às operações financeiras conduzidas em suas jurisdições.
Nenhum outro Estado ou organização pode obrigar os paraísos fiscais a incorporar
mecanismos ou alíquotas contra sua vontade e interesse nacional (que é, obviamente, o
de ganhar alguns trocados – ou milhões – à margem dessas operações fictícias). Eles
podem, teoricamente, ser submetidos a sanções por iniciativa dos Estados que se
sentirem prejudicados por sua atitude oportunista e desleal no plano fiscal. Mas o fato é
que esse tipo de prática vai continuar enquanto Estados predadores pretenderem manter
níveis impositivos e mecanismos extratores intrusivos e extorsivos do ponto de vista das
empresas e cidadãos; daí a “utilidade” dos paraísos fiscais como válvulas de escape,
mesmo para contribuintes honestos na maior parte do tempo.
O desmantelamento sugerido pelos sábios do FSM pode significar alguma
iniciativa truculenta da parte dos Estados “normais” da comunidade internacional, o que
obviamente apresenta problemas no plano da legalidade internacional e do direito
soberano de cada Estado adotar a estrutura tributária que melhor lhe convenha. Aliás,
eles querem atuar bem mais sobre os efeitos do que sobre as causas: existem paraísos
fiscais para responder a certas “necessidades” econômicas, assim como existem
traficantes de drogas para responder à proibição oficial e para atender os “clientes”.
Talvez a solução mais conveniente, ou pelo menos mais racional, esteja numa
coordenação fiscal internacional apontando na direção de alíquotas moderadas e
mecanismos menos intrusivos do ponto de vista dos agentes econômicos primários. A
experiência ensina que medidas truculentas como as sugeridas pelos sábios acabam
resultando em mais fraudes fiscais, fuga de capitais e outras práticas nefastas no plano
fiscal nacional. Os sábios confirmam, indiretamente, sua visão autoritária, dirigista e
estatizante do sistema econômico, o que em todos os lugares levou a distorções e à
exportação de riquezas. Eles provavelmente acham que os sistemas ultra-intrusivos e
centralizados ao extremo conformam o modelo ideal de governança: a História ensina
que o contrário costuma ser o verdadeiro.

227
4) Cada habitante do planeta deve ter direito a um emprego, à proteção social e à
aposentadoria, respeitando a igualdade entre homens e mulheres;
Talvez os sábios pudessem acrescentar também: uma casa, um carro, conta em
banco, milhas ilimitadas, vale-refeição, uma visita por ano a Paris e outra a Nova York.
Incrível como esse pessoal tem uma capacidade imitativa extraordinária: eles são
capazes de imitar o discurso de qualquer político em campanha eleitoral. Como não
dizem absolutamente nada sobre como pretendem conceder todas essas bondades e
benesses aos felizes habitantes do seu outro mundo possível, podemos ignorar
totalmente esta quarta proposta, por inoperante e puramente demagógica.

5) Promover todas as formas de comércio justo, rechaçando as regras de livre


comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Excluir totalmente a
educação, a saúde, os serviços sociais e a cultura do terreno de aplicação do Acordo
Geral Sobre o Comércio e os Serviços (AGCS) da OMC;
Os sábios estão mal informados: a OMC é tão capaz de impor regras de livre
comércio quanto a Igreja é capaz de assegurar a castidade ou a abstinência de seus
seguidores. A expressão “todas as formas de comércio justo” é completamente vazia de
significado no mundo do comércio real, o que talvez não seja do conhecimento dos
sábios, já que eles vivem exclusivamente no âmbito universitário ou das ONGs, sem
contato de qualquer tipo com a esfera econômica. Quanto aos temas para os quais eles
pedem exclusão dos acordos de liberalização, provavelmente não sabem que vários
deles já fazem parte das ofertas ou da situação real de “exploração” de serviços em
muitos dos países membros da OMC. No campo da educação, por exemplo, nenhuma
regra constitucional poderia impedir as universidades de Harvard ou de Yale de se
instalarem no Brasil, se assim o desejassem (o que seria excelente para a competição
entre instituições de qualidade), bastando uma autorização do MEC e a conformidade
dessas universidades com as regras em vigor no Brasil.
Incrível como mesmo os mais reconhecidos sábios têm horror à competição no
mundo da ciência e cultura e preferem manter sistemas fechados e excludentes, o que,
por si só, já constitui um insulto à inteligência e à universalidade do conhecimento.
Esses sábios deveriam ser coerentes com o que propõem e começar por não aceitar mais
nenhum convite das universidades europeias ou americanas que os cortejam (talvez
indevidamente, ou por excesso de generosidade com figuras “exóticas”).

6) Garantir o direito à soberania e segurança alimentar de cada país, mediante a


promoção da agricultura campesina. Isso pressupõe a eliminação total dos subsídios
228
à exportação dos produtos agrícolas, em primeiro lugar por parte dos Estados
Unidos e da União Européia. Da mesma maneira, cada país ou conjunto de países
deve poder decidir soberanamente sobre a proibição da produção e importação de
organismos geneticamente modificados destinados à alimentação;
O que eles propõem é absolutamente contraditório com o que dizem defender.
Os EUA não vão retornar à “agricultura campesina”, seja lá o que isso queira dizer, nem
os europeus vão renunciar aos gordos subsídios que sustentam artificialmente sua
agricultura, em detrimento dos verdadeiros campesinos africanos ou asiáticos. Por outro
lado, os subsídios à exportação não são, ao contrário das subvenções internas, os mais
importantes nem os mais nocivos a um comércio agrícola verdadeiramente “justo” (para
empregar um conceito que eles apreciam). Os sábios também parecem contraditórios
com seu apego à ciência, ao rejeitar a priori, sem qualquer fundamento científico, os
OGMs ou outras inovações que possam ser introduzidas para melhorar a produtividade
agrícola de capitalistas e campesinos e atender à segurança alimentar de todos os povos
do planeta. Seu obscurantismo nessa matéria revela preconceito e uma atitude
propriamente reacionária em relação aos avanços responsáveis da ciência.

7) Proibir todo tipo de patenteamento do conhecimento e dos seres vivos, assim como
toda a privatização de bens comuns da humanidade, em particular a água;
Os sábios não devem conhecer legislação de propriedade intelectual, pois em
nenhum país do mundo o conhecimento é patenteável. Seres vivos podem, sim, ser
objeto de proteção, por instrumentos adequados, se cumprirem os requisitos fixados na
legislação. Tecnologias proprietárias têm sido responsáveis pela maior parte dos novos
medicamentos, que salvam a vida das pessoas e melhoram suas vidas. Talvez os sábios
pretendam ou possam pessoalmente ficar à margem dessas possibilidades de bem-estar
e se abster de usar novos medicamentos.
Quanto aos bens comuns, eles certamente se submetem a alguma regulação,
nacional ou multilateral, o que não impede sua exploração em regime de concessão,
cujos termos são a rigor estabelecidos com vistas ao bem comum, justamente. Apenas
um preconceito contra empresas privadas leva os sábios a excluírem preventivamente
essa possibilidade de exploração eficiente, cost-effective, de certos bens comuns. Não se
sabe de uma empresa privada que não esteja interessada em ampliar sua clientela,
mesmo para “bens comuns”. O que os sábios refletem, implicitamente, é um tremendo
preconceito contra o lucro, obviamente, o que totalmente ridículo em pessoas que são
supostamente razoavelmente instruídas em matéria econômica (ou não?).

229
8) Lutar por políticas públicas contra todas as formas de discriminação (sexismo,
xenofobia, antissemitismo e racismo). Reconhecer plenamente os direitos políticos,
culturais e ambientais (incluindo o domínio de recursos naturais) dos povos
indígenas;
Nada a objetar quanto ao primeiro objetivo. Sérias preocupações quanto ao
segundo, posto que esses povos não permanecerão eternamente indígenas, a menos que
os sábios pretendam fazer deles objetos de museu, preservados em uma redoma que os
impeça de se integrarem às sociedades nacionais. Esses sábios se consideram tutores
dos povos indígenas.

9) Tomar medidas urgentes para pôr fim à destruição do meio ambiente e à ameaça de
mudanças climáticas graves. Implementar outro modelo de desenvolvimento fundado
na sobriedade energética e no controle democrático dos recursos naturais;
Nada a objetar. Os sábios só ficam nos devendo uma descrição mais acurada do
que eles entendem por “outro modelo de desenvolvimento”, sem o que fica difícil
criticar, mais uma vez, suas “ideias” surreais. Sobriedade energética pode querer dizer
muitas coisas, inclusive com novas tecnologias desenvolvidas por empresas privadas,
que eles tão zelosamente querem expulsar de todo e qualquer domínio “público”. O
controle democrático dos recursos naturais é uma frase generosa, que pode tanto querer
dizer parlamentos nacionais, quanto ONGs, mas estas geralmente escapam de qualquer
controle democrático, pois são de caráter privado e não costumam prestar contas à
sociedade.

10) Exigir o desmantelamento das bases militares estrangeiras e de suas tropas em


todos os países, salvo quando estejam sob mandato expresso da Organização das
Nações Unidas;
Tremendo autoritarismo, pois existem países que definem sua segurança com
base em alianças militares e que preferem delegar certas tarefas a tropas estrangeiras,
instaladas em bases nacionais. Japão e Alemanha, por exemplo, não pretendem se
nuclearizar e preferem se colocar ao abrigo do guarda-chuva nuclear dos EUA. Os
sábios vão exigir que esses dois países deleguem sua segurança a tropas da ONU?

11) Garantir o direito à informação e o direito de informar dos cidadãos mediante


legislações que ponham fim à concentração de veículos em grupos de comunicação
gigantes;
Os sábios deveriam encaminhar sugestões detalhadas aos órgãos nacionais de
regulação audiovisual ou apresentar casos concretos de abuso nas instâncias de defesa

230
da concorrência. Atitude louvável essa, embora a mesma postura não se aplique no caso
de entidades puramente estatais, sempre julgadas benéficas por princípio.

12) Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre


elas a Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo prevalecer nelas os direitos
humanos, econômicos, sociais e culturais, em concordância com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Isso implica a incorporação do Banco Mundial, do
Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio ao sistema
das Nações Unidas. Caso persistam as violações do direito internacional por parte
dos Estados Unidos, transferir a sede da ONU de Nova Iorque para outro país,
preferencialmente do Sul.
Reformar essas instituições deve fazer permanentemente parte da agenda dos
governos responsáveis, já que essas instituições tendem a se converter em dinossauros
esclerosados, cuidando unicamente do seu próprio interesse e do seu pessoal.
Curiosamente, as instituições de Bretton Woods e a OMC não estão entre as mais mal
geridas, bastando constatar que os piores casos de má administração de recursos,
excesso de pessoal e desvios de função – quando não duplicação de iniciativas nas
mesmas áreas – se encontram bem mais nas organizações da área social e cultural e nas
de assistência aos países pobres.
Quanto à segunda sugestão, acredito que poucos delegados do Sul estariam de
acordo em retirar a maior parte das organizações internacionais de suas sedes em países
do Norte. Mas sempre se pode tomar a iniciativa de consultar os interessados.

Enfim, concluímos por aqui mais este “diálogo” com os antiglobalizadores, na


verdade uma iniciativa totalmente unilateral e unidirecional, posto que nunca recebi
nenhum comentário dos interessados a respeito de minhas críticas – algo contundentes,
reconheço – a suas ideias surrealistas. É da minha natureza exercer o pensamento
crítico, como também imagino que deva ser a postura acadêmica dos antiglobalizadores
e seus representantes autorizados, em primeiro lugar os sábios.
O que constato, de fato, é que os antiglobalizadores, e seus sábios, adoram o
pensamento único, pois que nenhuma entidade, ou personalidade individual, que não
concorde com seus princípios algo esquizofrênicos é convidada a falar ou debater em
seus conclaves sempre ruidosos e inconclusivos. Deve fazer mais de dez anos que eles
nos prometem um outro mundo possível, e na verdade a única coisa que eles conseguem
aprovar, como resultado desses encontros, é uma agenda que conseguiria tornar o
mundo atual pior do que ele já é. Com efeito, todas as suas recomendações vão a

231
contrário senso das tendências econômicas e científicas contemporâneas, tal como
observadas no mundo real; não nesse outro mundo possível de que eles falam, mas do
qual não conseguem entregar a receita.
Eu espero, no que me concerne, que este pequeno manual das irrealidades dos
antiglobalizadores possa contribuir para que eles reflitam sobre a realidade do mundo
concreto, não daquele imaginado por eles e que pouco tem a ver com as relações
sociais, políticas e econômicas efetivamente existentes na maior parte dos países. O que
deveriam fazer os antiglobalizadores (mas o que eles provavelmente não farão) seria
aproveitar o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, para fazer um balanço honesto
dos seus dez anos de pregações surrealistas e tirar as lições de por que suas receitas e
recomendações – com exceção, obviamente, das mais óbvias, relativas a direitos
humanos e sustentabilidade ecológica – não vêm sendo implementadas por praticamente
nenhum governo do planeta, mesmo aqueles supostamente mais comprometidos com as
suas causas.
Pode-se, a rigor, estabelecer um benchmark com base em suas recomendações –
tal como examinadas neste trabalho e em textos anteriores – e verificar em que medida
os governos aparentemente mais comprometidos com os princípios e causas do FSM
implementam, de fato, as medidas preconizadas pelos antiglobalizadores. O primeiro
teste é, evidentemente, o da própria globalização. Ninguém há de recusar a realidade,
por exemplo, de que Cuba e Coréia do Norte são países pouco globalizados – junto com
outros, como Síria e Iran, que também controlam a internet e a imprensa –,
comparativamente com Costa Rica e Coréia do Sul, e isso poderia servir de benchmark
para um balanço do bem estar social, dos direitos à livre informação e de todas as
demais liberdades individuais ou coletivas em todos esses países. O contraste seria tão
flagrante que eu não tenho nenhuma dúvida quanto ao resultado desse teste.
Em face desse tipo de realidade, eu me pergunto o que é que os sábios e seus
seguidores da antiglobalização aprovarão em Belém. Talvez uma repetição maquiada
das teses aqui examinadas. Creio que teremos mais do mesmo (até o próximo Fórum
Surreal Mundial), posto que eles sairão convencidos de que suas propostas podem
funcionar na prática. Ainda não se viu nada disso, mas eles não perdem a esperança.
Imagino que os mais jovens o façam por ingenuidade ou ignorância das coisas
do mundo. Imagino também que os mais velhos – sindicalistas, professores e outros
últimos crentes na verdade revelada – o façam por autismo político e incapacidade de
enfrentar a realidade. Quanto aos sábios, que teoricamente podem dispor de todo o
232
conhecimento acumulado desde sempre nas academias e centros de pesquisa, acredito
que eles continuam a repetir as mesmas ideias surrealistas e os mesmos equívocos na
área econômica, não por acreditarem em seus argumentos, mas apenas para disporem de
uma tribuna fácil para suas perorações inúteis. Isto não constitui apenas uma forma de
autoengano; mas se trata, provavelmente, de desonestidade intelectual, o que é
imperdoável a cidadãos escolarizados além do terceiro ciclo. Enfim, ninguém gosta de
desmantelar seus sonhos e utopias. Acho que os sábios também não...

Publicado em Mundorama, divulgação científica em relações


internacionais (27.12.2008; link:
http://www.mundorama.net/?article=271220081129). Republicado em
Espaço da Sophia (Tomazina – PR, ISSN: 1981-318X, Ano 2, n. 22, p. 1-
20, janeiro de 2009). Academia.edu
(https://www.academia.edu/attachments/32900639/download_file). Ensaio
incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015).

233
Apêndices

235
30. Relação dos artigos publicados em Via Política, 2006-2009

Paulo Roberto de Almeida


Coluna Diplomatizando
(Porto Alegre: www.viapolitica.com.br)
Link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando_indice.php
Lista atualizada em 12/01/2009

Na ordem cronológica inversa, de maio de 2006 a janeiro de 2009:

Interrupção do blog Via Política: janeiro de 2009

87) Fórum Surreal Mundial, 1: Reciclando velhas ideias (12.01.2009)

86) Previsões imprevisíveis em tempos de crise global: minha astrologia econômica


para 2009 (e mais além) (22.12.2008)

85) O problema da universidade no Brasil: do público ao privado? (15.12.2008)

84) As crises do capitalismo e a crise do marxismo: qual a mais grave? (23.11.2008)

82) Sobre a proposta de uma nova autoridade financeira mundial (16.11.2008)

83) Bric: anatomia de um conceito – X (10.11.2008)

82) Bric: anatomia de um conceito – IX ( 02.11.2008)

81) Bric: anatomia de um conceito – VIII (26.10.2008)

80) Bric: anatomia de um conceito – VII (20.10.2008)

79) Bric: anatomia de um conceito – VI (12.10.2008)

78) Bric: anatomia de um conceito – V (06.10.2008)

77) Bric: anatomia de um conceito – IV (29.09.2008)

76) Bric: anatomia de um conceito – III 15.09.2008

75) Bric: anatomia de um conceito – II (08.09.2008)

74) Bric: anatomia de um conceito – I (31.08.2008)

73) A Economia das Águas Marrons no Brasil: abordagem preliminar (10.08.2008)

72) John W. F. Dulles: um historiador do Brasil (03.08.2008)

237
71) O afundamento da educação no Brasil: observações angustiadas do ponto de vista
dos estudantes (14.07.2008)

70) Pequena lição de Realpolitik 07.07.2008

69) O legado de Henry Kissinger (09.06.2008)

68) Governança democrática: trajetória nacional e dimensão internacional (25.05.2008)

67) O Brasil e o cenário estratégico mundial: breves considerações (04.05.2008)

66) O império e sua segurança: quatorze novas teses sobre equilíbrio estratégico e
autossuficiência militar (27.04.2008)

65) O império americano em sete teses rápidas: uma hegemonia involuntária,


envergonhada e não reconhecida (1878), (20.04.2008);

64) O fetiche do Capital (31.03.2008)

63) Parodiando Maquiavel: Exortação para libertar a nação dos bárbaros (09.03.2008)

62) Em que você mudou de opinião? E por quê? (17.02.2008)

61) Um outro Fórum Social Mundial é possível… (aliás, é até mesmo necessário),
(27.01.2008)

60) Fórum Social Mundial 2008: Um pouco menos de transpiração e um pouco mais de
inspiração, por favor... (20.01.2008)

59) A duzentos anos da vinda da família real portuguesa: o que Portugal nos legou?
(23.12.2007)

58) Expansão Econômica Mundial: 100 anos de uma obra pioneira (4.12.2007) -

57) Autobiografia de um fora-da-lei – uma história do Estado brasileiro (2)


(04.11.2007)

56) Autobiografia de um fora-da-lei – uma história do Estado brasileiro (1)


(28.10.2007)

55) Política externa brasileira e integração sul-americana (21.10.2007)

54) Crônica do petismo universitário: dissolução de uma redundância? (2), (07.10.2007)

53) Crônica do petismo universitário: dissolução de uma redundância? (1), (30.09.2007)

52) Duro de crescer: obstáculos políticos ao crescimento econômico no Brasil (3),


(23.09.2007)

238
51) Duro de crescer: obstáculos políticos ao crescimento econômico no Brasil (2),
(16.09.2007)

50) Duro de crescer: obstáculos políticos ao crescimento econômico no Brasil (1),


(09.09.2007)

49) Como criar uma nação de assistidos (02.09.2007)

48) Teses para uma revolução partidária: sugestões (não solicitadas) para o congresso
de um grande partido (3) (19.08.2007)

47) Teses para uma revolução partidária: sugestões (não solicitadas) para o congresso
de um grande partido (2) (12.08.2007)

46) Teses para uma revolução partidária: sugestões (não solicitadas) para o congresso
de um grande partido (1) (05.08.2007)

45) Já não se fazem mais marxistas como antigamente (29.07.2007)

44) Duas passagens, de um romance histórico, sobre o carácter dos homens (2.07.2007)

45) Uma quarta guerra mundial (24.06.2007)

42) Algumas coisas simples que deveríamos ter no Brasil (18 junho 2007)

41) Uma questão de estilo: declaração ao mercado de dissertações e teses (03.06.2007)

40) Os cursos de Relações Internacionais no Brasil: situação atual e perspectivas


(27.05.2007)

39) Prometeu acorrentado: o Brasil amarrado por sua própria vontade (20.05.2007)

38) Presença da universidade no desenvolvimento brasileiro: uma perspectiva histórica


(13.05.2007)

37) Estaria a imbecilidade humana aumentando? (uma pergunta que espero não
constrangedora...) (29.04.2007)

36) Sete teses impertinentes sobre o Mercosul (22.04.2007)

35) Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter preventivo...)


(15.04.2007)

34) A arte de ser contrarianista (8.04.2007)

33) Socialismo do século XXI?: apenas para os incautos... (1.04.2007)

32) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (11) (25.03.2007)

31) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (10) (18.03.2007)
239
30) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (9) (11.03.2007)

29) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (8) (04.03.2007)

28) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (7) (25.02.2007)

27) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (6) (17.02.2007)

26) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (5) (12.02.2007)

25) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (4) (04.02.2007)

24) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (3) (29.01.2007)

23) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (2) (21.01.2007)

22) Fórum Social Mundial: propostas idealistas, grandes equívocos (1) (12.01.2007)

21) Previsões para 2007: sempre otimista quanto à sua impossibilidade (1.01.2007)

20) Mensagem presidencial de final de ano (25.12.2006)

19) Revendo as propostas dos laureados Nobel vinte anos depois (18.12. 2006)

18) Sobre colegas, livros e leituras... (10.12. 2006)

17) Uma reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo (04.12. 2006)

16) O papel dos BRICs na economia mundial (26.11. 2006)

15) Uma verdade inconveniente (será que o Brasil consegue crescer 5% ao ano?)
(12.11.2006)

14) Fim de consenso na diplomacia? (29.10.2006)

13) Dez obras fundamentais para um diplomata (15.10.2006)

12) Acredito... (30.09.2006)

11) Frases daquele baixinho, o corso Napoleão... (24.09.2006)

10) Uma nova capa, para um livro semi-novo (17.09.2006)

9) O estudo das relações internacionais do Brasil (10.09.2006)

8) Antiglobalizadores super-globalizados... (30.07.2006)

7) Dicionário político dos novos pecados capitais (23.07.2006)

240
6) Prioridades possíveis em uma administração racional (16.07.2006)

5) Dez novos mandamentos... (08.07.2006)

4) Incremento de atividades alternativas (08.07.2006)

3) Ajuste fiscal no FMI! (30.06.2006)

2) América do Sul: rumo à desintegração política e à fragmentação econômica? (10.06.


2006)

1) O Brasil no índice dos Estados falidos (25.05.2006)

Início da colaboração: maio de 2006

241
31. Livros de Paulo Roberto de Almeida

25) Oliveira Lima: um historiador das Américas, Paulo Roberto de Almeida, André
Heráclio do Rêgo (Recife: CEPE, 2017, 175 p.; ISBN: 978-85-7858-561-7).

24) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas


internacionais no Império (3ª edição; Brasília: Funag, 2017; 2 volumes; 964 p.;
ISBN: 978-85-7631-675-6; Volume I, 516 p.; ISBN: 978-85-7631-668-8 (link:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=907) e
Volume II, 464 p.; ISBN: 978-85-7631-669-5 (link:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=908).

23) Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não


convencionais (Curitiba: Appris, e-book, 2016; ISBN: 978-85-8192-429-8).

22) Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: Démocratie et autoritarisme


au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2015, 496 p.; ISBN:
978-3-8416-7391-6).

21) Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays über die
Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens (Saarbrücken: Akademiker
Verlag, 2015, 204 p.; Übersetzung aus dem Portugiesischen ins Deutsche: Ulrich
Dressel; ISBN: 978-3-639-86648-3).

20) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não


convencionais (Curitiba: Appris, 2014, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8).

19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN:
978-85-02-19963-7).

18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no


contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN: 978-85-216-
2001-3).

17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2011, 272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6).

16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (Brasília: Senado Federal, 2010, 195
p.; ISBN: 978-85-7018-343-9).

15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição
eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8).

14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a


academia (Brasília: LGE, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2).

13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas


internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Senac-SP, 2005, 680 pp., ISBN:
85-7359-210-9).

242
12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da
diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: UFRGS,
2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-
738-4).

11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil


(São Paulo: Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8).

10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de
Queiroz Mattoso; Paris: L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-6).

09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais


contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-219-0435-5).

8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas


internacionais no Império (São Paulo: Senac, 2001, 680 pp.; ISBN: 85-7359-210-9).

7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: L’Harmattan,


2000, 160 p.; ISBN: 2-7384-9350-5).

6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Universidade São


Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3).

5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999,


328 p.; ISBN: 85-7348-093-9).

4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez


de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5).

3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-
7322-548-3).

2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à


globalização (Porto Alegre: UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5).

1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Aduaneiras, 1993, 204


p.; ISBN: 85-7129-098-9)

Organização, edição:

13) Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo
Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag,
2017; disponível na Biblioteca Digital da Funag: volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-
7631-696-1; link:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913; volume
2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914.
12) O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba:
Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0).

243
11) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (Brasília: Senado
Federal, 2016, 504 p.; ISBN: 978-85-7018-696-6).
10) The Drama of Brazilian Politics: From 1814 to 2015 (with Ted Goertzel; Amazon
Digital Services; 2015, 278 p.; ISBN: 978-1-4951-2981-0).
09) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens
Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2016, 326 p.; edição digital; ISBN: 978-85-
0212-208-6).
08) Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil
nos Estados Unidos (com Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins;
Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1; disponível na Biblioteca
Digital da Funag, link: http://funag.gov.br/loja/download/753-
guia_dos_arquivos_americanos.pdf).
07) Envisioning Brazil: a Guide to Brazilian Studies in the United States, 1945-2000
(with Marshall C. Eakin; Madison: Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN:
0-299-20770-6).
06) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens
Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2005, 328 p.; ISBN: 978-85-02-05385-4).
05) O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados
Unidos, 1945-2000 (com Marshall C. Eakin e Rubens Antônio Barbosa; São Paulo:
Paz e Terra, 2002; ISBN: 85-219-0441-X).
04) Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social (São Paulo: LTr, 1999, com Yves
Chaloult).
03) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (edição fac-similar:
Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13; 420 p.).
02) José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do
periodo colonial e varios documentos desde 1492 (edição fac-similar, publicada na
coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal; Brasília: Senado Federal, 1997; 2
volumes; Volume I: 1493 a 1870; Volume II: 1871 a 1912).
01) Mercosul: Textos Básicos (Brasília: IPRI-Fundação Alexandre de Gusmão, 1992,
Coleção Integração Regional nº 1)

244
32. Nota sobre o autor

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em


Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto
Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de
Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília
(Uniceub). Como diplomata, serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas
delegações em Genebra e Montevidéu e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em
Washington (1999-2003). Foi também Assessor Especial no Núcleo de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Desde agosto de 2016 é Diretor
do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de
comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas
centenas de artigos publicados. Dispõe de um site pessoal (www.pralmeida.org) e de um
blog voltado para os mesmos temas que configuram seus interesses intelectuais, mas
que considera ser mais para divertissement do que para a pesquisa
(http://diplomatizzando.blogspot.com/).

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Redigido em MS Word 2011,
Composto em MacBook Air
Por Paulo Roberto de Almeida
Em 26/12/2017
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
Tel.: (61) 99176-9412

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